segunda-feira, setembro 21, 2020

Pedro Simon e o meu primeiro voto


  • Há questão de uns dois anos, naquele período entre o Natal e o Reveion, caminhando pela avenida Protásio Alves, aqui em Porto Alegre, cruzei com Pedro Simon, que vinha em sentido contrário - do lado ao antigo cinema Ritz (foi lá que vi a Laranja Mecânica, quando do seu lançamento, com bolinhas e tudo) para a loja Salém, onde, em cima, tem residência, ao lado da igreja de São Sebastião. Vinha de cabeça baixa, com as mãos nos bolsos, elegantemente vestido e com a seriedade meditativa da sua idade. Afinal, completou 90 anos em janeiro. Eu nem sequer imagino o que seja isso. Fisicamente me pareceu em excelente forma e lhe daria tranquilamente uns 15 ou 20 anos a menos. Lembrei então dele, quando o vi pela primeira vez em pessoa, em comício no salão paroquial da pequenina cidade de Santo Augusto, a 450 quilômetros de Porto Alegre, naquela campanha eleitoral de 1974. Na ocasião o MDB aplicou uma surra na Arena, vencendo as eleições em 16 Estados brasileiros - não havia voto direto para governador neste período autoritário. 
  • Eu tinha 13 anos e fui lá especialmente para vê-lo. Decepcionei-me, à primeira vista, com a sua estatura física - tão baixinho, ainda mais do que eu, quase insignificante. Mas, meus amigos, quando o homem começou a falar foi como se uma onda magnética atravessasse a multidão. À oratória candente se combinavam os gestos e uma fúria de pastor evangélico, de Antonio Conselheiro no sertão de Canudos. Em 1982 viajei oito horas de ônibus especialmente para votar em Simon, nas primeiras diretas para governador. Foi o meu primeiro voto, aos 21 anos. Ele era o franco-favorito, o cavalo mais cotado do páreo, e se dava quase certa, até pelo governo militar, a sua eleição. Mas perdeu na contagem final, dizem, por fraude, já que havia reconhecido a derrota antes da hora e propiciou uma roubalheira enorme nas urnas - os fiscais  do MDB, todos, abandonaram seus postos. Não foi isso a causa, porém, e sim os votos que Collares lhe tirou, dividindo a oposição. Depois candidatou-se de novo, foi eleito e fez um governo bem meia-boca. Na verdade, era um grande tribuno e não um homem para o executivo. 
  • Pedro Simon tem agora 90 outonos nas costas e está fora do mundo político. Na rua, passou por mim calado e elegante, uma longa história política em um corpo franzino. Um democrata, a experiência e a eloquência em pessoa, um símbolo de um Brasil que, quando a gente pensa, nem sabe mais o que pensar. Quanto ao menino de 13 anos, esse agora só existe na casca do ovo.

sábado, setembro 19, 2020

O misterioso e inesquecível incêndio do Colégio Júlio de Castilhos, o Julinho

 

Antigo prédio do Julinho, consumido pelas chamas

 Pesquisa e Texto: Vitor Minas
    Talvez hoje, em meio a tantos fatos ruins e à indiferença geral, a destruição de um grande colégio público não causasse comoção a Porto Alegre. Porém no início dos anos cinquenta o ocorrido com o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o “Julinho”,  consternou verdadeiramente os habitantes da Capital, zelosa dos seus valores e orgulhosa do alto padrão educacional de um estabelecimento modelo que simbolizava o que então o Rio Grande do Sul tinha de melhor: o seu mais avançado padrão civilizatório frente aos demais Estados e o genuíno orgulho que isso trazia ao povo gaúcho. Público e gratuito, com um ensino considerado de excelência, o colégio dava acesso direto ao terceiro grau e nele estudaram, entre tantos, nomes que depois de tornaram famosos ou notórios em muitas áreas, incluindo Leonel Brizola, Paulo Brossard, Paixão Cortes e Barbosa Lessa – uma elite intelectual e pensante vinda democraticamente das muitas camadas da sociedade gaúcha. Foi também no Julinho, em 1948, que iniciou o Movimento Tradicionalista Gaúcho, embrião dos milhares de CTGs que se espalham pelo mundo. 
    O incêndio foi marcado pela forte suspeita – na verdade, uma certeza – de ter sido um ato intencional e premeditado, “praticado por mãos criminosas”, como disse o Correio do Povo, ou por um “piromaníaco insano”, um “perigoso tarado que vê seus instintos doentios despertar em determinadas épocas do ano”, conforme escreveu o Diário de Notícias.  Era, desde 1947, o quinto grande prédio público (incluindo aí a Cooperativa dos Funcionários Públicos) a queimar de forma semelhante. Em nenhum deles o inquérito policial apontou a autoria e muito menos se estabeleceu uma ligação direta entre os fatos.
    A destruição daquela que era considerada a unidade de ensino mais avançada e democrática em todo o Estado aconteceu na primeira hora da madrugada de 16 de novembro de 1951, sexta-feira, em pleno feriadão da Proclamação da República, uma noite ventosa na cidade que ainda mal se recuperara do renhido combate eleitoral, no dia primeiro, entre Leonel Brizola (PTB) e Ildo Meneghetti (PSD) para o cargo de prefeito municipal – Meneghetti virou o placar e venceu ao final com diferença de apenas mil votos. Os dois, aliás, engenheiros formados pela Escola de Engenharia e ligados à história do Julinho (Brizola estudou nele). Curiosamente, naqueles dias uma greve geral mobilizava os estudantes universitários de todo o Brasil. Radicalmente politizado, o efervescente Julinho repercutia internamente isso tudo.
   Também naquele início do ano de 1951 os alunos haviam deflagrado uma greve pedindo o cancelamento da decisão de separar os rapazes das moças – um prédio da Rua Doutor Flores já teria sido alugado para abrigar as alunas, relatou o radialista, ex-vereador e então aluno Lauro Hagemann em depoimento para o livro “Julinho: Cem Anos de História”, organizado pelos professores Paulo Ledur e Otávio Rojas Lima (Editora AGE) no ano de 2000.
   Motivos ou pretextos à parte, o certo é que em poucas horas a imponente construção, inaugurada em 1908 na Avenida João Pessoa, defronte à Escola de Engenharia, ao qual era ligada, e à vizinha Faculdade de Direito, veio abaixo devido à espantosa rapidez das chamas. Os prejuízos, porém, eram ainda bem maiores para toda a cultura do Rio Grande do Sul, já que da biblioteca – com valiosíssimos e raros volumes de livros dos séculos XVIII e XIX – também nada havia restado. O mesmo aconteceu com o museu, um dos mais completos do Rio Grande.
    Dias depois o jornalista Wilson Müller, 22 anos, ex-aluno da instituição, publicou no Diário de Notícias uma crônica em que lamenta “o que nunca imagináramos pudesse acontecer”: “(...) Quem não conheceu o Julinho? Naquele casarão velho da João Pessoa formou-se a consciência democrática de milhares de gaúchos. A alma farroupilha vibrou dentro do Colégio Júlio de Castilhos, desde 51 anos passados, quando, no ofuscar do século passado e no dealbar do presente, levantou-se o nosso colégio como a barreira invencível do espírito indomável do estudante gaúcho. Quem por ali passou jamais o esquecerá. Quem viveu algum tempo no “Julinho” sempre dirá, com um orgulho que só nós podemos ter: “Eu estudei no Julinho”. Basta isso para endossar a vida estudantil de um homem. Assembleias barulhentas e tumultuosas. Greves contra os professores. Abaixo-assinados de protesto contra esta ou aquela medida. Discussões intermináveis sobre a teoria do conhecimento e sobre a quarta dimensão. Passeatas de regozijo e de protesto. Exames orais e escritos feitos sem conhecimento da matéria. “Colas” e provas anuladas. Colóquios amorosos nos corredores, às escondidas dos professores e perto dos professores. Fim do curso e uma sincera homenagem aos que nos guiaram lá dentro. Um vestibular. A faculdade. Um agradecimento eterno. Lodeiro, Melo, Marieta, Tristão, Abílio, Ripol, Ataualpa, Zilá, Damasceno, Morais, Orlando, Paixão e o Machadinho são nomes que ligaram nossa mocidade à vida futura e são a garantia do patrimônio moral do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Adeus, Julinho...”  
SINISTRO ANUNCIADO – Na realidade sabia-se que, mais cedo ou mais tarde, o colégio pegaria fogo – só não se poderia precisar em que circunstâncias isso ocorreria. Uma simples questão de tempo e de oportunidade.
   Com efeito, por diferentes vezes o Julinho esteve às voltas com malogradas tentativas de incêndio, a última das quais na quarta-feira, 14. À noite, nessa data, uma das serventes encontrou quebrados os vidros da porta da secretaria, situada ao lado do prédio principal. Dentro, jogado no chão, estava um pano embebido em gasolina que só não pegara fogo devido à forte umidade decorrente das chuvas caídas no dia anterior.
   Ciente do perigo que rondava a instituição, o diretor José Lodeiro solicitou policiamento às autoridades estaduais, algo que deu muito a falar nos dias seguintes: a Polícia Civil, em nota emitida por seu chefe-geral, Germano Sperb, confirmou que recebera o pedido e havia designado um guarda-civil para o policiamento do local, mas que este, dias antes, havia sido dispensado da tarefa pela direção, embora estivesse presente na noite do incêndio – tanto que teria sido o primeiro a comunicar o fato a policia e aos bombeiros. Lodeiro, por sua vez, desmentiu categoricamente tal afirmação, garantindo que, por sua própria conta, o vigilante deixara de comparecer ao serviço, fazendo com que ele, Lodeiro, costumasse vistoriar o colégio antes de dormir – o diretor residia nas proximidades. O Grêmio Estudantil, por sua vez, saiu oficialmente em apoio à direção e acusou a polícia de “ter colaborado positivamente com o incêndio”, conforme nota assinada pelo presidente do Grêmio, Onofre Quadros. Também o resultado do trabalho da perícia foi diferente da versão de muitas testemunhas e até mesmo dos bombeiros. Para os primeiros, o sinistro poderia ser, quem sabe, ocasional, enquanto direção e estudantes batiam-se pela tese única da intencionalidade – certamente a mais plausível. O certo é que a chave-geral da energia elétrica havia sido desligada durante o feriado, dia em que o prédio estava deserto, e isso afastava a possibilidade de um curto-circuito interno.
    Segundo testemunhas, o fogo foi avistado das ruas e residências vizinhas à meia-noite de quinta-feira ou aos quinze minutos da madrugada de sexta-feira, quando as chamas já tomavam conta do telhado, espalhando-se com incrível rapidez em virtude dos ventos que sopravam. As mesmas pessoas afirmaram ter visto três focos na cumeeira – nas extremidades e no meio da cobertura, onde se elevava a bela cúpula central. Mais tarde, em depoimentos aos jornais, alguns estudantes (dentre os primeiros a ver as chamas) negaram que isso fosse verdadeiro e asseguraram ter visto apenas um único foco. Em um “espetáculo contristador”, os repórteres anotaram que as folhas de zinco que cobriam as cúpulas “desprendiam-se em brasa sobre a cerca de grades de ferro pontiagudas.”
     Durante quatro horas cerca de 50 bombeiros vindos principalmente da estação da Avenida Júlio de Castilhos enfrentaram algumas dificuldades operacionais, já que o hidrante mais próximo mostrou-se dotado de pouca vazão de água e foi suprido pelos demais instalados na avenida, defronte ao necrotério e também na esquina da Rua Avaí. Quatro veículos da corporação foram posicionados nas imediações enquanto uma grande multidão, vinda de várias partes do centro, se comprimia em volta a fim de presenciar aquele momento histórico. Grossos rolos de fumaça chamavam a atenção dos transeuntes que passavam pela Avenida João Pessoa, nas proximidades da antiga Praça do Portão. Chefiando a operação de combate às chamas estava o oficial-aspirante Jesus Linares Guimarães – anos mais tarde comandante geral da Brigada Militar e participante das ações do edifício Renner em 1976.
   Depois de muitos esforços os bombeiros conseguiram isolar o local e evitar a propagação do fogo para a Escola de Engenharia – que teve apenas duas janelas atingidas. Linares disse ter estranhado a celeridade com que as chamas se espalharam por todo o segundo pavimento, mas deu graças pelo fato de um dos seus soldados ter escapado por pouco do desabamento de um dos tetos – se atingido, seria morte certa.
   Ao término de tudo dezessete salas de aula, mais a biblioteca e o museu, haviam se transformado em cinzas fumegantes. Por sorte quinze valiosos aparelhos de microscópio e outros de física, emprestados dias antes à Faculdade de Filosofia, escaparam ao cômputo dos prejuízos gerais, calculados em cerca de 10 milhões de cruzeiros. No dia seguinte, entre tantos curiosos ilustres, visitaram o local o governador Ernesto Dorneles, o secretário da Educação, Júlio Marino de Carvalho, o professor Mabilde Ripoll, superintendente do ensino secundário, e o reitor da Universidade do Rio Grande do Sul, professor Alexandre Martins da Rosa. O governador prometeu a imediata construção de um novo prédio para o Julinho (que já fazia parte dos planos), desta vez localizado na Praça Piratini, também na João pessoa. Enquanto isso as aulas passariam para o prédio do Arquivo Histórico do Estado, na Rua Riachuelo.
Felizmente ninguém morreu ou saiu seriamente ferido em consequência do incêndio do Julinho naquela noite-madrugada de quinta para sexta-feira. Porém uma semana depois, no início da tarde de 26 de novembro, segunda-feira, o operário Antonio José Nascimento, 27 anos, branco, casado e residente no Passo da Cavalhada, na Capital, pisou em falso quando trabalhava na demolição do primeiro andar. Ele caiu de uma altura de cinco metros e morreu no Hospital de Pronto Socorro, minutos depois.


Os estrangeiros e a falta de salada

Os estrangeiros - europeus, principalmente - que chegam ao Brasil reclamam de um item alimentar que, segundo eles, falta a nossa mesa, as saladas. De fato, isso pode ser constatado por qualquer um, inclusive pelos próprios nativos, desde que sejam do Sul, principalmente do Rio Grande, onde a variedade e a quantidade de saladas é abundante em qualquer restaurante de comida a quilo ou se self service. Sempre que viajava - hoje dou voltas em redor de minha cama e faço incursões até o supermercado - sentia falta das saladas e lamentava, até me irritava, com a pobreza da oferta. Vinham algumas rodelas de tomate, às vezes verde, e o restante, no mais, era pura comida de panela. Quando se pedia a saladas, os atendentes se espantavam, uma vez que lhes parecia natural comer aquelas coisinhas como se fossem, digamos, guarnições. Uma pesquisa revelou que o brasileiro, de um modo geral, come poucas saladas, porém os estrangeiros que reclamam disso são aqueles que não vêm ao Sul e ficam lá pelo Rio ou pelo Nordeste. Ou seja, a esmagadora maioria. Querem saladas, gringos, e venham ao Sul ou à região colonial italiana e verão o que é bom e como o Brasil é diferente. No mais, gringada, não se queixem e ao menos procurem adotar outro hábito tupiniquim, vigente de norte a sul e tão raro no hemisfério norte: tomar banho todo dia e escovar os dentes depois das refeições.

quinta-feira, setembro 17, 2020

A mais mortal epidemia que assolou Porto Alegre: a Gripe Espanhola de 1918

 



Texto baseado em pesquisa de jornais, revistas e publicações da época, citados no texto. Republicação

Pesquisa e Texto: Vitor Minas

Nunca se viu nada igual: a rua da Praia vazia, as casas comerciais fechadas, os bares e os cafés desertos, os bondes elétricos paralisados, os colégios sem alunos ou professores e a entrega de correspondência suspensa. O desabastecimento atingia toda a cidade – faltavam remédios, leite, lenha, gasolina e gêneros alimentícios e tudo encarecia do dia para a noite. Cortejos fúnebres se encontravam nas esquinas; nos cemitérios detentos condenados substituíam os coveiros que morriam em serviço. Mesmo assim, os caixões disponíveis eram insuficientes para tantos óbitos e centenas de pessoas eram sumariamente enterradas em valas coletivas, enquanto dezenas de corpos amontoavam-se à espera de sepultamento.
A cada edição os jornais publicavam a relação oficial dos mortos. Havia cenas de histeria pública, os casos de suicídio aumentavam e ninguém se sentia seguro em parte alguma. Quem podia abandonava a cidade em busca de ares mais saudáveis. Nas calçadas os raros transeuntes seguiam a passos apressados. Dos sinos da igreja matriz partiam dobres tristes anunciando novas vítimas da “influenza espanhola”, a maior pandemia da história da Humanidade, com um bilhão de infectados, a metade da população da época, e cerca de 20 milhões de mortos. Somente no Brasil foram mais de 300 mil óbitos, dos quais18 mil no Rio de Janeiro.
A Grande Guerra Mundial iniciada quatro anos antes estava para terminar. Faminto e debilitado, o Velho Continente transformara-se em um território propício a toda espécie de doenças. Na América, no Brasil arcaico e rural da Velha República, grassavam a tuberculose, a varíola, a varicela, o tifo, a escarlatina, a malária, a sífilis, a lepra. Em Porto Alegre, de cada 1.000 bebês mais de 300 morriam antes de completar 2 anos.
LEITE FALSIFICADO - A capital gaúcha , com 170 mil habitantes, era então um amontoado de casas velhas e vielas estreitas e escuras. A água municipal não recebia qualquer tratamento e, nos dias de chuva, as torneiras despejavam uma desagradável mistura da cor do barro, embora a maioria da população se valesse do serviços dos aguadeiros - ou “pipeiros”.
A rede de esgoto servia tão somente os bairros nobres – Independência, Duque de Caxias, parte do Menino Deus - o recolhimento de lixo não seguia nenhuma diretriz rigorosa e as fétidas “casinhas” externas desempenhavam o papel de vasos sanitários. Comerciantes inescrupulosos vendiam alimentos falsificados ou deteriorados: carne velha, pão feito de fava e milho, pimenta do reino misturada a pó de sapato, leite aguado e manteiga rançosa. Não bastasse, vivia-se uma aguda crise econômica, com carestia, endividamento, inflação, greves operárias em São Paulo e insatisfação generalizada.
A “influenza” chegaria ao País em meados de setembro a bordo dos navios que vinham da Europa. Das capitais litorâneas ou portuárias – Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio - rapidamente estendeu-se para os quatro cantos do território nacional. Chegou a pontos remotos da “hinterland” brasileira, não poupando cidades, vilas, de sul a norte, matando e dizimando tribos inteiras da região amazônica. Com quase 1 milhão de habitantes, clima insalubre e alta densidade demográfica, a Capital da República transformou-se em um vasto hospital. Centenas de pessoas morreram diariamente entre outubro e novembro e 70% da população caiu de cama, acometida da estranha moléstia cuja origem, afinal, ninguém precisava. Em São Paulo foram 350 mil infectados – 65% da população – e 5100 mortos oficialmente contabilizados. Da virulenta peste sabia-se apenas que era diferente de tudo o que até então se vira e que provavelmente se originasse da Espanha, convencionando-se então chamá-la de “gripe” ou “influenza hespanhola”, embora nenhuma nação - muito menos a própria Espanha (que a cognominou “febre russa”), assumisse a paternidade. Na Rússia foi denominada de “febre siberiana”, na Sibéria de “febre chinesa” e na França de “catarro hespanhol”. Fez 5 milhões de vítimas fatais na Índia e 450 mil nos Estados Unidos. Espalhando-se rapidamente pelos quatro cantos do Mundo, matou os primeiros brasileiros na costa da África, em setembro de 1917. Do efetivo de 2 mil militares da Divisão naval brasileira – dois navios de patrulha e uma missão médica - que, tardiamente, iriam participar da Grande Guerra(o conflito acabou um dia depois da chegada ao front), 90% foram atingidos pela doença e mais de cem morreram nas proximidades de Dakar, no Senegal.
Por mar a moléstia aportou na costa brasileira e logo fez morada nas principais cidades litorâneas. No início de outubro a Capital Federal sucumbiria à doença. Em seu livro de memórias “Chão de Ferro”, o médico e escritor Pedro Nava descreve o que foram aqueles dias na cidade do Rio de Janeiro.
“Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto de doentes e cifras pavorosas de obituário. As funerárias não davam vazão – havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-las(...) Era muito defunto para os poucos coveiros do trivial – assim mesmo desfalcados pela doença. Foram contratados amadores a preços vantajosos. Depois vieram os detentos. (...) Era de ver as ruas vazias cortadas de raro em raro pelos rabecões e caminhões de cadáveres(...) Um ou outro passante andando como se estivesse fugindo e trazendo no rosto a expressão das figuras do quadro de Eduard Munch: Angst. Isso mesmo, angústia: faces de terror, crispações de pânico, vultos de luto correndo, pirando, dando o fora e, no fundo, um céu vangogue sangue ocre.”
ELA CHEGOU A BORDO DOS NAVIOS - Oficialmente, a espanhola chegou ao Rio Grande do Sul no dia 9 de outubro, uma quarta-feira, a bordo do navio Itajubá, vindo do Rio de Janeiro: 38 de seus tripulantes apresentavam os sintomas da febre. Ao atracar em Rio Grande, seu comandante comunicou o fato às autoridades portuárias, descrevendo, sucintamente, uma febre de “caráter benigno”. Por sua vez as autoridades sanitárias gaúchas limitaram-se a examinar os tripulantes, para isolá-los em seguida. O navio foi desinfetado e – como de praxe - o fato comunicado ao Palácio Piratini.
Três dias depois o navio Itaquera – que, devido à doença, havia sido impedido de atracar em portos do Paraná e Santa Catarina – chegou a Rio Grande, transferindo-se seus 32 doentes para o lazareto da cidade. Cumpridas as formalidades sanitárias, o vapor prosseguiu viagem pela Lagoa dos Patos, chegando a Porto Alegre a 14 de outubro. Dois dias após, com outros 7 doentes confirmados, atracava no cais da Capital o navio de cabotagem Mercedes, do Lloyd Brasileiro, procedente de Rio Grande. Não havia nenhum médico a bordo e somente 48 depois da chegada seus tripulantes seriam postos em isolamento. No dia 17 finalmente atracou na Capital o Itajubá, trazendo consigo os tripulantes que haviam sido submetidos a uma curta quarentena em Rio Grande.
No dia 18, por fim, surgiram notícias de alguns casos da estranha gripe, com três registros em pontos diferentes; um funcionário da higiene Pública e mais dois homens pediram espontaneamente para serem isolados. Uma moça também compareceu à Diretoria de Higiene do Estado apresentando os mesmos sintomas dos demais: calafrios em todo o corpo; prostração intensa; febre que chegava a 40 graus; dores musculares, dores de cabeça e na barriga, nos olhos, nos ombros, nas costas, nos rins e nas pernas; catarro abundante e muita tosse, bem como sensibilidade extrema à luz, náuseas, vômitos, calor no rosto, vertigens e lágrimas.
A tais sintomas acrescentava-se uma profunda depressão psíquica e, muitas vezes, sensíveis alterações cardíacas ou respiratórias que levavam à morte.
Nos dias 20 e 21 seriam notificados mais 12 casos suspeitos, todos, ressaltavam as autoridades gaúchas, “benignos”. Outros quatro caixeiros viajantes recém chegados à cidade também apresentavam os mesmos sintomas. No dia 23, somavam 21 pessoas recolhidas ao isolamento. Em outra porta de entrada do Estado, na mesma data, comunicava-se o fato extraordinário às autoridades da Capital: à exceção de um telegrafista, todos os funcionário da estação de trens de Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina, haviam caído vítimas da “influenza”. Em poucos dias, no Hospital da Brigada, na Capital, baixaram, vítimas da febre, mais de 30 praças. Outros 130 soldados foram colocados em isolamento compulsório. Depois de percorrer mundo, a gripe espanhola era também gaúcha.
A “IMUNDICIE” DA SANTA CASA- Em 1918 o intendente José Montaury, do Partido Republicano Riograndense, comandava a municipalidade. Espécie de títere do presidente do Estado, o caudilho Antonio Augusto Borges de Medeiros, Montaury, um fluminense nascido em Niterói, assumiu o cargo em 1897 e exerceu-o por longos 27 anos, período no qual não faltaram os mais variados surtos epidêmicos. A última fora a de varicela, em 1916.
Ainda que uma das mais populosas cidades brasileiras a Capital do Rio Grande do Sul resumia-se então ao centro e alguns bairros de difícil acesso. Os carros de praça “motorizados” competiam com outros movidos a parelhas de cavalos e aos bondes elétricos. Via-se as comédias mudas de Carlitos e no final da tarde fazia-se o “footing” na rua da Praia, com homens de chapéu e bengala e mulheres de grandes e pesados vestidos. A Confeitaria Rocco, o Café Colombo, na Andradas, o Chalé da Praça XV, a Livraria do Globo, os cine-teatros Guarani – o mais “luxuoso” – e o popular Apolo, o Petit Casino, o Clube do Comércio, o Germania, o Caixeiral, o Clube dos Caçadores (na verdade, um cabaré) e o Hipódromo do Moinhos de Vento incluíam-se entre os pontos de referência da sociedade mundana da época – industriais, comerciantes, funcionários públicos, advogados, jornalistas, poetas, boêmios e desocupados em melhor situação financeira.
Os principais jornais - Correio do Povo, A Federação, A Gazeta do Povo e O Independente, recebiam, via cabo submarino, os acontecimentos do restante do mundo que os leitores liam com dias de atraso. As revistas Kodak e “Máscara” – de entretenimento, cultura e variedades - douravam a vida social e cultural da capital e das principais cidades gaúchas: Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santa Maria. Havia futebol – ou “matchs” - aos domingos e pescarias e esportes náuticos no rio Guaíba, cujas águas, limpas e calmas, espraiavam-se até a Cidade Baixa. As noites eram previsivelmente calmas e escuras – a iluminação elétrica ainda convivia com os velhos lampiões dos postes. Comandadas pelo doutor Mário Totta, as famílias mais chiques veraneavam no “arrabalde” da Tristeza e a praia da Pedra Redonda, um dos cartões postais da cidade, servia de cenário para concorridas festas e saraus onde não faltavam intelectuais e escritores como Augusto Meyer, Olyntho Sanmartin, Teodomiro Tostes e afetados poetas parnasianos.
No centro, à noite, pontificavam os discretos “rendez-vous” e cabarés mais caros com as necessárias mulheres francesas e polacas. Quase tanto quanto a tuberculose, a sífilis impunha cuidados e cobrava seu preço aos moços desprevenidos. A cidade dispunha de seis precários hospitais e quatro médicos voltados ao atendimento público em igual número de postos de saúde. Por seu lado, o Departamento de Higiene, com 56 funcionários em todo o Estado e duas ambulâncias e seis carroças na Capital, pouco tinha a oferecer. Os médicos mais renomados – Sarmento Leite, Mário Totta, Jacinto Gomes, Ivo Corseuil, Landell de Moura e Protásio Alves, hoje nomes de ruas e avenidas – dividiam-se entre a clínica estabelecida e o atendimento familiar a domicílio.
Os portoalegrenses abastados, contudo, tratavam-se em casa, evitando a promiscuidade, a sordidez, as infecções e a imundície dos quartos da Santa Casa, “um atentado à higiene”, na descrição do doutor Mário Totta. Fiel ao imaginário da época e às noções da medicina do início do século, as mães fortificavam e depuravam seus filhos com Emulsão de Scott e óleo de rícino, reputação milagrosa e restauradora dividida com os “banhos de mar” (naquele ano inaugurava-se o “luxuoso” balneário do Cassino), e os bons ares da serra e do litoral, embora todo o cuidado fosse pouco para evitar-se os mortíferos “golpes de ar”.
Na última semana de outubro esta simplória Porto Alegre transformou-se subitamente em uma cidade enferma. Nem mesmo os esforços irritantes e patéticos do Governo positivista de Borges de Medeiros, para o qual não havia motivos de alarma ou pânico, já que a gripe, a princípio, não mostrava-se tão virulentamente fatal, evitaram que a população se apercebesse claramente da extensão da epidemia: chegara à cidade a peste que viera da Europa.
De súbito, hordas de populares aglomeraram-se às portas das farmácias, disputando toda espécie de medicamentos indicados para a prevenção da doença, em especial o quinino, que havia se mostrado eficaz em outras ocasiões. Os estoques do produto, de purgantes, de óleo de rícino e mesmo as sortidas de limão e pencas de cebola vendido nas feiras e armazéns sumiram do mercado ou encareceram de forma exorbitante. Os balconistas das farmácias – aqueles que mantinham-se de pé - não descansavam um só instante. Hospitais como a Santa Casa de Misericórdia – abrigando um terço dos doentes do Estado – recebiam levas de novos pacientes, acomodados à maneira possível. À falta de leitos improvisavam-se toscas enfermarias e o Governo – finalmente reconhecendo a situação mas fugindo à sua real extensão e gravidade – passou a organizar hospitais improvisados e equipes de emergência para percorrer as residências e levar assistência médica à população pobre.
Recomendava-se, a princípio, cama, higiene e repouso, além de limpar a boca e as fossas nasais várias vezes ao dia com uma lavagem de água e sabão, sem esquecer dos proverbiais gargarejos com água oxigenada ou boricada. Os portoalegrenses, no entanto, apelavam para tudo que estivesse ou não estivesse à mão – chá de eucalipto, cachaça com mel e limão, aspirina, suco de cebola, vinho, caldo de galinha, purgantes, infusões, preces, benzimentos, promessas, talismãs. O uso abusivo do quinino não raro causava intoxicações, com prejuízos irreparáveis à audição e à visão. Charlatões, curandeiros e vivaldinos encontravam terreno fértil para a venda dos mais bizarros produtos ou receitas: pílulas, chocolates, filtros de água e até cigarros que “preveniam ou afastavam o mal”.
A partir de 21 de outubro haviam sido registrados os primeiros óbitos. Os jornais da Capital, habitualmente voltado à cobertura da Grande Guerra e aos acontecimentos políticos no Rio de Janeiro, abriram suas páginas para a evolução da “peste”. No início de novembro informava-se que a Escolha de Engenharia, o colégio Sevigné, o colégio Militar, Ginásio Anchieta e outros estabelecimentos de ensino da cidade haviam decidido suspender as aulas e adiar os exames finais. Sem movimento de público, o comércio e as repartições fechavam suas portas e os teatros e os cinemas comunicavam a suspensão dos espetáculos. Na tradicional Confeitaria Rocco a maioria dos empregados caíra doente.
CIDADE TINHA "ASPECTO FÚNEBRE" - Na Livraria do Globo 62 funcionários contraíram a influenza e o Correio do Povo passou diariamente a oferecer vagas de entregador em substituição àqueles que iam sendo atingidos pela epidemia. O “turbilhão’ da rua da Praia deu lugar a calçadas vazias. Sem carteiros, os Correios suspenderam as entregas e a Companhia telefônica, desfalcada de 285 funcionários, pediu à população que só fizesse uso do telefone em caso de extrema urgência. Os guardas desapareceram das esquinas, os horários dos bondes foram suspensos ou adiados, a Assembléia Legislativa cancelou as suas sessões ordinárias. A Companhia Força e Luz ficou sem foguistas. Todos se recolhiam mais cedo, evitando contatos.
“A cidade tem durante o dia um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre. Raro é o transeunte que anda. Os cafés, os bares, tudo escuro, dando à Capital a forma de uma cidade morta e sem vida”, escreveu o jornal O Independente em seu número de primeiro de novembro.
Temendo o contágio ou já atingidos pela doença, até os costumeiros leiteiros que vinham da periferia deixaram de vender o produto às portas das residências.À aproximação do feriado de Finados, as autoridades alertavam as pessoas para que não fossem aos cemitérios, a fim de evitar aglomerações e o possível contágio. Inicialmente pensou-se que o vírus pudesse ser transmitido pela água, ou até mesmo pelo ar.
“O pavor coletivo, o alarma social, se está tornando mais grave do que a própria epidemia. Alguns suicídios o demonstram”, escrevia o jornal A Federação, vinculado ao governo de Borges de Medeiros. O Dr. Mário Totta advertia: “Em todas as epidemias são justamente os que mais medo têm são os que mais depressa são levados de lufada”. Os padres oficiavam missas, pedindo a Deus o afastamento da “peste”, os clubes decidiram suspender as partidas de futebol e nas páginas dos jornais surgiam anúncios de remédios miraculosos contra a doença.
Já as autoridades municipais e estaduais insistiam em pedir calma à população, ao mesmo tempo em que apregoavam que a situação estava sob controle e que a epidemia já mostrava sinais de refluxo. “Povo! Não devemos entregar-nos à morte, sem nada fazer pela vida: devemos esforçar-nos para combater o mal”, concitava o boletim da União Metalúrgica distribuído à população.
Em sua edição de 5 de novembro a revista Máscara insistia na tese de que o pior já passara e que dentro em breve a cidade voltaria à normalidade.

“E esqueçamos...
“Conforme previmos em nosso número passado, a epidemia entrou em declínio em princípios desta semana. As notas fornecidas pela Diretoria de Higiene da imprensa foram sempre as mais animadoras, o que faz supor a estas horas que os casos novos da gripe sejam raros. E agora, que tudo promete voltar à normalidade, agora que a nossa cidade lembra um hospital, tal é o número de convalescentes que se arrastam pelas calçadas, com as faces cavadas e pálidas, os olhos fundos e abatidos, agora que um frisson de vitória abafa a nossa alma, mesmo os que fremem em corpos combalidos, e nosso dever afastar o mais possível da recordação popular esses tristíssimos dias de angústia e sobreexcitação nervosa a fim de que possamos beber novamente a grandes haustos a vida que o “anjo da paz ‘ promete dulcificar.(...)”
A realidade, contudo, revelava-se bem diferente, e a própria imprensa tornaria a adotar tons sombrios. A 9 de novembro o Correio do povo noticia: “Das 18 horas de ante hontem às 18 horas de hontem foram registrados nesta Capital 32 óbitos de pessoas que faleceram em consequência da “influenza hespanhola”.
Na lista dos falecidos “em domicílio” constavam pessoas de todas as idades e moradores das principais ruas da cidade: Juvenal Faria Dias, de 29 anos, residente à rua General Auto, 35; Sabina Antonia da Silva, 50 anos, moradora do número 123 da rua José de Alencar; Angela Teixeira Nunes, da rua Ramiro Barcelos, 133, "menina Catharina, filha de Ariosto Menezes, rua Lima e Silva, 147-B; Jorge Anto, residente no Hotel Lagache; Rubens Santos, de 32 anos, morador da rua Aquidaban, 9; “menino Alziro”, filho de Frederico Castro, com endereço à rua Santa Luíza, 66; Antonio Monteiro, morador da rua Moinhos de Vento, 70; Antonieta Rabello Gorfmann, residente à rua Fernandes Vieira, 36; Bibiana Rodrigues, 20 anos, “mixta, solteira, residente à rua Santana, 7”. Na edição do dia 11 a lista incluía, dentre os óbitos em domicílio, os seguintes nomes: Carlos Albuquerque, 52 anos, residente à rua Andrade Neves, 6; Carlos Haesbaeri, 39 anos, morador da rua Garibaldi, 32; Dante Matteoli, 17 anos, rua Castro Alves, 156; Mathilde de Michaelsen Wolff, 43 anos, da rua General Vitorino, 13. Na mesma data nominava-se a ocorrência de novos casos da doença: “Ontem enfermaram sete pessoas da família do major Edmundo Arnt; a exma. Esposa do Dr. Joaquim Gaffrée; o Dr. Gaspar Saldanha, sua senhora e três filhos; sete pessoas da família do major Labieno Jobim; “o nosso colega Lourival Cunha, da Kodak”(revista); as senhoritas Aracy, Júlia, Odette e Nayr Bacellar, filhas do capitão Bacellar Júnior”.
Uma pequena nota, vinda de Buenos Aires, onde também grassava a gripe, informava de uma campanha de combate às moscas – “veículo de imundícies de toda espécie e transmissora de várias moléstias”- desencadeada pelas autoridades portenhas junto à população.
A GRIPE ATRÁS DAS GRADES - Dos mais de 600 detentos da casa de Correção metade estava enferma, informava o Dr. Ivo Corseuil, médico da diretoria de Higiene. Nas residências, a gripe não poupava vítimas mais ilustres: o Dr. Jacinto Gomes, diretor da enfermaria de Gripados da Santa Casa de Misericórdia, contraíra a gripe e teve que ser substituído. No dia 10 de novembro o Correio do Povo, em sua coluna de necrologia, destacava o sepultamento de algumas figuras da sociedade portoalegrense:“Com grande acompanhamento, realizou-se ontem o enterro do doutor Álvaro Nunes Furtado, clínico residente, nesta capital, e que, como noticiamos, faleceu vitimado pela influenza hespanhola”. “Faleceu ontem, nesta capital, vitimado pela influenza hespanhola, o jovem Antenor Maciel Júnior, filho do tenente Antenor Maciel.“O infortunado jovem que, com bastante brilho, fazia o curso do Colégio Militar, deixa profunda saudade entre o grande número de seus colegas, no seio dos quais se fazia estimar.“Ele era natural de Uruguaiana, onde também contava com um grande círculo de relações.“O enterro, realizado ontem mesmo às 16 horas, esteve bastante concorrido, vendo-se sobre o caixão mortuário grande número de coroas”.
Dia 13, uma quarta-feira, a Empresa de navegação Cahy comunicava a suspensão de todas as viagens ao longo do rio “visto a maior parte dos seu empregados estarem enfermos”. No mesmo dia um anúncio de rodapé, na capa do Correio do Povo, oferecia um novo e rápido serviço de impressão: “Nas oficinas desta folha apromptam-se com presteza convites para enterro”. Vários funcionários da casa – incluindo jornalistas – estavam enfermos.
Da distante Europa vinham notícias mais alentadoras, publicadas pelo mesmo diário, e que repercutiam em todo o Estado, especialmente na região colonial italiana: fora assinado o armistício no dia 11 e a Grande Guerra que matara mais de 10 milhões de pessoas chegara ao seu final. A Itália estava entre os países vencedores.

“Garibaldi, 12 – Esta vila está em festa com a notícia da assinatura do armistício com a Alemanha. Sobem ao ar girândolas de foguetes. Os sinos repicam. Bandas de música percorrem as ruas. Quase todas as casas estão embandeiradas. Reina grande alegria.”
Os jornais noticiavam a derrota da Alemanha, a fuga do kaiser Guilherme II e, no Rio Grande do Sul, a influenza espanhola que, em vez de declinar, seguia em crescendo. Cortejos fúnebres de pessoas a pé, segurando os caixões aos ombros, cruzavam-se a caminho dos cemitérios, os coveiros trabalhavam sem interrupção, nas casas e cortiços improvisavam-se rápidos velórios. Prostrados e reclusos em seus barracos, os moradores mais pobres viravam-se como podiam em tais circunstâncias. Famílias inteiras adoeciam e os poucos em condições de caminhar percorriam quilômetros a pé para disputar os donativos distribuídos às portas de algumas instituições filantrópicas – igreja católica, maçonaria, centros espíritas.
À peste somava-se agora a falta de alimentos e a especulação desenfreada dos preços praticada por comerciantes e aproveitadores. “Está tudo pela hora da morte”, constatou o jornal Gazeta do Povo em 11 de novembro. Leite e aves sumiram do mercado, a canja de galinha passou a custar os olhos da cara, a lenha para os fogões dobrou de preço e até os aluguéis dispararam. Os diários locais imploravam por entregadores, os médicos não dispunham de gasolina suficiente para abastecer seus carros e visitar os doentes mais distantes e as farmácias vendiam quinino e óleo de rícino como se fossem especiarias. A cadeia produtiva fora interrompida pela epidemia e a cidade, paralisada, não encontrava forças para reagir. O que havia em remédios e alimentos não bastava para uma época , sob todos os aspectos, absolutamente anormal.
AUTORIDADES CENSURARAM A IMPRENSA - A censura à imprensa imposta pelas autoridades estaduais(incomodadas pelas críticas à ineficiência e morosidade das medidas de combate à epidemia) a partir de primeiro de novembro não calava o pavor coletivo e – em evidente efeito contrário - só fazia aumentar os boatos a respeito da mortandade.
O Correio do Povo que, assim como os demais veículos, recebera a ordem de não publicar a lista diária das vítimas da gripe, após informar da determinação aos seus leitores optara, em protesto, por deixar colunas em branco. Particularmente visado pela censura borgista, o jornal insistia em apontar as ineficiências e morosidades no combate à epidemia e as falhas no socorro à população mais pobre, que, a par da doença, sofria com a fome e da desassistência. Famílias inteiras estavam acamadas, sobrevivendo do pouco que ainda possuíam em casa. Os que encontravam forças de sair às ruas apelavam para os donativos – feijão, café, açúcar, banha – distribuídos pela Maçonaria, pela Federação Operária do Rio Grande do Sul ou por alguns comerciantes mais generosos ou em melhor situação financeira. O clima geral era de pânico.

“O boato no Coração da Cidade“
(...) Eu vi com estes olhos cinco mortos na rua dos Andradas, disseram-me que os coveiros cavam noite e dia as sepulturas; “Fulano(que está vivo e um poucochinho doente) acaba de morrer...” e outras e outras afirmações que só a polícia correcional podia evitar.“Desta forma andam pelas ruas, ilesos, os ‘boateiros”, explorando a situação enferma da cidade, acendendo perigo onde não existem(...)”( Máscara, 23 de novembro)
A partir da segunda metade de novembro, descrente das autoridades, a população falava em centenas ou mesmo milhares de mortos diários. A epidemia fugia a qualquer controle e a relação dos óbitos fornecida pela Secretaria de Higiene voltou às páginas dos diários. Ignora-se contudo os falecimentos sem assistência médica, numerosos nos bairros pobres.
Se até ali, de modo geral, a imprensa oficialista insistia no progressivo recuo da epidemia, atribuindo todas as culpas aos espíritos alarmistas e boateiros de plantão, a partir de quinta-feira, 14, tornou-se impossível mascarar a realidade visível, que, se não era tão terrível – afinal, não morria-se aos milhares - tampouco conferia com a versão das autoridades: entre as 18 horas de terça e as 18 horas de quarta-feira 34 pessoas haviam morrido em decorrência da influenza. Outras 24 faleceram sem assistência médica no mesmo período, totalizando 58 óbitos. No Domingo, 17, o Correio do Povo listaria mais 62 mortos nas últimas 24 horas, e, na terça, outros 49 óbitos entre o final da tarde de Sábado e o final da tarde de Domingo – o jornal não circulava às segundas.
Notícias enviadas pelos correspondentes do interior apontavam nos estragos que a espanhola estava causando em Passo Fundo, Santa Maria, Rio Grande, Pelotas, Arroio Grande, Tapes, São Gabriel, Encruzilhada, Carlos Barbosa, Rio Pardo, Taquari, Cruz Alta, Ijuí. Em Quaraí lamentava-se o suicídio do comandante do Sétimo Regimento de Cavalaria, que desferiu um tiro de revólver contra a própria cabeça. O major, informou o correspondente, “se achava doente, atacado de forte neurastenia, tendo ficado muito impressionado com o número de soldados enfermos na unidade que comandava, e ainda pela falta de recursos”. Cacequi, noticiava o jornal, “está transformada num vasto hospital. Há ali um número superior a 150 doentes, não havendo sequer uma pequena farmácia de campanha”. Em cada local a intensidade do surto epidêmico variava de acordo com as condições sanitárias, a densidade populacional e o clima, muito embora praticamente nenhum município do Estado tenha escapado ao flagelo.
Confundido inicialmente com o tifo, o vírus mutante da influenza gerava infecções bacterianas e punha em evidência moléstias latentes em cada organismo, afetando em especial os cardíacos, os asmáticos e os fracos de pulmão. A moléstia ia e vinha, com melhoras e recaídas. Para curá-la recomendava-se tão somente o repouso, a assepsia, quinino, purgantes e bons ares.
DE REPENTE ELA FOI EMBORA - Quase tão repentinamente como havia chegado, sem aviso, sem lógica ou explicação, a epidemia rapidamente declinou no final do mês de novembro. No dia 21, Quinta-feira, os diários da Capital já falavam em seu progressivo recuo. A reabertura de muitas lojas no centro, a crescente afluência de transeuntes às calçadas antes desertas, a volta dos rangidos dos bondes e dos apitos dos guardas de trânsito refletiam as estatísticas do Departamento de Higiene – números reais, desta vez: os casos novos eram cada vez mais raros e a mortandade estava em queda livre.
O Club Monte Carlos, o Brazil Club e o Clube dos Caçadores voltaram a funcionar. O teatro Apolo apresentava, aqueles dias, em matiné, episódios de a “Garra de Ferro”, em oito atos e, à noite, “uma grandiosa obra americana em sete belíssimos atos: New York.”. Na terça-feira, 26, reabriram suas portas o cine-teatro Coliseu e o Petit Casino. O Hipódromo do Moinhos de Vento também anunciava o retorno das atividades.
Na Sexta-feira os jornais noticiaram apenas 8 óbitos e a 3 de dezembro as autoridades informaram não ter conhecimento de novos casos de influenza espanhola. Na mesma data um pequeno anúncio publicado na capa do Correio do Povo atestava o final da tempestade.

“Leitaria
“Previno a minha distinta freguesia que reabri minha leitaria pelo nome Barroza Número 4. O motivo de estar fechada foi meu empregado estar doente”.
Em poucos dias reabriram-se as repartições públicas, os principais colégios chamaram de volta alunos, funcionários e professores, os cafés do centro festejavam a volta da velha clientela e a rua da Praia foi novamente tomada por moças e rapazes ao final do dia. No dia 29 apenas 8 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas e, finalmente, a 3 de dezembro, a Diretoria de Higiene afirmou não ter conhecimento de nenhum novo caso da doença - as mortes registradas diziam respeito aos já infectados.
Notícias alvissareiras vinham do interior do Estado e, a exemplo do que faziam antes da peste, os jornais direcionavam novamente suas atenções aos informes vindos da Europa, à fuga do Kaiser e a redefinição das fronteiras nacionais no Velho Continente. Os correspondentes do Correio do Povo já expressavam tons de otimismo.
Durante 57 longos dias, sitiada pela doença, a capital gaúcha convivera com a morte de uma maneira jamais observada em sua História. As qualidades dos homens e mulheres, postas à prova, diferenciaram grupos, revelaram aproveitadores e heróis, contrastando à prática real cotidiana as propaladas boas intenções de muitos. Desse jogo de luz e sombra emergiram algumas verdades.
“A hespanhola, de súbito, fez-nos ir até essas pobres vítimas da fome e da indigência, quando não no-los trouxe até as nossas portas”, reconheceu a elegante revista Máscara( “Os Nossos Pobres”, 23.11.1918), ao comentar a procissão sombria de homens e mulheres fracos e famintos que vinham dos subúrbios da cidade “com as faces covadas e pálidas, os olhos fundos, se arrastando pelas calçadas”.
Foram eles – cidadãos anônimos, desempregados, operários, comerciários, biscateiros, moradores dos bairros São João, Navegantes, Colônia Africana, no Quarto Distrito - as principais vítimas da influenza espanhola.No tocante ao total de óbitos, a historiadora Janete Silveira Abrão – autora da(infelizmente pouco conhecida) dissertação de Mestrado do curso de pós-graduação em História do Brasil do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica, “Banalização da Morte na Cidade Calada: a Hespanhola em Porto Alegre, 1918(Edipucrs, 1995), tese universitária transformada em livro – observa: “Todavia é impossível precisar as taxas de morbidade e de mortalidade ocorridas, visto que muitos casos não foram notificados pelas autoridades sanitárias”.
Oficialmente foram 1316 óbitos em Porto Alegres causados pela influenza, dos quais 1209 na cidade e o restante na zona rural. Ainda segundo as estatísticas oficiais, até 31 de dezembro de 1918 a gripe matara 3971 pessoas em todo o Estado. Somente em Rio Grande morreram 343, em Pelotas 321, em Bagé 191, em Cruz Alta 132 e em Itaqui, 40.
Algo parece certo: são números “chutados” e nunca se soube e jamais se saberá efetivamente o número exato, ou mesmo aproximado, das vítimas causadas pela gripe espanhola de 1918. Dois mil? Quatro mil? Cinco mil? Se as estatísticas oficiais falam em cerca de 70 mil infectados - “talvez abaixo da realidade”, nas palavras de Protásio Alves - e pouco mais de 1300 mortos em todo o município de Porto Alegre podemos, sem temor ao exagero, somar a isso um número impreciso de óbitos não contabilizados que aconteceram longe das vistas das autoridades sanitárias, em casebres, cortiços ou em esquecidas casinhas da zona rural, sem contar os enterros clandestinos – comuns a uma época em que os recém nascidos tornavam-se adultos sem portar qualquer documento. Alia-se a isso o fato de que somente aqueles aos quais os médicos reconheciam a morte em função da epidemia eram inclusos nas listas dos vitimados pela peste, excluindo-se destas quem falecia - de acordo com o ponto de vista médico - de outras causas: doenças cardíacas ou tuberculose, para citarmos dois exemplos que no entanto poderiam ter sua origem no vírus da própria gripe.
Segundo a historiadora Janete, um simples cotejar dos dados oficiais do período demonstra números subestimados: o Livro de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia registrou, de 21 de outubro de 1918 a 11 de janeiro de 1919 2420 mortes e o Departamento de Higiene do Rio Grande do Sul contabilizou naquele ano 30.219 falecimentos no Estado. Nos últimos três meses de 1918, aconteceram 12.811 óbitos, dos quais 5840 na Capital. Ainda segundo o Governo, 42% das mortes decorreram de moléstias transmissíveis.
Porém, passado o furacão, no início do verão de 1918/19, poucos queriam voltar os olhos às dores passadas. Epidemias vinham e iam, estar vivo e era o que contava e tentava-se a todo custo recuperar a alegria e o tempo perdidos. A gripe, todavia, ainda não morrera em definitivo. Depois de abandonar Porto Alegre e outras cidades às quais chegara de forma quase simultânea, dirigiu-se em seguida às localidades da Serra e lá fez mais uma nova legião de vítimas. Dela, contudo, já se falara muito, e a ordem era esquecer.
Dava-se início ao período de festas de final de ano. Alinhados no clube do Jocotó e centrados na figura do doutor Mário Totta – médico e bom vivant - com alívio redobrado, homens e mulheres da sociedade porto-alegrense reencontrava-se agora nos elegantes saraus do arrabalde da Tristeza. Ali, à beira do Guaíba, embalados por orquestras típicas especialmente contratadas, em meio a barulhentas batalhas de confetes, poucos lembravam da epidemia que, sozinha e silenciosa, em menos de dois meses fizera mais vítimas do que todos os combates da Grande Guerra e causara a todos um prejuízo econômico dificilmente mensurável.
Em “Solo de Clarineta”- primeiro volume de suas memórias(1974), Érico Veríssimo recorda:
“Em 1918 a influenza espanhola atirou na cama mais da metade da população de Cruz Alta, matando algumas dezenas de pessoas. Não se dignou, porém, contaminar-me. Lembro-me da tristeza de nossas ruas quase desertas durante o tempo que durou a epidemia, e dos dias de calor daquele dramático novembro bochornoso. Era como se os próprios dias, as pedras, a cidade inteira estivessem amolentados pela febre. A escola achava-se em recesso e eu podia passar dias inteiros a ler romances.(...) Foi durante a influenza em 1918 que li pela primeira vez Eça de Queirós (Os Maias), Dostoiévski (Recordações da Casa dos Mortos e Crime e Castigo).(...) Passada a epidemia a cidade entrou em lânguida e trêmula convalescença.”
Tardiamente, quando tudo parecia encerrado, em janeiro de 1919, a “influenza hespanhola” faria a sua vítima mais ilustre em terras brasileiras: o presidente eleito Rodrigues Alves, que já havia exercido este mandato de 1902 a 1906, período em que incumbiu Osvaldo Cruz de sanear o Rio de Janeiro e livrá-lo da febre amarela, morreu justamente deste mal que vacina nenhuma conseguiu evitar e que em poucos meses matou mais do que todos os combates da Primeira Grande Guerra.
A Influenza Espanhola foi a última grande epidemia globalizada com altíssimo poder de contágio e mortandade da História mundial. Para a capital do Rio Grande do Sul teve, ao menos, um efeito benéfico – a partir daí passou-se a dar atenção à qualidade da água servida à população, com a construção de uma grande hidráulica ainda no governo de José Montaury.

quarta-feira, setembro 16, 2020

Áfricana negra e a grande epidemia que não aconteceu

  • Esses dias saiu no portal do Clarin, de Buenos Aires, matéria abordando o fato de a África negra, ao contrário de todos os prognósticos, revelar-se o continente com menor número de casos e de óbitos por coronavirús. Afinal, não bastasse o fato de ser um território pobre, em muitos casos com populações ainda vivendo de forma tribal, conta com poucos médicos e hospitais e padrões de saneamento e higiene bem abaixo da Europa, Ásia ou mesmo América Latina. Mas a previsão inicial de que a pandemia, quando se abatesse por lá, seria uma terrível tragédia humana, não se concretizou, felizmente. Espantados, os cientistas não chegaram a nenhuma explicação, aventando, entre outras causas, que a África tem muito mais jovens que idosos e uma população grandemente rural ou vivendo em aldeolas. Ou seja, sem aglomerações. Mas existem por lá grandes cidades, como Lagos, na Nigéria, com mais de 12 milhões em sua área metropolitana, Kinsasha, no Congo, com mais de 7 milhões, e Nairóbi, no Quênia, com quatro milhões, o que sem dúvida seria terreno fértil para o vírus. Presume-se, em tese, como o continente é sempre assolado por uma sequência de graves epidemias os nativos teriam desenvolvido anticorpos naturais contra a gripe do Covid-19. Seja o que for, a histórica e conhecida resistência da raça negra (se é que existe uma raça única) me parece um elemento a ser considerado. Mas que é intrigante, é mesmo - e desta vez, intrigante para melhor. Talvez os feiticeiros africanos sejam melhores que os nossos.

terça-feira, setembro 15, 2020

O canto noturno do sabiá-laranjeira

Acordo as quatro da manhã e a bicharada está cantando lá fora - algo que contraria tudo o que eu sabia a respeito. Sempre me disseram que os passarinhos não cantam na escuridão. Como moro no Jardim Botânico, e aqui mesmo no condomínio há muita árvores, imaginei até que fosse uma ave de mau agouro - sempre penso nessas coisas sinistras, ainda mais na atual pandemia. 

Só que não. Fui pesquisar a respeito e acabei descobrindo que os sabiás-laranjeiras - bem comuns neste bairro - costumam cantar nessa hora meio lúgubre, a hora em que todos os bares se fecham e todas as virtudes se negam, como escreveu o poeta. Fazem isso - li na explicação - para demarcar território, por mêdo, fobia ou outras coisas subjetivas, inclusive também, acho eu, por puro prazer - por que não? Pois antes, na dúvida, intrigado com o fenômeno, pensei inclusive em mandar um e-mail para o doutor Dráuzio Varela ou para o filósofo Leandro Karnal solicitando informações a respeito, já que esses dois sabem tudo de tudo. O fato real é que muitas aves canoras cantam, sim, em plena escuridão da madrugada. Agora, mais tranquilizado, já posso dormir tranquilo ao som da chuva que cai (puro Youtube, com seu "sons de chuva e trovoada", ouvindo a orquestra desses queridões emplumados que não usam máscaras, não assistem aos noticiários e nem vivem em confinamento social. Que inveja.

segunda-feira, setembro 14, 2020

Não faço a mínima ideia


Tem um bom vídeo da Clarice Linspector no Youtube, quando ela já estava cinquentona e bonita como sempre. Acho que é no velho programa Vox Populi. O entrevistador, meio babaca e presunçoso, pra dizer o mínimo, lança umas perguntas "cabeças" para a escritora, tipo "O que é a vida?". Ela, séria, fumando, responde na maior naturalidade: "Não faço a mínima ideia". Adorável. Outras vez repete simplesmente "não sei", e ponto final. Clarice, judia ucraniana, tinha a língua plêsa - digo, presa. Fumava como um bicho, tanto que incendiou seu apartamento nos anos sessenta, sofreu queimaduras graves e quase morreu, o que se nota nas marcas das suas pernas. Também era boa de copo, ao menos é o que dizem. Fumava Hollywood. Faleceu um dia antes de completar 58 anos. 

Um cara parecido com esse entrevistador do Vox, supervalorizado ao meu ver, era aquele Antonio Abujamra, com seu programa Provocações, na tevê Cultura de São Paulo. Tinha a voz empostada, artificial, e fazia esse tipo de pergunta: "O que é a vida pra você?". Perguntou isso pro Ruy Castro, uma vez, faz tempo, e a resposta foi como a da Linspector: "Não faço a mínima ideia". Em compensação, fazer tal indagação para o Gilberto Gil - aquele dos tempos idos - ia render uma filosofice cretina de mais de meia hora. Idem se fosse o Caetano Veloso. 

Não faço a mínima ideia. Isso sim é resposta - a maioria das coisas a gente não faz a mínima ideia. Uma vez vi na tevê um repórter perguntando para um preso, no xadrez: "Como é que você se sente?" E o preso responde: "Me sinto preso". Podiam ensinar tal sabedoria a esses filósofos de boutique que aparecem toda hora na tevê, geralmente depois dos sábios conselhos medicinais do doutor Dráuzio Varela - aquele médico com cara de doente que gosta mais de aparecer do que tamanduá gosta de formiga.

Cada macaco no seu galho

No tempo em que eu frequentava butecos - alguns bem sórdidos, é verdade - conheci muitos borrachos religiosos, daqueles que, na despedida, nos dizem "fique com Deus". Como sou alguém condescendente e até indulgente, nunca nem sequer ironizei a frase - cada macaco no seu galho, e ponto final. Até para evitar qualquer coisa e manter a amenidade do clima, desejável em tais ambientes. Porém, certo dia, um deles, magrinho e orgulhoso, inclusive do fato de só tomar banho uma vez por semana, trouxe à baila (gosto desse "à baila") a sua crença na vida eterna e, desta vez, contrariando a regra pétrea da minha Constituição pessoal, decidi intervir - o cara era portador de uma tosca e diminuta caixa craniana que um canibal da Indonésia hesitaria em mumificar.

"Escuta aqui, Paulinho Cachaça, você passa o dia nos butecos, enchendo a cara e conversando fiado, sem fazer mais nada. Pelo que eu sei, no Paraíso não tem bares. Na vida eterna, não morrendo nunca mais, como é que vais ocupar o teu tempo? Lá não precisa tomar banho, mas ouvir harpa e ver anjos voando o dia inteiro enche o saco. E nem existe a possibilidade de se matar. Pense nisso e tome tenência."

O nome do querido, muito popular aqui no Baixo Mundo, era Paulinho Cachaça. Vivia com a mãe e morreu um ano depois, de causas incertas e bem sabidas. Ninguém, nem nos bares, sentiu a sua falta ou foi ao funeral. Como dizem, a cana também promove o encontro com Deus. Em todo o caso, com ou sem butiquins, que Ele o tenha no paraíso da Eternidade.

sábado, setembro 12, 2020

A grande praga do turismo


Camboriú, nos anos setenta, já era um grande balneário, com muitos edifícios, uma espécie - como repetia a imprensa então - de Copacabana do Sul. O mar era poluído, pois não havia o emissário cloacal que depois se construiu. Mas nós, crianças e adolescentes, não ligávamos muito para isso. Eu gostava especialmente de caçar caranguejos na praia, à noite, junto com um primo meu, já falecido. Todo verão nós íamos veranear lá, no apartamento de um tio, na avenida Atlântica. Depois fiquei muitos anos sem ir a Camboriú, e sigo sem ir faz tempo. Mas fiquei sabendo que agora é uma cidade de inúmeros e altos edifícios, incluindo um, de 81 andares, cuja cobertura foi comprada pelo jogador Neymar. Caramba, 81 andares, o mais alto da América do Sul, dizem, com orgulho, vejam só, os próprios catarinenses. O novo Inferno na Torre. Fala-se que faz sombra e tira o sol da faixa de areia. Pudera: eles se espelham em Miami. Mas a Camboriú que eu gosto não é Miami, era aquela da década de 70, quando a grande praga - o turismo - nem se comparava aos dias de hoje. Sou da opinião de que o turismo em massa é um mal, e que destroi tudo e a tudo reduz a vulgaridades. Um turismo feito, como dizia Nelson Rodrigues, para o "cretino fundamental" - a boiada de 98% da humanidade. Vejam o caso de Florianópolis, que conheci quando tinha uns 150 mil habitantes, uma cidade adorável. Uns dez anos atrás, ou até mais, passei de novo por lá, e encontrei congestionamento de trânsito, custo de vida cada vez mais caro, e uma gente de fora e sem noção caminhando nas ruas. Adeus, bela Floripa do passado. Adeus Camboriú. O turismo é mesmo uma peste. O mau gosto venceu.

quarta-feira, julho 08, 2020

Tá choveno em Portalegre


Acesso o programa Manhattan Connection - um "esnobismo que se pretende inteligente", digamos assim - e lá está o velho Lucas Mendes, mineiro de 76 anos que sempre morou em NY e sempre foi correspondente internacional, fazendo seus descontraídos comentários televisivos. 
A uma certa altura, o elegante âncora lasca esta: "O que o Trump está fazeno é uma jogada de marketing para..."
Acho engraçado e até delicioso esses "fazeno, comeno, dormino", tão comuns aos mineiros (a Dilma era mestra nisso) e aos paulistas do interior. Qual a origem desse cacoete oratório de comer a consoante do gerúndio, especialmente dos verbos? - força do hábito, certamente. Considerano que está choveno em Porto Alegre, aliás "Portalegre", daqui a pouco eu próprio estarei comeno alguma coisinha boa. Depois, estarei fazeno alguma coisa útil.

quinta-feira, julho 02, 2020

Coudet vai à carniceria ou ao peluquero?



A primeira coisa que um estrangeiro deve fazer quando chegar a um outro país, se deseja permanecer, ou até não, é tentar aprender o idioma local, o que, no mínimo, vai facilitar as coisas para todas as partes. Pelo menos é o que a minha lógica registra e o que acredito que a maioria, o cidadão comum, também pensa, seja aqui, na China ou no Cagakistão. 
Mas não é o que pensam os técnicos argentinos, pelo que se vê nos últimos tempos.  Contratados a peso de ouro 24 quilates, recentemente invadiram a pátria tupiniquim, muito em virtude das suas reconhecidas qualificações, é verdade. Pois noto, com alguma irritação, que tais profissionais estrangeiros se recusam a falar o português, a tal última flor do Lácio, inculta e bela, alegando sentirem-se mais à vontade hablando em espanhol e não na língua da terra na qual estão chegando. 
É e foi assim com o treinador do Inter, Eduardo Coudet, com o ex do Santos, Jorge Sampaoli e com Ricardo Gareca, no Palmeiras - todos não davam e não dão nem bom dia em português em suas concorridas entrevistas para os "reporteros" nacionais. Só falta falarem San Pablo em vez de São Paulo. Poderíamos, claro, revidar, chamando Buenos Aires de Bons Ares, mas deixa pra lá.
Não sei interpretar direito o fenômeno. Rebeldia infantil? Soberba? Preguiça mental? Esnobismo portenho? Por que, afinal, não tentar ao menos mesclar algumas palavras em português, aos pouquinhos, gradualmente, até dominar parcialmente o novo vocabulário? 
Não ponho nesse tango - até porque não é técnico - o Dalessandro, do Inter, um caso ao contrário, grande jogador que sempre faz questão de se comunicar no nosso idioma (com repórteres argentinos ele fala em espanhol), no qual se expressa até bem direitinho. Com isso dá exemplo de respeito e carinho pela nação onde está vivendo e ganhando seu pão (pão de ouro e diamantes, considerando os salários astronômicos e indecentes do futebol).
Eis a pergunta cabível aqui: como seria, imagino, se um treinador brasileiro fosse trabalhar na Argentina, ao conceder entrevistas coletivas somente em português? 
Conhecendo os queridos e orgulhosos hermanos, recusar-se a falar em espanhol, o idioma da nova casa - por mais estropiado que fosse, seria um sacrilégio e tanto, um crime de lesa-pátria; talvez o sujeito não durasse muito no cargo, pagando justificadamente pela sua antipatia. 
No Brasil, até agora, não vi nenhum desses comentaristas esportivos - que vivem nas tevês e rádios babando raiva teatral por todos os poros - qualquer crítica a respeito, o que sinaliza tácita aprovação, própria do complexo de vira-latas.
Essa resistência linguística me recorda o maragato Gumercindo Machado na revolução federalista de 1893-94. Brasileiro de coração e armas, Gumercindo - que tinha fazendas no Uruguai - pedia desculpas por não falar o português com suas tropas gaúchas. Alegou preferir hablar em castelhano, para não "estropiar" o português, que falava mal. 
Minha vizinha, uma senhora de idade, simpática portenha que mora há uns 40 anos no Brasil, faz exatamente o mesmo - ao me encontrar no elevador dá "buenos dias" ou "como te vas?". Quando vai ao cabeleirero diz que está indo ao "peluquero". Só falta informar está indo á "carniceria" para comprar carnes no que chamamos de açougue e e que sua neta "embaraçada" está para ganhar o primeiro "hijo".

terça-feira, junho 30, 2020

A central de falsidade acadêmica está na ilha de Chipre


Mentir, no meio acadêmico, não é nenhuma novidade. Mentir, claro, sempre em benefício próprio, para arvorar-se a ser o que não é e nunca será, como foi o caso do novo Ministro da Educação, Carlos Alberto Dacotelli, que verdadeiramente não é o que é. Tirando o fato de que o sujeito é um  burro primário, daqueles de babar a gravata, como diria Nelson Rodrigues  - no caso, imaginar que não iriam checar as informações do seu currículo - não há, como disse, nenhuma novidade nisso. A novidade é que é isso é feito agora por uma das mais altas autoridades palacianas, algo que não acontecia com os seus predecessores. Igualzinho um modesto candidato a emprego que entrega na agência de empregos um curriculo inflado ou totalmente falso.
Nas faculdades brasileiras - que formam pessoas despreparadas, para dizer o mínimo, e lhes dão diploma superior quando não sabem sequer redigir cinco linhas sem cometer os mais crassos erros de ortografia, incluíndo aí o básico uso do ponto e da vírgula - o procedimento é habitual. Grande parte das teses dos formandos são forjadas, encomendadas a mercenários coitados, um pouco mais esclarecidos, em busca de grana, que pesquisam e redigem tais trabalhos: aquele que defende a tese ou coisa semelhante apenas assina, às vezes sem ler o que o outro escreveu. Alguns até são aprovados com louvor. A maioria é filhinho de papai, que tem dinheiro e não quer fazer nenhum esforço mental, se é que têm mente.
Digo isso porque há uma grande empresa mundial especializada nisso, e que recruta pessoas para elaborar tais teses, geralmente a preços módicos, já que cada aspirante faz a sua oferta, jogando o preço para baixo em função da grande concorrência.
Um deles - que conheço bem, pois entrei no site - está localizado na ilha de Chipre, no meio do mar Mediterrâneo. É uma espécie de central da fraude intelectual e serve ao mundo todo, na maior cara de pau, tem milhares de "colaboradores". Localizar sua sede (?) em Chipre não é à toa, pois lá é uma espécie de paraíso para as mais variadas ilegalidades - assim, protegidos pelas leis daquele país (nem sei se é mesmo um país), não são responsabilizados e fogem das possíveis penalidades da Justiça.
O ministro de Bolsonaro, que ainda não assumiu oficialmente, é só mais um nesta horda. Substitui aquele outro maluco (maluco?) e ignorante que escreveu, se não me engano, impressionante com C, ou uma palavra com C usando dois ésses. Sem falar na "paralização" om Z e no uso do verbo haver. É essa gente que agora está no poder, e talvez ainda possa piorar.

sábado, junho 27, 2020

Contra as vacinas e a chegada do homem à Lua

Onooda ao se entregar, em 1974, nas Filipinas.
A propósito desses caras que negam os efeitos imunizadores das vacinas (não só negam como as condenam), dos malucos terraplanistas e dos sujeitos que acham que a COVIT-19 é uma gripezinha, lembrei do Pato, um tipo simplório e meio patusco que vivia na cidade onde passei a minha adolescência, na região Celeiro, interior do RS.
Pato, como o apelido indica, era bundudo, de pernas curtas e caminhava como os patos verdadeiros, a exemplo dos seus irmãos, integrantes da numerosa prole patusca. Nos anos setenta - tempos jurássicos - as emissoras de rádio FM já existiam, mas em pequena quantidade, quase todas em Porto Alegre. E a nossa simpática urbe de menos de cinco mil habitantes (sequer contava com alguma emissora AM) só conhecia de fato as frequências moduladas quem tivesse viajado para a Capital.  Nosso amigo, no caso, nunca saíra dali e seu horizonte geográfico estendia-se, no máximo, a uns cem quilômetros à volta.
Eu, estudante na quase grande cidade, uma noite falei-lhe das FMs e da qualidade maravilhosa daquele som, o futuro das transmissões, a modernidade tecnológica. Pato, um cético que temia cair nas "atochadas" dos outros e fazer papel de otário, riu, incrédulo. Aliás, fez pouco caso: "Como é que é? FM?" Normal: no seu aparelho de rádio não "aparecia" o som de FM alguma, portanto isso não existia. 
Tais tipos, que precisam ver para crer, desprezando qualquer outra forma de conhecimento, são inúmeros na história da Humanidade. O caso mais conhecido talvez seja o daquele soldado japonês que negou-se a acreditar na rendição do seu País na Segunda Guerra Mundial. Escondido nas selvas das Filipinas, continuou a lutar, considerando que os panfletos que os aviões norte-americanos lançavam do ar eram simples contrapropaganda dos aliados, fake news - isso já acontecera antes. 
Chamava-se Hiroo Onoda, um subtenente do exército imperial, treinado em atividades de espionagem e guerrilha. Durante 30 anos, na remota Lubang, viveu de caça e da pilhagem dos nativos locais, dos quais matou mais de 30 com seu fuzil - este funcionou perfeitamente o tempo todo naquela ilha chuvosa. Dormia em cavernas e atirava contra os aviões que passavam ao alto.
Um jornalista japonês ouvira relatos a respeito e foi lá, em busca e uma boa história. Conseguiu contatar o rebelde - só ele sobrevivera, dentre quase 300 companheiros. Finalmente levado a acreditar que o Japão havia perdido a guerra, o combatente aceitou render-se, porém apenas na presença do seu oficial superior - que, por sorte, estava vivo e foi lá convencê-lo. Em 1974 Onoda entregou sua espada e seu fuzil ao então presidente das Filipinas, Ferdinando Marcos - uma publicidade e tanto para o velho ditador. No Japão o Rambo nipônico tornou-se herói  nacional e disputado palestrante. Um dia, cansado de tanto auê, preferiu aceitar o convite de um seu irmão, que morava no Brasil, e tornou-se também agricultor em Goiás. Anos depois retornou em definitivo para sua terra natal, onde morreu em 2014, aos 91 anos, dos quais 14 no Brasil
Quanto ao Pato, nunca mais soube dele, se está vivo ou não. Fiquei sabendo depois que ele também não acreditava na chegada do homem à Lua, outra fake news para enganá-lo. Certamente, nos tempos atuais, seria um terraplanista de estirpe olavista e talvez avistasse um comunista vacinado escondido embaixo da cama. 

sexta-feira, junho 26, 2020

Elvis e os tempos modernos



Elvis Presley morreu no dia 16 de agosto de 1977, quando eu tinha 16 anos e morava em uma minúscula cidade do interior gaúcho - e Elvis tem um significado jornalístico e profissional para mim: foi em sua homenagem, digamos assim, que escrevi o meu primeiro artigo publicado, no jornal semanal da cidade. Fiquei orgulhoso daquilo, claro, e nem lembro das besteiras e clichês que redigi na minha máquina Olivetti (sempre fui fã da Olivetti italiana). Sequer guardei o artigo, como não guardo material nenhum do passado. Esses tempos joguei tudo no lixo, pois tenho características de acumulador compulsivo, pero no mucho. Assim mandei às favas o passado. Ou como diz aquela propaganda, me desapeguei.
Vejo muitos documentários, dos quais sempre gostei, e vejo ainda mais nestes tempos de peste. Um bom documentário sobre Elvis que assisti no Youtube explica porque o cara morreu tão jovem, aos 42 anos de idade, em sua Mansão no Menphis, Tenesse (dizem que a mansão não era tão mansão assim). Ele media cerca de 1,80 metro e tinha mais de 100 quilos de peso. Pudera: tipicamente americano, se entupia de toda sorte de porcarias gordurosas - xis, sanduíches pantuagrélicos, etc. Não bebia e nem fumava porém - tampouco usava maconha, heroína ou cocaína. Mas, em compensação, vítima da fama e da ansiedade, consumia medicamentos controlados de tarja preta que alguns médicos subservientes precreviam a seu pedido. Afinal, ele era Elvis, o Rei do Rock.
Elvis trocava o dia pela noite - dormia o dia inteiro e passava as noites em claro. Não estava multimilionário, como todos pensavam: na verdade só tinha um milhão de dólares na conta (a moeda americana, naquela época, valia bem mais que hoje, mesmo assim era pouco), pois quase toda a sua receita com a venda de discos ficava com o seu empresário, o Coronel Parker. Ele então se preparava para uma grande turnê, para arrecadar grana. Curiosamente, ídolo mundial, Elvis só fez shows no seu próprio país, no Canadá e no Havaí, que é um Estado americano. Nunca veio à América do Sul. 
Sofria de ansiedade, stress e depressão, agravada pela morte da mãe, que ele adorava, e pelo fato de ter levado um chute na bunda da sua mulher, Priscylla, que arranjou outro cara - um professor de karatê, se não me engano. Isso afetou o seu orgulho de macho. Na fase final, estava totalmente dependente das drogas controladas, que ingeria para poder dormir e, ao acordar, para se manter desperto. Era também um pai carinhoso e um amigo especular para os seus amigos ou simples conhecidos: dava Cadillacs em profusão, como se dá banana. Pagava todas as despesas médicas dos outros e não regateava ao agradá-los. Em suma, um homem generoso. Segundo depoimentos de todos, não era arrogante ou mandão, não dava gritos e nem exigia privilégio - tinha dinheiro para os comprar. Igualmente não era dado a crises de estrelismo - ou seja, tinha noção do ridículo. 
Na sua autópsia (não, ele não fugiu para a Patagônia, onde teria se tornado um fazendeiro) constataram que seu fígado estava com o dobro do peso normal, com esteatose - acúmulo de gorduras. Como não bebia (dizem que tinha horror à bebida por seu pai ter sido alcóolatra e por observar como as pessoas se modificam depois de uns drinques), o fato é explicado por ser um glutão que comia as coisas erradas. Uma mulher, secretária sua ou coisa assim, afirmou que nenhum filme ou foto fez justiça à sua extraordinária beleza e ao seu sorriso. 
Presley morreu aos 42 anos, caído no chão do banheiro, chapado de medicamentos, asfixiado pelo próprio vômito. O próximo mês de agosto marca os 43 anos da sua morte e, em dezembro, os 40 da de John Lennon - figura bem mais teatral mas igualmente talentosa, símbolo de um tempo que não volta mais: aquele em que figuras de fama planetária, como ele, andavam sem seguranças (Elvis mantinha alguns). Outra coisa descoberta pelos legistas: ele tinha os cabelos totalmente brancos e os pintava de preto. Não eram grisalhos e sim brancos como a neve, talvez efeito da genética ou do estresse.
Outra coisa - sinal dos tempos:Lennon, no dia da sua morte, assassinado na frente do edifício Dakota, em NY, estava absolutamente sozinho e sem proteção de seguranças. Hoje qualquer desses cantorzinhos brasileiros de quinta categoria, que não servem nem para lavar os pés do Elvis ou do Lennon, não saem às ruas sem um batalhão de seguranças a protegê-los, ou simplesmente para tirar onda e mostrar status e riqueza. Pior, agora, com a pandemia e o isolamento social, estão todos frajolas, mostrando aos sites e às revistas a intimidade luxuosa das suas mansões. Creio que o precursor disto foi o Teixeirinha, cujas capas de disco o colocavam ao lado dos carros mais caros da época, o fenômeno do novo-rico. 
Teixeirinha, como Elvis, também levou um chute na bunda da sua mulher, Mary, e morreu aos 58 ou 59 anos de idade. Mas, ao contrário do Rei do Rock, não tinha noção do ridículo - ou seja, pode ser considerado um dos padroeiros da vulgaridade destes tempos modernos e medíocres.

quarta-feira, junho 24, 2020

A ambiência microbiana da baixeza e a contingência orgânica do sexo

Houve um tempo, não tão distante assim, em que gente do povão, sem instrução formal - autodidatas ou quase isto, na verdade - gostavam de ler poesias e até romances. Sapateiros, cobradores de ônibus, amoladores de faca, vigias, peões, serventes de obras, porteiros - encontrei alguns exemplares dessa comovedora estirpe de pessoas do chamado baixo escalão social muitas vezes, em um bar qualquer - geralmente um pé-sujo de alguma esquina de uma pequena ou grande cidade, quase sempre homens de meia idade ou já curtindo a velhice 
Em todas as ocasiões, lembro o seguinte: depois de algumas biritas, com o sentimentalismo amistoso do povo brasileiro - afinal, dizem os estrangeiros que somos mesmo um povo cordial (talvez eles é que sejam grosseiros demais) - e após já termos estabelecido relação de camaradagem (me identificavam com um cara "inteligente", e vá que sou quase isso mesmo). Então, lá pelas tantas, quase com saudosismo do que poderiam ter sido e não foram, passavam a falar dos livros que haviam lido - poesia, romance. Poucos, claro, todavia obras literárias que os marcaram e dos quais eram capazes, vejam só, de recitar trechos inteiros. 
Em um bar aqui do Partenon, bairro vizinho, fui amigo do seu Manoel - ex-brigadiano que sofreu um AVC, pessoa inteligente, vindo da fronteira. Pois o seu Manoel, tomando a sua cachacinha diária, me falava com entusiasmo de ninguém menos que Hemingway, do qual tinha lido a novela O Velho e O Mar. Ele amava esse livro. 
Não era cascata sua e, tenho certeza absoluta, não tentava me impressionar e nem tinha porquê: citava inclusive o nome do pescador Santiago, considerado azarado e azarento, pois há uns 40 dias não pescava mais nenhum peixe, da sua luta para dominar e trazer ao porto o gigantesco marlin, ou peixe-espada, sei lá - no final, os tubarões comeram tudo e ficou só a carcaça, porém o velho Santiago mostrou a todos em volta sua fibra e perseverança (é o que os críticos depois chamaram, a propósito dos personagens de Hemingway, a "vitória na derrota"). 
Na fronteira também conheci um sujeito, meio trambiqueiro, meio contrabandista - pai de um ex-amigo meu - que igualmente havia lido O Velho e o Mar, e também adorara a história, tal como o seu Manoel. Creio que, para um escritor, ter a honra de ser lido e citado por alguém do povão, num distante boteco de um país semibárbaro e quase analfabeto chamado Brasil, já paga o esforço de escrever.
Outro escritor brasileiro que ainda tem uma escondida e fiel legião de leitores, gente da antiga, é o chamado Poeta da Morte, o paraibano
Augusto dos Anjos, um gênio indiscutível morreu no início do século passado em Minas, onde era professor, aos 30 anos, de pneumonia. É impossível, para quem o leu, esquecer os versos e rimas mórbidos e desconcertantes do seu único livro - Eu.
Esses dias critiquei um amigo meu, indivíduo boca grande, dizendo que ele tinha uma "língua hidrófoba" - pois é, citei Augusto dos Anjos, ipsis literis. O poeta que também falava na "ambiência microbiana da baixeza", "contingência orgânica do sexo", "esforço ultraepilético", etc, e dizia: "Há mais filosofia neste meu escarro que em toda moral do cristianismo". Genial. 
Augusto dos Anjos era um pessimista, um mórbido fixado na putrefação do corpo, nas doenças, na morte, na decadência e no trágico destino humano: "Estás velho, de vós o mundo é farto, e hoje que a sociedade vos enxota, somente as bruxas negras da derrota frequentam diariamente vosso quarto." 
As mais conhecidas frases dele - já de domínio público - são "a mão que afaga é a mesma que apedreja" e "o beijo é a véspera do escarro".
Taí uma leitura bem condizente com estes tempos de pandemia. Melhor: ouçam o Áudiolivro no Youtube, pois o cara é daqueles poetas que merecem ser lidos em voz alta. Só não façam isso na hora do almoço, almas pigméias, que o estômago pode regurgitar em vossos corpos putrefatos.