sábado, setembro 22, 2012

Figuras históricas, padres e vultos militares dão nome às ruas do Jardim Botânico


PUBLICADO EM 30 DE AGOSTO DE 2008. REPUBLICAÇÃO.
De um modo geral, as ruas do Jardim Botânico homenageiam vultos, datas e figuras históricas, em especial na área militar e religiosa, como a Barão do Amazonas, a Roque Gonzalez. Mas há outras, como a Felizardo, a Felizardo Furtado e a Guilherme Alves, que dizem respeito à história da cidade.

Abaixo, em gravura, o Barãdo do Amazonas e o padre Roque Gonzales



RUA BARÃO DO AMAZONAS – Na realidade bem poderia se chamar “Almirante Barroso”, pois o Barão é nada menos do que o Almirante Francisco Manoel Barroso, o herói da Guerra do Paraguai. Comandando a corveta “Amazonas”, durante a Batalha do Riachuelo, o Barão ordenou ao timoneiro que a fizesse colidir de proa contra os navios inimigos, selando a sorte da guerra em favor do Brasil. A Barão tem mais de três quilômetros de extensão e atravessa Petrópolis, Jardim Botânico, Partenon e o bairro Santo Antonio, iniciando na avenida Protásio Alves e terminando na Paulino Azurenha. Até a década de 1930 era conhecida tanto como Barão do Amazonas como “rua Esmeralda”. Uma lei municipal de 6 de julho de 1936 oficializou o atual nome. Nas décadas seguintes, com o desenvolvimento de Petrópolis, seguiu até a Protásio Alves e, em sentido oposto, subiu o morro, superou a sua crista e desceu no rumo da Glória, até encontrar a Paulino Azurenha.

AVENIDA  DOUTOR SALVADOR FRANÇA – Salvador França Martins, nascido e falecido em Porto Alegre, foi um grande proprietário de terras na cidade no século XIX e XX. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo. Casou-se com Dona Inocência Prates de Castilhos, irmã do político republicano Júlio de Castilhos.
RUA DONA INOCENCIA – Homenagem à esposa do doutor Salvador França.
RUA FELIZARDO – Joaquim José Felizardo (1839-1899) foi um grande comerciante e partidário do abolicionismo. Muito antes da lei que libertou os escravo, eles já havia dado liberdade a todos os seus. Foi proprietário de terras no Caminho do Meio, alturas do hoje bairro Santa Cecília, naquela época conhecida por Chácara Felizardo, além de vereador de Porto Alegre.

RUA FREITAS CABRAL – João Francisco de Freitas Cabral, educador e político, nasceu em Viamão e morreu em Porto Alegre, em 1890. Foi marinheiro dos 18 aos 21 anos e depois tornou-se professor. Também elegeu-se deputado provincial. A rua, antigamente, se chamava rua Carlos Barbosa.
RUA FERREIRA VIANA – Divisa de Petrópolis com o Botânico. Homenageia Antonio Ferreira Viana, pelotense de nascimento, nascido em 1832 e falecido em 1905, no Rio de Janeiro. Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, foi deputado, senador e conselheiro do Império, além de ministro da Justiça de D. Pedro II. Espírito brilhante, grande orador, escritor de estilo primoroso, magoou o Imperador com um de seus pronunciamentos, porém nunca deixou de ser adepto do império. Antes de receber tal nome a rua chamava-se Simão Rosa.
RUA ROQUE GONZALES – Roque Gonzalez foi declarado santo pelo Papa João Paulo II, quando da sua visita ao Paraguai, em 1988. Da ordem dos Jesuítas, é considerado, junto com Afonso Rodrigues, um dos primeiros evangelizadores do Rio Grande do Sul e um dos primeiros mártires da nossa terra, já que os dois foram assassinados pelos índios guaranis no dia 15 de novembro de 1628, onde hoje é a localidade de Caiboaté. Roque, que tinha então 52 anos de idade, morreu com uma pancada de machado de pedra na cabeça e seu corpo foi depois queimado pelos índios que não concordavam com sua missão evangelizadora. Gonzales era filho de uma rica e importante família de Assunción, Paraguai, de onde veio. Junto com Afonso e um outro missionário chamado João del Castilhos, fundou várias missões – ou “reduções” no Paraguai, Argentina e Brasil, além de ter oficiado a primeira missa em terras do Rio Grande do Sul.
RUA AFONSO RODRIGUES – Afonso Rodrigues, também jesuíta, foi morto junto com Roque Gonzales e também foi declarado santo pelo Papa João Paulo II. Natural da Espanha, seu corpo foi queimado pelos guaranis.
RUA GUILHERME ALVES – É uma via que corta tanto o Jardim Botânico quanto o Partenon, iniciando na Ferreira Viana, passando pela Ipiranga e acabando na rua Mário de Artagão, no Partenon. Na planta municipal de 1916 aparece com o nome de “rua Progresso”. Em 1936 passou a ter o nome atual. Guilherme Alves, nascido em 1878 e falecido em 1930, foi o primeiro construtor dos grandes armazéns da zona do cais do porto, armazéns estes que mais tarde passariam a partencer à Cia. Costeira de Navegação. O nome da rua, porém, tem mais a ver com o fato de ter sido ele um dos primeiros construtores residenciais do bairro Partenon. Segundo se sabe, o progresso da rua foi lento mas firme. Na planta municipal de 1928, era apenas um logradouro do Partenon, sem ainda ter passado do arroio Dilúvio. Na planta de 1949 já aparece nos limites do Jardim Botânico.
RUA 18 DE SETEMBRO – É aquela pequena rua ao lado do shopping Bourbon. A data marca a rendição do Paraguai ao Brasil, na Guerra do Paraguai. Nesse dia, em 1865, em Uruguaiana, as forças paraguaias, cercadas pelos exércitos brasileiros, decidiram capitular. Na história, o dia 18 de novembro também registra fatos marcantes: foi nesse dia, em 1950, que entrou no ar a TV Tupi, de São Paulo, de propriedade de Assis Chateaubriand, a primeira emissora de televisão do Brasil. Em 1946, também nesse dia, é promulgada a Constituição Brasileira, a primeira depois da ditadura Vargas e que só seria alterada em 1988. Em 1969, é sancionada a Lei de Segurança Nacional do governo militar, prevendo inclusive pena de morte, prisão perpétua e banimento do país. Em 1984 o brasileiro Amir Klink completou a travessia do oceano Atlântico em um simples caíque, a primeira de suas muitas proezas. A data registra ainda a morte de Jimi Hendrix (1970), o nascimento da atriz Greta Garbo (1905), a fundação da CIA – Central Inteligency Agency, em 1947, a fundação do jornal New York Times(1851), além da Independência do Chile (1818).

De bóia-fria a respeitado comentarista econômico

PUBLICADO EM 27 DE AGOSTO DE 2008, republicação.

Olhando hoje, quem imaginaria que o conceituado comentarista de economia, o homem de voz pausada, de rosto claro e "primeiro-mundista", o medalhão que fala sobre dinheiro com a naturalidade de quem sempre teve esse produto em fartura, quem imaginaria que ele, dos sete aos dezesseis anos, fosse um bóia-fria - aquele sujeito desvalido que corta cana nas lavouras do interior de São Paulo, ganhando uma mixaria por isso?
Pois é, Joelmir Beting - autodidata por formação, um dos mais bem pagos jornalistas do País, hoje fazendo seus comentários na Rede Bandeirantes de Televisão (depois de tantos anos na Globo, demitido por fazer a propaganda de um banco, sem autorização da emissora), 71 anos - foi coroinha e bóia-fria nas lavouras de cana-de-açúcar da região de Tambaú, interior de SP? Aos 16 para 17 anos, Joelmir mudou-se para a Capital paulista, iniciando, a duras penas, a sua escalada para o sucesso - ou coisa que o valha.
Outra informação que pouca gente sabe: no dia 5 de março de 1961, no estádio do Maracanã, em um jogo entre Santos e Fluminense, quando era comentarista esportivo, foi dele a idéia de mandar fazer uma placa em comemoração ao antológico gol de Pelé - aquele que resultou na famosa "placa de ouro": o Santos vencia a partida por 1 a 0 quando Pelé recebeu a bola no meio do campo e arrancou em direção à meta adversária, passando por dois, driblando mais três e chutando na saída do goleiro Castilho. Joelmir, que estava no estádio, impressionou-se com o lance e sugeriu ao jornal O Esporte, no qual trabalhava, que fizesse uma placa de bronze para registrar a beleza da jogada. O hoje famoso comentarista de economia pagou as despesas com dinheiro do seu próprio bolso pois o jornal encolheu-se na hora de saldar as despesas. "Nunca fiz um gol de placa, mas fiz a placa do gol", diria mais tarde o comentarista.
A propósito: católico fervoroso, discípulo do Padre Donizetti, o pai de Joelmir morreu quando ele tinha apenas sete anos de idade. Sebastião Beting caiu da carroceria de um caminhão que o levava para trabalhar na lavoura de cana e não restistiu aos ferimentos.
Palmeirense da gema, de olho no mundo real à sua volta, Joelmir Beting é, há muitos anos, respeitado pelo mundo empresarial e político não somente pela linguagem pedagógica que emprega nos seus comentários (ao contrário de tantos outros, que fazem questão do hermetismo) como pelos acertos realmente comprovados nas suas análises. Ou, como disse um político admirador seu, ele é daqueles que "só consegue explicar aquilo que entendeu". Justificando o seu estilo, cheio de metáforas e analogias, Beting, certa vez, disse o seguinte: "Para se fazer entender você precisa repetir uma mesma idéia até cansar. Por mais óbvia que ela seja". (Pesquisa: Conselheiro X.)

sexta-feira, setembro 21, 2012

Os primórdios da Internet

PULICADO EM 2008

O e-mail - ou correio eletrônico - praticamente substituiu as cartas comuns que todos nós, uns tempos atrás, mandávamos para os mais variados cantos do país e do Mundo - e que, além de exigir selo (e dinheiro), demoravam um bocado para chegar.

É, mas a gente não lembra direito de como tudo isso começou. Simplesmente parece algo normal, como beber um copo de água, só que não é bem assim.

Vejam nesta matéria que o Conselheiro X. descobriu em seus alfarrábios, datada de 17 de fevereiro de 1993 (pouco depois do impechment de Collor), na revista Veja - quinze anos atrás, portanto. Não faz muito tempo - e tudo mudou tão radicalmente que a gente nem consegue imaginar como era a coisa em seu início, e tinha apenas 2 mil usuários. Digamos que era algo exclusivo do meio universitário - dos professores e pesquisadores de universidades - e havia custos, sim. A Internet engatinhava, àquela época - sabem o que é Brasnet? Acompanhem.


"Conversa Digital


"Através de uma rede de correio eletrônico, cientistas , cientistas brasileiros trocam informações com colegas no exterior"



"Uma nova forma de comunicação está ganhando espaço entre os acadêmicos brasileiros conectados com a era da informática. Mais veloz que o telex, mais confiável que o fax e tão fácil de usar quanto o telefone, em todo o mundo esta nova mania se chama correio eletrônico. Ela permite o intercâmbio de correspondência digital e informações entre pesquisadores. No ano passado, a Brasnet, o braço brasileiro da Internet, a maior rede mundial de computadores, cresceu quase 500%, elevando a 2 000 o número de computadores nacionais ligados ao sistema. Na Internet, há mais de 1,3 milhão de computadores conectados. Eles trocam mensagens e programas entre si utilizando canais de transmissão de dados e via satélite. Todas as universidades americanas fazem parte do sistema, bem como a maioria dos centros de pesquisa europeus. Cada máquina possui um endereço eletrônico, para o qual são enviadas cartas e mensagens.

"A vantagem para os pesquisadores brasileiros conectados ao correio eletrônico é que o computador se transforma numa ágil ferramenta de comunicação com o mundo e deixa de ser apenas uma máquina eficiente mas isolada. "Antes eu era obrigado a esperar mais de um mês para obter uma resposta por escrito de um pesquisador do exterior a fim de tirar uma dúvida", diz o professor Imre Simom, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, um usuário frequente da Internet. "Com o correio eletrônico, me comunico rapidamente com o exterior e, em um dia ou dois, alguém me manda uma carta digital com a solução do problema". Um dos mais assíduos correspondentes eletrônicos de Simon é o francês Christian Choffrut, professor do Laboratório de Informática Teórica e Programação da Universidade Paris VII. "Através do correio eletrônico, trabalhamos como se estivéssemos um ao lado do outro", disse Choffrut a Fábio Altman, correspondente da VEJA em Paris.

"A primeira providência de Choffrut quando entra na sua sala na universidade é verificar se há alguma correspondência eletrônica em seu computador. "É como se estivesse consultando minha secretária eletrônica", diz o francês. Mesmo de casa, Choffrut consegue ter acesso às mensagens enviadas a seu computador instalado na universidade. Ele aciona o seu Minitel, o serviço de videotexto francês, que funciona através da linha telefônica convencional, e "entra" em seu micro na escola em busca de alguma carta digital.

"Além de mandar mensagens individuais, o sistema também permite o envio de correspondências coletivas. Os bolsistas brasileiros no exterior se comunicam através do Brasnet. Eles escrevem uma mensagem e, em vez de endereçá-la para apenas um usuário, mandam a carta digital para a Brasnet, que envia uma cópia do texto para os cerca de 1 500 associados a essa pequena rede nacional.

IMPEACHMENT - Foi através do Brasnet que, no dia 29 de setembro do ano passado, esses mesmos bolsistas acompanharam a votação do impeachment do presidente Fernando Collor. Os resultados da votação do Congresso Nacional eram veiculados pela rede por pesquisadores brasileiros que acompanhavam o impeachment pela televisão. Além de tratar assuntos sérios, também há espaço para brincadeiras no Brasnet. O cearense Mauro Oliveira, de 38 anos, que faz doutorado na Universidade Paris VI sobre o ensino de rede de computadores, ficou conhecido na rede nacional como "Mauro Pacatuba". O brasileiro difundiu pela Brasnet durante 55 semanas seguidas, sempre às sextas-feiras, a "Rádio Uirapuru de Itapipoca", um programa escrito de humor. A rádio só teve 55 emissões porque Mauro Pacatuba, em certo momento, verificou que o uso lúdico do Brasnet tinha se transformado num vício. "Resolvi parar para me dedicar à minha tese", diz o brasileiro.

"Além da rapidez e da eficiência desse sistema, os especialistas em computação apontam outra vantagem no uso do correio eletrônico. Segundo um estudo da empresa Hewlett-Packard, uma mensagem eletrônica custa bem menos que uma carta ou um fax. A empresa gasta 22 centavos de dólar para mandar uma mensagem de duas páginas pelo correio eletrônico para uma de suas subsidiárias espalhadas pelo mundo. Isso é metade do preço de uma carta internacional e quase oito vezes mais barato que um fax."

domingo, setembro 16, 2012

Parque Ararigboia ressurgiu nos anos 90

PUBLICADO EM 2008. fOTOS: Presidente hervé e turma do volei.

Na divisa entre o Jardim Botânico e Petrópolis, o Parque Ararigbóia, se falasse, teria muitas histórias a contar. Na antiga "Várzea de Petrópolis", em um terreno que já foi alagadiço, ocupa um quarteirão inteiro, entre as ruas Felizardo Furtado, Saicã, Lavradio e Mariz e Barros. Tradicional ponto de lazer dos dois bairros, já foi conhecido como o "campo do Sul Brasil", um clube de futebol que marcou época nas redondezas. Somente em 1953 é que foi batizado como "Ararigbóia", em homenagem ao cacique índio que ajudou os portugueses a expulsar os invasores franceses do Rio de Janeiro, no século XVI.
Conhecer a história do Ararigbóia é um passeio por muitas décadas. Hoje um centro de esporte, lazer e saúde, o local foi fundado por um empreiteiro chamado Arino Bernardino de Souza, em fevereiro de 1942 - hoje ele é o nome do Ginásio, inaugurado em 30 de setembro de 1995.
Quem sabe tudo, ou muito, da história do Parque Ararigbóia, é o presidente da Associação Comunitária do Parque Ararigbóia, Hervè Paschoto Saciloto, de 72 anos, um geólogo aposentado, durante muitos anos funcionário da Petrobrás (trabalhou mais de 30 anos na Bahia) e que, quando mudou-se para a rua Mariz e Barros, em 1991, ao olhar o local, quase abandonado, mal-cuidado, decidiu: "Vou cuidar disso aqui".
O Ararigbóia, então, já tinha muitos anos de história, mas estava sendo muito mal aproveitado e não integrava a comunidade à sua volta. Havia um barracão de tijolos, mal ajambrado, e uma cancha de bocha na rua Saicã. O pessoal do futebol tinha o seu presidente, e o da bocha, outro. Hervè - que nem sabia jogar bocha - entrou para a segunda turma e ficou como presidente deles, e, em 1992, fez um movimento para integrar os dois grupos. Conseguiu, e elegeu-se presidente da Associação Comunitária, fundada em 1980. Ficou nessa condição até 1995, quando foi sucedido por Pedro Paulo Machado, o "Pedrinho" - uma das referências maiores quando se fala no Parque.
Nesse tempo eles iniciaram uma luta para reformar o barracão que ali havia, "até que vimos que isso não valia a pena". Surgiu então o projeto de um novo ginásio de esportes, que foi aprovado e construído pelo Orçamento Participativo da Prefeitura de Porto Alegre, do qual seu Hervè era conselheiro. "Aí tivemos que criar uma cultura para que a comunidade cuidasse da sua conservação, sendo que a Prefeitura entraria com professores e a parte pedagógica para as atividades que nós queríamos", conta ele.
TERCEIRA IDADE - O Parque Ararigbóia, com seus mais de 700 frequentadores fixos e inúmeras atividades para todas as faixas etárias, de toda a cidade, não é mantido com verbas da Prefeitura - ao contrário do que muita gente pensa. O poder público apenas auxilia na manutenção e algumas melhorias, mas o dinheiro que sustenta a entidade vem da comunidade e das rendas obtidas pelo Parque.
"A maior parte vem da mensalidade paga pelos associados da Associação Comunitária, que são cerca de 700 e contribuem, a cada semestre, com 20 reais cada. É gente de toda a cidade, a maioria daqui dos nossos bairros, e pagam certinho", relata Hervè. "Tudo o que tem dentro do ginásio foi comprado com dinheiro da comunidade. E, com isso, conseguimos fazer muitas coisas. Agora vamos pintar o ginásio e botar ar condicionado no salão de ginástica, no segundo pavimento".
O Parque Ararigbóia conseguiu arregimentar a comunidade à sua volta, não só pelas várias atividades ali desenvolvidas - futebol, bocha, basquete, vôlei, ginástica, alongamento, musculação - como também em palestras realizadas em colégios. É o chamado "Grupo de Educação para o Envelhecimento", uma iniciativa de Hervè que consiste na ida aos colégios dos bairros vizinhos para troca de experiências com crianças e adolescentes. A idéia surgiu no ano 2000 e segue em pleno curso. Uma vez por semana um grupo da Terceira Idade vai às salas de aula, conversar com alunos sobre temas tão diferentes como a sexualidade, a saúde, a carreira profissional, o bem estar, os bons hábitos, a importância do exercício físico, da boa alimentação, do carinho - sem nenhum moralismo. "Já nos encontramos com mais de 2500 crianças, e agora estamos nos encontrando com adolescentes", informa Hervè. "Falamos de nossas vidas, do que era no passado, do que era um fogão a lenha, de coisas que eles nem conhecem. E a aceitação nos surpreendeu".
Um vez por mês o grupo, integrado por cerca de 16 idosos, reúne-se para fazer uma avaliação do trabalho.
ARQUIBANCADA - Arino Bernardino da Silva dá nome ao ginásio. O empreiteiro, construtor de ruas e calçados, foi quem deu "formato" ao atual parque, em 1942 - antes o local era um espaço público, um charco que ele aterrou e deu vida.
"Ele fez o campo de futebol, uma arquibancada de madeira e criou o time do Sul Brasil, que fazia campeonatos de futebol entre os bairros", conta seu Hervè. Em 1953, (quando passou a se chamar Ararigbóia) a Prefeitura de Porto Alegre juntou-se com a Federação de Bocha "para usurpar o direito da comunidade de ocupar esse espaço". Segundo o presidente da Associação, eles se apropriaram do campo: "As pessoas, para jogar no campo, tinham que ir na Prefeitura às 4 horas da manhã para tentar marcar um horário".
Acontecia ali o Campeonato Estadual de Bocha. Em 1963 foi criada a associação dos Veteranos do Futebol, que lutou para ter um dia seu no calendário do campo - e conseguiram. No início dos anos 70 a cancha de bocha foi extinta, restando o barracão - havia disputas de vôlei, então. Nesse tempo foi criado um grupo infantil de dança e outro de ginástica. Em 1980, finalmente, foi criada a Associação Comunitária do Parque Ararigbóia, usada mais pelo pessoal do futebol.
Do outro lado, na rua Saicã, havia a cancha de bocha - cada qual com um presidente. Em 1992 é que aconteceu a unificação dos dois grupos e a eleição de Hervè para a presidência.

RECESSO - O Parque Ararigbóia, como acontece todos os anos, estará de recesso do dia 26 próximo a 4 de agosto, reabrindo normalmente dia 5. A Secretaria, no entanto - com agendamento de campo - permanecerá aberta. Dia 5, aliás, é o dia de inscrição para os cursos e atividades, o que deve feito a partir das 8 horas da manhã: a inscrição é feita por ordem de espera - quem chega antes, fica com a vaga.

1997: o "azarão" desconhecido chamado Guga conquista a França e o mundo na quadra de saibro

1997. À exceção dos próprios tenistas profissionais, ninguém no Brasil tinha ouvido falar em Gustava Kuerten, o Guga. Porém, em junho daquele ano - lá se vão onze outonos - um rapaz de 20 anos (nasceu em 10 de setembro de 1976), 1,91 metro de altura, 76 quilos, cabelos longos, barba rala e um estilo "grunge" de se vestir, conquistava o primeiro e mais importante dos seus muitos títulos - o de campeão do torneio de Roland Garros, na França, um dos mais importantes do mundo do "grand slam" - as competições em Winbledon, na Inlalterra, os abertos dos Estados Unidos e da Austrália e, é claro, esse, na França. Guga havia se profissionalizado havia apenas dois anos.

Recentemente, Guga, hoje com 31 anos, despediu-se do tênis profissional, na mesma quadra que o viu vencer. Emocionou-se e até ganhou um pouco da terra e do saibro da quadra de seu técnico e "segundo pai", o gaúcho Larry Passos. A diferença é que, agora, o tenista catarinense, fanático torcedor do Avaí, tem algumas dezenas de milhões de dólares de patrimônio e um nome reconhecido no mundo todo. Ao lado de Maria Esther Bueno, tricampeã em Winbledon, Guga tornou-se o maior nome masculino do tênis brasileiro de todos os tempos. E um orgulho para a sua terra, Santa Catarina.

MULTICOLORIDO - Ao vencer o espanhol Sergi Bruguera, naquele torneio, Gustavo Kuerten - o azarão da disputa - ganhava o primeiro dos seus três títulos no "Maracanã do tênis".

Em sua edição de 11 de junho de 1997, ainda antes da final, a revista VEJA - que parecia acreditar que ele já tinha ido longe demais - escreveu: "Nunca o esporte nacional vira antes um azarão desse quilate. Guga chegou a Roland Garros há duas semanas como mais um entre as dezenas de tenistas anônimos que, todos os anos, inscrevem-se para a competição. E, para espanto da imprensa especializada internacional, e dos brasileiros, que nunca tinham ouvido falar no seu nome até segunda-feira, foi abatendo de forma implacável as celebridades que se apresentaram na sua frente. Na sexta-feira, quando venceu o belga Filip Dewulf na semifinal, já computava entre suas vítimas o russo Yegeni Kafelnikov e o austríaco Thomas Muster, respectivamente campeões do torneio em 1996 e 1995. O adversário seguinte, Bruguera, ganhou em 1993 e 1994."

E prosseguia: "Aos 20 anos, Gustavo Kuerten entrou em Roland Garros pela porta dos fundos. Antes de chegar ao torneio, ocupava apenas a 66 posição no ranking dos melhores tenistas do mundo e nunca havia vencido um torneio de primeira classe do circuito internacional. "Ainda não sei se sou uma estrela do tênis ou se continuo o mesmo", disse a VEJA um incrédulo Guga na quinta-feira enquanto brincava num flipperama ao lado do estádio."

Depois das vitórias de Roland Garros, os jornalistas internacionais passaram a chamá-lo de "surfista do saibro". Algo que também chamou a atenção, naquela ocasião, foram as roupas do tenista brasileiro. "Num esporte em que a tradição manda os atletas usar impecáveis roupas brancas, Guga apresentou-se com uniforme berrante, mais apropriado a um jogador de futebol: todo azul e amarelo, incluindo meias e sapatos. Surpresos, os organizadores do torneio procuraram os representantes do fabricante de roupas para pedir que moderassem na profusão de cores do uniforme. Não. Guga limitou-se a colocar na cabeça uma bandana com fundo branco, e manteve sua figura de surfista grunge. "Como pensaram que eu não iria longe no torneio, nem trataram do assunto diretamente comigo", conta o jogador" - escreveu VEJA em sua matéria (capa da edição de 11 de junho de 1997).

A revista dava mais detalhes do comportamento do catarinense: "Fora das quadras, mais surpresas. Enquanto a maioria dos jogadores do torneio se hospedava em hotéis caros e luxuosos de Paris, o brasileiro se escondia no modesto Mont Blanc, 70 dólares a diária. Foi nesse hotel que se hospedou quando esteve em Paris pela primeira vez, há cinco anos. Diz que foi bem tratado e não muda mais. Também costuma frequentar a mesma pizzaria, a Victoria, e se divertir no mesmo flipperama, ao lado do estádio de Roland Garros. Embora não aparente, Guga é sempre assim, metódico e disciplinado. Até hoje, quando joga nos Estados Unidos, dispensa os hotéis reservados pelos organizadores e vai para a casa de tia Vicky, uma inglesa que o recebeu quando lá esteve pela primeira vez para disputar um torneio juvenil. "Ele é uma pessoa de hábitos conservadores", diz João Carlos Diniz, promotor de eventos e amigo da família do jogador de Florianópolis."

Embora desconhecido do grande público, em 1997 Guga já era afamado no circuito do tênis brasileiro, por seu "jogo sólido", com bolas colocadas nos limites da quadra e muita velocidade. "Ele tem talento e personalidade para ficar no topo", afirmou então o americano John McEnroe, um dos maiores tenistas de todos os tempos. Como se vê, acertou: Guga ficou por mais de um ano como o tenista número 1 do mundo.

"Guga tem ainda uma arma poderosa em sua mão direita: o saque", escreveu VEJA. "Segundo o último número do Jornal do Tênis, órgão oficial da Associação do Tênis Profissional, Guga tem o décimo sétimo saque mais veloz do mundo. A bolinha arremessada por sua raquete chega a alcançar 206 km por hora. É uma velocidade tão grande que o adversário não tem tempo de reagir".

ORIGENS - De uma família de classe média, descendente de alemães, Guga tem um irmão mais velho, Rafael, formado em ciências da computação e professor de tênis - é ele quem cuida de seus negócios. O mais novo, Guilherme, sofria de paralisia cerebral e vivia sob os cuidados de uma babá. Comerciante de esquadrias de alumínio, o pai, Aldo, havia morrido de ataque cardíaco há 11 anos. Guga disse então: "A ele costumo dedicar cada momento de minha vida". A mãe, Alice, trabalhava como assistente social na Telesc, a empresa telefônica de Santa Catarina, à época, além de dirigir a Fundação de Educação Especial, do Governo do Estado. A avó, Olga, foi a primeira patrocinadora - os primeiros torneios foram bancados pelas Indústrias Schlösser, uma tecelagem da família, em Brusque.

"Ao despontar para o mundo do Tênis, Guga levava uma boa vida frequentando uma das 42 praias de Florianópolis. Para não ficar longe da família, nem das praias, recusou inúmeros convites de universidades americanas e de clubes alemães que o queriam para reforçar suas equipes. O mar e o surfe sempre foram duas grandes paixões fora da quadra", prosseguiu VEJA, concluindo: "O aparecimento da exótica figura multicolorida como uma pilha Rayovac em Roland Garros foi saudado como uma brisa de renovação num esporte em crise. Hoje, há centenas de torneios realizados no mundo a cada ano, rios de dinheiro correndo para os bolsos dos tenistas."

sábado, setembro 15, 2012

Nos anos 60 Botânico era uma grande chácara

Outro antigo morador do bairro (embora não tenha nascido aqui) é Rui Cintra, de 56 anos, dono de um pequeno bar nos fundos do Supermercado Gecepel, na Guilherme Alves. Suas lembranças remontam aos anos sessenta, quando o bairro era formado por casas de madeira, chácaras, plantações de agrião e de flores, a Guilherme Alves e a Barão do Amazonas eram ruas de chão batido, com esgotos a céu aberto que corriam livremente às margens das vias.
“A Guilherme Alves não tinha nem saída, ia-se até a Valparaíso e do outro lado era um banhadal. Em volta do riacho havia um monte de malocas e uma ponte de madeira que dava passagem para o Campo de São Pedro, que é hoje a Vila Cachorro Sentado”, conta ele, recordando que ainda se tomava banho e se pescava no Arroio Dilúvio, especialmente a montante, nas alturas de onde hoje é a PUC. “Lá existia uma ponte de madeira e famílias inteiras iam lá, passar o dia, tomar banho, tinha muita areia ali”.
Por essa época o local onde hoje está o Conjunto Residencial Felizardo Furtado existia a Chácara Nossa Senhora do Caravaggio, provida de uma pequena vertente, o chamado “parquinho”. Seu Rui recorda de muitas outras do mesmo tipo – a chácara do seu Zé, dos Pieretti, das Camélias. Acima, mais adiante havia o campo do Sul Brasil. Diferentemente de hoje, as ruas nem sempre levavam a outras ruas. “A Salvador França, por exemplo, só ia até a Felizardo, depois era mato, para se ir à Protásio se seguia pela Tibiriçá, onde hoje está o posto de gasolina do Darci”, afirma ele.
Em meados dos anos setenta, quando se iniciou a construção dos blocos residenciais, vieram milhares de trabalhadores, muitos deles provenientes do interior do Estado – e isso modificou totalmente a paisagem do bairro. “Antes todo mundo se conhecia e se cumprimentava, quando chegou essa turma mudou tudo, a rua Felizardo encheu de gente indo e vindo, virou quase uma rua da Praia”, rememora Rui.
Desse período merece destaque o bar da Dona Tida (da família dos “Bravos”), uma antiga moradora, já falecida, que adaptou a sua casa de madeira, na Felizardo (onde hoje está uma creche), e a transformou em bar e restaurante, com mesas de sinuca, venda de bebidas e refeições disputadas pelos trabalhadores da obra. “De vez em quando dava confusão ali”, informa. Já havia, então, o armazém dos Mocelin e, mais adiante, na esquina com a Barão, o do seu Alécio. Para aumentar a renda, aproveitando a vastidão dos terrenos, algumas famílias faziam puxados e alugavam pequenas peças que serviam de moradia os trabalhadores.
ANOS SESSENTA – Quem viajasse no tempo e retornasse aos anos sessenta e início dos setenta no Jardim Botânico encontraria um bairro quase rural, com um reduzido número de prédios e estabelecimentos comerciais. Já havia, é certo, um posto de gasolina na Barão com a Valparaíso (continua a existir) e também uma padaria (Barão com Felizardo), no mesmo local e no mesmo prédio em que há uma hoje. “Do outro lado, na Felizardo, havia um campinho de futebol, muito usado pela turma dos Bancários”, recorda seu Rui. “Na esquina da Barão com a Itaboraí havia o comércio do seu Antonio, relativamente forte. Tinha também o seu Edu e dona Maria. E onde hoje está o Bora-Bora era um terreno, um comércio onde se fazia argamassa que muita gente vinha buscar de carroças. Do outro lado era um comércio forte, o armazém do seu Caboclo.
Uma curiosa indústria que existia na época tinha muito a ver com o bairro – uma fábrica de artefatos para cavalos e carroceiros localizada na Guilherme, defronte à atual igreja de São Luís, e que produzia não somente carroças como ferraduras. “Era do seu Lúcio. Ele era, por assim dizer, o industrial da ferradura e se dava bem porque aqui tinha muito carroceiro e muitos cavalos. Tinha vários empregados e foi a nossa primeira montadora, muito antes da GM”, recorda, divertido, seu Rui.
Nesse mundo tão pequeno, o lazer era igualmente simples. “Na Semana Santa se passava filmes em um bar da Valparaíso com a Salvador, se colocava um grande pano branco na parede e todo mundo se reunia para assistir filmes religiosos”. Os cinemas mais próximos eram o Ritz, o Miramar e o Brasil, este último próximo ao Partenon Tênis Clube, onde atualmente está um posto de gasolina.

Franck Sinatra sempre foi fascinado pelo crime


PUBLICADO EM 2008
Quinta-feira, 14 de maio de 1998, um hospital de Los Angeles, Califórnia. Nessa noite aquele que já foi considerado "A Voz" - um dos melhores cantores populares do século 20 - deu o seu último suspiro: morria assim, aos 82 anos, de ataque cardíaco, Francis Albert Sinatra, o filho de uma família pobre que, como disseram alguns, nem deveria ter nascido, tantas as dificuldades na hora do parto. Sua mãe, uma imigrante italiana (era de Gênova), e seu pai, um bombeiro, eram católicos, moravam na pequena cidade de Hoboken, em Nova Jersey, e nada indicava que o filho único de um casal tão modesto desse ao mundo, naquele dia 12 de dezembro de 1915, um dos mais bem sucedidos artistas que o mundo já viu.
O seu nascimento foi, realmente, complicado, tanto que quase morreu estrangulado durante o parto, teve um tímpano furado e algumas cicatrizes no rosto e, segundo ele dizia, "até na alma". A família era pobre, pelos padrões norte-americanos, e ele cresceu fraco, raquítico pode-se dizer, além de dono de uma estranha timidez e de um comportamento solitário que não lhe ajudava na hora de fazer amizades com outros gratos.
Aos 16 anos fugiu da escola para me meter em cinemas e casas de música, isso no começo dos anos 30. Anos mais tarde, diria - talvez com certo histrionismo, talvez com boa dose de verdade: "Se não fosse a música, eu teria me tornado um gângster".

Na verdade, os gângsters sempre o fascinaram e ele teve muitos como amigos - o FBI tentou provar suas ligações criminosas mas nunca conseguiu nada que pudesse levá-lo às barras dos tribunais. A Máfia, aliás, teria sido responsável pelo seu ressurgimento, no tempo em que ficou quase no ostracismo, esquecido pelo grande público e enfrentando uma série de problemas pessoas, entre eles o alcoolismo: como os mafiosos eram donos das principais casas de espetáculo dos EUA, abriam a ele as portas e o adotaram como um dos seus protegidos, colocando-o novamente na ribalta. Contrariando as teses dos anti-tabagistas, Sinatra - que fumava um cigarro atrás do outro ("só não fumo quando estou no chuveiro") durou longos 82 anos de uma vida agitada e, talvez, bem vivida. Sincero, disse que "papo de tragédia da fama não existe. A tragédia da fama é quando ninguém aparece e você está cantando para a faxineira num botequim vazio que não recebe um cliente pagante desde o dia de São Nunca".

São Lucas, o moderno hospital do Jardim Botânico, foi inaugurado pelo presidente da República

PUBLICADO EM 2008, REPUBLICADO AGORA
Muita gente não se recorda, mas o Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica, PUCRS, é irmão do Condomínio Habitacional Felizardo Furtado. Pelo menos na data de inauguração e na pessoa inauguradora – o então presidente da República Ernesto Geisel.
Foi ele quem cortou a fita inaugural do primeiro hospital da Congregação dos Irmãos Maristas em todo o mundo (hospital que muita gente, erroneamente, pensa não estar localizado no Jardim Botânico). O dia era 29 de outubro de 1976, uma sexta-feira, e o São Lucas surgiria ao mundo como “Hospital Universitário da PUCRS” - um hospital geral, destinado a pacientes adultos e crianças e também um local de estágio para os mais de 800 alunos de vários cursos da PUC. As obras haviam iniciado em 1972 e, em 1973, estavam concluídos os laboratórios, colocados à disposição para o ensino médico, com os estudantes do curso de Medicina atendendo sob orientação dos professores da Faculdade. Em 1982, por razões jurídicas – e também por ter mudados seus objetivos iniciais – passou a ter a denominação atual.
200 MILHÕES DE CRUZEIROS - A construção só foi possível graças a subvenções estaduais (seis hectares foram doados pelo Governo do Estado), subvenções federais e financiamentos externos, além dos recursos da própria PUC. O São Lucas foi o trigésimo nono hospital de Porto Alegre e aproveitou a primeira turma do curso de Medicina da Universidade, formada em 1975. O custo total da obra foi de 200 milhões de cruzeiros – o que valeria isso hoje?
Na época da inauguração tinha 40 mil metros quadrados de área construída, capacidade para 600 leitos, 27 ambulatórios, além de laboratórios, salas de raio X, etc. Um completo equipamento para atendimento geriátrico veio do Japão e, em breve, passaria a contar com setor de Medicina Nuclear e Praxiterapia. O Centro Cirúrgico contava com 12 salas. O início do funcionamento, entretanto, não seria imediato.
Naquele 29 de outubro, depois do Presidente ter inaugurado o Condomínio Felizardo Furtado, sua comitiva deslocou-se até a avenida Ipiranga, onde foi recebida pelo Irmão José Otão, Reitor da PUC, pelo Cardeal D. Vicente Scherer e por um grupo de professores. Geisel – que tinha a seu lado o governador Sinval Guazzelli – descerrou a placa comemorativa e D. Vicente deu a benção.
Atualmente circulam pelo São Lucas cerca de 18 mil pessoas, todo dia, muitas delas vindas de outros Estados. A área construída, neste momento, é de 55 mil metros quadrados, sendo 49 mil de hospital e seus serviços e 6 mil do Centro Clínico. Cerca de 2.300 funcionários trabalham no local, sendo 170 médicos residentes e um corpo clínico de outros 550 médicos. O estacionamento é suficiente para 1.500 veículos. Internamente, são 549 leitos para pacientes internados, sendo 440 de internação convencional e 78 de UTIs – adultos, coronariana, pediátrica e neonatal – além de 22 leitos de observação para pacientes de urgência. O ambulatórios está projetado para 110 consultórios e atualmente passa por modificações.
CENTRO DE REFERENCIA - O Centro Clínico foi inaugurado em 1988, e abriga 160 conjuntos, 64 especialidades médicas e é destinado preferencialmente aos professores da Faculdade de Medicina. Mantido pela UBEA – União Brasileira de Educação e Assistência, uma entidade civil da congregação dos Irmãos Maristas em Porto Alegre – o São Lucas tem nove pavimentos, sendo o último com apartamentos de internação particular e de luxo. Atende também pelo Sistema Único de Saúde, SUS, e seu objetivo oficial é “ser reconhecido, no Brasil, até o ano 2010, como um hospital padrão de referência em gestão, assistência, ensino e pesquisa em saúde”.
O nome homenageia São Lucas, apóstolo, médico e padroeiro dos médicos.

terça-feira, setembro 11, 2012

Condominio do IPE tem 218 apartamentos, estrutura simples e sólida e 41 anos de vida

São três andares, 218 apartamentos (máximo de 16 por andar) de dois, três e quatro dormitórios e seis lojas que estão fechadas. Localizado entre a avenida Ipiranga, a rua Alcebíades Caetano da Silva e a Chile, o Conjunto Residencial Emanuel Domingues foi inaugurado em 1971. Destinado inicialmente a funcionários públicos, era um projeto do Instituto de Pensionistas do Estado, IPE, que financiava os imóveis pelo esticado prazo de 15 ou 20 anos. Aos poucos, como é natural, passou a ser habitado por um público variado, mas sempre de classe média e, em sua maioria, idosos – no caso dos proprietários. “Já os que alugam são geralmente jovens”, informa Clari Tende, ex-síndica geral e moradora do condomínio há 19 anos.


PUBLICADO EM 2008, republicado agora, na íntegra

Anterior ao Felizardo Furtado e ao da Corsan, o Emanuel Domingues não conta com elevadores e nem um sistema permanente de vigilância – que acontece somente à noite, aos finais de semana e nos feriados. Os furtos e roubos, porém, não chegam ainda a ser um problema, apesar da localização junto à avenida, garante a síndica.
A infra-estrutura do Residencial é bastante simples: algumas churrasqueiras e uma pequena pracinha para as crianças. Não existem elevadores. Estacionamento existe, mas não em quantidade suficiente.
Erguido em uma época em que o bairro era ainda uma espécie de vila formada por muitas casas de madeiras, terrenos baldios e antigos e pequenos prédios de alvenaria, o Emanuel Domingues (homenagem a um antigo morador do Jardim Botânico, dizem alguns) foi projetado originalmente para ir até a rua Valparaíso (por onde, em 1971, passava o Riacho Ipiranga), o que não aconteceu devido às invasões do local.

A freira cantora que fez o maior sucesso, superou Elvis Presley e, pobre, acabou se matando

* PUBLICADO EM 16 DE SETEMBRO DE 2006, republicado agora. 713 visualizações.

Dominique, nique, nique... Dificilmente alguém não conhece esse refrão de uma música do mesmo nome, um dos maiores sucessos das paradas musicais de todo o mundo no ano de 1963 e gravado por dezenas de outros cantores, em variados idiomas, inclusive em português. Fez tanto sucesso que deixou até mesmo Elvis Presley comendo poeira.
Pois a autora de Dominique, ao contrário do que se possa pensar, não ficou rica e não teve uma vida glamourosa. Pelo contrário: Jeannine Deckers, uma freira dominicana do interior da Bélgica, suicidou-se em 29 de março de 1985, quando tinha apenas 52 anos de idade. Ela ingeriu um coquetel de bebidas alcóolicas e barbitúricos. Com ela estava sua companheira, Annie Pescher, uma enfermeira de 41 anos. As duas haviam feito um pacto de morte, finalmente concretizado em um pequeno apartamento da cidade de Wavre, nas proximidades de Bruxelas.
Jeannine já não era mais freira havia tempo - na verdade deixou o convento no ano de 1966, tentando seguir na carreira artística e emplacar novos sucessos. Só que isso não aconteceu e a vida da "Irmã Sorriso" encheu-se de complicações de toda ordem. O Fisco belga resolveu cobrar a sua parte na arrecadação de "Dominique", só que a autora e cantora - que fizera voto de pobreza - já havia doado tudo à sua congregação religiosa. Esta, por sua vez, alegou que a doação já havia sido gasta em obras assistenciais e que não havia recibo a provar o valor doado.
Naturalmente, a corda estourou do lado mais fraco - processada, Jeannine teve todos os seus poucos bens penhorados. O Fisco também passou a confiscar tudo o que ela ganhasse, deixando apenas o mínimo necessário para a sua sobrevivência.
Sobrevivência que ela garantia com aulas de violão e exposições de pintura.
A ex-freira tentou ainda fundar uma instituição de caridade, de apoio a pessoas deficientes, mas não conseguiu verbas para viabilizar o projeto. Profundamente deprimida, ela passou a falar em suicídio, fato consumado na noite de 29 de março de 1985. Triste fim para a autora de uma música tão ingênua e cândida.

Bourbon Ipiranga foi inaugurado em 1998, com Artur Moreira Lima em concerto exclusivo

PUBLICADO EM JULHO DE 2008, republicado agora

Ele foi, e é, o mais importante estabelecimento comercial do Botânico, o empreendimento que modificou as características do bairro e valorizou toda a região à sua volta.
Visto da Ipiranga, torna-se ainda mais grandioso – e quem não se lembra dos vários anos da sua construção, em um terreno que faz parte da história do JB, com dois campinhos de futebol varzeano? Pois ali (avenida Ipiranga, 5200), em 16 de novembro de 1998, implantou-se o Borbon Ipiranga, empreendimento do grupo Zaffari, empresa que fatura mais de 1,5 bilhão de reais por ano, emprega cerca de 8 mil pessoas e é a quarta maior receita do setor no Brasil e a única entre as quatro grandes redes de supermercados com capital cem por cento nacional.
Fazer compras ou simplesmente passear no shopping Ipiranga é um programa quase obrigatório para todos os moradores do Jardim Botânico e dos seus arredores. Pudera: de porte médio, acolhedor, com 70 mil metros quadrados de área construída, 52 pontos comerciais, vários quiosques de serviços, uma praça de alimentação com 700 lugares, o local conta ainda com um hipermercado aberto das 8 horas da manhã até à meia-noite e que também funciona aos domingos.
Ali é possível se assistir aos mais recentes lançamentos cinematográficos, para todas as idades, em algum dos oito cinemas da marca Cinemark, inclusive em horários matinais, a preços reduzidos. Nerão se encontra um bom chope, uma comida portuguesa (restaurante Calamares), café e música ao vivo, além de concertos comunitários e cantores e instrumentistas de qualidade que tocam na praça de alimentação, não só música popular brasileira, como pop, rock, baladas, bossa nova.
No interior do Ipiranga estão vários caixas eletrônicos, uma agência da Caixa Econômica Federal, uma casa de jogos e uma banca de revistas extremamente sortida, com centenas de títulos em todas as áreas. Há, ainda, mais de uma dezena de telefones públicos, banheiros em perfeito estado de limpeza e fraldários. Externamento, no subsolo, o estacionamento abriga centenas de veículos.
GIGANTE – O grupo Zaffari é totalmente gaúcho, o único entre os quatro grandes com capital totalmente nacional e gestão familiar (apesar de muito assediado por grupos estrangeiros).
Os hipermercados Zaffari são voltados para um público classe A e B, que buscam variedades de produtos, atendimento especial e conforto na hora das compras.
Costuma-se dizer que o Zaffari não briga por preços pois disputa um segmento mais abastado. No ano de 2004 a rede faturou 1,3 bilhão de reais, com receita por metro quadrado de 11,2 mil reais – maior que o líder mundial norte-americano Wal-Mart. A empresa, no entanto, não costuma revelar os valores dos seus investimentos.
Além de, recentemente, ter comprado o estádio do tradicional clube de futebol Força e Luz, no vizinho bairro de Santa Cecília (negócio de 9,5 milhões de reais), investiu pesadamente em São Paulo, no bairro de Perdizes, área nobre da cidade. Lá, recentemente, abriu um Bourbon voltado para a classe, com 175 mil metros quadrados (quase três vezes maior do que o Ipiranga) de área construída, cerca de 200 lojas e 10 cinemas. A idéia é competir com o grupo Pão de Açúcar e suas lojas especiais – o investimento total não foi revelado.
No Rio Grande do Sul, o Zaffari compete com o grupo Sonae (marcas Nacional, Big e Maxxi), que agora pertence a Wal-Mart.
Nada mau para uma empresa que iniciou em 1935, quando o fundador Francisco José Zaffari e sua esposa Santini de Carli montaram uma pequena loja de comércio na Vila Sete de Setembro, no interior de Erechim. Anos mais tarde a empresa expandiu-se para Herval Grande.
Nos anos cinquenta os negócios iam tão bem que a família inaugurou as primeiras filiais nas localidades vizinhas e, em 1960, chegou a Porto Alegre, abrindo um atacado. O Zaffari atua, desde os anos 80, na industrialização e comercialização de alimentos e é dono, hoje, das marcas Café Haiti e biscoitos Plic-Plac.
* Zaffari Bourbon Ipiranga – Tel.: 3315.5111









Na inauguração, Arthur Moreira Lima



A inauguração do Bourbon foi uma solenidade e tanto: naquele dia 16 de novembro de 1998 mais de 2 mil pessoas se acotovelaram na esquina da Ipiranga com Guilherme Alves para assistir aos festejos e aos discursos. Primeiramente o consagrado pianista carioca Arthur Moreira Lima executou o hino nacional brasileiro. A orquestra e o coral da PUC também se apresentaram para o público e para uma comitiva de autoridades que incluía o prefeito em exercício de Porto Alegre, José Fortunatti. A matriarca da família Zaffari, dona Santina, viúva do fundador Francisco José, fez o corte da fita inaugural, tendo ao seu lado o diretor-superientende da Cia Zaffari, Marcelo Zaffari.
Disse Marcelo: “Este shopping é uma flor com pétalas de concreto e vidro que se abre no bairro Jardim Botânico para tornar Porto Alegre ainda mais bela e agradável”.
PRÉDIO INTELIGENTE – Concebido pelos mais modernos padrões arquitetônicos, tendo em vista a satisfação e o bem estar dos clientes e visitantes, o Bourbon ocupou 1350 empregados diretos na sua construção. O terreno tem 39 mil metros quadrados (dos quais o hipermercado ocupa 10,8).
Um sistema de última geração controla toda a infra-estrutura do prédio: climatização, segurança das portas, rede hidráulica e até a refrigeração automática dos alimentos. A energia elétrica é garantida por três subestações que atendem de forma independente os cinemas, o shopping e o hipermercado.
O Borbon faz parte dos chamados “prédio inteligentes”, tanto que, em caso de queda da energia elétrica, ela é automativamente ativada por um sistema automático que garante energia contínua por mais 24 horas, bem como a regulagem da temperatura do ar condicionado central.
A obra, que revolucionou a vida do Jardim Botânico, trouxe inúmeros benefícios para a comunidade. A ponte sobre o Dilúvio, na Guilherme, por exemplo, foi construída naquela ocasião, em uma parceria entre a empresa e a Prefeitura. Também foram asfaltadas as ruas em volta do complexo, foi aberta a 18 de Setembro para o tráfego e se investiu em iluminação pública e em obras do esgoto cloacal na Guilherme Alves, na 18 de Setembro e na avenida Ipiranga.
Por outro lado, a associação dos moradores acompanhou de perto todo o processo de instalação. Em reunião com representantes da Cia Zaffari, a AMAJB (conforme a então secretária Laura Ferreira) cadastrou cerca de 500 moradores do bairro e imediações que desejassem trabalhar ali, sujeitos posteriormente ao processo de triagem e seleção.

segunda-feira, setembro 10, 2012

Varig, 1989: quando o piloto foi herói e vilão

PUBLICADO NESTE BLOG EM 2007, REPUBLICADO AGORA
Domingo, 3 de setembro de 1989. O Brasil estava em plena campanha eleitoral, nas primeiras eleições diretas para Presidente da República depois da redemocratização que sucedeu o regime militar. Nesse dia, às 9 horas da manhã, o Boeing 737-200, prefixo PP-VMK, da Varig, decolava para uma viagem (vôo 254) que se transformaria em um estranho desastre aéreo, matando onze pessoas. Partindo de São Paulo, o vôo tinha como destino a cidade de Belém do Pará, passando por Marabá, no sul daquele estado. A bordo, nessa última escala, estavam 48 passageiros. Muitos já haviam desembarcado antes, em aeroportos como o de Uberaba, Uberlândia, Goiânia, Brasília e Imperatriz do Maranhão - afinal, era um típico roteiro "ping-pinga".Quando já estava começando a cair a noite o avião - pilotado pelo comandante César Augusto Padula Garcez, de 32 anos - sobrevoava a selva amazônica, onde não há pistas de pouso e qualquer problema se torna um grande problema.
Naquele momento, sem saber, o piloto estava completamente perdido, sem saber o que fazer. Na verdade, ele havia cometido um erro grotesto em seu plano de navegação: em vez de acionar a rota de 27 graus norte, direcionou o avião para 270 graus oeste - o que, se levado a efeito, em linha reta, levaria o aparelho a sobrevoar a Cordilheira dos Andes, rumo a La Paz.Acontece que, ao descobrir o erro, o piloto também descobriu que já não tinha combustível e o jeito foi mesmo tentar, em plena noite, sem nenhuma luz a orientá-lo, tentar uma aterrissagem em uma clareira da floresta amazônica, na região de São José do Xingu, no Mato Grosso, a 500 quilômetros da cidade de Carajás e 1000 de Belém do Pará.Quase milagrosamente, e graças à maestria do piloto abilolado, o avião de 56 toneladas pousou corretamente na selva: o piloto reduziu a velocidade a 210 km por hora e, usando os flaps (freios aerodinâmicos), caiu de cauda e depois pousou o resto do corpo, o que amenizou o impacto. Quando, por fim, o inferno daquele momento passou, quando a maioria dos passageiros certificou-se de que estava vivo, quase uma dezena de passageiros estavam mortos. A maioria morreu esmagada pelas poltronas que se soltaram na hora da aterrissagem.Naquele instante, para os sobreviventes, incluindo dezenas de feridos, iniciava um outro drama: esperar pelo resgate, o que só aconteceria na quarta-feira. Uma série de trapalhadas, descaso e incompetência das autoridades aeronáuticas e militares custou a vida de mais algumas pessoas que se encontravam feridas, em estado grave.

Astronautas da Apolo 11 iriam se suicidar na Lua?

MATERIA PUBLICADA NO CONSELHEIRO X EM 2006, no seu início.

Pouca gente sabe, mas a missão Apolo 11 - aquela que chegou à superfície lunar pela primeira vez, em julho de 1969 - tinha grandes possibilidades de acabar em tragédia. Conforme um memorando encontrado nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos, por ocasião dos 30 anos da conquista da Lua, havia o temor de que os dois astronautas que colocaram os pés no solo do satélite terrestre, Armstrong e Aldrin, não conseguissem mais retornar para a Nave Mãe, que ficou orbitando no espaço, com Collins no comando. Se houvesse algum problema com o módulo lunar Eagle (Águia), aquele que pousou na Lua com os dois astronautas e, duas horas e meia depois, voltou à nave principal, a ordem da Nasa é para que eles fossem abandonados na superfície lunar. Collins, então, deveria regressar à Terra, sozinho, já que não teria condições de efetuar uma missão de salvamento. Segundo os documentos, os três astronautas sabiam desse risco e estavam preparados para serem "heróis ou mártires".
O presidente Nixon, inclusive, já tinha preparado uma mensagem presidencial ao Mundo, falando da tragédia. Um dos trechos: "O destino determinou que esses homens que foram à Lua explorá-la em paz nela descansassem em paz para sempre. Outros exploradores seguirão rumo ao espaço e certamente encontrarão o caminho de volta. A busca humana não será abandonada. Mas esses homens foram os primeiros e eles permanecerão para sempre no nosso coração como os verdadeiros pioneiros."
Mais: se não conseguissem voltar, Armstrong e Aldrin teriam oxigênio para apenas 36 horas lá em cima e certamente experimentaram uma morte nada agradável, a 382 mil quilômetros de casa. Segundo informações não confirmadas, os dois carregavam consigo cápsculas de cianureto, a fim de abreviar o sofrimento.
O arquivo do memorando está arquivado sob o título "Na eventualidade de desastre na Lua" e foi redigido pelo então porta-voz de Richar Nixon, William Safire.
Para saber mais, consulte a revista Veja de 21 de julho de 1999, página 56 e 57, "Prontos para Morrer", de Daniel Hessel Teich.

Saudade dos velhos tempos do Otávio de Souza

MATERIA PUBLICADA EM 2008, QUANDO O BOTANICO COMPLETOU 50 ANOS DE BAIRRO E REPUBLICADA AGORA

Dona Nídia Ricciardi de Castilhos foi professora e diretora (sete anos) da escola Otávio de Souza, época em que também residia no bairro. Mais de meio século depois, ela lembra do Jardim Botânico (mora hoje na Barão) como uma ilha de tranquilidade e do Otávio de Souza como um colégio de pais interessados e alunos comportados, muitos dos quais a encontram na rua nos dias de hoje: “Eles ainda me cumprimentam e perguntam como estou”, diz.
Natural do Alegrete, na Fronteira, 77 anos de idade, ela começou a dar aulas no antigo Otávio de Souza no distante ano de 1954 – ou seja, 52 anos atrás. Nessa época, recém casada, morava na rua Surupá, “em uma casa de alvenaria, alugada da família Scherer, que tinha muitas casas aqui.” O Otávio só ia até a quinta-série, era ao lado da ESEF e todos, segundo ela, “eram todos do Botânico e todos muito bonzinhos”.
A vida era simples, então, todos se conheciam e aos domingos muitas famílias faziam piqueniques no recém-inaugurado Jardim Botânico. A avenida Salvador França – que ia somente até a rua Felizardo – já era uma avenida movimentada, garante, “muito larga, de terra batida, com muitos ônibus passando”. A Vila dos Bancários já existia, a maioria das residência do bairro eram de madeira e o armazém do Antonio Mocelin, no final da linha do ônibus, era o centro de tudo, uma espécie de supermercado da época. “Depois veio o seu Alécio, na esquina com a Barão do Amazonas. “Lembro que havia um açougue na esquina da Valparaíso com a Salvador França e um mercado do outro lado, de uns alemães”, recorda. “O prédio que está na esquina da Salvador com a Surupá também já existia, acho que foi o primeiro prédio daqui. Esses dias eu voltei na rua Surupá, não reconheci e perguntei a uma pessoa que rua era aquela. Sabe o que ela respondeu: é a rua em que a senhora morou!... Sei que está diferente, muito bonita”.
Para matar as saudades desse tempo, dona Nídia e as antigas professoras e amigas do colégio Otávio de Souza reúnem-se uma vez por mês. “Tomamos chá e falamos daquela época”, conta ela.

Talidomida, o calmante que deformou crianças

As pessoas mais velhas e bem informadas ainda lembram bem deste nome: Talidomida. Prescrito como calmante e sonífero no final dos anos cinquenta e início dos sessenta, o medicamento (na verdade Talidomida é o seu nome químico e não o de vendas) transformou-se em um sinistro sinônimo da ganância monstruosa da indústria farmacêutica. Lançada sem a devida comprovação de seus efeitos colaterais, testada apenas em ratos, produzida em dezenas de países com nomes comerciais diferentes (Contergan, Distaval, Kevadon, Softnon, Talimol etc), a substância foi sintetizada pelo laboratório Chemie Grünenthal, de Nordrhein-Westfalen, na então Alemanha Ocidental e, dentro em breve, logo após o seu lançamento comercial, em 1956, (como anti-gripal e com o nome de Grippex), transformou-se em uma mina de ouro para a indústria, a qual investiu pesadamente na sua divulgação.
Na verdade, a partir de tal substância, fabricava-se inúmeras marcas comerciais que, somente em um ano, na Alemanha, venderam a assombrosa quantidade de 14 toneladas. Mais de 20 outros laboratórios, em diferentes países de todo o mundo, foram licenciados para a sua produção. No Brasil, a Talidomida chegou em março de 1958, nas marcas Ectiluram, Ondosil, Sedalis, Sedim, Verdil e Slip, todas vendidas sem a exigência da receita médica. Era, então, considerado o melhor soporífero jamais inventado, passando também a ser utilizado contra a gripe, a nevralgia, a asma, a tosse e, sobretudo, como antiemético para as mulheres grávidas.Foi justamente aí que ele fez história - uma tétrica história: receitado para muitas grávidas em início de gestação, ingerido em pílulas brancas, era um sedativo barato que provocava um sono rápido, profundo e natural, sem a característica "ressaca" da manhã seguinte. De igual forma, podia ser ingerido em doses maciças que não causaria a morte do paciente, nem mesmo se este quisesse praticar o suicídio. Ideal, e, como logo se viu, fatal, ou pior que isso, para os fetos em início de formação.
Usado nos primeiros 40 dias da gestação, atuava como teratogênico - ou seja, produzia monstros, se é que, infelizmente, assim se pode falar de suas vítimas, calculadas em cerca de 10 mil em todo o mundo. As crianças nasciam muitas vezes sem dois, três ou até quatro membros, dentre tantos outros efeitos observados.A má-formação dos membros tinha um nome científico: focomelia (do grego "phoke" - foca- e "melos" - membros), ou "membros de foca". Os braços dos recém-nascidos surgiam como tocos abaixo dos ombros, semelhantes às nadadeiras das focas. Também se observou deformação dos olhos, do esôfago e do tubo digestivo. De cada duas crianças nascidas assim, apenas uma sobrevivia. Sem entender o porquê daquilo, com problemas de consciência, algumas mães enlouqueceram e outras chegaram a praticar o suicídio. Em 1961, os casos de "focomelia" já eram tantos que se falava em uma "epidemia".
De início foi extremamente difícil descobrir-se a origem de tal fenômeno, o elo comum. Pensou-se nos alimentos, na água, até em poeira atômica. Porém, graças a duas pessoas precisou-se exatamente a Talidomida como o fator causador. Uma delas, o advogado Karl Schulte-Hillen, de 32 anos, não havia aceito a explicação "genética" como a causadora da focomelia do seu filho recém-nascido. Homem saudável e esclarecido, ele descobriu que, coincidentemente, um casal de amigos seus tivera um filho em condições idênticas. Intrigado e inconformado, Karl passou a fazer investigações por conta própria, conversando com as mães que haviam dado a luz a tais "monstros". Ao tentar chamar a atenção da comunidade médica para o que estava se passando, encontrou uma revoltante indiferença e ignorância. Foi então que surgiu em seu caminho o médico Widukind Lenz, um pediatra especializado em genética que aliou-se a Karl, encampando a causa. Lenz, por fim, achou o nexo causal.No dia 16 de novembro de 1961, Lenz comunicou oficialmente à indústria fabricante dos efeitos nocivos dos medicamentes a base de Talidomida - Contergan, no caso da Alemanha Ocidental. Ele, pessoalmente, já conhecia 13 casos. A Chemie Grünenthal, porém, não retirou o remédio do mercado - o que de fato só ocorreu quando a história virou manchete de jornal. O Contergan era o carro-chefe das suas vendas, uma verdadeira "galinha dos ovos de ouro", rendendo milhões e milhões de marcos.Sooou então o alarma em todo o mundo. Nesse tempo, às suas próprias custas, Schulte-Hillen contratou oito fisioterapeutas que, juntamente com ele, passaram a percorrer a Alemanha Ocidental, à procura de vítimas da Talidomida. Entre agosto de 1964 e dezembro de 1965, visitaram 1.600 das 3.000 vítimas vivas da substância. Com seu endereço publicado nos jornais, choveram cartas, narrando novos casos.
A maioria das vítimas da Talidomida estava na Alemanha e na Inglaterra. Nos Estados Unidos, graças a uma mulher, o medicamento (lá chamado de Kevadon), não chegou a causar tantos danos e sofrimentos (não mais do que 20 vítimas). A ser fabricado pela Merrel Co., uma empresa de Cincinati, Ohio (e que ainda hoje é uma das grandes do mercado farmacêutico), não chegou a ser liberado pela Secretaria de Alimentos e Remédios (FDA, sigla em inglês). Apesar das terríveis pressões da indústria, a médica responsável pela aprovação, Dra. Frances Oldham Kelsey, recusou-se a dar o parecer favorável, alegando que as provas de garantias de não havier efeitos colaterais deletérios eram insuficientes. Em agosto de 1961, quando o escândalo veio a público, ela recebeu do presidente John Kennedy a medalha por Destacados Serviços Civis, por reter a aprovação da Talidomida - medalha esta que é uma das mais altas condecorações daquele país.
NO BRASIL - A Talidomida chegou ao Brasil em março de 1958, com os nomes de Ectiluram, Ondosil, Sedalis, Sedim, Verdil, Slip. Em março de 1962, o Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e Farmácia proibiu o uso da Talidomida em todo o país, mandou apreender os estoques e cassar as licenças de fabricação. A medida, no entanto, não surtiu lá grandes efeitos pois o medicamento continuou ainda a ser usado durante anos devido à falta de informação da população, do descontrole na distribuição e, sobretudo, graças à omissão do governo e ao poder econômico dos laboratórios. Em 27 de novembro de 1973 foi criada, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a Associação Brasileira dos Pais e Amigos das Crianças Vítimas da Talidomida, entidade declarada de utilidade pública.
Nos últimos anos o interesse pela Talidomida trouxe novamente o debate à tona. Conforme alguns testes - ainda não plenamente comprovados - ela teria eficácia na luta contra a lepra, contra a tuberculose e até para aumentar a resistência de pacientes aidéticos. A questão, entretanto, ainda está em aberto. (Pesquisa e texto: Conselheiro X.)

quarta-feira, setembro 05, 2012

Condominio Felizardo Furtado: em 1976 surgiu o grande impulsionador do Jardim Botânico

Estava lá, na contracapa da edição de sábado, 30 de outubro de 1976 do jornal Correio do Povo, sob o título “Inaugurados Hospital da PUC e Bloco de 944 Apartamentos”:
“O Presidente da República presidiu, na manhã de ontem, os atos de inauguração do Núcleo Habitacional Felizardo Furtado, com 944 apartamentos, e o Hospital Universitário da PUC. Acompanhado pelo governador Sinval Guazzelli, pelo chefe do gabinete militar da Presidência da República, general Hugo de Abreu, e pelos ministros Rangel dos Reis e Arnaldo da Costa Prietto, o presidente chegou ao bairro Jardim Botânico, onde foi construído o núcleo habitacional, às 9 horas e 30 minutos, sendo aguardado pelo prefeito Guilherme Socias Villella, pelo diretor-superintendente do INOCOOP, Renato Eickstaed, e demais autoridades. Estudantes de todo o bairro e bandas marciais saudaram o chefe da Nação em sua chegada ao Núcleo Habitacional Felizardo Furtado. No local, o presidente Ernesto Geisel solicitou amplas informações sobre a obra que custou 130 milhões de cruzeiros, interrogando principalmente o diretor-superintendente da INOCOOP. A seguir entregou a chave de um apartamento a Eduardo Araújo, o primeiro morador do Núcleo”.
PROGRAMAÇÃO ELEITORAL - Na verdade o presidente Geisel havia chegado ao Estado na quinta-feira, seguindo imediatamente a Santo Ângelo, onde abriu oficialmente a colheita do trigo. Em seguida foi a Caxias do Sul e lá inaugurou o Centro de Tecnologia e Pesquisa da Universidade de Caxias do Sul, UCS.Era, em essência, uma agenda política, pois estava-se às vésperas das eleições municipais (as únicas permitidas para cargos executivos) e Geisel queria dar “um empurrãozinho” no seu partido, a Aliança Renovadora Nacional, Arena. Ele também esteve em Estrela, sua terra natal, e em Bom Retiro, onde inaugurou outras obras e fez um discurso sobre a importância de “se votar bem”.
No Conjunto Felizardo Furtado, Geisel e comitiva descerraram a placa de inauguração, conheceram um apartamento e depois seguiram para o Hospital da PUC.Durante a inauguração do conjunto habitacional, o Presidente da República foi saudado pelo presidente da Cooperativa Habitacional que construiu o “núcleo” (INOCOOP), Gilberto Rodrigues. Segundo transcreveu o Correio do Povo, Rodrigues, ao se referir à obra e ao presidente Geisel, falou em “libertação” dos trabalhadores:“Esse momento, consagrado com a presença de Vossa Excelência, significa a libertação de 944 famílias de trabalhadores que passam da condição de inquilinos e peregrinos de tetos alheios, a proprietários da casa própria”.
Na realidade, o Conjunto de 944 unidades, 8 prédios, 62 mil metros quadrados de obras (iniciadas em fevereiro de 1974), beneficiava famílias com renda mensal de cinco a oito salários mínimos – ou seja, era um condomínio para a classe média baixa. As prestações eram relativamente suaves (menores que o aluguel correspondente) e longas, o que atraiu um grande número de interessados.
VENDIDOS NA PLANTA - A maioria dos apartamentos, de um, dois e três dormitórios (poucos), havia sido vendida na planta, antecipadamente. Um empreendimento desssa magnitude, é claro, atraiu a atenção do mercado imobiliário e de muitos especuladores que viram uma boa oportunidade de lucrar com a revenda dos imóveis, como se pode ver pelos anúncios classificados do Correio do Povo (o maior jornal da época). No domingo, 31 de outubro, lia-se no CP:“Transfere-se vários apartamentos com um, dois e três dormitórios, living, banho social, cozinha e área de serviços. Conjunto novo com play-graud, estacionamento e área verde. Conj. Residencial Felizardo Furtado. Chaves em nosso poder. Diversos preços e condições. Tratar Riachuelo, 1513, s/loja, f.244471.” Outro anúncio, na mesma edição, dizia: “Preciso urgente de um apto no parque residencial FF. Negócio direto. Tratar f. 255004”. Dezenas de anúncios desse tipo – bem antes da data oficial da inauguração – saíam regularmente na imprensa.

No alto, o então prefeito Guilherme Socias Villela e João Antonio Dib, hoje vereador de Porto Alegre. abaixo, uma visão do condomínio nos dias de hoje.

terça-feira, setembro 04, 2012

Hebe, uma gata em 1951...

Hebe Camargo tinha esse rosto em 1951, em matéria de várias páginas publicada pela Revista do Globo, de Porto Alegre. A coleção completa dessa importante publicação está no Arquivo Histórico de Porto Alegre e é lá que fui encontrá-la. (Vitor Minas)

O galã que escondeu sua doença

Quem viveu os anos setenta e oitenta lembra bem dele - um galã com cara de garoto, o queridinho das adolescentes: Lauro Corona.Em julho de 1989, quando o Brasil ainda não havia realizado a sua primeira eleição direta para Presidente da República depois do final da ditadura, e Sarney ainda estava no Palácio do Planalto, Lauro Corona morreu, aos 32 anos de idade, em uma clínica no Rio de Janeiro, vítima de infecção respiratória, septicemia, infecção oportunista, miocardite, insuficiência renal aguda e hemorragia digestiva alta. Ou seja, sabe-se hoje, morreu de Aids, muito embora tanto ele quanto a sua família insistissem em negar a existência da doença - algo que nem chegava a ser estranho para quem não assumia a sua homossexualidade.A morte de Corona foi muito comentada, em uma época em que a Aids ainda era algo quase maldito e, pior, matava muito rapidamente - o ator faleceu apenas seis meses depois de apresentar os primeiros sintomas do mal.
Foi enterrado em uma urna, na presença apenas de parentes e amigos mais próximos - a imprensa, odiada por sua família por tudo que havia comentado a respeito, foi barrada por guarda-costas. Ninguém, nem os demais atores globais, comentou ou emitiu qualquer opinião a respeito.3 MIL VÍTIMAS EM 89 - A Aids chegou ao Brasil em 1980 e, em 1989, pouco mais de 3.500 pessoas haviam morrido infectadas. A epidemia, algo novo, assustador, era veloz, devastadora e galopante - naquele ano de 89, 32% dos brasileiros que se descobriram contaminados no mesmo ano já haviam falecido.
Hoje, cuidando-se bem, pode-se viver uma vida inteira com o vírus.Ator global, que pouco fez teatro, cara de garoto, praticante de esportes (natação, surfe, ginástica, remo), na época da geração dourada e praiana do Rio de Janeiro, com apenas 1,63 m de altura, Lauro Corona consagrou-se como o Beto, da novela Dancin' Days, do ano de 1978, um grande sucesso na época em que as discotecas explodiam como modismo em todo o mundo. Ao seu lado estava a grande amiga Glória Pires - amiga, confidente e vizinha.Corona ganhou muitos elogios por sua interpretação. Mais tarde, depois de várias novelas, fez o papel de um gigolô, em Memórias de um Gigolô, ao lado de Bruna Lombardi, Ney Latorraca e Elke Maravilha. Também fez o português Manoel Victor, em Vida Nova - por isso chegou a ser apelidado de "o galã da novela das seis". No cinema, fez Bete Balanço e O Sonho Não Acabou, além de ter gravado dois discos. Grande amigo de Cazuza (ou algo mais) - morreu antes do colega, que àquela época já estava com a doença, e reconhecia isso abertamente.




Na vida pessoal, era discreto - gostava de receber amigos, ler revistas em quadrinhos e ver videocassete (eram os tempos, lembram?)- e, mesmo visto na companhia de mulheres, não se conhecia nenhum romance seu com colegas. A exemplo do que acontece hoje com galãs do seu tipo, apresentava inúmeros bailes de debutantes e recebia cartas apaixonadas das fãs. Em 1981, no entanto, foi processado por uso de cocaína - seu nome apareceu na lista de um traficante preso pela Polícia. Foi inocentado.Pouco antes da sua morte, o ator estava muito magro e, na entrega do prêmio Sharp de música, no mês de abril, trazia uma expressão perturbada no rosto e um olhar vago. A esse tempo, mantinha-se isolado e recusava-se a tratar a doença - alegava que sofria de estafa pelo excesso de trabalho e até de alergia às tintas utilizadas nos cenários da novelas.
Nos anos 80, o AZT era, praticamente, a única droga um pouco eficaz para deter ou amenizar os sintomas do mal. Corona nunca a utilizou - ou talvez só nos momentos finais. Segundo alguns amigos, como Ney Latorraca, ele parecia querer se convencer que não tinha mesmo AIDS. Já havia se afastado então de sua última novela, com o sugestivo título de Vida Nova.Os anos oitenta - especialmente no final - foram trágicos no que se refere à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Rocky Hudson,Betinho, Cazuza, o escritor Herbert Daniel, o artista plástico Jorge Guinle Filho (filho do playboy, milionário e mulherengo Jorge Guinle) , entre outros, desenvolveram a doença, que "secava" e matava rapidamente. O pior, porém, era o estigma e o preconceito da sociedade - muitos se recusavam até mesmo a dar a mão a um aidético, temendo o contágio. (texto e pesquisa V. Minas

Gisele aos 14 anos

Na edição da revista Veja de 28 de setembro de 1994, quando a campanha eleitoral acirrava-se entre Fernando Henrique e Lula (Itamar Franco era o presidente), uma estudante gaúcha chamada Gisele Bundchen, de apenas 14 anos, era notícia na página Gente: ela tirara o quarto lugar em um concurso na Espanha e assinava o seu primeiro contrato internacional, no valor de 50 mil dólares. Seguia os passos de Cindy Crawford... (Arquivo: Conselheiro X.)

O Joelma gaúcho



MAURICIO deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Incendio das Lojas Renner: o Joelma gaúcho":

Esse texto está muito bem escrito e contém dados completos e informações históricas importantes. Parabenizo o autor e faço votos que continue tão exímio escritor.

Sempre morei em Canoas. Me lembro que naquele dia terça feira dia 27 de abril eu fui na aula de catequese no início da tarde. Tinha 10 anos. Estava meio calor , não muito. Logo que cheguei de volta em casa minha mãe e meu irmão estavam assistindo à tragédia pela tevê. De fato na sessão da tarde que era a programação da difusora canal 10 passava um filme que não me lembro o enredo, apenas uma cena de um cachorro no velho oeste, ou algo assim. Mas o filme foi cancelado e todos os canais se mobilizaram em mostrar o que acontecia. Alguns dias depois que não me lembro exatamente qual, fui no oculista em Porto Alegre com minha mãe e fomos ver o prédio que estava em ruínas. Ainda me lembro de ver os bombeiros caminhando nas escadas no fundo da loja que são IGUAIS às atuais. Por fim assisti pela tevê num domingo à tardinha a implosão da loja. E sou sincero em dizer: Até hoje quando entro na loja sinto um certo receio por que sem dúvida foi uma das tragédias mais terríveis que já vi. Só uma colaboração como complemento, por que li no texto algo diferente. No outro dia 28/04 no jornal do almoço no quadro de reportagens apareceu uma cena do interior da loja de uma acensorista que morreu grudada no elevador. Boa sorte e continue sendo um brilhante escritor.Parabéns
Maurício Gomes Costa, professor, Canoas, RS
Postado por MAURICIO no blog Conselheiro X em 23:58

O Joelma gaucho



Texto e pesquisa de Vitor Minas



Baseado nos jornais da época.








Eram 13h45min de 27 de abril de 1976, uma terça-feira com “temperatura em elevação, ventos soprando de leste a norte, fracos”, quando alguns rolos de fumaça começaram a sair do interior das Lojas Renner. Três horas depois a sede de uma das mais tradicionais redes de magazines do Sul do País transformava-se em um esqueleto calcinado e fumegante.



Dezenas de vítimas e desaparecidos, quase oitenta feridos, desabamentos, explosões, pânico, histeria, caos urbano, linhas telefônicas congestionadas, desencontros, confusão, choros, acusações recíprocas e velhas cobranças – este o saldo da tragédia que parou Porto Alegre naquele outono dos anos setenta.Cerca de 200 mil pessoas, entre moradores e trabalhadores do centro, curiosos vindos dos bairros mais distantes, mórbidos natos, desocupados, batedores de carteiras, bombeiros, policiais, médicos, enfermeiros, soldados do Exército, brigadianos a cavalo e dúzias de alvoroçados repórteres acompanharam ou participaram de um pesadelo que lembrava o ocorrido no edifício Joelma, em São Paulo, dois anos antes, quando, oficialmente, 188 pessoas perderam a vida em circunstâncias semelhantes.



Por um bom tempo o incêndio do Joelma - e o sucesso do filme-catástrofe “Inferno na Torre”, assistido por milhões de brasileiros - alimentou um justificado sentimento de insegurança e sinistrose nos habitantes dos grandes centros urbanos. A revelação a olhos vistos de que a mais rica cidade do País não tinha condições de fazer frente ao perigo das chamas e, pior, que isto representava a regra geral, rendeu dezenas de inflamadas matérias na imprensa, gerou verbosos discursos políticos, modificou algumas leis específicas, alterou e melhorou determinadas coisas no varejo sem, contudo, resultar em uma nova política na área de segurança contra o fogo nas principais cidades brasileiras.



Em meados de 1976 seria a vez de Porto Alegre ter o seu Joelma e de demonstrar mais uma vez o quanto a incúria, o descaso e, talvez, alguma dose de fatalidade, podem se combinar para repetir um enredo que só se modificou em detalhes e cifras de óbitos e feridos. Foi, disparado, a maior tragédia repentina que se abateu sobre a cidade e certamente, por sua alta voltagem emocional, a que mais marcou seus então 1 milhão de habitantes. Comparado a ela, o incêndio das Lojas Americanas, em dezembro de 1972, parecia café pequeno.



Nada, é óbvio, indicava que aquela banal terça-feira, nem quente e nem fria, com termômetros que oscilavam entre 20 e 24 graus, fosse se transformar em um filme de horror para seiscentas pessoas e desorganizar completamente a vida dos porto-alegrenses.



Os jornais que chegavam às bancas traziam manchetes pouco emocionantes, a maioria versando sobre a viagem que o presidente Ernesto Geisel fazia à Europa (Valery Giscard D’Estaing enchia o Brasil de elogios: segundo ele, desde o final da Segunda Guerra, emergíramos como “potência mundial”) , a situação de Angola e o auxílio cubano, as eleições em Portugal, a Argentina (onde ocorrera o golpe militar em 24 de março), o Oriente Médio (a Síria invadira o Líbano, em um banho de sangue) e os ecos dos jogos da dupla Grenal. Em Paris, onde foi recebido pelo embaixador Delfim Neto, Geisel – o condutor da “abertura política lenta, gradual e segura” - reafirmou publicamente a boa notícia que já havia dado aos gaúchos e ao governador Synval Guazzelli em setembro do ano anterior: o Terceiro Pólo Petroquímico seria mesmo instalado no Rio Grande do Sul – e com parcelas de recursos franceses. Na área das telecomunicações, um telefonema do ministro Quandt de Oliveira para o presidente brasileiro, no Palácio de Versalhes, inaugurava a Discagem Direta Internacional entre o Brasil e a Europa.



Na área esportiva, no estádio Olímpico, o Grêmio de Paulo Lumumba vencera o Atlético de Carazinho por 2 a 0, com gols de Zequinha e Iúra. Trinta mil pessoas assistiram ao jogo, no domingo. Já no estádio Centenário, o Internacional havia derrotado o Caxias por 1 a 0, gol de Batista. Os dois jogos eram válidos pelo Campeonato Gaúcho, liderado pelo Inter, que seria bicampeão brasileiro brasileiro. E no dia seguinte, quarta-feira, no Maracanã, a seleção brasileira enfrentaria o Uruguai pela Copa Atlântico (acabou vencendo por 2 a 1, gols de Rivelino e Zico, com cenas de pugilato entre os jogadores). No plano doméstico, o vereador governista Paulo Santana (Arena) defendia o cercamento do Parque Farroupilha, palco de um crescente número de assalto e crimes de morte. Por sua vez, o prefeito Guilherme Sociais Vilela alertava para o inchaço de Porto Alegre e propunha uma série de obras e medidas para evitar que a cidade se tornasse inviável nos próximos vinte anos (conforme as mais recentes estatísticas, a região metropolitana somava 1.481.518 habitantes e 30% das famílias possuíam rendimentos de até 1,5 salário mínimo).Nos cinemas estreavam “Zorro”, uma refilmagem com Alain Delon no papel principal, e “W. – A Marca do Terror” – a história de uma mulher que é vítima de vários acidentes estranhos, sempre precedidos pela aparição da letra W. A “Macaca Esquecida”, peça infanto-juvenil do jornalista gaúcho Caco Barcelos, contando os problemas de uma cidade grande, prosseguia suas apresentações no Teatro de Câmara.



Para os trabalhadores gaúchos e brasileiros, porém, a grande novidade a ser anunciada dizia respeito ao aumento do salário mínimo – o Primeiro de Maio cairia no próximo sábado e aguardava-se o pronunciamento do Ministro do Trabalho informando o reajuste. A programação das emissoras de tevê – canal 12, Gaúcha, Canal 10, Difusora, Canal 5, Piratini, e Canal 7, Educativa – podia ser consultada nas páginas dos seis diários que circulavam então na Capital: Correio do Povo, Folha da Manhã, Folha da Tarde (que completava 40 anos de circulação naquela Terça), Zero Hora, Diário de Notícias e Jornal do Comércio.Sabia-se, assim, que às 14 horas, na tevê Difusora, teríamos o filme “Caminhos Incertos, enquanto a Gaúcha exibiria, no mesmo horário, “Os Monkees Estão Soltos”. Na Segunda-feira, 3, estrearia a nova novela das 10, Saramandaia, com Dina Sfat, Sonia Braga, Wilza Carla, Juca de Oliveira e Milton Moraes. Havia meses, logo depois do Jornal Nacional, os brasileiros acompanhavam as peripécias do taxista Carlão em “Pecado Capital”.A partir das 14 horas daquela terça-feira, no entanto, todas as emissoras de rádio e televisão da cidade voltaram suas atenções para o incêndio das Lojas Renner, transmitindo a todo momento flashes do da esquina da rua Doutor Flores com a Otávio Rocha.Ali erguia-se um edifício construído no início dos anos trinta, um grande magazine ofertando uma extensa linha de produtos que ia de roupas infantis a eletrodomésticos.



No alto funcionava o Terrasse Renner, restaurante e casa de chá.Justamente naquela terça, às 15 horas, o Terrasse apresentaria a nova coleção de inverno da indústria de roupas Renner, griffe tradicional de vestuário masculino e feminino cujo slogan – estampado em peças publicitárias na mídia local – centrava-se no chamativo mote “Basta uma vontade louca e viver e pronto”.O fogo iniciou as 13h45min, no terceiro pavimento, em um pequeno depósito de tintas – elemento de facílima combustão – talvez causado por problemas no ar condicionado, algo que já ocorrera antes e não merecera maiores atenções, e foi devorando tudo pela frente. Calcula-se que, naquele momento, cerca de 600 pessoas estavam no interior do edifício, a maioria clientes da loja, além de casais e executivos que almoçavam no restaurante. Por sorte, metade dos 300 funcionários da casa trabalhavam em um sistema de “horário ronda”, muitos haviam largado às 13 horas para o almoço e só deveriam voltar às 15. Isso, aliado ao movimento comercial, ainda fraco no princípio da tarde, evitou um número maior de vítimas.ARAPUCA - Neste momento, no primeiro andar (na verdade o terceiro pavimento) o funcionário Luis Carlos Bandeira atendia a clientes na seção de eletrodomésticos.



“De repente chegou um colega e falou que a loja estava incendiando, que era pra descer todo mundo. Eu e outros seis colegas não descemos, queríamos apagar o fogo, pois eu tinha a certeza de que o incêndio tinha começado ali mesmo, no depósito de tintas. Procurei extintores mas foi tarde. Havia muita fumaça e a gente percebeu que não adiantava mais nada. Então decidimos salvar clientes e colegas. Subimos três vezes até o terceiro andar, nas duas primeiras vezes foi fácil, mas no último já tinha muita fumaça e estava quente. Cada vez a gente trouxe para baixo três ou quatro pessoas. A gente precisava ajudar porque o pessoal estava meio perdido, tinha até gente subindo as escadas ao invés de descer”.



Na última tentativa encontrou, agarrada às cortinas, uma moça completamente histérica que parecia querer fugir pela parede. Luís precisou aplicar-lhe um tapa no rosto para que saísse do estado de choque e recobrasse a razão. Agarrando-a com os dois braços, ele pode afinal carregá-la sem resistência.



Outra que escapou do inferno, uma moça de 24 anos chamada Maria Helena, fazia compras no quarto pavimento da loja quando foi avisada do fogo. Barrada pela cortina de fumaça, não conseguiu descer e rumou instintivamente para o terraço.“- Todo mundo foi pra cima e um homem me ajudou a subir. Eu disse a ele que estava me sentindo mal e que ia desmaiar. Ele falou: se tu desmaia, tu não sai daqui.”No terraço, viu pessoas deitadas no chão, sem entender se era uma forma de se proteger da fumaça ou se haviam desmaiado. Em seguida, retirou o lenço que prendia seus cabelos e amarrou-o na boca.



“Esperei uns dez minutos e durante todo o tempo tropecei numa porção de gente que estava caída. Tinha uma senhora que queria se jogar e eu gritava para ela não pular que a escada vinha chegando”.(Salva pelos bombeiros e medicada no Hospital de Pronto Socorro, Maria Helena seguiu para a casa de uma colega. Lá acalmou-se um pouco, tomou banho e jantou. Antes de tentar um difícil sono a base de tranquilizantes, disse a todos que não teria condições de passar por aquilo tudo novamente e que, se visse que morreria queimada, teria preferido saltar do alto. Mal sabia ela que, 50 horas depois, experimentaria o mesmo horror em novo endereço).Em pânico, atropelando-se e pisoteando-se umas às outras, as pessoas corriam para o alto, erro que custaria muitas vidas e transformaria o trabalho dos bombeiros um penoso confronto contra uma implacável estrutura de cimento e ferro - o prédio era uma autêntica “arapuca” com apenas duas saídas no térreo. Mais tarde se saberia: havia, sim, saídas em cada andar, ligando o edifício ao prédio ao lado e uma outra, de emergência, no alto. É bem provável que todas estivessem trancadas àquela hora, e mesmo que não estivessem poucos funcionários conheciam tal recurso salvador: afinal, ninguém havia sido orientado sobre como proceder em caso de incêndio.Isso tudo – janelas quadriculadas e vedadas por ferro, corredores estreitos, equipamentos antiquados e que não funcionavam e nenhum esquema previsto para situações de risco – explicariam o elevado número de mortos e feridos.



Posteriormente, o major Ricardo Kelleter, comandante do Centro de Operações da capital, informou: os extintores de incêndio do edifício seriam suficientes para controlar as chamas em seu início, se utilizados corretamente e, claro, se estivessem todos em perfeitas condições de uso. Segundo o major, um soldado da Brigada Militar encontrava-se no quarto andar no momento em que as chamas irromperam no setor de tintas e poderia – com dois ou três extintores – ter dominado a situação. Porém, por mais que procurasse, o PM não encontrou nenhum desses equipamentos. Ademais, na confusão que se seguiu, não havia ninguém que pudesse informar da localização do equipamento. Ele então tratou de salvar a própria pele, descendo as escadas e ganhando a rua.“Veio o estouro desencadeado pelo medo, e na correria dos que procuravam escapar do inferno já prenunciado, pessoas caíram ao chão, feriram-se, tiveram suas roupas rasgadas. Eva Maria Braga Cançândino, atendida no Pronto Socorro com algumas escoriações, estava na sobreloja e declarou que não chegou a ver nem fumaça e nem fogo. De repente sentiu-se empurrada, recebeu pancadas de todos os lados e acabou desmaiando. Quando recobrou os sentidos estava no HPS”. (Correio do Povo, 28.04.1976)Porém, para as três dezenas de pessoas que almoçavam no terraço, a percepção de que algo extraordinário estava acontecendo demoraria mais alguns minutos.Eram 14h10min quando o garçon Kurt notou gritos e um inusitada movimentação nos andares abaixo. Ao descer para o pavimento inferior, viu rolos de fumaça obscurecendo a estreita escada de ligação entre os pavimentos. Imediatamente, ele voltou para o restaurante, onde o pânico já se instalara.Assim como Kurt, Paulo, um confeiteiro de 59 anos, revestiu-se de sua coragem máxima e não se deixou levar pelo desespero. Paulo e Kurt ganhariam a condição de “homens fortes” da tragédia, acalmando os mais histéricos e orientando-os nos procedimentos de sobrevivência. De posse dos extintores – que, ao contrário da maioria, sabia utilizar corretamente – Kurt tentou de pronto combater as chamas. Ao constatar a inutilidade do ato, ordenou que todos molhassem as próprias roupas e colocassem panos umedecidos junto à boca e nariz para evitar o efeito tóxico da fumaça e atenuar o crescente calor.“Calma, vamos esperar o socorro dos bombeiros, que já estão chegando!”Uma hora depois, já salvo e sem maiores ferimentos, ele contou aos repórteres: “Se eu não mantivesse a calma para orientar os funcionários que estavam nos últimos pavimentos, mais da metade teria se jogado para o chão. Todos estavam desesperados. Eu molhei as roupas do corpo e o avental, fazendo o mesmo com a roupa dos outros. Ensinei que deveriam manter um pano molhado próximo ao rosto”.Sidnei Marques da Silva, 40 anos, cozinheira do restaurante, irmã de Everaldo, campeão mundial de futebol na Copa do México e ex-craque do Grêmio, não manteve essa calma indispensável e tornou-se a primeira vítima conhecida da tragédia que mal iniciava – desesperada, saltou no espaço com seu uniforme branco, caiu por quase trinta metros, bateu em uma proteção de marquise e desabou no chão da praça Otávio Rocha em meio à correria e aos gritos da multidão.Eram então 14h10min. Se ficasse onde estava, protegendo-se com panos molhados, Sidnei, que estava grávida de três meses, certamente seria salva pelos bombeiros. Coincidentemente, ela morreu no mesmo dia em que seu irmão, sua cunhada e uma filha destes, de apenas três anos, perderam a vida em um acidente de carro: 27 de outubro de 1974, um ano e meio antes. Também por um desses desígnios do Destino que parecem acompanhar os grandes dramas outro irmão seu, o massagista Ariovaldo, chegava no local naquele exato momento.Alguns minutos depois foi a vez de um funcionário da Renner, mais tarde identificado como Paulo Roberto Apolo, 19 anos, passador de roupas no quinto andar, voar para a morte. Os dois sequer haviam sido tocados pelo fogo.Embaixo, a multidão hipnotizada tentava acalmá-los, gritando em coro: “Não pulem!, não pulem!”Quem quase pulou foi Ilasir Barreto Gonçalves, de 21 anos, caixa do restaurante:“Tudo aconteceu com uma rapidez incrível. Primeiro veio o cheiro da fumaça e os funcionários e os frequentadores fizeram alguns comentários, sem grandes preocupações. Os funcionários chegaram a lembrar o que aconteceu há alguns meses, quando um circuito no ar condicionado provocou um cheiro parecido, mas que desapareceu logo. Mas desta vez em dois minutos já tinha muita fumaça. Aí todo mundo começou a correr e a gritar. Uns querendo descer, outro querendo subir. O seu Jonas (ecônomo e arrendatário do Terrasse) tentava acalmar as pessoas. Eu gritava “socorro”, chamando pelo seu Jonas e pela dona Teresinha (esposa deste). Corri para a janela, olhei para baixo e pensei em me jogar. Mas fiquei com medo da altura e voltei. Procurei a porta mas a fumaça tava me sufocando cada vez mais. Aí eu voltei pra janela. Nesse momento eu vi uma escada grande, de ferro, que vinha subindo na minha direção. A escada não chegava nunca, parece que passou toda uma vida. Rezei muito, em voz bem alta, até que eu consegui pegar na ponta da escada. Nessa altura eu já estava quase desmaiando. Depois não lembro de mais nada. Acho que desmaiei. Não sei quem me tirou daquele inferno. Me levaram para um hospital e eu nem sei qual é. Quando me recuperei já estava em casa”.(No dia seguinte Ilasir, moradora na Vila Esmeralda, em Viamão, na região metropolitana, voltou ao local para saber dos colegas e para recuperar a bolsa com dinheiro e documentos que havia jogado lá de cima. Recebeu-a um tanto chamuscada, mas com todos os pertences dentro).Já o garçon Gentil da Silveira Porto, 37 anos, havia oito trabalhando no Terrasse (conhecia perfeitamente a escada e o desvio enganoso que esta sofre na sobreloja), escapou ileso por uma questão de segundos. Graças sobretudo à sua presença de espírito.Contou ele: logo depois de ouvir gritos de “fogo” a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foram os conselhos que lera em um livro - em caso de incêndio, não pegar elevador ou subir para o terraço. Seu raciocínio providencial: Gentil desatou a correr pelas escadas, “sem ver nada pela frente”. Ao alcançar o terceiro andar deparou-se com uma cortina de fumaça que se espraiava pelos pavimentos abaixo sem contudo invadir a sobreloja, onde muita gente gritava e corria às tontas.“Se tivesse demorado um pouquinho mais ou tentasse salvar alguém eu não conseguiria sobreviver”, explicou na saída.Outra pessoa que conseguiu descer pela escada relatou na saída: “Passei por várias seções da loja e vi pelo menos os corpos de umas doze pessoas estendidos no chão. Não se mexiam, não diziam nada. Coisa horrível, meu Deus. No meio de tanta fumaça eu às vezes tropeçava nos corpos”.Quem teve ao lado alguém que o contivesse nessa hora pode escapar do pior. Ilma Coutinho Costa, uma senhora que almoçava no Terrasse Renner em companhia do marido, Ari, deve a sua vida ao companheiro.No dia anterior Ilma chegara de Jaguarão, para fazer exames médicos na capital. Depois de feitas as compras na loja, os dois decidiram almoçar ali mesmo. Confrontada com a fumaça e o calor, desesperada com o inferno que se originara nos andares abaixo, ela chegou a ensaiar o salto, colocando um pé na amurada e projetando meio corpo para fora – nesse instante foi segura por Ari.Com muito esforço, agarrando-a pelo pescoço, ele evitou a queda da mulher durante uma meia hora que lhe pareceu interminável. Salvos pela escada, foram dos primeiros a descer. Ari, chorando, com sangramentos na cabeça e os cabelos chamuscados, contou aos repórteres: “Nós estávamos almoçando quando todos começaram a sentir cheiro de fumaça. Corremos para a escada de emergência mas não dava mais. Ela estava cheia de fumaça. Era melhor ficar pois se tentássemos descer certamente morreríamos sufocados. Mas a fumaça foi aumentando e o calor também. Aí começou o desespero. Era correria para todos os lados. Não sei como eu caí e quebrei minha cabeça. Mas isso não foi nada. O pior foi a crise de nervos que deu na minha mulher, ela não agüentava mais, tossia muito e me convidou para se atirar do prédio. Como eu disse para ela que era melhor esperar que a qualquer hora a escada dos bombeiros chegaria até nós, ela correu para a janela e só deu tempo de eu agarrar metade do seu corpo. Sabe lá o que é ficar quase meia hora agarrando ela com a metade do corpo balançando para fora? Eu estava a ponto de largá-la. Não tinha mais forças para agarrar. Minhas mãos estavam doentes e eu senti que aos poucos ela estava escorregando. Até que a escada apareceu e nós dois descemos. Se os bombeiros levassem mais um minuto para colocar a escada perto de nós, eu ia largá-la, não aguentava mais”.A chegada dos bombeiros, das ambulâncias e de um batalhão de fotógrafos e repórteres logo seria seguida por soldados do Exército e por helicópteros da Base Aérea de Canoas que sobrevoavam o local – toda a região central e bairros mais próximos estavam paralisados pela tragédia.Temendo assaltos, e também porque não havia outra coisa a fazer naquelas circunstâncias, os comerciantes do centro fecharam as portas e uma turba de comerciários, escolares, office-boys, curiosos de todos os tipos e procedências, passou a disputar o melhor ângulo de visão.Dos prédios mais próximos pessoas jogavam sacos de leite para quem estava no terraço das Lojas Renner. Em breve tais locais estratégicos seriam evacuados e ocupados pelos soldados do Corpo de Bombeiros, que ali instalaram mangueiras. Atendendo ao pedido das autoridades médicas, as emissoras de rádio transmitiam urgentes apelos para que a população acorresse aos hospitais a fim de doar sangue.A sessão plenária da Assembléia Legislativa que acontecia na Palácio Farroupilha, na Praça da Matriz, a 500 metros dali, foi suspensa por “falta de condições psicológicas para o prosseguimento dos trabalhos”, isso depois que o deputado Waldir Walter (MDB) ocupou os microfones para relatar o que tinha visto minutos antes: “O caso é tão grave que o Rio Grande do Sul compreenderá. Há dezenas de pessoas lá em cima do prédio, os helicópteros não podem descer. E, na minha opinião, queira Deus que não haja vítimas, mas é da maior gravidade o incêndio que está lavrando nas Lojas Renner, eu vi de perto, testemunhei uma das grandes tragédias do nosso Estado”.Prontamente, o presidente João Carlos Gastal, colocou a ambulância e o corpo médico da Casa à disposição do Hospital Cristo Redentor, na Zona Norte da cidade, especializado em traumatologia e queimados e para onde seguiam muitos feridos. O hospital montou uma operação de emergência, com dezenas de novos leitos. A direção do Pronto Socorro, por seu lado, proibiu a visita aos pacientes e mobilizou-se toda para o atendimento, recebendo o auxílio de mais de uma centena de médicos que para ali convergiram. A Companhia Rio-Grandense de Laticínios e Correlatos, Corlac, enviou dois caminhões carregados de saquinhos de leite para distribuir aos intoxicados pela fumaça. Ambulâncias de clínicas particulares chegavam ao centro a fim de auxiliar na remoção dos feridos.O cabo Alcides Gonçalves, 28 anos, 13 no corpo de bombeiros, era um dos que passavam pelo local na hora do início do fogo. Mesmo com problemas nos pés (estava em licença médica) e sem nada a protegê-lo das chamas, correu para dentro do edifício e tentou salvar os que lá se encontravam. Pouco tempo depois, com o rosto e os braços cobertos de remédios contra as queimaduras, explicou singelamente a sua atitude: “Numa hora dessas a gente não pensa em nada, não quer saber o que vai acontecer. E, depois, bombeiro não pode ver bombeiro mal”.Duas faces do mesmo drama: ao tempo em que centenas de homens e mulheres faziam fila no posto do Banco de Sangue no Largo da Prefeitura para suprir a demanda nos hospitais, aproveitadores, punguistas e assaltantes agiam quase impunemente na cidade fragilizada. Ao ouvir os apelos no rádio o auxiliar de enfermagem José Jorge Escalante, 32 anos, quatro filhos pequenos, saiu de sua casa, na avenida Getúlio Vargas, no bairro Menino Deus, e seguiu apressadamente rumo ao HPS. Ao atravessar o parque da Redenção, próximo ao auditório Araújo Viana, foi interceptado por uma dupla de assaltantes. Esfaqueado no peito, morreu quarenta minutos depois, no próprio HPS.TERCEIRA VÍTIMA - Abrindo caminho em meio à multidão, o primeiro carro do Corpo de Bombeiros, vindo do quartel na avenida Silva Só, chegou ao local às 14h20min, seguido de outros da estação Floresta. Dez minutos depois um veículo equipado com escadas Magirus encostou em frente ao prédio. Os bombeiros ligaram as mangueiras nos hidrantes existentes e deram início efetivo ao salvamento.A primeira escada, a maior, subiu lentamente. Outras duas foram dispostas no lado, na rua Doutor Flores. A multidão acenava para as pessoas que estavam nos últimos andares. Ambulâncias começam a chegar de todos os lados. Das janelas do edifício pessoas acenam com as mãos ou com lenços, implorando socorro imediato. Muitas delas jogavam seus pertences do alto.De súbito, a cabeça de um homem projeta-se pelo interior das grades de uma janela. Sufocado pela fumaça, e na intenção de alcançar a escada que se aproximava, ele havia quebrado os vidros para respirar ar puro quando – provavelmente intoxicado – desmaiou sobre os cacos pontiagudos e morreu devido aos cortes no pescoço. Exatamente nesse instante um bombeiro pulava no parapeito para resgatá-lo.A vítima foi identificada como Germano Jonas, 67 anos, ecônomo do restaurante Terrasse Renner, um alemão naturalizado brasileiro. Nascido em Frankfurt, Germano morava no próprio edifício com a esposa Teresinha e a sogra de 82 anos, que também pereceram no incêndio.No alto do prédio, o confeiteiro Altair Giacometti tirou o casaco e iniciou uma arriscada descida segurando-se em uma calha. No meio do caminho esta entortou e Altair quase caiu. Mesmo assim, conseguiu escorregar até o terraço e ali agarrou-se à escada dos bombeiros, chegando são e salvo ao solo. Lá recebeu o abraço de um sobrinho que observava a cena junto à multidão.Às 15h05min as primeiras pessoas – os garçons Nelson e Flávio – puderam finalmente colocar os pés na escada, sob aplausos da multidão. Já na calçada, Flávio bebeu alguns goles de leite e informou que ainda havia mais de trinta pessoas no terraço, muitas delas desmaiadas. Em seguida, ele próprio desmaiou. Minutos depois foi a vez do casal de Jaguarão ser salvo.Com isso estava evidente que quase todos, inclusive aqueles que penduravam-se nas cornijas, poderiam sair dali com vida. A escada – que parecia não conseguir elevar-se além do penúltimo andar – chegava agora ao terraço, onde destacavam-se as figuras de outras pessoas à espera do salvamento. Elas vão descendo em fila indiana, algumas chorando, muitas tremendo. Quando chegam ao solo são brindadas com goles de leite e rapidamente embarcadas nas ambulâncias que seguem rumo ao Pronto Socorro e aos demais hospitais da cidade. Algumas precisam de respiração artificial.A essas alturas, a compacta massa humana tem que ser afastada à força. Helicópteros sobrevoam o local. O deslocamento do ar espalha a fumaça e atiça as chamas, o que irrita sobremaneira os bombeiros.Na verdade, a não ser por uma presumida função psicológica – serviria, em tese, para demonstrar o curso das iniciativas e, por conseguinte, acalmar as vítimas – nunca se entendeu, de fato, o que tais máquinas faziam no local do incêndio. Não havia heliporto algum e nem os tripulantes dos helicópteros estavam preparados para tais ações de salvamento.Não bastasse a falta de roupas especiais e de suficientes máscaras a protegê-los da fumaça e dos gases – algo que havia sido prometido à corporação depois do que acontecera nas Lojas Americanas – os bombeiros enfrentavam dificuldades adicionais em terra. Os poucos hidrantes revelaram-se insuficientes e a saída foi recorrer ao rio Guaíba, em cujas margens lanchas da Companhia de Socorro Naval bombeavam água para os carros-pipa que faziam um penoso vai-e-vem de abastecimento.Às 15h15min, através de megafones, a Polícia Militar apelou a todos para que se retirassem – são auxiliados nisso por tropas da Polícia do Exército que imediatamente afastam os populares.Por sua vez, a energia elétrica dos prédios mais próximos já fora desligada. O comandante geral da Brigada Militar, coronel Jesus Linares Guimarães, recém havia chegado ao local quando um soldado informou que alguém acendera uma vela em um dos apartamentos do último andar do edifício localizado na esquina da rua Vigário José Inácio, onde, no térreo, funcionava a loja Escosteguy. Minutos depois, os PMs e o comerciante respiraram aliviados: tratava-se apenas da lanterna do zelador que fazia uma ronda de verificação.A esse tempo os bombeiros estavam convictos de que nada mais de efetivo restava então a fazer. Emílio Rocha Fontoura, 20 anos de profissão, irritado, disse aos repórteres: “Isso aqui é uma verdadeira ratoeira humana”. Outro colega seu, o soldado Jandir Carvalho, lamentou: “Tentei tirar várias pessoas lá de dentro, mas elas não passavam pelas janelas”. No interior do edifício explodiram botijões de gás. Um homem desacordado continuava dependurado com uma perna e um braço para fora da janela. Um bombeiro aproximou-se e lançou-lhe um jato de água. O homem se refez imediatamente, e o soldado foi aplaudido pela multidão.Quem estava no terraço do edifício Apesul, defronte ao Renner, na avenida Alberto Bins, pode ver o corpo carbonizado de uma pessoa que agarrava-se a uma janela de um dos últimos andares. O jornal Folha da Manhã – que mobilizou uma grande equipe de repórteres, sendo recompensando com uma das mais completas coberturas do fato - retratou este momento.“Quinto andar. Não dava para sair por nenhuma das janelas, eram muito pequenas e com grades. O fogo já alcançava as escadas do quinto andar e as pessoas corriam desesperadas, em pânico, tentando alcançar o terraço, único lugar onde poderiam fugir daquela ratoeira.Um bombeiro, que subiu na escada Magirus para retirar as pessoas que ocupavam o terraço, vindas de todos os andares do prédio, contou depois, desolado: “Da escada deu pra ver o interior do restaurante, no terraço da loja. Entre as cadeiras e mesas, vi perto de uns dez corpos pelo chão, ou mais. Não sei se estavam mortos ou se procuravam se proteger, no desespero.”A água era jogada pelos bombeiros, posicionados com as mangueiras nos terraços e andares superiores dos prédios vizinhos, todos agora evacuados. Quem estava no terraço do edifício da Apesul (financeira), na avenida Alberto Bins, pode ver o corpo carbonizado de uma pessoa, não dava para distinguir direito se era homem ou mulher, agarrado numa janela do quinto andar.Quem falou com essa pessoa, antes de morrer, foi o PM Eusébio: “Era uma mulher, eu falei com ela, tentei agarrar para trazer para a escada Magirus onde eu estava. Mas não deu. Eu senti o medo e o desespero nela. A janela era estreita demais, ela conseguiu quebrar um vidro e passar um braço e a cabeça. Atrás dela, dentro da loja, estava tudo escuro por causa da fumaça e dava pra ver o fogo também. Não deu pra tirar ela dali.”No prédio do Hospital de Pronto Socorro, na avenida Osvaldo Aranha, a tarefa da direção tampouco era das mais fáceis: tratava-se de improvisar da melhor forma possível um satisfatório esquema de atendimento a dezenas de feridos que ali aportavam, a grande maioria intoxicados pela fumaça (entre os socorridos no HPS e nos hospitais da cidade poucos apresentavam queimaduras mais sérias e não houve nenhum óbito de feridos nos dias seguintes).Um apelo do diretor da instituição, Ubirajara Motta, atraiu rapidamente centenas de médicos que não pertenciam aos quadros da casa. Unidades móveis haviam sido deslocadas até as proximidades do edifício Renner, porém era no HPS que os familiares das possíveis vítimas da tragédia poderiam agora ter alguma certeza ou colher informações mais seguras.Obviamente, a confusão era total dentro e fora do HPS, e o desespero atingia paroxismos. Outro apelo do diretor para que os motoristas deixassem livres as vias de acesso aos hospitais da cidade, especialmente a avenida Osvaldo Aranha, a Ramiro Barcelos e a avenida João Pessoa, por onde passavam as ambulâncias e as viaturas, foi devidamente atendido e evitou o caos absoluto.Soldados da Polícia do Exército organizaram um cordão de isolamento em torno do Hospital, ameaçado de invasão por parte dos parentes das vítimas. O capitão da Brigada Militar, Servo Tellier e sua esposa, Alba, buscavam informações do filho, Paulo.Sem conseguir identificá-lo entre os feridos, o militar voltava para junto da mulher quando avistou os dois – mãe e filho – abraçados do lado de fora, ela chorando e ele tentando acalmá-la.Paulo explicou: com folga das 12 às 14 horas, havia saído a fim de matricular-se no exame supletivo e, quando voltou ao local de trabalho, deparou-se com o prédio ardendo em chamas. Preocupado com a sorte de seus companheiros, correu para o HPS – e ali reencontrou a mãe. Quando viu o desfecho feliz o capitão Tellier, com voz embargada, disse que agora era a sua vez de colaborar, doando sangue. E prontamente voltou para o interior do hospital.Poucos mantinham esse autodomínio. José Wilson Rodrigues, cuja irmã trabalhava na loja, não conseguiu sequer chegar ao balcão de informações: antes disso teve um ataque convulsivo e caiu ao chão. Uma moradora das proximidades do Edifício sofreu uma crise nervosa e ao chegar ao HPS só conseguia pronunciar uma palavra: “terremoto, terremoto...”Terremoto era o nome de um filme-catástrofe lançado no ano anterior.A estas alturas, por assim dizer, Porto Alegre havia parado. Nenhum ônibus podia largar passageiros nos terminais da Praça XV e da praça Rui Barbosa. Todas as guarnições da Brigada Militar, do Primeiro Batalhão, do Nono, do Décimo Primeiro e até os soldados que faziam o policiamento do Palácio Piratini, estavam no local.A Polícia isolou a rua Voluntários da Pátria até o elevado da Conceição, a Pinto Bandeira, a Coronel Vicente, a Vigário José Inácio, a Doutor Flores e a Salgado Filho, no sentido bairro-centro. Linhas de ônibus foram desviadas e proibiu-se o estacionamento em muitas áreas. A avenida Júlio de Castilhos, uma das principais artérias do centro, transformou-se em um imenso calçadão de pedestres. Sensível à tragédia, a comissão organizadora do Primeiro Seminário Internacional de Investimentos no Estado do Rio Grande do Sul, cujo encerramento deveria acontecer à noite, com um banquete na Associação Leopoldina Juvenil, cancelou o evento. Ao mesmo tempo a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, OSPA, divulgava uma nota à imprensa cancelando a apresentação do maestro Isaac Karabtchevsky e do solista Roberto Szidon, também programado para aquela noite. O prefeito Guilherme Socias Vilela compareceu ao Pronto Socorro e, irritado, condenou o que definiu como “exploração da tragédia para fins políticos”: “Não posso admitir que oportunista algum pretenda tirar proveito eleitoral disso”, atacou, sem dar nome aos bois.Vilela referia-se ao líder da oposição, Brochado da Rocha, e ao também medebista Carlos Serafim Pessoa de Brum.O primeiro havia convocado a bancada oposicionista para uma precipitada “tomada de posição quanto ao incêndio das Lojas Renner”, enquanto o segundo distribuía aos jornalistas cópias de seu projeto-de-lei estabelecendo normas mais rígidas de “habite-se” e prevendo a construção de heliportos nos edifícios mais altos de Porto Alegre, projeto aprovado pelos vereadores, porém vetado pelo prefeito anterior, Telmo Thompson Flores sob a alegação de que isso iria encarecer a construção de moradias em um país carente nesse setor. “Lamento não haver heliporto no edifício, o que poderia ter salvo vidas”, retrucou Pessoa de Brum.De fato, pouco ou nada mudara desde o incêndio das Lojas Americanas. A imprensa aproveitou para lembrar os grandes incêndios que marcaram a Capital: o do edifício Malakoff, primeiro “arranha-céu” da cidade, com quatro andares, construído em 1864; o do Grande Hotel; o do Tribunal de Justiça; o do Palácio da Polícia; o do colégio Júlio de Castilhos; o da Casa de Correção; o do depósito de fogos Fulgor; o do Restaurante Dona Maria.O FOGO EM OUTROS PONTOS DA CIDADE - Às 15h30min um pedaço do edifício não resiste ao furor das chamas e à devastação das explosões.No lado da rua Doutor Flores, entre a construção principal e a loja Imcosul, parte das paredes externas – o equivalente a cinco andares – vem abaixo. Vinte minutos depois desabariam aquelas situadas entre o edifício principal e o Armazém Riograndense. Vidraças, anúncios e objetos próximos às janelas aos poucos também vão caindo. Um velho bombeiro caminha na direção da rua Voluntários da Pátria para ajudar na junção das mangueiras e diz aos repórteres: “Não se pode fazer mais nada”.Do total de mais de 200 homens mobilizados para o combate ao fogo e salvamento de vidas, 12 estavam feridos. Um deles – o soldado Manoel dos Santos – teve de ficar internado no Pronto Socorro para se recuperar da intoxicação dos gases.A fumaça é agora mais intensa do que nunca e, quando se dissipa, revela a figura carbonizada de uma pessoa com o braço para fora de uma das janelas. Pelos megafones os bombeiros pedem a evacuação dos andares ocupados sobre a loja Comercial Louro, na esquina da rua Doutor Flores.Um cena emblemática é colhida pela lente dos fotógrafos: os manequins, nas vitrines, incendiando como se fosse tochas humanas e derretendo-se à vista do público.Nesse momento um dos carros-tanques deixa o local para atender dois outros incêndios, um na rua Fernando Machado, também no centro, e outro na rua Otávio Correa, no bairro Cidade Baixa. Neste último, no edifício Cury, a senhora Albertina Giacomini assistia pela televisão as imagens da tragédia das Lojas Renner quando uma garota bateu à sua porta, dizendo que “tudo estava queimando”.“Eu sei, estou assistindo”, respondeu ela. Somente alguns minutos depois é que entenderia o que estava se passando ao ver os moradores correndo em pânico pelas escadas: um princípio de incêndio lavrava ali mesmo, junto à porta do apartamento do zelador. Os soldados rapidamente debelaram as chamas e descobriram a causa – um capacho embebido em gasolina, colocado junto à zeladoria.Já na rua Fernando Machado, em uma velha casa de cômodos, a situação era mais séria. Segundo os moradores, um dos pensionistas, conhecido como “Jamanta”, deixou aceso o fogareiro que costumava usar para o preparo de suas refeições e saiu à rua, “aperitivar”. O pequeno botijão explodiu e as chamas tomaram o quarto e invadiram as outras peças. A destruição foi completa e 11 famílias tiveram de ser encaminhadas a um albergue público a fim de passar a noite.Enquanto isso, nas cercanias do edifício Renner, a multidão – acrescida por levas de novos curiosos – não queria perder nenhum detalhe da tragédia que já completava quatro horas. Coube aos PMs a cavalo afastar e conter os mais inconvenientes. Alguns punguistas foram presos e conduzidos algemados à delegacia.O fogo continuava lavrando e, surpreendentemente, parecia recobrar intensidade. Por medida de segurança, máquinas e móveis começaram a ser retirados do prédio ao lado do Armazém Riograndense.Cai a noite e a cidade adormece com um pesadelo real: um número ainda desconhecido de mortos (falava-se em mais de cinquenta), dezenas de feridos, caos urbano e, para alguns dos familiares e amigos das prováveis vítimas, a incerteza de saber, afinal, quem estava ou não lá dentro.Já no final da tarde de terça, sem transporte, centenas de pessoas que trabalhavam na área central da cidade voltaram a pé ou de carona para casa. Os raros táxis disponíveis foram disputados aos berros ou transformaram-se em lotações. Muitos porto-alegrenses preferiram esperar pelos cafés e bares até que o torvelinho maior passasse. O assunto é um só: o incêndio das Lojas Renner.Na redação da Folha da Manhã, a 300 metros dali, Janer Cristaldo – na época um dos cronistas mais lidos da imprensa gaúcha – estava concluindo o seu artigo a ser publicado na edição do dia seguinte no qual comentava o grande número de mortes causadas pelo trânsito nas cidades e estradas do País (o automóvel, no seu entender, é a arma preferida dos brasileiros). Ao final, acrescentaria: “Enquanto escrevo estas linhas, irrompeu um incêndio no centro da cidade. Pelo ruído dos bombeiros, ambulâncias e helicópteros, deve ser um dos mais graves. Preparem-se os porto-alegrenses para: a) debates apaixonados de políticos em véspera de eleições; b) novos projetos para segurança dos edifícios; c) reuniões de condomínio para estudar o problema; d) aumento do preço das cordas; e) reprise de “Inferno na Torre”. Daqui a seis meses ninguém mais lembrará do assunto. Ocorrerá então outro incêndio. E recomeçará mais uma vez o blá-blá-blá.”Dezenove horas. Os repórteres correm para as redações a fim de escrever às pressas suas matérias. O sinistro seria igualmente manchete em todos os jornais e telejornais brasileiros.Enquanto isso, do topo dos prédios vizinhos, bombeiros estafados continuavam lançando água sobre os focos restantes. Para os soldados, o dia seguinte reservava a mais desagradável e inglória das tarefas – o resgate dos corpos e a contagem das vítimas que não tiveram a sorte de escapar daquela gaiola de cimento.O RESCALDO - Na quarta-feira, 28, os tablóides de Porto Alegre circularam com uma única grande manchete: o grande incêndio, o maior que a Capital já assistira em toda s sua história. As edições rapidamente se esgotavam. Até aquele momento havia reconhecidamente três vítimas fatais.Os trabalhos de rescaldo iniciaram pela manhã. Desde às 7 horas, como se fosse um mórbido piquenique urbano, centenas de pessoas haviam afluído ao centro especialmente para “ver o incêndio”. Desciam dos ônibus, dos táxis, de automóveis particulares. Muitas procediam de bairros distantes e não queriam de forma alguma perder o segundo capítulo do espetáculo – a retirada dos corpos. Os jornalistas também já estavam a postos: todos tinham alguma história para contar e todos se mostravam irritados com o tratamento dispensados pelos soldados da Brigada Militar. Em grupos, os PMs – com caras de poucos amigos - cercavam os repórteres para verificar as credenciais. Um cordão de isolamento isolava o local.A rigor, os bombeiros já não tinham mais nada a fazer. Durante a noite os soldados prosseguiram lançando jatos de água e preparavam-se agora para entrar no prédio, identificar a quantidade e a localização das vítimas, bem como averiguar as condições para um resgate seguro. Zero Hora relatou aquela manhã: “Os bombeiros conversando, os brigadianos complicando pela mínima coisa e o público aumentando”.Um pouco antes do meio-dia, a assistência foi acrescida por uma leva de balconistas e funcionários de bancos e financeiras. O major Clóvis Defensor dos Santos, comandante do Primeiro Batalhão de Incêndio (e de toda a operação), de binóculo à mão, observava o prédio dos mais diferentes ângulos e fechava-se em copas, respondendo aos repórteres com palavras breves e que pouco acrescentavam às informações já obtidas.Em “off” alguns bombeiros deixavam vazar suas queixas. Um dos heróis do dia anterior – um tenente um pouco mais loquaz – observou: “Só se lembram dos bombeiros quando ocorre um caso como este. Não se lembram que não temos recursos para fazer o mínimo necessário. E bombeiro ganha muito pouco. Como as pessoas esperam tudo de um homem que ganha por volta de mil cruzeiros por mês, enquanto os que dependem do nosso trabalho às vezes ganham milhões”. Naquele sábado o salário mínimo regional seria majorado para 768,00 cruzeiros.Outro herói – o estafeta Alcides, aquele que estava passando pelo local, o primeiro a entrar no prédio para tentar debelar as chamas – estava de volta, desta vez para solicitar ao comandante seu internamento em um hospital. Precisava realmente, pois as queimaduras ulceravam seu rosto.Ainda pela manhã, um advogado e mais alguns integrantes da diretoria das Lojas Renner chegaram para retirar documentos que estavam no prédio número 148, em cima do Armazém Riograndense, parcialmente atingido pelas chamas.Saíram discretamente, levando papéis, fichas e pastas da folha de pagamento dos funcionários e sequer deram declarações. Mas confirmaram: o prédio estava totalmente segurado, o suficiente para cobrir as despesas de reconstrução e reposição de estoques.No mesmo dia, em comunicado oficial, a empresa lamentou a tragédia, agradeceu o auxílio e a compreensão de todos e informou que a sede passaria a funcionar provisoriamente na filial do bairro Passo da Areia, zona norte da cidade. Nenhuma loja abriu suas portas naquele dia, voltando a funcionar normalmente apenas na quinta-feiraA primeira investida aos andares superiores aconteceu às 9h30min e durou apenas alguns minutos. Nas ruas mais próximas e no calçadão da Otávio Rocha via-se toda sorte de objetos queimados e uma grande quantidade de saquinhos de leite vazios. Antes mesmo de removerem quaisquer escombros, os soldados contaram 19 corpos. Do interior do edifício - divisava-se ali um monturo de tijolos queimados, ferros retorcidos e toda espécie de objetos irreconhecíveis - ainda vinham estouros constantes.Às 12h30min os bombeiros fizeram uma demonstração de ordem unida, logo imitada pelos PMs e, em seguida, pegaram pás, picaretas e enxadas, preparando-se para entrar no prédio.A remoção, entretanto, só começaria mais tarde, quando quatro camionetas estacionaram em frente, três delas entrando até onde foi possível. As vítimas – ou o que delas restou – deveriam ser acondicionadas dentro de sacos plásticos, mas estes revelaram-se impróprios e foram substituídos por lençóis de pano branco, mais resistentes e respeitosos. Uma emissora de rádio, sintonizada em alto volume nas proximidades do edifício, foi estrepitosamente vaiada ao “informar” que 25 corpos já estavam prontos para serem identificados no IML.” Isso às 14h30min, quando nem haviam sido iniciados os trabalhos de remoção.À tarde, já eram 23 os corpos avistados, a maioria nos dois últimos andares, de pessoas que provavelmente desmaiaram ou morreram intoxicadas pela fumaça. Outras foram encontradas perto das janelas ou na escada. Em apenas um andar havia corpos no meio do pavimento. Do elevador – onde, comentavam alguns, muitos tinham se refugiado – nada restava e nada foi encontrado.O jornal Folha da Manhã retratou o que foi aquele dia seguinte.“Junto às cordas de isolamento os argumentos eram os mais diversos, todos com a mesma intenção: chegar mais perto do prédio. “Preciso pagar o imposto predial, posso passar?, é lá no décimo andar”, diz o rapaz ao brigadiano, que é irredutível: “O Sindicato está fechado”.Um público bem menor, constituído basicamente de estudantes, tinha também pessoas moradoras da grande Porto Alegre, que vieram “ver o que aconteceu” bem de perto para depois contar às famílias e vizinhos. “É o tipo de gente que vai na tourada e torce pelo touro”, desabafou Ismael Rodrigues, executivo que estava fazendo um lanche na galeria A Nação.Velhas senhoras aproximam-se dos cordões de isolamento, olham para cima, em direção ao prédio sinistrado e fazem caretas de horror e espanto, como se o fato estivesse ainda acontecendo, enquanto uma grande maioria é impassível e não sabe dizer, objetivamente, por que está ali.Mão na boca, cigarros acesos, braços cruzados, como se protegessem alguma coisa, ali estão muitos estudantes, crianças e pessoas, mulheres em particular, que foram fazer compras no centro e aproveitaram para dar “uma espiada” na cena.Quando alguém consegue furar o cordão de isolamento, através de qualquer argumento, as outras pessoas, as que continuarão atrás da corda, lançam-lhes um olhar misto de simpatia e inveja, pois afinal tiveram a “sorte” de assistir as coisas mais de perto.Em sua maioria, são jovens. Muitos ofice-boys, mães e desocupados ficam satisfeitos pelo fato de fazer parte de tal espetáculo. Não é um público constante, todavia. Pelo contrário, há uma espécie de “rodízio” que possibilita a todos tomarem seu lugar junto à corda(...)”Populares assistiam a tudo em silêncio, voltando o pescoço a cada translado. Um menino de uns 12 anos ultrapassou o cordão de isolamento e, assediado por um policial carrancudo, exclamou: “Que barato!” Agarrando-o pelo braço, o soldado respondeu: “É uma zorra mesmo, meu amiguinho, mas o teu lugar não é aqui”.Calçando “gigantescas e negras luvas”, os bombeiros prosseguiam no trabalho de remoção, “a pior parte”. Duas vítimas, irreconhecíveis, estavam, por assim dizer, coladas: uma mulher que abraça e protege uma criança.No Instituto Médico Legal a tarefa de identificação é um penoso exercício de paciência e lógica, um trabalho “lento, mas o único possível”, conforme reconheceu um legista. Familiares, parentes, amigos e principalmente dentistas que tratavam das vítimas são convocados para tanto.Ao final do dia, 14 corpos já haviam sido identificados: Joaquim Brum Fernandes, 61 anos, e a esposa Ieda Marisa Furtado Fernandes, 44, residentes à rua Luciana de Abreu, em Porto Alegre. Os dois viviam de rendas e estavam almoçando no restaurante Terrasse.José Wiest, 38 (ou 36) anos, o primeiro a ser identificado pelos legistas. Com queimaduras leves, foi reconhecido pelo cunhado. Era cozinheiro do restaurante havia cinco anos. Morreu pendurado em uma das janelas.Manoel Couto Carvalho, 81, e a esposa Olga Pacheco Carvalho, 79. Também estavam almoçando no Terrasse. Identificados pela arcada dentária.Teresinha Fonseca Precioso, 34 anos. Morava em Bagé e tinha vindo sozinha a Porto Alegre, a passeio. O marido, Aloisio, capitão do Exército, afirmou reconhecê-la por uma “melindrosa” com os nomes do casal e pelo fato de portar um anel de brilhantes e um relógio de ouro.Vera Lúcia Feijó Rodrigues, 25 anos, funcionária das Lojas Renner. Retardou-se no prédio, tentando salvar o dinheiro do caixa. Foi encontrada na escada, com diversas bolsas de colegas ao seu redor. Residia na Vila Medianeira, Viamão.Jaci Vieira D‘Avila, 47 anos. Trabalhava como cabeleireira da loja e residia ali perto, na rua Doutor Flores. Natural de Passo Fundo.Doly Teresinha Ballestrin, 47 anos. Também funcionária, morava na sua Silveiro, bairro Menino Deus, em Porto Alegre.Edmeo Lobo, 48 anos. Advogado, maçom. Trabalhava no consultório jurídico da Caixa Econômica Estadual há 20 anos. Almoçava na hora o incêndio.Germano Jonas, 67 anos. Gerente do restaurante Terrasse Renner. Nascido em Frankfurt, Alemanha, e naturalizado brasileiro.Fátima Elaine Castro Pinheiro, 18 anos. Funcionária da loja. Morava na rua Edgar Pires de Castro, Zona Sul de Porto Alegre.Luis Carlos Machado, 42 anos. “Maitre” do Terrasse há mais de 10 anos. Morreu porque se retardou muito, ajudando os clientes a se salvarem. Quando tentou sair, já era tarde. Identificado por uma ponte móvel na arcada dentária e por uma perfuração na perna direita.À tarde de Quarta e durante todo o dia seguinte, centenas de pessoas concentraram-se na entrada do Instituto Médico Legal, na avenida Ipiranga, na tentativa de identificar parentes e amigos desaparecidos.Na maioria dos casos isso só era possível mediante o exame da arcada dentária – única parte do corpo humano que mantém suas características originais depois da carbonização – seguida pela conseguinte comparação com a ficha fornecida pelo dentista. Segundo explicaram os peritos, mesmo um anel de ouro derrete-se inteiramente quando exposto à altas temperaturas. Obturações, serviços de prótese, dentes ausentes ou em tratamento específico eram minuciosamente analisados.Para evitar maiores tumultos o local foi isolado por policiais. Às 15h15min chegaram três carros fúnebres: homens e mulheres, em desespero, disputavam cada fiapo de informação.Consolado por um policial, Olinda Wiest, 41 anos, irmã de José Wiest, o cozinheiro, repetia: “Como meu irmão foi morrer? Não consigo suportar tudo isso”.Chorando muito, Jani Borges tentava identificar o corpo de sua única filha mulher, de 23 anos, funcionária da loja e que tinha sido dada como desaparecida. “Como é que ela vai ser identificada? Minha filha era perfeita, parecia uma artista de cinema, tinha uma dentadura perfeita, nunca precisou de dentista. Agora isto, que sempre foi motivo de alegria para nós, vai dificultar o seu reconhecimento”, dizia ela.O major Clóvis admitiu a dificuldade do trabalho de reconhecimento das vítimas: “Será praticamente impossível determinar o número total de mortos”.O farmacêutico Norberto Silva procurava sua esposa, Luisa Maria Moreira da Silva, de 28 anos, balconista do terceiro andar. Até às 18 horas, depois de preencher a ficha de identificação no Centro de Operações da Brigada Militar, ainda não havia ainda conseguido qualquer informação.Em igual estado, José Dili Cerqueira, 48 anos, buscava o filho José Francisco, de 26 anos, cozinheiro do restaurante Terrasse. Ele, pai, tinha vindo de Pelotas e caminhava desorientado pela capital: “Já procurei por aí tudo e nada”.Mais intrigante era o caso vivido por João de Deus Carvalho, que veio do município de Santiago à procura de seu filho Rui, de 19 anos. Passados dois dias em Porto Alegre, ainda mantinha esperanças de que o rapaz não estivesse no edifício no horário do incêndio. Segundo alguns colegas, Rui estava no quinto andar quando o fogo começou. Outros disseram que não, que ele tinha saído à rua um pouco antes. Uma pessoa chegou a afirmar tê-lo visto caminhando na avenida Júlio de Castilhos, àquela tarde. Rui morava no bairro Petrópolis.“- Juro que vi meu filho caminhando transtornado por uma rua de Petrópolis. Ele não morreu no incêndio, outras pessoas também viram ele na hora do incêndio, fora do prédio. Eu vinha para cá (IML), hoje pela manhã, e na avenida Protásio Alves avistei meu filho. Ele tava de calça branca, camisa branca listrada de azul. Pedi para o taxista voltar, ele teve que fazer um retorno mais adiante. Quando voltamos, ele já não estava mais lá.”Confuso e desesperado, João não sabia mais o que fazer. Para todos os efeitos a família já estava providenciado a ficha dentária.Cabisbaixa, olhos vermelhos, o rosto inchado, Vera Lúcia Palmeira era a imagem do desconsolo. Pudera: perdeu quatro parentes. Na tarde do incêndio, Vera estava na Praça XV quando viu a fumaça e a agitação das pessoas. Imediatamente correu até o edifício, onde trabalhavam uma tia e três primas suas. Uma delas, a balconista Sandra, tinha noivado não fazia muito.O desencontro de informações era tanto que duas pessoas cujos nomes apareceram nas listas de mortos divulgados em meio ao burburinho do Instituto Médico Legal na realidade estavam bem vivas: o médico José Mariano Vieira Haensel e Fernando de Araújo Carvalho.O primeiro trabalhara no próprio Instituto, como voluntário na identificação das vítimas, e o segundo era neto do casal Manoel Couto Carvalho, de 81 anos, e Olga Pacheco de Carvalho, 79 – estes sim, vítimas do incêndio. Outras duas dadas como desaparecidas reapareceram pouco depois: um rapaz que viajou para Caxias e o outro que reapareceu sexta à tarde, na casa dos pais.OS “PAPA-DEFUNTOS” - Em frente ao IML um novo personagem - para quem o cheiro da morte é perfume - dava agora o ar de sua graça: o agente funerário, facilmente identificável pela conversa animada, risos nem sempre discretos, piadas e olhares ansiosos em direção aos clientes em potencial. Um grupo de oito ou nove deles, representando as principais funerárias da cidade, tentava, um de cada vez, cabular a freguesia e fechar ali mesmo seus negócios.A técnica de aproximação do “papa-defuntos” era quase sempre a mesma: a máscara facial contrita, gestos curtos e respeitosos, achegava-se a algum familiar, aquele que tem cara de quem vai pagar a conta – e fazia a proposta.“O senhor está procurando algum amigo, algum parente? Eu posso conseguir que o senhor entre no IML, eu conheço bem o pessoal de lá. Ah, leve este cartãozinho aqui... Na volta fale comigo, tá?”Quase sempre dava certo.Por volta das 14h30min de quinta feira, horário em que muita gente se aglomerava junto aos cordões de isolamento, tais “corretores” pareciam insuficientes para atender a crescente clientela. Pela manhã boa parte deles empenhara-se em pescar clientes nas ante-salas dos hospitais, anotando nomes e endereços de quem havia falecido pela madrugada ou estivesse em estado muito grave. Mas era em frente ao IML – onde a categoria sempre gozou de boas relações – que os negócios realmente frutificavam. Um dos estratagemas – o de sugerir “que, a essas alturas, já estão faltando caixões” – influenciava os espíritos mais ingênuos: “Pai, vai logo lá na funerária porque o homem disse que se a gente não for depressa não consegue caixão”, disse uma senhora aflita ao marido. O casal procurava um filho, dado como desaparecido e ainda não identificado pelos legistas.Ao sentir à aproximação de alguém estranho – em especial os repórteres – os agentes funerários mudavam de atitude e assumiam um imediato ar arredio que podia se tornar hostil em poucos segundos. Desviavam a conversa, emudeciam ou recusavam-se a dar nomes. Ou mesmo ameaçavam: “Se tu botar qualquer coisa contra nós aí no teu jornal, tu vai te arrepender, viu?”À tardinha – movimento fraco, negócios feitos - partiam rapidamente em suas inconfundíveis Kombis sem nenhum letreiro de identificação.Até o final da quarta, 14 vítimas já haviam sido identificadas. Na quinta-feira, os bombeiros ainda prosseguiam no perigoso trabalho de remoção e de procura de corpos: um foi encontrado nesse dia.O comércio próximo ao edifício já havia fechado suas portas e os prédios da rede de lojas Imcosul e do Armazém Riograndense – abrasados pelo calor – foram declarados impróprios e condenados. Um forte cheiro de fumaça e de carne humana queimada que saía dos escombros atestava a existência de vítimas – ou parte delas – ainda não localizadas.Os técnicos do Instituto de Criminalística sequer haviam iniciado a perícia para determinar as causas do acidente e versões divergentes já vinham à tona – problema em um aparelho de ar condicionado, um curto-circuito – embora parecesse certo a localização do foco inicial, o pequeno depósito de tintas do terceiro pavimento.Carlos Guido, perito criminal, explicou didaticamente as linhas de raciocínio a serem seguidas para determinar a origem de qualquer sinistro desse gênero.Primeiro, seria feito um vasculhamento de toda a área atingida e, em seguida, um exame de condensação de fuligem e enegrecimento das paredes capaz de denunciar a incubação inicial do fogo. Nesse caso é também de grande valia o boletim dos técnicos do Corpo de Bombeiros que, sempre que acontece um incêndio, vão ao local e registram em detalhes o seu desenvolvimento. Eles observam onde há maior incidência de chamas, a sua cor e a cor da fumaça emitida, estabelecendo assim a natureza dos objetos queimados. Outro item relevante é o exame da rede elétrica, de força e de iluminação (a rede elétrica das Lojas Renner havia sido trocada há cerca de dois anos e estava dentro dos padrões exigidos, informaram). A fiação, revisada, pode determinar o ponto exato onde ocorreu o curto-circuito – se é que ocorreu. Todo material considerado útil é recolhido aos laboratórios do Instituto, para detidos exames. Obviamente, isso tudo não é uma tarefa fácil, pois o fogo destrói elementos preciosos, sem falar nos danos causados pelo próprio trabalho dos bombeiros.São três as causas de incêndio, explicou. A comum: combustão espontânea, determinada pela ação de bactérias, habitual em matas. A acidental: faíscas, eletricidade estática, pontas de cigarro acesos, tocos de vela esquecidos, fósforos jogados descuidadamente ao chão e também o clássico curto-circuito. A proposital: casos de piromania, vingança, para esconder crimes ou obter vantagens ilícitas, cobrar seguros etc. De certa forma, a causa proposital é a mais fácil de ser esclarecida pelas perícias, já que dificilmente existe o crime perfeito.SÍNDROME DO PÂNICO - A estas alturas a cidade inteira mostrava-se absorvida e atônita pela tragédia. Porém, nas cercanias do local do incêndio, os lojistas, ariscos e nervosos com a súbita notoriedade, preferiam lamentar a interdição da área e a queda no movimento de clientes. O barulho infernal das máquinas revirando os escombros, o mau cheiro que emanava do interior do prédio e que persistiria nas próximas semanas, o irritante zum-zum das pessoas – o fantasma do sinistro, tudo isso estava bem vivo e presente.(Passados quinze dias Maria Beatriz, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, já não aguentava mais: “É um martírio ter de vir para o trabalho diariamente. Depois do incêndio não tive mais sossego, chego até a sonhar que o que restou do prédio está vindo abaixo”. Neusa, empregada do Café Haiti, nas proximidades, sofria com o barulho ininterrupto: “O barulho das máquinas começa pela manhã e vai até o final do dia. É tão forte que parece que vai arrebentar com os nervos da gente”).Vivendo uma espécie de melancolia pós-traumática, os balconistas aproveitavam a ociosidade reinante para atender os jornalistas que fuçavam tudo e ouviam a todos, anotando às pressas impressões e medos daquelas privilegiadas fontes.Iara, 24 anos, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, folgara na terça-feira e tinha sido poupada do espetáculo – quando soube, ficou traumatizada a ponto de não ter coragem de voltar para casa. Seu marido estava viajando e os dois, como diz, “também moram em uma gaiola”.“Eu estava pensando em comprar um apartamento para mim. Queria um lugar para morar mas agora mudei de idéia, acho que vou comprar uma casa. Onde eu moro tem um extintor pequeno em cada andar, mas ninguém sabe mexer neles”. Faz uma pausa e acrescenta, como se falasse do mundo lá fora: “É tudo um absurdo, eles não pensam nunca na gente, só em vender, e quando acontece alguma tragédia ainda é que vão pensar. Porque antes ninguém pensa.”O trânsito de veículos na área central da cidade desorganizou-se completamente (demorou uma semana para voltar à normalidade), apesar do apelo das autoridades para que os motoristas deixassem os carros em casa. Em vão.Nos dias seguintes, o que se viu foi uma loucura coletiva. Na auinta-feira a avenida Farrapos congestionou, a Mauá engarrafou e o Túnel Conceição transformou-se em uma neurastênica garagem coletiva. A Júlio de Castilhos, a Independência, a Osvaldo Aranha a avenida Protásio Alves eram intermináveis fileiras de carros.Em sua edição de sexta-feira, 30, sob o título “Morbidez e Sadismo”, o jornal Zero Hora, em sua coluna “Informe Especial”, anotou:“Até ontem à noite uma multidão de curiosos continuava firme ao redor do prédio semidestruído das Lojas Renner, enquanto continuavam os trabalhos de localização e remoção das vítimas. Insensíveis aos apelos das autoridades e mesmo ao perigo representado pela possibilidade de um desabamento, centenas de pessoas ali continuavam, atrapalhando o trânsito e o deslocamento de gente que, por força do trabalho, teria obrigações a cumprir naquela área. Move-as a morbidez e o sadismo, os mesmos sentimentos baixos que fizeram com que muita gente, aos gritos, mandasse saltar as pessoas que apareceram às janelas da galeria Malcon, quando apareceu fumaça no prédio. E mais: diversas pessoas estiveram no IML a pretexto de identificar supostos parentes e amigos, apenas para olharem os restos mortais das vítimas. Triste, mas verdadeiro.”(Uma loja de material fotográfico da praça Otávio Rocha foi mais além e colocou à venda em sua vitrine uma série de instantâneos do incêndio, como se o prédio queimado fosse uma espécie de sinistro cartão-postal da cidade)O jornal referia-se a um falso alarma de incêndio que causou pânico na Galeria Malcon, na rua dos Andradas. No meio da tarde de quarta-feira alguns rolos de fumaça começaram a sair pelas janelas de um dos andares superiores do edifício. À simples menção da palavra “fogo” uma multidão apavorada precipitou-se para a rua enquanto outros penduravam-se nas janelas, aos gritos – a mesma reação irracional de 24 horas antes. Desta vez boa parte da assistência – talvez por expresso sadismo ou então querendo manifestar sua reprovação a histerias inúteis – torcia declaradamente pelo touro. Muitos gritavam “pula! Pula!”Minutos depois, com a chegada dos bombeiros, o circo foi desmontado. O incêndio, na realidade, resumia-se a um lixo que pegara fogo. O fogo estava em toda a parte – real ou imaginário.Em São Paulo, onde a tragédia também repercutira intensamente, no dia da tragédia, uma doméstica pulou do décimo primeiro andar de um prédio vizinho ao de uma fábrica de tintas que estava incendiando no bairro de Cambuci. Ela não corria nenhum risco real de vida e imolou-se estupidamente.Na tarde de Quinta, em Alvorada, na região metropolitana, uma casa de três peças virou cinzas. Os moradores – um casal e três filhos – tinham saído um pouco antes e ninguém ficou ferido. Segundo um vizinho, um escapamento de gás foi a causal.Em Porto Alegre, um pensionato feminino que funcionava na rua Riachuelo pegou fogo: desta vez o incêndio era real, obrigando mais de 50 mulheres a fugirem às pressas em trajes de dormir. Entre elas estava Maria Helena – aquela que havia escapado do incêndio da Renner e que disse não ter condições psicológicas para enfrentar tal drama novamente. Muitas moças, driblando o frio e a fome, sem dinheiro e sem ter para onde ir, passaram a noite no salão ao lado, cedido pelo Sindicato dos Metalúrgicos. O fogo – presumiu-se – havia sido provocado por um ferro elétrico esquecido em uma tomada. Por sorte ninguém se feriu gravemente. O major Clóvis – com marcadas olheiras e um aparência de profundo cansaço – comandou pessoalmente a operação.Um pouco antes, no térreo do edifício Continental, na avenida Borges de Medeiros, a principal artéria do centro da cidade, aconteceu um princípio de incêndio logo debelado pelos soldados, possivelmente causado por alguém que jogou um fósforo ou um cigarro aceso no poço de energia. No local funcionava uma loja de calçados e o cinema Lido – em sessão naquele horário. Mas não houve tumulto.Na Sexta-feira à tarde, na rua Itaboraí, no bairro Jardim Botânico, populares avistaram fumaça saindo das janelas do sexto pavimento de um prédio com cerca de 300 moradores. Dona Porfíria estava chegando em casa e surpreendeu-se com o alvoroço da vizinhança. Informada de que a fumaça vinha do seu apartamento, exclamou:- Meu Deus, o pão está queimando!Ela estava fazendo pão no forno a gás e, distraída, saiu à rua. Os bombeiros – que já estavam escalando o oitavo andar- recolheram as escadas.Na segunda-feira um curto-circuito em uma máquina de costura assustou mais de 50 funcionárias e clientes de uma loja de modas na rua Marechal Floriano e provocou frisson no comércio em volta. A chave-geral da energia foi desligada e a calma restabelecida.Na terça-feira outro curto-circuito, desta vez em uma agência do banco Bradesco da avenida Assis Brasil, causou corre-corre e gritaria. Minutos antes, na vizinha Caixa Econômica Estadual, alguém acionou o alarma geral, assustando mais de 30 funcionários e alguns clientes – eles não sabiam se era assalto ou incêndio.Na quarta os bombeiros correram para a rua Santana – o fogo estava se alastrando em um prédio de 18 apartamentos – e encontraram lá um morador que dormia com o cigarro aceso.Na quinta, na rua Leopoldo de Freitas, bairro Passo da Areia, uma mulher jogou-se do segundo andar depois que um “espiriteira” pegou fogo e atingiu a sua empregada doméstica. As duas foram encaminhadas ao Pronto Socorro – a doméstica com algumas queimaduras e a patroa em estado grave.Enquanto isso alguns vigaristas aproveitavam o momento para a práticas de golpes manjados. Na sexta-feira soldados da Brigada Militar prenderam dois homens que se faziam passar por bombeiros. Eles visitavam o comércio, pedindo dinheiro para “restaurar” a corporação.Nas semanas seguintes o Estado, o Brasil e, por extensão, o Mundo, pareciam regidos pelo elemento fogo – ao menos nos noticiários da imprensa, que destacava com lentes de lupa tudo que cheirasse a queimado: um incêndio destruiu um depósito no bairro Navegantes e um pavilhão de um clube de futebol de São Borja (a cidade não tinha Corpo de Bombeiros e as chamas foram apagadas a base de baldes de água); em Caxias do Sul uma fábrica de acordeões pegou fogo e em Paso de Los Libres, na Argentina, fronteira com o Brasil, uma farmácia só livrou-se graças ao auxílio dos hermanos brasileiros do outro lado da ponte. Um curtume de Sapucaia do Sul escapou por pouco da destruição total e um incêndio numa das balanças do terminal graneleiro da Cooperativa Tritíticola Ijuí, Cotrijuí, em Rio Grande, deixou sete operários feridos – quatro em estado gravíssimo. Na costa da Espanha um grande navio petroleiro ardeu em chamas.Bem antes disso, na sexta-feira, 30 de abril, o jornalista e escritor Sérgio Jockymann escreveu em sua coluna diária na Folha da Tarde: “Pois há três dias que Porto Alegre tem pelo menos um milhão de peritos em prevenção de incêndio”. Para ele, “o milagroso, o extraordinário, o espantoso é que essas calamidades só aconteçam de vez em quando. O normal seria que tivéssemos uma tragédia por dia.” Em Zero Hora, o humorista Carlos Nobre não perdeu o trocadilho: “As discussões dos políticos para tomar medidas contra incêndios servem apenas para botar mais lenha na fogueira”.Um mês depois a Folha da Manhã observaria: “Uma espécie de histeria coletiva vem envolvendo os habitantes de Porto Alegre”. Nesse período, a mera menção da palavra “fogo” bastava para estrilar os telefones do Corpo de Bombeiros.A população – antes adormecida e quase insensível ao perigo – via agora um Joelma e um Renner em cada prédio. Pessoas evitavam tomar elevadores, síndicos faziam reuniões extraordinárias para discutir medidas de segurança, instalações elétricas eram vistoriadas de cabo a rabo, fumantes eram denunciados como incendiários em potencial e corretores de seguros – mais desembaraçados e seguros do que nunca – festejavam a boa fase em seus negócios. Vivia-se a era de Mercúrio.Mercuriais e igualmente candentes eram os debates e as cobranças. Todos concordavam em um ponto: a tragédia poderia ser evitada, embora ninguém assumisse a culpa e dela, na realidade, todos saíssem chamuscados.“Aproximadamente 50% dos prédios de Porto Alegre poderão oferecer cenas tão ou mais dramáticas que as da Renner”, declarou o técnico Cláudio Hansen, integrante da Comissão de Estudos e Prevenção de Incêndio da Prefeitura. Mais original, o secretário municipal de Obras e Viação, Jorge Englert, afirmou que “janelas não são fundamentais” em casos de incêndio e enumerou algumas vantagens dos edifícios “gaiolas”: economia de ar condicionado e, em caso de fogo, seu abafamento, pois “não há alimentação de oxigênio: “O importante são as saídas especiais e isoladas”. E acrescentou que no caso do proprietário recusar-se a cumprir a lei, a Prefeitura não teria como obrigá-lo a isso. Já o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Rio Grande do Sul, Mário Maestri, concordou com a exigência de normas mais rígidas, “mas não levadas a extremos”.A imprensa variava de tom. Enquanto o Correio do Povo apressou-se a elogiar o que chamou de “esquema perfeito” de socorro e atendimento às vítimas (“digno de aplausos em todo o sentido foi a ação imediata do Corpo de Bombeiros e todas as autoridades de qualquer nível”) a Folha da Manhã ressaltou que, no dia da tragédia, “a cidade, de um modo geral, não funcionou”.No item prevenção os principais órgãos evitaram críticas diretas à direção das lojas Renner, algo explicável pelo grande volume de anúncios que a empresa – um dos orgulhos empresariais do Rio Grande do Sul - carreava para seus departamentos comerciais.EM CAXIAS DO SUL, 21 HIDRANTES - O grupo Renner – um símbolo de operosidade e da solidez empresarial gaúcha - nasceu a 2 de janeiro de 1912, quando Antonio Jacob Renner (Alto Feliz, 1884-1966), neto de imigrantes alemães, fundou uma modesta indústria de fiação e tecelagem na cidade de São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da Capital.A principio a empresa destacou-se pelo pioneirismo na fabricação de capas de chuva impermeáveis, as quais – por sua qualidade e resitência - se tornaram famosas em todo o Estado. Em 1914 a indústria chegou a Porto Alegre.Vinte anos depois estava produzindo roupas, comercializadas em mais de 5 mil pontos de venda em todo o Brasil, além de calçados de couro, máquinas de costura, resinas e tintas para construções. Em 1922 nascia as Lojas Renner. No final da década de trinta o grupo, com mais de 2 mil funcionários, já era um dos principais empregadores do Estado e, mais tarde, nome de um clube de futebol, campeão gaúcho de 1954, o primeiro a superar a dupla Grenal e no qual jogava o craque Enio Andrade. No início dos anos setenta as Lojas conquistavam o primeiro lugar entre as redes de magazines do Estado, investindo pesadamente em anúncios publicitários.Em abril de 1976 havia, no entanto, uma conjuntura de mercado extremamente benéfica para o público leitor: a existência de cinco diários de circulação em bancas, pertencentes a três grupos econômicos diferentes – Caldas Júnior, Rede Brasil Sul e Diários Associados – competindo entre si e contando com uma tarimbada equipe de profissionais. Como era usual naquele tempo – e também pela necessidade de resguardo em um período de fortes pressões governamentais – as matérias não eram assinadas e raras fotos recebiam o crédito de seu autor. De qualquer modo, a cobertura do incêndio das Lojas Renner foi, nas circunstâncias possíveis, um bom momento da imprensa gaúcha.Já no dia posterior à tragédia todos os correspondentes foram mobilizados para checar as condições de segurança contra fogo nas principais cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.De Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria, Rio Grande, Passo Fundo, Novo Hamburgo, Lages, Florianópolis – emergiam as mesmas constatações: em todos os casos, sem exceção, o que acontecera em Porto Alegre apenas mudaria de data, nome e endereço. Em Caxias do Sul só existiam 21 hidrantes para uma população de 180 mil habitantes e mais de uma centena de edifícios. Uma pesquisa feita por uma emissora de rádio local descobriu que apenas dois em cada quinze caxienses sabiam utilizar um extintor.Nesse contexto, em Caxias, pontificava uma honrosa exceção: com seus 17 andares, a recém inaugurada agência do Banco do Brasil dispunha de um moderno sistema de segurança contra fogo: duas saídas de emergência, paredes externas feitas de concreto em vez de tijolos, paredes internas sem a presença de material inflamável ou combustível, amplas janelas de vidro e alumínio e um moderníssimo mecanismo de evacuação estilo “tobogã”. Em caso de incêndio podia-se soltar um tubo de lona desde o alto até o chão e escorregando por ele desceriam as pessoas. Dois elevadores – ou “jaús” – presos em trilhos nas paredes externas e capazes de parar em qualquer ponto do prédio serviriam como opções de fuga.Ainda assim restavam duas perguntas: quem sabia disso tudo e quem estava treinado para uma situação de emergência?Por outro lado, não havia surpresas quanto à precariedade das corporações especializadas. Em nenhum – absolutamente nenhum – município gaúcho eram oferecidas aos bombeiros condições operacionais sequer razoáveis. Nem mesmo a Câmara Municipal de Porto Alegre ou a Assembléia Legislativa do Estado, com 12 andares, mostravam-se de acordo com os padrões de segurança. Na região metropolitana um caso chamava a atenção: a cidade de Viamão, colada à Capital e com quase 100 mil habitantes, não apenas dependia inteiramente da ação dos soldados como nem mesmo dispunha de uma só linha telefônica para comunicar uma ocorrência urgente.De um modo geral, assim era o Brasil de Norte a Sul. Sob o título “Trágica ratoeira humana” a revista Veja que circulou no dia 5 de maio tentava, sem êxito, achar uma exceção.São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Rio de Janeiro – o Brasil pouco aprendera com a tragédia do Joelma e a população dos grandes e médios centros estava entregue às mãos do Destino”. Disse a revista: “Em Teresina, por exemplo, a precariedade da corporação chegou a provocar episódios ridículos, como no início do ano passado, quando uma turma de salvamento foi estrondosamente vaiada ao descer de um táxi e sem levar qualquer instrumento ou ferramenta capaz de apagar o fogo que destruía uma simples residência, no centro da cidade. “O Corpo de Bombeiros aqui não existe”, afirmou o comandante da Polícia Militar(...)”No entanto, o incêndio da Renner – uma das muitas tragédias na pródiga safra da década de setenta – deixara suas marcas e alguma coisa precisava ser feita para satisfazer a opinião pública.Nas semanas seguintes a Prefeitura de Porto Alegre mobilizou o seu departamento de Fiscalização a fim de verificar as condições dos edifícios da cidade, e muitas portas lacradas que impediam a ligação entre um andar e outro foram derrubadas a golpes de marretas sob o aprovativo olhar dos moradores.No dia 14 de maio o prefeito Guilherme Socias Villela enviou projeto-de-lei à Câmara propondo a doação de uma área de mais de 6 mil metros quadrados, no bairro Praia de Belas, para a instalação da nova Estação Central do Corpo de Bombeiros. Ao mesmo tempo foi dado início a uma campanha comunitária com o objetivo de dotar a capital de uma eficiente rede de hidrantes – existiam cerca de 500 em toda a cidade quando as necessidades mínimas exigiam 5 mil. Sob o argumento de que a municipalidade não dispunha de recursos para fazer frente a tal volume de despesas, Vilela apelou para a colaboração dos empresários, que poderiam “adotar” quantos hidrantes quisessem.Na segunda-feira o governador Guazzelli reuniu-se com o alto comando da Brigada Militar e prometeu, solenemente: “Não vou regatear recursos, tudo o que o nosso corpo de bombeiros precisar para ser reequipado eu vou dar”. E informou que uma velha reivindicação – a construção de mais três novos quartéis (além dos cinco já existentes) na capital – seria concretizada ainda em seu Governo.Na esfera municipal, uma nova lei seria em breve votada e aprovada por unanimidade – desta vez para ser realmente cumprida: a instalação obrigatória de extintores de incêndio em todos os prédios. Discutia-se, ainda, a obrigatoriedade dos chuveiros automáticos – os “sprinklers” – nos edifícios com mais de 20 metros de altura.Dois dias depois da tragédia todas as filiais das Lojas Renner reabriram normalmente. Representantes da empresa já haviam percorrido os hospitais da cidade, tentando encontrar seus funcionários com vistas a determinar o número exato de desaparecidos, embora o cálculo final somente fosse possível na sexta ou no sábado, quando os últimos se reapresentariam para receber seus salários do mês de abril.A equipe que trabalhava no edifício incendiado foi remanejada para as demais filiais, incluindo Pelotas e Novo Hamburgo. A sede provisória, no bairro Passo da Areia, foi adaptada às pressas para a nova função, e um grupo de secretárias recebeu a dolorosa incumbência de prestar informações a respeito dos mortos e desaparecidos. A cada toque do telefone seguiam-se embaraçosas explicações, permeadas de silêncios emocionados e lágrimas nem sempre furtivas.- Sentimos muito, meu senhor, mas esse nome está na lista do Instituto Médico Legal e o senhor deve se dirigir para lá – dizia uma secretária de plantão, esforçando-se para manter um tom de normalidade.Clientes acostumados a comprar com determinado funcionário queriam saber desta ou daquela pessoa, se estava bem ou se estava na relação das vítimas fatais ou dos desaparecidos.Nas semanas seguintes a Renner veiculou uma série de anúncios institucionais com depoimentos de antigos clientes que externavam seu apreço e carinho pela empresa.O CIRCO PEGA FOGO - Em Porto Alegre, naquele abril de 1976, restava a viva lembrança do que acontecera ao edifício Joelma, um prédio de 25 andares da avenida 9 de Julho, no coração de São Paulo, talados pelas chamas na manhã de primeiro de fevereiro de 1974, com um saldo oficial de 188 mortos e mais de 300 feridos. O horror daquelas imagens calou fundo nos porto-alegrenses que, um mês antes, haviam acompanhado o drama das Lojas Americanas.O Joelma foi, de longe, o caso mais famoso, talvez porque tenha sido filmado e fotografado minuto a minuto.Isso porém não foi possível na tarde de domingo, 17 de dezembro de 1961, em Niterói, Rio de Janeiro. Àquela hora, uma multidão calculada entre 2 e 3 mil pessoas – metade das quais eram crianças - assistia à apresentação final dos trapezistas do Gran Circus Norte Americano quando o toldo de lona pegou fogo e, em menos de três minutos, deixou mais de duzentos mortos, a maioria pisoteados. Outros cento e tantos morreram nos dias seguintes nos hospitais de Niterói e do Rio de Janeiro. Os cálculos, contudo, finais falaram em 600 feridos e 323 vítimas fatais.A tragédia chocou o mundo. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Argentina ofereceram ajuda às autoridades brasileiras. Os Estados Unidos enviaram uma remessa de plasma sanguíneo e medicamentos. Um avião da Força Aérea Argentina trouxe médicos e especialistas do Instituto de Queimados de Buenos Aires. Todos os cirurgiões plásticos da Guanabara – inclusive o doutor Pitanguy, que ainda não despontaram para a notoriedade mundial - foram convocados a trabalhar e estabeleceu-se uma ponte marítima entre Rio e Niterói para o transporte de feridos e toneladas de medicamentos, e outra ponte aérea entre São Paulo e o Rio.O Rio Grande do Sul, por sua vez, coletou e enviou em um avião da FAB 50 litros de plasma sanguíneo. A secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro proibiu a venda de bebidas alcoólicas por três dias e o presidente João Goulart foi pessoalmente visitar os feridos nos hospitais. Em um emocionado apelo nos rádios e na tevê, o palhaço Carequinha pediu mais doações de sangue. O incêndio do Circo em Niterói viria a ser a maior tragédia no gênero registrada em todo o mundo.O mais chocante se revelaria nos dias seguintes, quando comprovou-se o seu caráter criminoso. Surgiu então o “monstro de Niterói” – “Dequinha”, um favelado carioca, preso inúmeras vezes por furto e “vadiagem”. Conforme confessou, havia ateado fogo no circo para se vingar de um tratador de elefantes que o esbofeteara, e também para saquear as vítimas mortas: feita a combinação sinistra, um cúmplice seu jogou gasolina na lona – síntético feito a base de derivados de petróleo – e Dequinha riscou o fósforo.No dia seguinte, absolutamente tranquilo, o incendiário vendeu alguns litros de sangue nos hospitais do Rio e foi preso somente depois que a sua companheira de barraco comentou o fato com alguns vizinhos e estes, chocados, procuraram a polícia. Para não ser linchado, o “monstro de Niterói” foi recolhido à Fortaleza de Santa Cruz, sob a guarda de soldados do Exército.Até então, no Brasil, o maior flagelo desse tipo datava de 14 de junho de 1953, quando centenas de pessoas, a maioria “gente de cor” e “empregadinhas domésticas”, na expressão da revista O Cruzeiro – divertiam-se ao ritmo dos sambas em um baile popular em homenagem a Santo Antonio, o santo dos casamenteiros.Instalado na parte de cima de um velho sobrado, o Clube 28 de Setembro - rua Florêncio de Abreu, centro de São Paulo – contava com um único acesso, uma escada de madeira que rangia ao peso de poucas pessoas. Embaixo, funcionava uma loja de tecidos.Poucos perceberam o calor estranho que vinha do assoalho até que, aos 25 minutos da madrugada, rolos de fumaça invadiram o salão fazendo com que uma verdadeira onda humana se projetasse em direção à escada. Em poucos minutos muitos corpos, caídos ao chão, foram sendo esmagados, enquanto outras pessoas atiravam-se das janelas. No final de tudo contabilizou-se 53 mortos, incluindo um bombeiro. Poucos estavam carbonizados – o pânico incontrolável é que os matou.Nas duas década seguintes o fogo retornaria às páginas da imprensa. No Rio, o da boate Vogue, em 14 de agosto de 1955, com cinco mortos e cinquenta feridos; o do Edifício Astória, também com cinco mortos, em junho de 1963; o da Favela da Praia do Pinto, que destruiu 800 barracos, feriu 32 e deixou 5 mil desabrigados. E, em São Paulo, o de São Bernardo do Campo, em dezembro de 1970, com 14 operários mortos e mais de 100 feridos, seguido do edifício Andraus, em 24 de fevereiro de 1972, com 17 mortos, quase 400 feridos e seis horas de duração.Mas é do Joelma que os brasileiros lembram. O edifício da avenida 9 de Julho, quase no coração de São Paulo, fora concluído há apenas dois anos e nele estavam instalados a sede e os escritórios da financeira Crefisul. Seus 25 andares, revestidos internamente com lambris, cortinas e muitas divisões de madeira, além de incontáveis aparelhos de ar condicionado que sobrecarregavam a rede elétrica; seu telhado de placas de cimento e amianto térmico e uma grande caixa dágua que não permitia o pouso de helicópteros - tudo isso, somado, formava o sonhado cenário para uma grande tragédia.E ela começou, efetivamente, quando faltavam 15 minutos para as 9 horas da manhã de Sexta-feira, primeiro de fevereiro, no décimo segundo andar. Em 20 minutos o fogo chegava ao topo, tempo que os bombeiros, driblando o caótico trânsito de São Paulo, levaram para chegar ao local com suas três escadas Magirus que atingiam o limite máximo de 45 metros. Um helicóptero da Operação Para-Sar – o único apropriado para a situação - conseguiu manter-se imóvel a poucos centímetros do teto e salvou muitas vidas. Pelo menos vinte pessoas já haviam se jogado pelas janelas. Somente uma hora e meia depois do início do fogo é que o primeiro bombeiro conseguiu saltar no alto do prédio para dar início ao resgate. Dezenas de soldados e oficiais – dos 450 que participaram da operação - arriscaram a vida rodopiando na cordas e escalando andar por andar. Carros-pipa trouxeram água de uma distância de até 30 quilômetros – os hidrantes, para variar, eram insuficientes. Às 16h15min, quando as últimas chamas foram debeladas, cerca de 500 mil paulistanos tinham assistido ao vivo o drama.A causa, presume-se, originou-se de problemas em um ar condicionado – costumeiro vilão de tais episódios. E talvez pudesse ser combatida a tempo – e quem sabe debelada - se os ocupantes do prédio soubessem manejar os equipamentos anti-incêndio instalados em cada andar. Os próprios bombeiros testemunharam: os extintores e as mangueiras estavam intactos em seus lugares.O FOGO NAS LOJAS AMERICANAS - Até 1976 Porto Alegre já havia sentido na carne o efeito de pelos menos dois sinistros e não precisava mirar-se no exemplo do Andraus ou do Joelma para extrair lições e adotar medidas de prevenção.Na tarde de segunda-feira, 3 de maio de 1971, ao aproximar-se as festas de São João, a cidade foi sacudida pela explosão do depósito de Fogos de Artifício Fulgor, na rua João Inácio, 150. A chamada “tragédia do Quarto Distrito”, zona operária e fabril, matou pelo menos oito pessoas – alguns jornais falaram em dezesseis – demoliu quatro prédios e vários carros, quebrou os vidros da Quarta Delegacia de Polícia e causou danos consideráveis em um raio de 2 mil metros. A vibração foi sentida até mesmo em alguns edifícios do centro. Segundo testemunhas, “parecia que haviam jogado um bomba atômica ali”. Um cogumelo de fumaça elevou-se contra o céu, onde, coincidentemente, naquele momento passava um avião a hélice – muitos moradores imaginaram que ele havia caído e explodido contra o solo.Mais de cinquenta repórteres acorreram ao local e constataram um “cenário de filme de guerra”. Um deles, transmitindo ao vivo pela tevê, comentou: “Isso não é o Vietnã, é Porto Alegre em 197l”.Cerca de sessenta feridos foram conduzidos aos hospitais da cidade. Sobre a ponte do rio Guaíba, a centenas de metros, recolheu-se pedaços de um homem. Não tardou a ser apurado que a fábrica de artifícios – na verdade um tosco armazém de dois pisos, concentrando não só foguetes e bombinhas de traque – estava abarrotada de explosivos a base de pólvora, em desobediência ao Plano Diretor do município que proibia tal atividade naquela área.A tragédia, de fato, fora anteriormente sinalizada: o depósito já havia sofrido duas explosões menores e não dispunha da mínima segurança. Mas nada fora feito pelas autoridades.Entre as hipóteses aventadas como causa, a primeira dizia respeito a um caminhão carregado que teria tocado um fio de energia elétrica na rua e originado um curto-circuito na rede. Nunca se soube e provavelmente jamais se saberá de coisa alguma: o inquérito a respeito nunca foi divulgado. Em 1971 tais fatos não precisavam ser respondidos ou explicados.Dois anos e meio depois da explosão da Fulgor e um mês antes do Joelma – a 29 de dezembro de 1973, um sábado - uma pequena festa de final de ano dos funcionários das Lojas Americanas, rede de magazines com filiais espalhadas por todo o Brasil, transformou-se em uma tragédia que estragou o reveillon de muitos gaúchos. E aconteceu também em um edifício do centro da cidade – desta vez na rua da Praia, quase esquina com avenida Borges de Medeiros, a hoje “Esquina Democrática” – e só não causou mais vítimas porque não havia movimento de clientes e, dos 300 funcionários da loja, não mais do que quinze estavam no interior do prédio àquele horário. Assim como o edifício Renner, o prédio era uma “jaula”, com apenas duas saídas para ruas diferentes e quase todas as janelas vedadas por grades.O fogo iniciou alguns minutos antes das quatro horas da tarde, denunciado pela fumaça que vinha do painel de eletricidade da sobreloja. Das seis funcionárias que estavam no andar acima, uma jogou-se sobre a marquise e as demais trancaram-se no banheiro, gritando por socorro.Os bombeiros chegaram em 20 minutos – sem escadas, sem máscaras contra gases e com um dos carros sem água. Água que também faltou nos hidrantes – ou melhor, faltaram os hidrantes, que haviam sido retirados por força das muitas obras municipais que, em tal época, rapidamente iam cobrindo a cidade com um tapete de asfalto e concreto.Assim, cerca de 100 mil litros precisaram ser bombeados do lago Guaíba, a meio quilômetro de distância. Mais tarde, na ritualística oficial das explicações, chegou-se a alegar que a água tratada estava muito cara e que era preciso economizar.Os bombeiros defenderam-se, pedindo maior fiscalização da prefeitura e garantindo que, neste caso, não lhes foram passadas as informações mínimas necessárias. Sequer lhes disseram que haviam gente no prédio, lembrou o comandante.Fosse como fosse, entre as perdas e os danos estavam as cinco moças asfixiadas pela fumaça, das quais uma apresentava profundos cortes no pescoço, prova de que teria desmaiado ao tentar passar por uma das pequenas janelas basculantes – o mesmo caso de Germano Jonas. Como de praxe, abriu-se um inquérito policial que, para a surpresa de ninguém, nunca veio à luz.Comandando as investigações estava um velho conhecido da imprensa: o delegado Geraldo Ivo Gaston, o mesmo da explosão da Fulgor e o mesmo que dali a dois anos e meio iria cuidar do inquérito das Lojas Renner.A IMPLOSÃO - Na manhã de 30 de maio, um domingo frio e chuvoso, o que havia restado da sede das Lojas Renner foi visto pela última vez por cerca de 200 curiosos que se comprimiam atrás do cordão de isolamento para assistir o derradeiro ato de tudo, o “gran finale”.Mais de 90 quilos de explosivos tinham sido estrategicamente colocados em pontos sensíveis do prédio que, em poucos segundos, ruiria de “fora para dentro”, uma explosão peculiar, quase asséptica, sem riscos para a vizinhança e inédita no Rio Grande do Sul, garantiam técnicos e autoridades.A implosão – neologismo cunhado a partir da bem sucedida experiência pioneira com o edifício Mendes Caldeira (30 andares), em São Paulo, por si só já era um espetáculo.Para aqueles que haviam assistido às imagens na tevê, o efeito lembrava a explosão de uma bomba atômica. Durante semanas, os técnicos da empresa contratada haviam planejado cuidadosamente a operação, anunciada ao público semanas antes, sempre envolta em um certo mistério e, até alguns dias antes, indefinida quanto ao dia e à hora. O nervosismo geral era visível: nada poderia dar errado.Dezenas de repórteres, cinegrafistas (a tevê transmitiria ao vivo) e fotógrafos colocaram-se a postos desde o início da manhã: às seis horas, a área em volta foi isolada por soldados da Brigada Militar e, em seguida, foi feita a verificação dos prédios vizinhos, evacuados na noite anterior. Era a terceira vez que se fazia uma implosão no Brasil e a primeira em que se contratava uma empresa nacional – a Triton S.A., de São Paulo.Segundo o engenheiro responsável, Hugo Takahashi, 365 bananas de tritonita – variante da dinamite, ou TNT – a maioria dispostos nos três primeiros pavimentos, em cartuchos espalhados em pequenos orifícios, dariam cabo da resistência das fortes estruturas construídas havia quase meio século.Três minutos antes da implosão um carro dos bombeiros fez soar a sirene, sinalizando o início da contagem regressiva. Eram exatamente 8 horas e 51 minutos quando o engenheiro acionou o detonador. Ouviu-se então um barulho surdo (90 decibéis), seguido de uma grande nuvem de poeira branca que envolveu toda a praça Otávio Rocha. Pedaços de pedras voaram a uma distância de até 30 metros. Vidraças dos prédios vizinhos rebentaram com a vibração. Do início ao fim, quando todo o prédio ruiu sobre sua própria base, passaram-se apenas seis segundos.Assim que se dissipou a nuvem de poeira foi-se também a carga de tensão humana e os funcionários da empresa, tentando disfarçar o nervosismo, começaram a conversar animadamente com os repórteres e as autoridades. Hugo Takahashi comentou, satisfeito: “A implosão foi perfeita”. O major Clóvis repetiu a expressão e o secretário Jorge Englert foi ainda mais ufanista: “Isso é uma prova do adianto da engenharia brasileira”.Já o público – ansioso, à espera de um grandioso espetáculo – não mostrava-se muito satisfeito com o que vira, ou não vira. Empunhando um guarda chuva, envolto dos pés à cabeça em agasalhos contra o frio do final de maio, um homem queixava-se, decepcionado: “Não deu pra ver nada, só a nuvem de poeira”.A destruição do prédio punha um termo final à busca pelos restos dos desaparecidos que supunha-se ainda estarem sob os monturos. Destes, três trabalhavam na própria loja e os demais eram pessoas que saíram de casa dizendo que iriam fazer compras na Renner e nunca mais voltaram.Familiares e amigos vinham tentando, sem sucesso, adiar a implosão – eram, contudo, vozes fracas e anônimas demais para serem ouvidas.Na noite do dia 15, Sábado, uma equipe de médicos, odontologistas, legistas e peritos conseguiu identificar mais três corpos: Luisa Rodrigues Fernandes, 30 anos, Shirles Chaves, 39, e José Francisco Nunes Cerqueira. Eles foram encontrados por volta das 14 horas, por um equipe de funcionários da Triton que fazia a remoção dos escombros. Estavam vestidos e não portavam documentos. “Com certeza não há mais nenhum aqui”, declarou um dos técnicos, em tom definitivo.Captada a senha, as autoridades municipais sentiram-se à vontade para proclamar que o período de resgate dos corpos estava definitivamente encerrado e o empenho para encontrar aqueles que constavam na lista dos desaparecidos cedeu lugar aos preparativos técnicos que antecediam a implosão.Não obstante, nesse meio tempo os operários comentavam coisas que logo ganhavam às ruas e respingavam nas redações dos jornais. Sabia-se que a quilômetros dali, em um conjunto de barracos da Vila Farrapos, na Zona Norte da cidade, algumas crianças maltrapilhas habituadas a brincar com o lixo haviam encontrado coisas estranhas, mal-cheirosas e desagradáveis em um terreno baldio. Porém as caçambas prosseguiam despejando peças de roupas, máquinas e tecidos quase intactos – o espólio do grande empório Renner.No dia seguinte à implosão, uma segunda-feira fria que já anunciava o cinzento inverno gaúcho, seu João de Deus Carvalho, pai de Rui, o rapaz de 19 anos que alguns disseram ter visto caminhando pelas ruas de Porto Alegre na tarde do incêndio, arrumou suas malas e preparou-se para voltar à cidade de Santiago. Durante um mês ele vivera o pesadelo da dúvida, o exasperante drama de percorrer hospitais, albergues e delegacias à procura de uma figura intangível que vira, mas não vira. Por fim, esgotados todos os recursos, nada mais havia a fazer: o próprio cenário da tragédia, o edifício de dez andares no centro da cidade sumira do mapa para mais tarde dar lugar à uma moderna construção com amplas janelas envidraçadas – o novo prédio das Lojas Renner, tão ou mais imponente do que o anterior. E, presume-se, bem mais seguro.Um dos maiores incêndios em vítimas fatais registrado no Brasil, o sinistro das Lojas Renner matou oficialmente 28 pessoas e deixou 14 outras desaparecidas – desaparecidos estes que nunca mais apareceram. O laudo técnico não esclareceu a possível causa.