sexta-feira, outubro 28, 2016

27 de abril de 1976: o mais longo dos dias da capital gaúcha

Há 40 anos Porto Alegre viveu o mais dramático dos dias - o incêndio do edifício Renner, no centro da cidade, episódio que matou quatro dezenas de pessoas e deixou quase uma centena de feridos. Era 27 de abril de 1976 e a capital gaúcha, atordoada, galvanizou suas totais atenções para o que acontecia entre as ruas Otávio Rocha e doutor Flores. Lá se localizava um dos mais tradicionais magazines sulinos, um orgulho empresarial fundado no início do século 20. Publicamos agora, sequencialmente, o relato desse fato que foi um divisor na história de Porto Alegre, contextualizando e reportando uma época que vive na memória dos mais antigos: os peculiares anos setenta, quando a preocupação com a prevenção ao fogo era mínima em todo o país. O longo trabalho de pesquisa revive jornalisticamente o que foram, de fato, aqueles horas de angústia, surpresa e dor, com cenas que se repetiram muitos anos depois, desta vez em Santa Maria, em proporções ainda maiores. 

 Por Vitor Minas
Capa do Diário de Notícias, jornal standard que fechou em 1979



Matéria da revista Veja: o que poderia acontecer, aconteceu.
Os populares, embaixo, pedem para que as vítimas, encurraladas, não pulem


PARTE 1 – O ESTRANHO ANO DE 1976


   No dia 10 de abril de 1976, sábado, o Correio do Povo publicou a seguinte notícia em sua página de ocorrências policiais.

“Mais de 1.500 prédios sem segurança contra incêndios em São Paulo”

“Depois dos incêndios do Andraus e do Joelma, a Prefeitura desta capital criou uma lei visando a segurança de prédios. Entretanto, segundo um levantamento realizado pelo Grupo Especial de Peritagem da Prefeitura Municipal, existem ainda na cidade mais de 1.500 prédios sem as mínimas condições de segurança contra incêndios. Falando sobre o problema, o prefeito Olavo Setúbal acusou os síndicos desses edifícios, afirmando que se algum acidente grave acontecer quem vai para a cadeia serão os síndicos, que juridicamente são os responsáveis pelo problema. O prefeito Olavo Setúbal falou sobre a disposição de interditar todos os prédios de São Paulo que não obedeceram a nova legislação de prevenção contra incêndios. Declarou ainda que não mais tolerará a omissão dos síndicos, pois muitos deles, mesmo intimados pelo GEP, não deram a menor satisfação. Sobre a situação irregular dos prédios, alguns proprietários apresentaram laudos na Prefeitura e, depois que receberam o protocolo dos processos, não cumpriram as determinações da lei de Prevenção a Incêndios”.


    Na mesma edição, em editorial, o Correio retomava o assunto, lembrando que Porto Alegre – bem pior que São Paulo - não havia desenvolvido ainda a necessária consciência da prevenção. O texto seria republicado 17 dias depois, com justos motivos.


“Ainda à mercê do fogo”

“Ainda não se concretizou a aplicação de uma política efetiva para a prevenção de incêndios em Porto Alegre. A maior parte dos edifícios continua sem o que se poderia considerar medidas mínimas de proteção contra o fogo. Há poucos dias houve alarma num prédio pertencente ao Estado onde funciona uma repartição pública com numerosos funcionários. Pode-se perceber que, no caso de um incêndio de grandes proporções, a possibilidade de evacuar o prédio sem vítimas seria bastante reduzida.
   “Mesmo com tantos exemplos, alguns ocorridos em outras capitais do País, outros aqui mesmo, Porto Alegre ainda não conseguiu desenvolver uma consciência dos perigos e resultados catastróficos dos incêndios. Nossos prédios continuam crescendo em tamanho e sem possuírem, na maioria, na quase totalidade, vamos reconhecer, as condições necessárias de segurança contra incêndios. Continua predominando uma mentalidade que se baseia no conceito otimista de que “esse tipo de tragédia só pode realmente acontecer em outros lugares” – conceito otimista esse que infelizmente tem sido desmentido.
(...) “As exigências de mangueiras e extintores de fogo nos edifícios devem ser averiguadas de tempo em tempo. E mais do que tudo, deve haver um trabalho de conscientização para que o povo aprenda a defender-se nos casos de incêndio. Nada adianta ter mangueiras e extintores se não se sabe como usá-los. Numa cidade que cresce, como esta nossa, os perigos decorrentes de incêndios devem ser prevenidos, antes que tenhamos pela frente mais uma catástrofe de proporções.”

   Havia décadas a falta de prevenção contra o fogo era tema recorrente do diário da Rua da Praia, um dos mais sólidos da imprensa brasileira, veículo líder da Companhia Jornalística Caldas Júnior, editora da Folha da Manhã e Folha da Tarde e proprietária da Rádio Guaíba.
   Não que os demais não batessem na mesma tecla, porém o Correio mostrava-se bem mais enfático e informado a respeito, não poupando críticas à inércia das autoridades e à estranha passividade dos porto-alegrenses frente ao problema. O assunto era uma espécie de cruzada do respeitado standard, que já havia feito dezenas de editoriais a respeito, mas, em termos práticos, isto, como se via, pouco ajudara.  
   Foi assim também a 10 de fevereiro, mês que sempre trazia lembranças do que acontecera aos edifícios paulistanos Andraus, em 1972, e Joelma, dois anos depois.
   O CP (“Prevenção Ainda Inexistente”) lembrava a comoção coletiva quando da morte de cinco jovens no sinistro das Lojas Americanas, em 1973, das promessas das autoridades e da insuficiência de atitudes práticas desde então, muito embora o novo Código de Prevenção de Incêndios estivesse em debate na Câmara Municipal e, uma vez aprovado, significasse algum avanço nesta área. Ao mesmo tempo o jornal observava:

   (...) O uso de extintores em todos os prédios, a adoção de portas corta-fogo nos edifícios públicos e o sistema de passarelas também em todas as edificações e com caráter obrigatório constituem pontos importantes do projeto. Mas não é a viabilidade ou a oportunidade de tais medidas que deve fixar nossa atenção sobre o problema nelas envolvido, e sim, um fato de suma gravidade. É não ter sido estabelecido até agora, em uma cidade de um milhão de habitantes como a nossa, um sistema efetivo que evite os sinistros por fogo.”
 
   Sabia-se, porém, que o projeto arrastava-se com displicente morosidade (envolvia normas técnicas que resultariam em gastos condominiais e de construção) e, tudo indicava, demandaria mais algum tempo para ser concluído, aprovado e sancionado e, principalmente, aplicado.
   “De positivo mesmo só existe uma coisa – a probabilidade de uma nova tragédia, porque a anterior de nada serviu. Triste, mas verdadeiro”, concluiu o CP.

    No dia 14 de abril, quarta-feira, o jornal entrevistou o autor do Manual de Prevenção e Proteção de Incêndios, publicação adotada por todas as escolas para formação de bombeiros do País.  De passagem por Porto Alegre como um dos palestrantes do Terceiro Encontro Nacional da Construção, ENCO, megaevento bienal reunindo todo o universo do setor, o coronel Orlando Secco, veterano comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, lembrou que o progresso dos anos setenta, com a crescente utilização de materiais plásticos e inflamáveis, multiplicava o risco de tais sinistros.
   “Antigamente a armazenagem era feita caixa sobre caixa, material sobre material, até onde alcançava o braço do homem. Hoje, com as empilhadeiras e a implantação de prateleiras à altura de 40 ou 50 metros, com canais de ventilação nos sentidos horizontal e vertical, temos verdadeiras armações de fogueiras”.
    Conforme Secco, aprendendo na carne as lições do Andraus e do Joelma (com um saldo conjunto de mais de 200 mortos e centenas de feridos), a capital paulista despertara para a necessidade da real prevenção de tais tragédias. Assim, a partir da adoção do novo Código de Edificações e a formação de um Grupo Especial de Peritagem, em 1974, mais de dois mil proprietários ou responsáveis por edifícios foram obrigados a regularizar sua situação. Restavam ainda outros 1.500 passíveis de serem interditados e multados, tendo ainda nomes e endereços divulgados pelos jornais.
    Felizmente, o rigor das autoridades paulistanas recebia o apoio da população que aplaudira, inclusive, a interdição do edifício Martinelli, prédio que, décadas atrás, havia sido o mais alto da América do Sul e símbolo do progresso de São Paulo. Todos recebiam agora um ultimato, devendo apresentar à comissão permanente do Código de Obras um laudo de segurança firmado por dois peritos devidamente credenciados. Passados os prazos fixados e não atendidas as exigências, os técnicos passavam a considerar tais locais como “ameaça à integridade física de seus ocupantes, dos vizinhos e do público em geral”, o que ensejava a interdição – e isto previa a impossibilidade de vender ou alugar os imóveis.
   Naquele momento, de acordo com o coronel, tanto os bombeiros de São Paulo como as firmas especializadas no combate a incêndios já não estavam dando conta de atender aos pedidos do público e das escolas para orientação, treinamento e utilização dos equipamentos preventivos. “Além disso, vai se constituindo numa constante a assistência para indústrias e fábricas que adaptam suas instalações para a colocação de instrumentos modernos. Mas não é só isso, precisamos de um povo treinado para enfrentar tais situações”, enfatizou o bombeiro.  
   
                                                                                    *     

   Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 27 de abril de 1976, 13h45min, uma terça-feira com “temperatura em elevação, ventos soprando de leste a norte, fracos”.  
    Dia comum e de poucas efemérides, consagrado a Santa Zita, padroeira católica das empregadas domésticas, data de nascimento do inventor do telégrafo, Samuel Morse, e da inauguração do estádio municipal do Pacaembu, em São Paulo.
   Numericamente, o centésimo décimo sétimo dia de 1976, faltando outros 248 para acabar o ano.  Para os esotéricos, ano do dragão, bicho poderoso e magnânimo, considerado auspicioso para os negócios, todavia temido pela conjunção de fortunas e desastres. E 76 seria justamente o ano do dragão-fogo, o mais competitivo de todo o horóscopo chinês. (China vermelha e fechada de um Mao Tsé Tung agonizante e que na madrugada de 28 de julho seria sacudida por um terrível terremoto – talvez o mais mortífero da era moderna - matando oficialmente 242 mil pessoas na cidade de Tangshan, embora, para muitos, o número pudesse ser multiplicado por três).
    Publicada sem maiores destaques no alto da página cultural do jornal Zero Hora daquela terça-feira, uma nota comentava o incidente preocupante que havia acontecido dias antes no show da cantora argentina Amelita Baltar, 35 anos, em turnê pelo Brasil.
   “O episódio da fumaça surgida sábado à noite no teatro Leopoldina, durante a apresentação de Amelita Baltar, começa agora a ficar mais claro. Houve um curto-circuito, que chegou a ser visto por quem estava sentado nas primeiras filas. Para o fogo pegar nas cortinas não faltaria muito. A esta altura, cabe ao Corpo de Bombeiros fazer uma vistoria nas instalações do Leopoldina, medida que vai beneficiar, inclusive, a direção do próprio teatro. Porto Alegre sem o Leopoldina é um fato inimaginável.”

   
   Praça Otávio Rocha, número 134, esquina com Rua Dr. Flores, centro.
   Alguns rolos de fumaça começam a sair do interior das Lojas Renner. Em seguida fortes chamas rapidamente envolvem o edifício. Três horas mais tarde e a sede de uma das mais tradicionais redes de magazines do Sul do País transformava-se em cimento calcinado e fumegante.
   Dezenas de vítimas e desaparecidos, quase oitenta feridos, desabamentos, explosões, pânico, histeria, hipocrisia, caos urbano, linhas telefônicas congestionadas, desencontros, confusão, choros, acusações recíprocas, cinismo e velhas cobranças – este o saldo da tragédia que parou Porto Alegre naquele outono dos anos setenta, passados menos de dez dias do feriadão de Páscoa.
   Calcula-se que cerca de 200 mil pessoas, cerca de 20% da população da Capital, entre moradores e trabalhadores do centro, transeuntes, amigos e parentes das vítimas, curiosos, mórbidos natos, desocupados, batedores de carteiras, bombeiros, policiais civis e militares, médicos, enfermeiros, voluntários, soldados do Exército e dúzias de alvoroçados repórteres e cinegrafistas acompanharam ou participaram de um pesadelo que lembrava o ocorrido com o edifício Joelma, em São Paulo, dois anos antes, quando, oficialmente, 188 pessoas perderam a vida em circunstâncias semelhantes.
   Por um bom tempo o incêndio do Joelma - e o sucesso do filme-catástrofe Inferno na Torre, superprodução assistida por milhões de brasileiros, em cartaz em Porto Alegre durante meses - alimentou um justificado sentimento de insegurança e “sinistrose” nos habitantes dos grandes centros urbanos.
   A revelação, a olhos vistos, de que a maior e mais rica cidade do País não tinha condições de fazer frente ao perigo das chamas e, pior, que isto representava a regra geral e que praticamente nada mudara, rendeu inflamadas matérias na imprensa, gerou verbosos discursos políticos, modificou algumas leis específicas, sem, contudo, resultar em uma unificada e eficaz política na área de segurança contra o fogo para as principais cidades brasileiras.
   Em meados de 1976 seria a vez de Porto Alegre ter o seu Joelma e de demonstrar mais uma vez o quanto a incúria, o descaso e talvez alguma dose de fatalidade, podem, combinados, repetir um enredo que, desta vez, só se modificou em detalhes e cifras de óbitos e feridos.
   Foi, disparado, a maior tragédia repentina que se abateu sobre a cidade e certamente, por sua alta voltagem emocional, aquela que mais marcou seus então um milhão de habitantes.

UM TÍPICO DIA DE ABRIL
   Nada, é óbvio, indicava que aquela terça-feira nem quente e nem fria, um típico dia de abril, com termômetros que oscilaram entre 20 e 26 graus, fosse se transformar em um filme de horror para centenas de pessoas e desorganizar completamente a vida dos porto-alegrenses.
   Os jornais que chegavam às bancas traziam manchetes sobre a viagem que o presidente Ernesto Geisel fazia à Europa (Valery Giscard D’Estaing, presidente da França, enchia o Brasil de elogios: segundo ele, desde o final da Segunda Guerra, emergíramos como “potência mundial”), os problemas cardíacos do senador Tarso Dutra, a guerra civil de Angola e o auxílio militar cubano, as eleições em Portugal (a Revolução dos Cravos completara dois anos no dia 25 de abril) com a vitória dos socialistas de Mário Soares, o avanço dos comunistas na Itália, o difícil caminho para estabelecer a democracia na Espanha sem Francisco Franco (morto no final de 1975), o conflito racial e a reação ao “apartheid” na África do Sul e na Rodésia, a onda de violência política na Argentina (onde, em março, ocorrera o golpe militar que destituíra Isabelita Perón), o Oriente Médio (a Síria invadira o Líbano, em um banho de sangue, e Beirute estava sendo destruída pelos bombardeios), os atentados do IRA na Irlanda e na Inglaterra, os preparativos para as comemorações do Bicentenário da Independência Norte-americana, o acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha, Emerson Fittipaldi e o seu novo carro, as próximas Olimpíadas de Montreal, a seleção brasileira de futebol montada por Osvaldo Brandão – seleção que os gaúchos poderiam, a partir daquela quarta-feira, com o jogo entre Brasil e Uruguai pela Copa América, assistir “ao vivo e inteiramente a cores” pelo canal 12.



   No capítulo das tragédias internacionais um Boeing 727 da American Airlines incendiara nas Ilhas Virgens, nas Caraíbas, deixando cerca de 60 mortos e outros tantos feridos. Ao descer, o piloto fez uma manobra desastrosa e colidiu a aeronave contra um posto de gasolina às margens da pista.  
   Também na segunda-feira, 26 de abril, na conturbada e ingovernável Itália, ao cabo de um concorrido julgamento, o jovem Pino Pelosi, de 17 anos, foi condenado pelo assassinato do cineasta Pier Paolo Pasolini, 52 anos.  Segundo a polícia, Pino, ocasional garoto de programa, teria matado brutalmente Pasolini, no porto de Óstia, na madrugada de 2 de novembro de 1975, dia de Finados. De forma semelhante o julgamento de Patrícia Hearst, neta do magnata da imprensa norte-americana, William Randolph Hearst, o “Cidadão Kane”, sequestrada e transfigurada em guerrilheira do confuso Exército Simbionês de Libertação Nacional, frequentava as páginas dos jornais, que, semanas antes, haviam explorado com insistência a morte, a biografia e as manias do genial bilionário Howard Hughes.
   Já as notícias criminais versavam sobre Dudu, o milionário da loteria esportiva que agora se via em complicações financeiras e as rocambolescas fugas e prisões do ex-policial, bandido e integrante do Esquadrão da Morte carioca, Mariel Mariscot, 35 anos. A tragédia de São Gonçalo, duas semanas antes, na qual 20 fiéis da igreja Deus é Amor morreram pisoteados em meio a uma histeria coletiva, ainda repercutia e espantava pelas reações de frieza do pastor. Segundo este - que acreditava na absolvição pela justiça divina - muitas pessoas estavam “possuídas pelo demônio” e eram as culpadas das próprias mortes.
     Sem tumultos e sem maiores culpas, a dolce vita do gran monde da capital gaúcha tinha lá suas novidades que poderiam ser conferidas na página do festejado colunista social Paulo Ricardo Gasparotto, de Zero Hora. Naquela terça-feira, 27, os leitores que desembolsassem dois cruzeiros pelo jornal em banca saberiam que o final de semana do high society fora memorável no restaurante e casa de shows Encouraçado Butikin (Avenida Independência), onde os casais Zeca Bohrer, Felicinho Santos e Tânia Carvalho confraternizaram alegremente. “Eram seis da manhã e a animação continuava a todo vapor, digo, a todo Encouraçado”, descreveu Gasparotto.
    Na mesma coluna ficamos sabendo ainda que a senhora Lúcia (“Lulu”) Curia telefonara de Paris logo ao retornar de Saint Tropez, onde esteve tomando o primeiro sol do verão europeu, e que o domingo também havia sido ensolarado em Porto Alegre, lotando a pérgola do Coutry Club, notando-se em especial as belas presenças de Vera Corte Real Garcia e Pitty Kessler, “esta com sensacionais botas no estilo de montaria”. Antes disto, na entrada da noite de sexta-feira, no “pavilhão” de sua elegante morada, o casal Yara e Fritz Johannpeter ofereceu drinques para os casais Pedro Leitão da Cunha e demais membros da direção nacional do Banco Brascan em sua movimentada passagem por “Portinho”.
   A despeito de tantas festivas novidades, o colunista encerrou a sua crônica mundana daquele dia com uma desolada observação: “Ultimamente as reuniões em Portinho estão totalmente sem assunto. Ou excesso de preocupação com um motivo só do nosso “people”, ou falta de imaginação...”
    No velho continente, em elegantes salões da Cidade Luz, recepcionado pelo embaixador Antonio Delfim Neto, (que faria 48 anos no dia primeiro de maio), e por algumas manifestações de protesto de exilados brasileiros e militantes da esquerda francesa, o general-presidente Ernesto Geisel, 68 anos, gaúcho de Estrela, buscava inserir mais fortemente o Brasil no cenário político mundial, ao passo em que anunciava mais investimentos para o País, entre os quais os voltados às descobertas de petróleo na bacia de Campos, os “contratos de risco”, e a instalação do terceiro polo petroquímico no Rio Grande do Sul.
   Com bilhões de dólares em jogo e a certeza de milhares de novos empregos, o Polo – disputado por outros Estados, mas já garantido para o Rio Grande - uma vez viabilizado, marcaria um salto exponencial na economia regional. Em contrapartida preocupava a todos a possibilidade do agravamento do desequilíbrio ambiental, com a emissão de poluentes que, fatalmente, atingiriam a Grande Porto Alegre e mesmo o litoral.

EM PARIS, A INAUGURAÇÃO DA DISCAGEM DIRETA INTERNACIONAL
   Rio Grande exportador, com cerca de sete milhões e meio de habitantes vivendo em 232 municípios e que, naquele ano de eleições, já havia recebido oficialmente a visita de Geisel por duas vezes: abrindo a terceira Festa Nacional da Soja, no município de Santa Rosa, no início de abril, e, antes, em janeiro, visitando o Rodeio Internacional de Vacaria. Geisel considerava o pleito de 15 de novembro – quando a população escolheria prefeitos e vereadores – como uma espécie de plebiscito do seu governo e nele empenhou-se pessoalmente, pedindo votos em todos os estados.   
   No nevrálgico e tão criticado setor das telecomunicações, aproveitando a deixa publicitária parisiense, um telefonema do ministro Euclides Quandt de Oliveira para o presidente Geisel, no palácio de Versalhes, inaugurava, oficialmente, a discagem direta internacional, o DDI, entre o Brasil e a Europa, conforme já existia com os países da América do Norte.
   Dois meses antes, em Porto Alegre, ao meio-dia de 20 de fevereiro, sexta-feira, o governador Sinval Guazzelli, 46 anos, oficializou no Estado a nova tecnologia da Embratel, desta vez para o Canadá: do seu gabinete, no palácio Piratini, cercado de fotógrafos, repórteres e cinegrafistas, ligou para Ottawa e conversou com o embaixador brasileiro naquele país, Geraldo de Carvalho Silos, ocasião em que o convidou a participar do seminário de investimentos do Estado que aconteceria em abril.
   Já na telefonia doméstica a expectativa de todos centrava-se na discagem direta à distância, o DDD. O sistema, em fase de implantação, prometia uma nova era para o setor, única maneira de modernizar as defasadas comunicações de um país com menos de quatro milhões de linhas telefônicas instaladas, em percentual abaixo até mesmo das demais nações sul-americanas.
Matéria do Correio do Povo



   Telefones difíceis e caros: em Cruz Alta, onde, em abril, a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações, CRT, ofertava 400 novos aparelhos, uma linha residencial custava 6.528 cruzeiros à vista (mais de dez salários mínimos), podendo ser paga em até 24 meses. A comercial saía por 3.320 cruzeiros à vista (ou em 12 pagamentos mensais), enquanto o tronco de PABX custava 12.120 cruzeiros. O tempo médio para se receber um aparelho era de 36 meses, mas poderia ser mais: em janeiro de 76 um grupo de empresários de Viamão que havia comprado 400 aparelhos da CRT, sob a promessa de que seriam instalados em no máximo 12 meses, apelava desesperadamente para as autoridades. Apesar do pagamento feito à vista, havia quatro anos que eles aguardavam a instalação. “Se isso acontecesse com uma firma particular, há muito tempo os diretores da CRT já estariam presos”, desabafou um comerciante.
   Caro e raro, o telefone era considerado um bem patrimonial, assim como carro ou terreno, e sua venda ou aluguel por meio de anúncios de jornais tornara-se um negócio lucrativo e disputado – uma linha residencial em Porto Alegre, anunciada nos classificados dos jornais, dificilmente sairia por menos de 25 mil cruzeiros. Por vezes vigaristas aplicavam o chamado “golpe do telefone”, tomando dinheiro antecipado das pessoas sob a promessa de que conseguiriam efetuar a ligação em breve espaço de tempo.
    Em todo o Brasil a qualidade técnica do sistema, por sua vez, era inversamente proporcional aos valores pagos. Exemplo: no dia 27 daquele fevereiro de 1976 os jornais noticiavam o isolamento de Santa Catarina do restante do mundo.  Durante mais de 24 horas o Estado – que, em julho de 1975, havia entrado oficialmente na “Era DDD” (Florianópolis tinha até então menos de sete mil aparelhos) – permaneceu virtualmente mudo e surdo, sem qualquer comunicação entre as suas principais cidades e até mesmo sem telex: “O contato com importantes cidades de Santa Catarina, onde o DDD está em funcionamento, tornaram-se impossíveis, mesmo que o assinante solicitasse o auxílio da telefonista. Idêntica situação em relação aos pedidos para ligações interestaduais ou internacionais”, relatou a sucursal da Caldas Júnior em Florianópolis. A origem do problema estaria em Blumenau, onde um trator que executava obras de rua rompeu um cabo subterrâneo.
    Em Joinville, enquanto a prometida nova central telefônica da TELESC não se tornava realidade, as ligações continuavam difícultosas, “primeiro por falta de linhas interurbanas e falta de som”, conforme anotou o correspondente da CJCJ:
    “Todo o problema começa quando o usuário retira o telefone do gancho e falta o som para discar. Depois de vários minutos de espera a ligação é completada, mas na maioria das vezes não no número desejado. Para conseguir novamente uma ligação a pessoa é obrigada a aguardar mais alguns minutos, até que, quando finalmente consegue, não há sinal de resposta. Como há 14 mil telefones sobre apenas sete mil linhas, isso ocorre com todos os telefones de Joinville. Além disso, se o telefone for deixado fora do gancho durante minutos, sem o número ser discado, a TELESC o desliga e somente torna a ligar no dia seguinte, “como castigo”. (CP, 2 de abril de 1976)
    No Rio Grande do Sul, até mesmo em centros maiores como Caxias e Pelotas, relatava-se também uma “situação calamitosa”. Em abril de 76, as lideranças de Caxias do Sul – que contava com 3.372 telefones fixos, dos quais 2.112 eram comerciais - reclamavam da demora de se conseguir uma ligação e da constante interferência nas linhas.
   Pelotas vivia situação ainda pior: o DDD para Porto Alegre raramente funcionava – o mesmo já não acontecia no sentido inverso. Era necessário, no mínimo, triplicar-se o número de canais entre as duas cidades e modernizar-se todo o sistema, reconhecia Jaime de Marco, diretor de operações da CRT. Ele pedia paciência e explicava que a ampliação se processava lentamente, com várias centrais novas funcionando ao lado de outras mais antigas.
   Em Uruguaiana o panorama não era mais animador: uma ligação para Porto Alegre poderia demorar “de 12 minutos até uma hora”, reconheceu o gerente local da Companhia, aconselhando a todos para que, preferencialmente, “usassem o telefone de madrugada, quando é bem mais fácil conseguir linha”. Mas nem isso foi possível a 10 de janeiro, quando um raio atingiu a torre de transmissão do município, destruindo o seu gerador. Da tarde de sábado até o final de segunda-feira todos os telefones e o serviço de telex de Uruguaiana deixaram de funcionar.
    Já em Encantado a culpa não era dos humores do clima e sim da ação dos vândalos. Ou, como escreveu o correspondente da Caldas Júnior no dia 14 de janeiro: “Fatos estranhos estão acontecendo com as redes de telefones que ligam a sede do município com os distritos de Doutor Ricardo e Relvado, através das quais Encantado consegue contatos com as cidades vizinhas de Anta Gorda, Ilópolis e Putinga. Há cerca de um ano essas linhas vêm sendo sistematicamente cortadas por elementos até agora não identificados e que estão sendo taxados de vândalos, pois raras vezes os fios de cobre cortados com alicate foram levados do local”.
   O vandalismo também haveria de ser apontado, em setembro, como causa da pane no município de Vera Cruz, a 170 quilômetros de Porto Alegre. Irritado, o prefeito Guido Hoff solicitou à polícia que encontrasse o autor do tiro que atingiu o cabo telefônico ligando a cidade à central em Santa Cruz do Sul, deixando todo o sistema mudo por mais de uma semana. Os técnicos da CRT levaram o mesmo espaço de tempo para localizar o problema, vistoriando exaustivamente todas as linhas, metro por metro.
   Em Santa Maria, o presidente da Associação Comercial, Cirilo Bebber, apontava as ligações para as pequenas localidades como as mais problemáticas: “Às vezes temos que esperar quase 12 horas por isso”. Também em Cachoeira do Sul, centro produtor de arroz, os negócios vinham sendo prejudicados pelo pouco número de canais instalados – eram apenas onze, quando já deveriam ser 36. O gerente local da CRT, Alberto Lauter, tinha esperanças de que a Embratel liberasse os novos troncos para Porto Alegre, uma velha promessa. Com o recente acréscimo de mais 500 aparelhos ofertados a cidade somava 1.439 telefones, “funcionando em precárias condições”, admitiu o gerente.
   Em Encruzilhada do Sul o prefeito Antonio Carlos Moreira pedia ao governador apenas duas coisas – asfaltamento da estrada para Pantano Grande e melhorias no sistema telefônico. Segundo ele, as ligações para Porto Alegre levavam em média 12 horas para serem completadas – quando chovia os habitantes do município passavam dias sem poder usar o telefone.
   No Vale do Taquari, o prefeito de Lajeado, Alípio Hufner, dizia esperar que a escolha da sua cidade como sede do governo estadual, prevista para agosto (o governador Guazzelli estabelecera um sistema de “governo itinerante”, despachando alternadamente em diferentes municípios) servisse para acelerar a implantação do sistema DDD para Porto Alegre, Santa Cruz e Estrela, algo que já deveria estar resolvido não fosse a falta de um cabo. Mesmo assim, era ainda uma solução parcial e híbrida: por questões técnicas, as ligações desses municípios para Lajeado continuariam a depender da central telefônica.
   No litoral norte, no balneário de Arroio do Sal, subdistrito de Torres, a população - “que ultrapassa a uma centena de habitantes” - pleiteava do governo o funcionamento, também no inverno, do seu único telefone que operava pelo sistema micro-ondas somente nos meses de veraneio. 
    Mais sorte teve Carazinho, que, em janeiro, ganhara mais três canais diretos para Porto Alegre – agora eles eram nove, festejou o gerente da CRT, Leopoldo Lima: “Ficou fácil. É só pedir a ligação. Se a telefonista não manda esperar na linha, dentro de uns cinco minutos a ligação estará completada”. São Leopoldo, na Região Metropolitana, dizia confiar nas promessas oficiais de que, no ano de 1977, teria mais mil linhas automáticas instaladas, as quais se somariam as mil já existentes.
   Também o município de Bom Jesus, com seus mais de sete mil habitantes, entrava em uma fase de modernidade ao ganhar uma nova rede telefônica e 300 novos aparelhos coordenados por uma central de sistema PABX. Nada mau para uma cidade que contava apenas com três telefones até o final de 1975 – um na Prefeitura e outros dois em agências bancárias. Mesmo com a multiplicação de linhas, o prefeito Luis Fonseca considerava o número insuficiente para tantos pedidos.
   Por sua vez, os 10 mil moradores Nova Prata – a 180 quilômetros de Porto Alegre, cidade em acelerado crescimento industrial e comercial – conviviam com “telefones de museu”. Não era exagero: a rede havia sido instalada em 1924, quando a localidade se emancipou. Meio século depois existia ali apenas 43 antiquados aparelhos, muitos deles avariados ou mudos. Segundo o presidente da comissão de empresários formada para reivindicar uma solução para o problema, Belmiro Dionízio Lazzarotto, a agência local da Caixa Econômica Federal, inaugurada havia pouco mais de um ano, era a única do Brasil que não tinha telefone. O mesmo acontecia com o Presídio da cidade e “quase todos os médicos que vieram para cá a menos de 50 anos”.
    Pior ainda era a situação vivida pelos habitantes de Viamão, cidade-dormitório a 24 quilômetros do centro de Porto Alegre: desde o final de 1975 que nenhum telefone funcionava no município, nem mesmo para uma simples ligação com a Capital. Ou seja, Viamão não tinha ligação telefônica com Porto Alegre e quaisquer notícias e recados locais eram trazidos pelos motoristas em passagem. “A telefonia daqui parece ter a idade do próprio município”, afirmou um viamonense, em carta endereçada aos jornais.
   Em Três Passos, ao final de 1976, o prefeito Egon Lautert lamentava: “Atualmente, para se conseguir uma ligação com a capital, só com hora marcada, e mesmo assim tem que esperar na fila. Mesmo uma ligação para Ijuí, através do DDD, não está fácil e nos últimos dois meses há uma série de problemas com a CRT local, o que torna difícil conseguir ligações”.
   Quem teve de aguardar meses para contar com o DDD foram os municípios de Rio Grande e Bagé. No dia 5 de novembro – em plena campanha política para as eleições daquele ano – o governador gaúcho ligou para o vice-presidente da República, o general Adalberto Pereira dos Santos e com o também general Golbery do Couto e Silva, riograndino, chefe da Casa Civil da Presidência. Acompanhado da esposa e atuante primeira-dama Ecléa Guazzelli levou aos dois municípios uma comitiva de autoridades arenistas que desfilaram em carro aberto. Em Bagé, porém, só conseguiu falar com o vice-presidente Adalberto na segunda ligação feita para Brasília: na primeira tentativa ele discou errado o prefixo e a chamada caiu na casa de uma surpresa dona-de-casa de Porto Alegre.
    Talvez por desconfiança ou pouca intimidade com o aparelho os porto-alegrenses surpreendiam pelo pouco uso que estavam fazendo dos três números de urgência – 190, 192 e 193 – colocados recentemente à disposição do público pela CRT. A média diária de chamadas resumia-se a apenas 22 para a Polícia, 12 para os bombeiros e quatro para o Pronto Socorro. No caso do corpo de bombeiros, a maioria das ligações se prendia a princípios de incêndio originados de explosões de botijões de gás, “o que nos dá a ideia do aumento de incidência desse tipo de sinistro em Porto Alegre”, afirmou o diretor de operações da companhia, isto alguns meses depois do acontecido na Renner.   


Velhos tempos: naqueles anos setenta as dificuldades de telefonia pareceriam piada para os jovens de hoje, mas afetavam a vida de todos os brasileiros. Os telefones eram poucos e caros, e até a inauguração de um simples orelhão (telefone público) virava notícia de jornal, com direito à presença de autoridades. 

   
INTER RUMO AO BI, PELÉ NO COSMOS, ÉDER JOFRE NO GIGANTINHO 
   Em abril, o campeonato gaúcho também seguia a sua linha. No domingo, 25, no Olímpico lotado por mais de 30 mil torcedores, o Grêmio treinado por Paulo Lumumba vencera o Atlético de Carazinho por 2 a 0, com gols de Zequinha e Iúra, partida esta que marcou a estreia do lateral Eurico na equipe tricolor.
   No estádio Centenário, em Caxias do Sul, o Internacional de Rubens Minelli derrotou o Caxias por 1 a 0, gol de Batista. Vestindo a camiseta grená do time caxiense - que também disputaria o campeonato brasileiro daquele ano - estava um tosco zagueiro chamado Luiz Felipe Scolari, ou simplesmente Luiz Felipe, de 27 anos, futuro técnico e campeão mundial de seleções 26 anos depois.  

O Gigantinho era palco dos maiores eventos: Éder Jofre, um dos maiores boxeadores de todos os tempos, lutou neste local e depois presentou o então secretário de Turismo Másrio Ramos com suas luvas.

   O Gauchão era liderado pelo Inter, que naquele ano seria octacampeão estadual e bicampeão brasileiro de futebol. Já, na copa Libertadores da América, tradicionalmente dominada por clubes castelhanos, o Cruzeiro de Belo Horizonte, vice-campeão brasileiro do ano anterior, seguia firme rumo ao título – havia, na estreia da competição, no Mineirão, derrotado o Inter em um primeiro e eletrizante jogo que acabou em 5 a 4 para os treinados por Zezé Moreira (Raul, Nelinho, Morais, Osíris e Vanderlei; Piazza, Zé Carlos e Eduardo (Isidoro), Jairzinho, Palhinha e Joãozinho). No outro jogo, no Beira-Rio, a raposa, oportunista e eficiente, fez 2 a 0 e sepultou de vez as esperanças continentais coloradas, vingando a derrota sofrida na final de 1975 do campeonato brasileiro, oficialmente chamado de Copa do Brasil. Mas era do vermelho e branco gaúcho o melhor jogador da América do ano que se passara – pela segunda vez consecutiva o zagueiro Elias Figueroa, 29 anos, recebeu a maioria dos votos de jornalistas de 17 países, em respeitado concurso promovido pelo jornal El Mundo, de Caracas. O ídolo chileno, o mais bem pago futebolista brasileiro em 75, teve o dobro da votação do segundo colocado, Norberto Alonso, do River Plate.
   Quem não precisava de votação alguma e também ganhava muito dinheiro era o “rei” Pelé, 35 anos, jogador que lotava estádios nas principais cidades norte-americanos, onde atuava pelo New York Cosmos e atraía multidões que antes nunca haviam assistido a um jogo de “soccer”. A transferência de Pelé para o futebol norte-americano pelo “multimilionário” contrato de 4,7 milhões de dólares era um dos fatos esportivos do ano em todo o mundo, assim como as lutas de Muhammad Ali, 34 anos, em final de carreira, os saltos e os recordes de João do Pulo e os esforços de Éder Jofre, 39 anos, de voltar a disputar títulos nos ringues de boxe – no final de fevereiro ele lutou no Gigantinho, em Porto Alegre, contra o ex-campeão italiano dos pesos penas, Enzo Farinelli.
   Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial, não ia bem na Fórmula 1 com o seu Copersúcar, mas um jovem talento das pistas entusiasmava os entusiastas do automobilismo – Nelson Piquet, 23 anos, liderava com folga o campeonato brasileiro de Fórmula Volkswagen 1.600, o Super-Vê e já era considerado o mais promissor piloto da atualidade.
    Sinal dos tempos: enquanto isso, nos gramados, o jogador Caçapava, de 21 anos, volante campeão brasileiro pelo Internacional, surpreendia seus companheiros ao chegar para o treino a bordo de um “incrementadíssimo fusca”, com pneus tala-larga, toca-fitas e até rádio FM, conforme descreveu o jornalista João Carlos Belmonte em sua coluna. Antes, ele preferia táxi, carona e ônibus, mas agora havia renovado o contrato com o clube e já podia se permitir a tais luxos. Aliás, se quisesse escolher outro modelo de carro, consultando os anúncios classificados da imprensa, Caçapava poderia também optar por um Maverick, um Opala, Corcel, Variant, Mustang, Galaxie, Dodge, Gordini ou Brasília, os carros da época.

CERCAMENTO DA REDENÇÃO, ASSALTOS A TAXISTAS
   Na Câmara Municipal e nas suas aparições na Televisão Gaúcha o comunicador e vereador Paulo Santana, 38 anos, da Aliança Renovadora Nacional, Arena, defendia o cercamento do Parque Farroupilha, a Redenção, palco de um crescente número de assaltos e crimes de morte.
   Escuro, ainda sem sistema de iluminação, com vegetação disseminada e espessa, o local era, à noite, um conhecido e antigo reduto de drogados, homossexuais, michês e marginais. O debate a respeito – incluindo muitas manifestações contrárias – incluía-se na ordem do dia.
A média de um homicídio por dia, somente em Porto Alegre, indicava uma cidade cuja violência, dali para diante, nunca deixaria de aumentar., mesmo com as prisões por "vadiagem", típicas do regime ditatorial.  Reprodução do Correio do Povo.



    De fato, Porto Alegre crescia e alarmava-se com a onda de violência dos últimos anos, com o grande número de pungas, assaltos, sequestros-relâmpagos e latrocínios que aconteciam na região metropolitana (sem, contudo, a crueldade dos tempos posteriores).  A sequência de ataques a motoristas de táxi, alguns deles assassinados, impôs medidas específicas por parte da Secretaria de Segurança Pública, tais como a abordagem e a revista nos passageiros.
   De primeiro de janeiro a 16 de março nada menos que 47 taxistas haviam sido assaltados na cidade, sendo que setenta por cento dos autores de tais delitos eram menores de idade. A proposta do vereador Revoredo Ribeiro (MDB) de se criar no município o serviço de tele-rádio-táxi (o usuário disca para uma central, que entra em contato com o motorista) foi vista como positiva nesse sentido, já que o taxista se obrigaria a comunicar onde estava e assim poderia manter contato constante com os operadores da empresa central.      
Despoliciada e violenta, a Porto Alegre de 76 precisava de mais dois mil brigadianos nas ruas. CP


    Soturno e mal policiado, o centro da cidade impunha medo ao cair da noite, quando se transformava em “terra de ninguém”. Em abril, o Correio do Povo mais uma vez abordou o tema em um dos seus editoriais: “Porto Alegre encontra-se praticamente despoliciada. A população percorre as ruas, amedrontada com a crescente onda de assaltos. Pessoas de idade são recomendadas a não saírem às ruas em qualquer horário, tanto tem sido os assaltos em que as vítimas preferidas são pessoas idosas (...). Os “pivetes” percorrem impunes o centro da cidade”.
    Já no final de agosto de 1975, no artigo “Resposta ao Crime”, o historiador e cronista Sérgio da Costa Franco escreveu: “Os roubos praticados a qualquer hora do dia ou da noite, as extorsões mediante sequestro, as violências de toda ordem, noticiadas ou não pela imprensa, geraram um clima de medo que jamais conhecêramos. Já existem pessoas que evitam circular nas ruas à noite. Outras se trancaram em casa, com requintes de cautela. Muitos voltaram ao uso das armas. E todos vivem mais ou menos obcecados pelo perigo dos assaltos”.

   Temor que se estendia por toda a cidade e boa parte do Estado. As ruas centrais, o campus da Universidade Federal (o da Agronomia ainda estava para ser construído), a elevada da Conceição e o aeroporto Salgado Filho, eram áreas especialmente visadas pelos infratores, quase sempre agindo em bandos e fugindo impunes. A rua Sarmento Leite, entre a praça D. Sebastião e a avenida Osvaldo Aranha, se transformara, depois do pôr do sol, em uma das zonas recordistas em ações praticadas por “pivetes” e “trombadinhas” – alguns deles marmanjos com vinte anos de idade. Pior, nos últimos meses de 1976, a cidade apresentaria uma média de um homicídio por dia.
   As lojas da avenida Salgado Filho igualmente sofriam agora com os arrombamentos noturnos. Segundo a Folha da Tarde, a Salgado transformara-se “em um dos campos de operações em que o arrogante e desenfreado marginalismo porto-alegrense atua com maior frequência e desenvoltura”.
   Quem sentiu tudo isso antecipadamente foi um grupo de argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos, peruanos e brasileiros de 18 estados que vieram a Porto Alegre participar de uma convenção do Rotary Club no último final de semana de novembro de 1975. Seis deles foram assaltados em pleno centro, alguns agredidos a coronhadas e o mais azarado levou um tiro de revólver. Um distraído casal do Espírito Santo perdeu em segundos nove mil cruzeiros na praça da Alfândega.
   Assustados com a violência da capital gaúcha, vários rotarianos que planejavam passar mais alguns dias na cidade arrumaram suas malas e voltaram às pressas aos seus locais de origem. Meses depois, o argentino David Numermann, de 52 anos, hóspede do hotel Savoy, sofreu um prejuízo ainda mais expressivo ao caminhar pela Borges de Medeiros, esquina com a rua Riachuelo: um grupo de pivetes arrancou a bolsa de suas mãos e disparou em meio à multidão, levando não só os documentos do turista como três mil cruzeiros (cerca de quatro salários mínimos), 10 mil dólares em notas de cem e mais alguns objetos pessoais.  
    Cansado de presenciar tantas ocorrências, um morador da região central da cidade descreveu ao Correio do Leitor o que via diariamente: (“Os Pivetes”): “Os pequenos marginais – e alguns bem desenvolvidos, mas “menores de idade” – desfilam acintosamente e atacam no mínimo uma ou duas vezes por dia. Inclusive são perfeitamente reconhecidos pelos comerciantes e moradores da zona. Segundo se sabe, de outubro do ano passado para cá (março) já foram registrados mais de 80 casos. Existem pessoas que já foram assaltadas até cinco vezes. Alguns dos marginais, às vezes, são apanhados e levados à Delegacia de Menores. Alguns dias após regressam triunfantes e, inclusive, debochando ao reencontrar suas vítimas”.

   Os comerciantes da estação rodoviária, sem exceção, também reclamavam dos constantes furtos e roubos praticados por menores – muitas deles estavam fechando as suas lojas. “É inacreditável a quantidade de menores delinquentes e adultos desocupados que frequentam a rodoviária, que já é quase um albergue”, reclamou o administrador dos condôminos. 
   Nem mesmo o jogador de futebol, o jovem craque Paulo Roberto Falcão, de 22 anos, escapava da criminalidade que se estendia por toda a região metropolitana: na madrugada de sábado, 3 de abril, na cidade de Canoas, ele foi assaltado e sequestrado por uma dupla de homens armados que o abandonou depois em Cachoeirinha. Falcão perdeu dinheiro, relógio, os documentos e também o seu automóvel Chevette.
   Outro caso envolvendo pessoas conhecidas aconteceu na rua Duque de Caxias: quando comprava jornal em uma banca, o deputado estadual Jairo Brum foi agredido e ferido por três homens e teve sua carteira arrancada, o mesmo acontecendo dias depois com um prefeito do interior, assaltado e espancado por assaltantes em frente ao Tribunal de Justiça. Uma pessoa que desceu do carro para tentar socorrê-lo quase foi massacrada pelos bandidos e ainda teve o desprazer de ter seu automóvel multado por um PM que surgiu logo depois.
    Ao ser roubado pela terceira vez no mesmo local – o final da linha Jardim Botânico – um leitor que se identificou apenas como “um assaltado” (Caso de Polícia, Correio do Leitor, janeiro de 1975), criticou amargamente a ausência de policiamento a pé na zona central. Dominado violentamente por dois homens desarmados que dele levaram dinheiro e pertences - eram três horas da tarde de um domingo - disse ter percorrido diversas ruas atrás de um policial, “mas a nenhum encontrei”.   
    Na Assembleia Legislativa os deputados de oposição pediam providências e acusavam as autoridades da segurança de falta de atitudes, enquanto os governistas ensaiavam uma constrangida defesa. “Hoje ninguém pode sair de casa, viajar ou ir até o colégio sem que seja assaltado”, bradou o emedebista Valdir Lopes, apenas mais uma das vozes que faziam eco ao fenômeno que assolava quase todo o país. No Rio de Janeiro, por sua vez, uma onda de sequestros desafiava e colocava em xeque a polícia fluminense, que ainda não conseguira esclarecer o rumoroso caso do menino Carlos Ramires, o Carlinhos, sequestrado em 1973. No estado gaúcho a cidade de Passo Fundo tomava medidas para reverter a incômoda fama de “Chicago dos pampas”.
    Convidado a palestrar na sede da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, sobre o crescimento generalizado da criminalidade urbana, o secretário da Segurança Pública, coronel José Paiva Portinho, preferiu lembrar que o problema era mundial e que o código civil brasileiro estava defasado, sem contar as causas sociais, como o crescente êxodo rural e a explosão populacional.
   Também o perfil dos criminosos estava mudando, com um grande aumento de assaltos praticados por indivíduos drogados, “o que não se verificava em anos anteriores”. Ele apontou ainda os baixos salários pagos aos policiais, a fartura de armas clandestinas e a “romantização” dos criminosos por parte dos meios de comunicação como fatores de estímulo ao crime. “E não podemos esquecer que existem hoje 1.400 presidiários foragidos no Estado”, lembrou o Secretário, reconhecendo a problemática das seguidas fugas e geral precariedade do sistema penitenciário gaúcho.
   Mesmo assim, “uma média de dois marginais por dia estão sendo autuados em flagrante de vadiagem e recolhidos ao presídio central”, informou, por sua vez, o delegado Mário Cláudio Schneider, titular da delegacia de Furtos e Roubos da capital. Segundo ele, tal tipo de flagrante era feito 30 dias depois de a pessoa ter assinado um documento em que alegava estar desempregada. “Passados os 30 dias, se o elemento não consegue ocupação, é flagrado e pode ser condenado até a um ano de cadeia”. Já o comandante geral da Brigada Militar (que empregava parte do seu efetivo nos serviços de trânsito), tenente-coronel Jesus Linares Guimarães, mesmo enaltecendo os esforços da sua corporação, apontava a necessidade de mais dois mil homens para se garantir um eficiente policiamento ostensivo das ruas da capital. O efetivo total da Brigada era então de 17 mil homens e muitas pessoas pediam a volta da guarda civil, mudança nas leis e até mesmo a aplicação da pena de morte para enfrentar o problema.
    Em outubro, durante oitavo Encontro Nacional de Delegados de Polícia que aconteceu em Belo Horizonte, o vice delegado geral de São Paulo (onde, segundo ele, somente na capital registrava-se uma média de 70 assaltos a cada dia), lembrou que o aumento da criminalidade tinha muito a ver com a proliferação e o uso das drogas. José de Souza Ferreira defendia uma solução radical para o problema: “Os traficantes deveriam ser fuzilados em praça pública, tal como ocorreu com os comunistas na Tailândia”.
    No início do ano de 1975 o Correio do Povo observava: “Porto Alegre é uma cidade sem policiamento ostensivo regular. Por isso, assaltantes e marginais operam livremente no centro e subúrbios, atacando pessoas e levando bens. Menores de várias idades ocupam pontos do centro, com preferência pela rua dos Andradas e os abrigos, enquanto prostitutas andam na praça Parobé, volta do Mercado e proximidades. Os camelôs fazem o que querem e esmoladores perturbam as filas de ônibus e táxis, aborrecendo e também roubando(...). “Abrir carteira de dinheiro nos abrigos pode dar assalto a qualquer momento. É perigoso transitar à noite por qualquer via pública do centro. Há vias públicas impraticáveis após as 20 horas. (...) Não há policiamento e nem retirada de menores de circulação, como tem sido dito pelas autoridades. Se eles são retirados, voltam pouco depois”.


A metade dos anos setenta viu crescer de forma alarmante a criminalidade na Capital: o centro era "terra de ninguém".


   Em maio de 1976, em editorial “Os donos do centro”, a Folha da Tarde observava uma novidade: os bandidos, os donos do centro, não contentes em roubar, também estavam movendo “permanente campanha de intimidação, ameaçando com violência e outras represálias todo aquele que se disponha ou tenha ousado denunciá-los”.
   Antes, em 4 de março, usando o espaço do Correio do Leitor, um capixaba de Vitória, que costumava vir seguidamente a Porto Alegre, surpreendeu-se com o que agora via. Depois de ter testemunhado seis roubos no centro e visto poucos policiais nas esquinas, Herço (sic) Bastos afirmou: “A partir daí passei a observar que a cidade está repleta de malandros, desocupados, gente mal encarada e que visam exatamente ao turista que, provavelmente, não mais voltará(...). Desta vez Porto Alegre me pareceu um Porto Triste, onde se anda em sobressalto, com as senhoras agarradas às bolsas, que muitas vezes são arrancadas ou cortadas com giletes. Como se pode falar em turismo neste País quando exatamente a grande Porto Alegre se comporta assim? É claro que isso está acontecendo em São Paulo, Rio e Salvador, mas Porto Alegre me assustou tanto que eu tive de andar com um canivete no bolso, por me achar tão inseguro”.

    Afirmando que, para ele, “a segurança do cidadão é a segurança da própria Pátria”, outro leitor, dias depois, na mesma coluna, perguntava às autoridades: “Queria perguntar por que os guerrilheiros foram destroçados em dois tempos e os bandidos parecem ser sempre mais triunfantes? Por que os bandoleiros entram e saem com tanta facilidade da cadeia? Por que os legisladores não atualizam essas leis ainda de Cr$ 5,00 de fiança e não partem para a defesa das populações ameaçadas?”

   Nesse “Porto Triste” a polícia fazia espalhafatosas operações de revista e detenção. O parque Moinhos de Vento – certamente uma das zonas mais problemáticas – era o teatro preferido de abordagens de traficantes e “toxicômanos”, às vezes com mais de uma centena de suspeitos conduzidos às delegacias nas traseiras das caminhonetas Veraneio, os camburões da época. O mesmo ocorria com o parque da Redenção, na zona central da cidade.  

PORTO ALEGRE, A SÉTIMA CIDADE BRASILEIRA, INCHAVA COM O ÊXODO DO INTERIOR  
   Segundo projeções do IBGE, esta Porto Alegre somava uma população de 1.043.964 habitantes em primeiro de julho de 1975, a sétima maior cidade brasileira e a quinta maior região metropolitana do País (1 milhão e 836 mil habitantes distribuídos por 14 municípios), perdendo apenas para São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Recife.
   A Grande Porto Alegre representava 27% de toda a população gaúcha. Com o acelerado êxodo rural em curso previa-se que, em 1990, 42% de todos os habitantes do Rio Grande do Sul estariam nas imediações da Capital, residindo em sua maioria nos chamados cinturões de pobreza, conforme expressão da época. Dados do Departamento Municipal de Habitação indicavam que existiam 110 mil pessoas morando em “malocas” no município em 1975 e que a cada ano chegavam mais mil famílias faveladas.
   A situação era ainda pior nas então cidades satélites da região metropolitana, muitas delas sem luz elétrica, sem recolhimento de lixo, sem abastecimento de água e sem calçamento das ruas.
   No início de abril de 1976 a Folha da Manhã publicou reportagem relatando as dificuldades enfrentadas pelos moradores das vilas de Viamão. Na Santa Cecília, onde residiam mais de 100 famílias, os moradores que tinham carro aproveitavam os finais de semana para buscar água em tonéis a fim de abastecer a casa nos outros dias, situação repetida em dezenas de vilas. Muitos contratavam os serviços de carroceiros, que cobravam por frete (buscavam em poços distantes) e já não davam conta de tantos pedidos.
    Apesar da péssima infraestrutura, da relativa crise econômica e do aumento de 35% no custo de vida registrado na Capital e que se estendia a outras cidades, vivia-se um regime de quase pleno emprego no Rio Grande e em quase todo o País. Segundo o setor de identificação da Delegacia Regional do Trabalho, durante o ano de 1975 foram expedidas 132.473 carteiras profissionais somente em Porto Alegre. Novos edifícios surgiam – dados da Secretaria Municipal de Obras e Viação informavam que 24 prédios foram construídos em 1975 na zona central, a campeã em índices de crescimento, seguida de Petrópolis, Menino Deus e bairro Rio Branco. 

Apesar da crise mundial, o Brasil cresceria 4% naquele ano de 1976. O Rio Grande havia crescido 10% em 1975.

   Antevendo o futuro e seus problemas, o prefeito Guilherme Socias Villela, de apenas 39 anos, em seu primeiro ano de governo, anunciava uma série de medidas para evitar que a capital se tornasse “inviável” nos próximos vinte anos, o que incluía levar adiante o projeto Renascença, financiado pelo Banco Nacional da Habitação, BNH, bem como humanizar e ordenar a zona central, revitalizando especialmente o trecho da Rua da Praia que seguia rumo ao Gasômetro, área deteriorada ao longo do tempo. Ele também propunha fechar parte do centro ao trânsito de veículos e proibir a instalação de agências bancárias na rua dos Andradas.
   Outro projeto seu, o Pró-Gente, destinava-se à infraestrutura das vilas de Porto Alegre, muitas delas sem água canalizada e iluminação pública. No centro, as chamadas malocas que existiam quase às margens do Guaíba, próximas à Ponta da Cadeia (onde estava a “velha usina abandonada” do Gasômetro, que alguns, contrários à sua comentada demolição, propunham recuperar para transformá-la em “usina de criatividade artística”), iam sendo removidas pela municipalidade, parte do projeto rodoviário da Primeira Perimetral. Também o que restara da Ilhota – a mais antiga favela da capital, “o fascínio de todos os prefeitos que ocuparam o Paço desde as cheias de 1941”, segundo o jornalista e político Alberto André – estava sendo pavimentado e seus moradores transferidos para os novos loteamentos da Vila Nova Restinga, bairro popular que, ao seu término, abrigaria “uma cidade de mais de 20 mil habitantes”. A rigor, a Restinga era considerada a grande experiência pública na busca de uma solução para a carência habitacional.

CP: os moradores da Ilhota, no centro, ganhavam agora um novo endereço: a Restinga.

    Na área dos transportes coletivos a Cidade Sorriso ganhara recentemente um importante reforço: as novas linhas transversais, ou T, da empresa Carris, interligando os quatro cantos da Capital, sem passar pelo centro. Também o serviço de lotações estava finalmente sendo oficializado e regulamentado. Villela espelhava-se naquilo que o prefeito e urbanista Jaime Lerner, 38 anos, fizera em Curitiba, modelo para novas experiências urbanas. Porém as obras viárias mais importantes naquele momento eram maiores e mais vistosas: o aterro do Guaíba na Praia de Belas, permitindo o surgimento da avenida Beira-Rio e o asfaltamento de trechos da avenida Bento Gonçalves (onde estava se construindo a rótula na esquina da Salvador França e Aparício Borges, parte do projeto da Terceira Perimetral) e da Cristiano Fisher.
   Também estavam sendo construídos o centro administrativo do Estado, para abrigar todas as secretarias de governo, e a nova ponte sobre o riacho Dilúvio, na rua Silva Só, a chamada segunda ponte da Ipiranga, desafogando o tráfego norte-sul.    

Cidade em transformação: viaduto Obirici, em obras, em 1975. CP



    Esta cidade em remodelação retratava uma das preocupações mundiais dos anos setenta, a chamada década da urbanização em todo o mundo, sobretudo no chamado terceiro: o gigantismo e a desumanização das metrópoles, a explosão demográfica, a violência, a criminalidade, as novas máquinas e a revolução tecnológica, o reinado do asfalto e do cimento, a poluição ambiental, visual e sonora, a necessidade de áreas verdes e de lazer, o excesso de automóveis, a solidão e as neuroses das pessoas isoladas em prédios impessoais e feios.

Uri Gheller: o israelense fazia um sucesso extraordinário naqueles anos 70.

   Porto Alegre sentia-se incluída no problema, sobretudo depois da administração de Telmo Thompson Flores e sua interminável sequência de grandes obras que alteraram radicalmente a paisagem urbana da capital – viadutos, elevadas, prédio públicos e, sobretudo, o alto muro de concreto ao longo do cais do porto, a “cortina da Mauá”, que separava o Guaíba do restante da cidade e cuja visão “depressiva” ainda chocava muitos porto-alegrenses. (Paradoxalmente, Thompson Flores também afirmara, quando assumiu a prefeitura, ser a humanização da cidade a meta central do seu governo).
   Na realidade a capital gaúcha olhava-se no espelho e, contraditoriamente, sob vários aspectos, se achava decadente, feia, suja, abandonada e até doente – mas queria urgentemente remoçar.
   Em junho de 1975, menos de dois meses depois da posse de Villela, o Correio do Povo observava (“Cidade em Fase Crítica”): “Porto Alegre vive um período crítico, embora engrandecida por obras viárias de vulto e que eram indispensáveis. A cidade está, na opinião da maioria do povo, feia, suja e mal adaptada aos reclamos de uma população crescente”.
    Dias depois o diário voltou a comentar o assunto (“Uma cidade em transformação”), enfatizando que vivia-se o momento inadiável de se virar o jogo, e nisto estavam depositadas as esperanças no novo prefeito: “Porto Alegre, sob certos aspectos, continua aguardando uma grande reformulação. A cidade permanece, principalmente na sua zona central, maltratada, descuidada, suja e com má iluminação. O serviço de limpeza pública não consegue vencer a falta de consciência por parte do povo na manutenção das ruas e avenidas limpas. (...) Muitos afirmam que Porto Alegre não possui mais condições de ser recuperada, que seu crescimento atingiu aquele nível considerado “sem retorno”.


A Capital vivia um momento histórico: passava a ser uma grande cidade, e "humanizar" era a palavra da moda.

    Boa parte da culpa pela sujeira das ruas e locais públicos poderia ser atribuída aos próprios porto-alegrenses, assegurava o CP no início de 75 (“A antiga cidade limpa”): “Nosso povo ainda parece julgar, apesar de alguns indícios de melhora, que as ruas, praças e avenidas não pertencem a ninguém e, como tal, podem ser usadas de qualquer forma. Jogar papéis, cigarros ou outros objetos continua um hábito comum nas ruas de Porto Alegre”.
    Fosse como fosse, no final do ano de 76, o jornal observaria sinais auspiciosos: “Está começando a se criar uma nova consciência comunitária em Porto Alegre, aliás há muito tempo esperada e necessária. Tornou-se frequente ouvir daqueles que não visitavam Porto Alegre nos últimos anos a surpresa diante da decadência da capital gaúcha, principalmente nas áreas do centro”.
    Por esse tempo a cidade discutia a si própria e a “morte da rua da Praia” frequentava as conversas dos cafés e bares. “Sociólogos, escritores, jornalistas, professores, enfim, toda uma gama de pessoas que se interessam pela vida desta cidade está pedindo que se faça algo para preservar a tradicional artéria urbana”, escreveu o mesmo Correio no final de março.
   Saudoso do footing, do chocolate com creme, do chopinho com fritas e do papo inesgotável junto ao meio-fio da calçada, o jornalista e cronista Antônio Carlos Ribeiro, em sua coluna dominical Ribalta das Ruas, duvidava da prometida “remodelação” da Rua da Praia e dos calçadões que surgiam com seus camelôs e hippies:
   “Esta Rua dos Andradas que tentam nos impingir, hoje, nada tem a ver com a Rua da Praia dos nossos flertes coloridos. Por isso alertai-vos distraídos e distanciados cosmonautas: a amada de todos não é mais deste mundo. Em seu lugar, como um bonde encalhado, este pobre arremedo, misto de travesti e de espantalho – o feio, chato e sujo calçadão sem alma e sem poesia”.
    Intitulando-se um urbano irreparável, nascido em Porto Alegre (“e nunca me arrependi”), o escritor, jornalista e redator publicitário Luís Fernando Veríssimo, 39 anos, via, sim, o surgimento de uma nova Porto Alegre em contraposição a outra, “e a nova Porto Alegre, se é completamente diferente da outra, não é necessariamente inferior”.  Para ele o fim da era antiga tinha relação com a desativação dos bondes (março de 1970): “Não sei quando começou a mudança, mas certamente o fim da última linha de bonde marcou o fim da era antiga. Os velhos bondes servem como símbolo do nosso passado recente. Eram lentos e pouco confortáveis mas tinha a mesma regularidade e constância dos nossos hábitos. Atrapalhavam o trânsito, mas naquele tempo o trânsito ainda não era a angústia maior do cidadão. E com suas linhas bem definidas – e o que pode ser mais definido do que um traçado de trilhos? – davam ao complexo urbano uma ideia de organização, de coisa acabado e estável. Uma ilusão, claro, pois se nenhuma cidade economicamente ativa do mundo pode se considerar acabada, uma cidade brasileira no início da era do automóvel no País, muito menos”.
   
MORRE-SE MAIS NO TRÂNSITO DO QUE DE MENINGITE, DIZ JAIR SOARES
    Apesar da crise econômica mundial, da inflação crescente, da alta do preço do petróleo e do decorrente encarecimento dos combustíveis, aquele final de março e início do mês de abril encerravam definitivamente um verão em que os porto-alegrenses debandaram rumo às praias de mar e em direção dos balneários de Santa Catarina, incluindo a quase selvagem Garopaba e a sua Praia do Rosa. Isto era facilitado pela moderna free-way, a autoestrada Porto Alegre-Osório, com seus quase 100 quilômetros de extensão e que ainda não completara três anos de vida.
   Tal como hoje, a contabilidade dos mortos e feridos comprovava o “massacre das estradas”, a “chacina do trânsito”, não obstante as estatísticas do ano de 1975, coletadas por todas as Ciretrans (Circunscrição Regional de Trânsito) do Estado, apontassem, em relação a 1974, uma queda de 23% no número de mortes (O ano anterior, 73, fora ainda pior: 295 pessoas foram vítimas fatais de acidentes de trânsito somente na capital).
   Mesmo assim, segundo o Detran, em 1975 haviam morrido 263 pessoas em Porto Alegre (com sua frota de cerca de 200 mil veículos), sendo o mês de junho o mais fatídico: 522 acidentes e 31 mortes. O sábado, em 75, foi o dia da semana que mais matou, com 20,3% dos acidentes fatais, enquanto nos quatro primeiros meses de 76 esta posição foi ocupada pela sexta-feira.



   A avenida Protásio Alves tornou-se a campeã durante os doze meses de 1975 – 716 ocorrências, com 13 vítimas fatais (em 1973 registrou-se o recorde: exatamente 30 pessoas morreram na mesma via). Em segundo lugar vinha a avenida Assis Brasil, com 711 acidentes e 28 mortes – o que a tornava a mais mortífera das grandes vias. Já a Bento Gonçalves registrou 20 vítimas fatais, a Ipiranga 14 mortes e a Farrapos outras seis.
   Na véspera do Natal de 1975 – com a corrida às compras, o coração da capital se transformou em uma caótica colmeia humana e motorizada – em menos de dez horas as autoridades do trânsito já haviam contabilizado 75 acidentes nas ruas do centro, com duas pessoas mortas e 120 veículos avariados.  “Quem puder evitar entrar no centro da cidade durante todo o dia estará comprando, no mínimo, mais alguns anos de vida”, advertiu o jornal Zero Hora.
   No início de novembro de 75, durante a Primeira Semana Médica do Hospital de Pronto Socorro, o diretor da instituição, Ubirajara Mota, apresentou estatísticas ainda mais alarmantes: conforme ele, uma média de 20 vítimas de acidentes de trânsito em Porto Alegre eram atendidas diariamente no HPS, e destas duas morriam. Também em novembro o secretário estadual da Saúde, Jair Soares, reportou-se ao ano anterior de 1974, quando, lembrou, “os acidentes de trânsito fizeram mais vítimas do que a meningite”. Por ocasião do Primeiro Encontro Sobre Trauma, acontecido na Associação Médica do Rio Grande do Sul, AMRIGS, Soares informou que essa era a quinta causa de mortes no Estado – em 74, de cada 13 pessoas que faleceram no território gaúcho, uma teve morte devido a isto.
    Já em dezembro de 1974 o Correio do Povo comprovava: “Mata-se no trânsito com uma impunidade que, além de ferir, está humilhando o povo”, para em seguida lamentar o que se via diariamente na capital dos gaúchos: “O trânsito de Porto Alegre é um espetáculo anárquico, triste e perigoso. Jogam-se os carros nas ruas e avenidas sem muita preocupação com os demais. O pedestre parece que se tornou simplesmente um obstáculo que deve ser afastado a qualquer preço, e os veículos usados para condução das massas, quando não se encontram em condições precárias, são dirigidos com um mínimo de cuidado e o máximo de velocidade possível”.

   Em outubro de 1976 o diretor do HPS informou que, dentre todas as ocorrências registradas na instituição, tais acidentes continuavam liderando as estatísticas, com uma média de 45 casos a cada dia, gerando uma enorme despesa para os cofres públicos.
   Conforme o centro de operações da Brigada Militar e a Delegacia de Acidentes, o dia mais acidentado do ano na Capital tinha sido o 3 de setembro, uma sexta-feira chuvosa, com mais de 60 ocorrências registradas, a maioria colisões e atropelamentos. Dos envolvidos, 15 pessoas foram acabar no Hospital de Pronto Socorro, algumas em estado grave.
   Por exemplo: na esquina da avenida Ipiranga com a Salvador França (que ainda não tinha ligação com a Protásio Alves) uma caminhonete Veraneio conduzida por um homem de 42 anos chocou-se contra um Gordini dirigido pelo cidadão chamado Jairo Celeste da Costa, que teve apenas ferimentos leves. Porém os outros dois ocupantes do carro – um rapaz e uma mulher de quarenta anos – sofreram lesões graves e precisaram de cirurgias. Na noite da mesma sexta-feira, na BR-116, em Guaíba, um ônibus que viajava de Porto Alegre para Butiá colidiu com uma jamanta de Santa Catarina e uma camionete Brasília de São Lourenço do Sul. Quatro passageiros do ônibus morreram e outros 30 saíram feridos.   
   Nas ruas e avenidas de Porto Alegre a situação não era menos perigosa no que tange ao transporte público: de março a agosto de 1976 ocorreram 2.622 acidentes com ônibus urbanos, o que dava uma média de 14 casos diários. O mau estado da frota e a estressante e excessiva jornada de trabalho dos motoristas (alguns dirigindo por 14 horas contínuas) explicavam grande parte do fenômeno.
    O Estado detinha outro recorde negativo – segundo o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, DNER, a estrada federal com maior número de acidentes em todo o Brasil era a BR-116, trecho entre Porto Alegre e Novo Hamburgo. A rodovia – a segunda em volume de tráfego, superada apenas pela Via Dutra – tinha registrado a metade dos 2.436 acidentes contabilizados entre janeiro e maio de 1976, com 83 mortos. A maioria dos acidentes de trânsito derivava do excesso de velocidade e da imprudência dos motoristas.
    Trânsito este que, afora rodovias e vias urbanas, incluía ainda inseguras ferrovias e antiquados trens de passageiros e de cargas, os “Minuanos” (e também os recentes e mais modernos trens húngaros), como o que seguiu de Quaraí para Alegrete na tarde de 19 de abril, segunda-feira: ao dobrar uma curva, perto da estação Severino Ribeiro, a 60 km do centro de Alegrete, a composição descarrilou, matando cinco passageiros e ferindo outros 46 dos mais de cem que estavam a bordo.
   Informações preliminares indicavam que os pinos de segurança dos vagões haviam se desprendido, muito embora diversas pessoas denunciassem a velocidade excessiva desenvolvida pelo maquinista. A composição, de sete vagões, fazia tal viagem três vezes por semana transportando sobretudo sacoleiros que seguiam para a cidade uruguaia de Artigas. 
   Oito meses depois desse fato, quase ao término do ano e na mesma região, outro acidente envolvendo um trem deixou quatro passageiros mortos e dezenas de feridos, um dos quais perdeu um braço e uma perna. Na terça-feira, 28 de dezembro, o expresso misto de carga e passageiros que seguia de Porto Alegre para Uruguaiana chocou-se contra um caminhão em um cruzamento, a apenas seis quilômetros da cidade de Alegrete. Segundo testemunhas, por volta das 12h45min, o caminhão, carregado com 100 borregos (carneiros de até um ano de idade), cortou a frente da composição da Rede Ferroviária Federal.
   Na quarta-feira, 14 de abril, uma ferrovia ainda em construção, a 491, no distrito de Dois Lajeados, município de Guaporé, a cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre, local de paisagens belíssimas, cobrou em existências humanas o preço do desenvolvimentismo a todo custo dos anos setenta: cinco operários perderam a vida ao despencarem de um andaime, a quase 80 metros do solo.  Dois outros que trabalhavam no mesmo viaduto (sob a responsabilidade do Primeiro Batalhão Ferroviário do Exército), conseguiram se segurar milagrosamente em um dos cabos da ponte.
   Segundo os policiais civis de Guaporé, já chegavam a 13 as mortes naquele trecho da chamada Ferrovia da Produção - apenas uma gota em um oceano de um acidente do trabalho que ocorriam a cada três minutos em território gaúcho, nos cálculos do Ministério do Trabalho - Caxias do Sul liderava o ranking estadual, com uma média de 50 novos registros diários.

O GOVERNO TABELA O PREÇO DO CHOPE, OS VERANISTAS RECLAMAM DOS HIPPIES
   Em Tramandaí, já então a capital das praias, a preocupação era menos trágica: os veranistas – boa parcela vinda de pequenos municípios interioranos - reclamavam da confusão urbana, dos esgotos a céu aberto, dos preços escorchantes dos aluguéis e das bebidas (a SUNAB, Superintendência Nacional de Abastecimento, resolveu intervir e tabelar a tulipa de chope em 4,00 reais), da má educação dos jovens, da proliferação de mochileiros, dos hippies nas calçadas e do atordoante barulho que não deixava ninguém dormir.
Rainha das Piscinas: o badalado concurso trazia celebridades a Porto Alegre, como Sandra Bréa, no auge da sua carreira e da sua beleza. Ao lado, Figueroa, que seria bicampeão brasileiro pelo Inter naquele ano.



   Também pediam enérgicas providências contra aqueles que não cumpriam a lei do silêncio e contra os “magrinhos” (jovem moderno e descolado) que faziam “cavalo-de-pau”, rachas e exibicionismos automobilísticos nas ruas e avenidas do balneário. Já os corretores de imóveis afirmavam que aquele verão deixava muito a desejar em relação ao do ano anterior, quando havia mais fartura de dinheiro.
   “Está sobrando casa em Tramandaí”, informou um corretor, lamentando a proliferação das barracas. Com a crise do petróleo, a carestia e os preços altos muitos visitantes “farofeiros” de final de semana preferiam acampar em campings ou mesmo em terrenos baldios.
    Mas aquele verão de 76 era também o quente verão dos afogamentos causados pela imprudência. Longe da vigilância dos salva-vidas da Operação Golfinho, os gaúchos do interior que não haviam tomado o rumo do litoral morriam às dezenas.
   Levantamento junto às sucursais da Companhia Jornalística Caldas Júnior, indicavam que do final do mês de dezembro até o final da primeira quinzena de janeiro 54 pessoas morreram afogadas nas águas dos rios, açudes e arroios do Rio Grande do Sul, índice muito superior ao de igual período do ano anterior. Em 1975, até o final de fevereiro, 96 pessoas tinham perecido desta forma em 32 municípios do Estado, número que certamente seria agora superado – para se ter uma ideia, em um único final de semana nove pessoas perderam a vida durante pescarias ou piqueniques dominicais. Santa Maria registrava 14 casos, a maioria na barragem do rio Vacacaí e no Passo do Verde, “definitivamente marcados como dois dos lugares mais perigosos do Estado”.     
    Menos perigosas, mas poluídas em quase toda a sua extensão, as praias do Guaíba continuavam a atrair nos dias quentes e nos finais de semana o mesmo público de sempre: famílias de baixa renda, muitas vindas da região metropolitana, as quais – com seus churrascos ao ar livre e suas cervejas em caixas de isopor - lotavam os balneários de Ipanema, Guarujá, Serraria e Pedra Redonda. Mesmo desaconselhando a prática do banho, o secretário da Saúde, Jair Soares, garantiu que, em dois anos, não havia sido encontrado nenhum vírus perigoso na água, não restando alternativa às autoridades senão colocar placas de advertência e sinalização.

 CALÇAS BOCA-DE-SINO, HERMES AQUINO, ALMÔNDEGAS, CHEVETTE, HI-FI                                                                                           
    Em termos de comportamento vivia-se uma época de gosto estético também perigoso e discutível, especialmente na área da moda, com as exóticas calças boca-de-sino e de veludo, as estranhas pantalonas, as jaquetas “apache”, os cabelos black-power.

Mister Lee: quem não lembra dele?

   Época pré-diluviana dos aparelhos três-em-um (toca-discos, toca-fitas e rádio), dos hi-fi Telefunken estereofônicos, das fitas cassete, do som Gradiente, da Casa Victor, do Transasom, do surgimento das FMs, da loteria esportiva, dos carros envenenados com pneus tala-larga, do Maverick, do Opala, do Corcel, do Chevette e do Passat, do Belchior cantando Apenas um Rapaz Latino Americano, do Morris Albert e seu “Feelings”, da Elis com o show Falso Brilhante, dos Doces Bárbaros, do Gilberto Gil preso em Florianópolis, dos jogos de xadrez do Mequinho, das praias do Rosa e do Tigre, das máquinas de escrever elétricas IBM, da Florinda Bolkan, do Edson Mandarino, da Grapette, dos ônibus sem banheiro, do Mobral, das aulas de Moral de Cívica, do OSPB, da “denúncia vazia”, das revistas Homem e Placar, da calculadora Sharp, dos brinquedos Atma, da Kodak Instamatic, da Minolta e da Polaroid, da TV Colorado “totalmente transistorizada”, do cooper na praia, do tênis do Thomas Koch, da Copa Arizona, da camisa U.S.Top, do Hermes Aquino cantando Nuvem Passageira, de Jane e Erondi e seu “Não Se Vá”, do Mister Lee, do Concorde, do escândalo da Lockheed, da “grande sacada”, da camisa Tergal, dos eslaques, das discotecas e do grupo Abba, dos Carpenters, do Elton John, do Correspondente Renner, do Dinosul, dos animais maltratados e das brigas animais da Dona Palmira, do Gérson fazendo propaganda dos cigarros Vila Rica e “levando vantagem em tudo”, das previsões astrológicas de Zora Yonara e Omar Cardoso, do Wando cantando “Moça”, da Rádio Itaí, dos “contratos de risco”, dos petrodólares, do depósito compulsório, dos chás de cogumelo e dos mochileiros de beira de estrada, da escalada da violência, do Idi Amim Dada em Uganda, do resgate de Entebbe, do mistério do Triângulo das Bermudas, dos ataques das abelhas africanas, da OPEP, do Copersucar do Emerson Fittipaldi, do Pace, da Varig-Cruzeiro “voando juntas”, do Uri Geller entortando talheres na tevê, do Globo de Ouro, das reuniões-dançantes nas garagens das casas. Ainda se falava “bicho”, “broto”, “cocotinha”, “magrinho”, “transado”, “motoca”, “cabeça feita” e “cuca legal”.
Magrinhos, cocotas, bixo... As gírias dos anos setenta.



   O Pervitin, uma anfetamina euforizante trazida da Argentina era, fazia tempo, a droga da “onda”, e a maconha, como sempre, a mais usual.  Porto Alegre, porém, a rigor, tinha apenas um conhecido traficante a frequentar as páginas dos jornais – Eduardo Santos Correia, o Anão do Morro da Cruz, na zona leste da cidade, não obstante a vila Cruzeiro do Sul despontasse como o local mais temido da capital.
    Uma Porto Alegre onde, segundo estatísticas cartoriais, de cada cinco casamentos pelo menos um acabava em desquite. O divórcio ainda não existia legalmente no Brasil (o senador Nelson Carneiro trabalhava ativamente para isso), embora as mulheres estivessem cada vez mais presentes em tudo e já pudessem trabalhar em serviços antes inimagináveis, executando, por exemplo, serviços de varrição de rua e limpeza de orelhões, algo a merecer “pitorescas” reportagens da imprensa.
    Mulheres que, naquele ano de 1976, ainda estavam legalmente impedidas de trabalhos noturnos: segundo antigas determinações da Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, no período das 22 às cinco horas da manhã o trabalho feminino estava proibido em todo o Brasil, discrepância esta que levou, em janeiro, um grupo de industriais mineiros a entregar um memorando ao ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, apelando pela revisão definitiva da ultrapassada lei federal. Eles alegavam que faltava mão de obra masculina nas fábricas de Minas, o que deveria se agravar ainda mais com a entrada em funcionamento da montadora de veículos Fiat, no final do ano.  Em resposta, técnicos do ministério adiantaram que “está muito perto de ser alcançada a permissão para o trabalho noturno feminino”.
    Por convenção da ONU 1975 foi declarado o Ano Internacional da Mulher e o “belo sexo” – em total evidência na mídia (termo este ainda pouco usual) - parecia mesmo ansioso para deixar de lado os históricos grilhões da discriminação e da dependência masculina. Estatísticas da Fundação Gaúcha do Trabalho revelaram que, das 30.020 pessoas treinadas em cursos profissionalizantes no Estado em 75 nada menos do que 19.935 eram mulheres. O secretário do Trabalho e Ação Social, Carlos Alberto Chiarelli, comentou a respeito: “A mulher gaúcha está tomando plena consciência das suas potencialidades”.

A Folha da Manhã noticia a abertura de comportamento: mulher em serviço que era exclusivo dos homens.

   De certa maneira isto pode ser retratado no dia 11 de agosto, dia do Advogado. Naquela quarta-feira, em cerimônia no Palácio Piratini, foram nomeadas as quatro primeiras promotoras de justiça concursadas do Rio Grande do Sul: Ligia da Costa Barros, de 25 anos, solteira; Iolanda de Oliveira Samuel, 30 anos, solteira; Eunice Teresinha Ribeiro, 27 anos; e Marly Raphael Mallmann, casada com um professor de Matemática. Antes delas apenas uma mulher, não concursada, havia desempenhado tal função no Ministério Público gaúcho.
    Com longa história pregressa (acentuada e maturada no início dos anos setenta), o processo de emancipação da mulher, bandeira do movimento feminista iniciado principalmente nos Estados Unidos, o “Women’s Lib”, era um fenômeno mundial irreversível. No dia 30 de dezembro de 1975, por exemplo, os jornais ingleses noticiavam que “começou hoje uma nova era em matéria de direitos da mulher”, quando entraram em vigor leis que proibiam a discriminação sexual no trabalho, no lar e nos empregos”. Chamadas de Ata de Discriminação Sexual e Ata de Pagamento Igualitário, foram considerados os principais avanços em questões de direitos da mulher desde o estabelecimento do voto feminino no país, em 1918.  Entre outras coisas, penalizavam as ofertas de empregos somente para homens, os bares exclusivamente masculinos e tornavam ilegal a exigência de um fiador masculino na concessão do crediário para as mulheres. A partir dali elas poderiam exigir o mesmo salário que os homens e todos os direitos que estes gozavam – a lei criava também uma comissão para vigiar a aplicação das novas medidas. 
    Nos Estados Unidos os direitos iguais já não despertavam tanta polêmica e resistência e, aos poucos, muitos dos Estados que não o ratificaram anteriormente estavam aprovando emendas locais com o objetivo de reduzir a discriminação sexual. Por estas e outras a enérgica ativista Betty Friedan, de 54 anos, considerou um insulto o que aconteceu na Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher promovido pela Organização das Nações Unidas, ONU, em junho de 1975, na cidade do México: “Designar um homem (o ministro da Justiça do México) como presidente da Primeira Conferência Internacional da Mulher é realmente um insulto às mulheres”, atacou, criticando ainda a manipulação das mulheres ali presentes pelos seus governos e grandes empresas: “As delegações aqui estão representando os seus governos, e não as mulheres”.
    Doze anos antes, em 1963, Betty – até então uma simples esposa e dona-de-casa - publicou seu livro A Mística Feminina, um best-seller, quase a bíblia do feminismo moderno e que a projetou mundialmente. Naquele mesmo ano falecia no Rio Grande do Norte a primeira mulher eleita para um cargo público na América Latina – ao menos assim teria dito o New York Times. Em 1927, quando as mulheres ainda nem votavam, a potiguar Alzira Soriano, de 32 anos, foi eleita prefeita do minúsculo município de Lajes, a 125 km da Capital.
    Curiosidade: de 27 para 72, e trocando a direção de um município para o volante de um ônibus de passageiros, chega-se ao ano de 1972. Passados quase meio século da posse da primeira prefeita, a jovem Maria de Lourdes Conceição, 27 anos, se tornaria a primeira mulher a dirigir profissionalmente um ônibus de passageiros no Brasil. No dia 13 de março, segunda-feira, em veículo da Companhia Municipal de Transportes Coletivos, CMTC, para espanto de muitos passageiros, ela fez a viagem da linha Brooklin-Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo. Casada, dois filhos, ex-caminhoneira, saiu do trabalho diretamente para dar entrevistas às televisões, que destacaram “mais esta importante conquista feminina”.


    Ela teve mais sorte do que muitas moças que haviam se formado em química pela Escola Técnica Federal da Bahia, as quais não estavam conseguindo emprego nas empresas do Polo de Camaçari e muito menos eram aceitas pela Petrobrás sob a alegação de “incompatibilidade biológica feminina com o tipo de trabalho exigido”. Embora oficialmente negasse a discriminação, o diretor da bolsa de trabalho da Universidade Federal da Bahia, Raimundo Caires, reconhecia haver “uma dificuldade maior na colocação”. Conforme explicou, a função na Petrobrás exigia quinze dias seguidos de permanência em uma plataforma marítima e “seria muito desagradável para uma moça ter de trabalhar esse tempo todo sozinha, cercada por mais de 30 homens, o que poderia lhe trazer transtornos”.   
    São Paulo, novembro de 1975: o detetive Kojak, o careca charmoso, espécie de “machão mais sensível” - vivido na telinha pelo ator Telly Savalas, 51 anos – declarou aos jornalistas, que lhe perguntaram a respeito dos direitos da mulher: “Eu dou às mulheres cem por cento do que elas querem e não admito a igualdade de direitos que elas desejam”.
   Acompanhados de belas dançarinas, Savalas chegara ao Brasil para uma série de shows caça-níqueis que se aproveitavam do continuado sucesso do seriado na televisão brasileira. “As mulheres, com seus movimentos feministas, não sabem o que querem. No fim o que desejam mesmo é o amor do amor, seja branco, negro, careca ou cabeludo”.
    Kojak não estava só: particularmente incomodadas pelas perguntas atinentes ao tema formuladas pelos jornalistas, até mesmo diversas participantes do concurso Miss Universo 1975, que acontecia em El Salvador, demonstravam sua irritação. A representante da Colômbia chegou a dizer que “algumas militantes do movimento de libertação feminina são libertinas”. Mais radical, a Miss Inglaterra atacou: “Não creio em libertação feminina e as mulheres que acreditam nesse movimento não devem ver televisão, nem ler notícias a respeito ou intrometer-se neste concurso”.  
    Distante das misses, na área cultural brasileira, o dia 14 de outubro de 1976 – como disseram os jornais - entrava na História: por votação unânime e que durou apenas 13 minutos, as mulheres já poderiam ser admitidas na Academia Brasileira de Letras, quebrando um tabu de quase oitenta anos. O presidente da Casa, Austregésilo de Athayde, sentenciou, solene: “Este é um momento histórico, e temos consciência disso”. Na verdade, a ABL apenas reproduzia o que aconteceram na academia francesa de letras: no ano anterior, pela primeira vez em toda sua história, a instituição indicava uma mulher para integrar os seus quadros – a escritora, cineasta, historiadora e militante feminista Louise Weiss, de 82 anos.  Desta vez ela – que havia sido derrotada em outra ocasião – venceu a eleição e assumiu a vaga.  
   
 MAL DE CHAGAS, TUBERCULOSE, DESIDRATAÇÃO, MENINGITE, CÓLERA...
   Na área da saúde pública brasileira, no final de 1975, os temores da chegada do vibrião do cólera, já presente em outros países, e também da inusitada gripe suína, deixaram em alerta as autoridades – no caso desta última pouco havia o que fazer devido à impossibilidade de se encomendar vacinas a tempo aos laboratórios norte-americanos e europeus. Felizmente o pior não se confirmou.

CP

   No Rio Grande do Sul o verão costumava ser a época da proliferação dos mosquitos (em Gramado, Canela e Nova Petrópolis haviam se transformado em uma verdadeira praga, afetando até mesmo o turismo) e quando centenas de crianças pequenas morriam de desidratação e de doenças contagiosas e infecciosas. Mais para o sul do Estado, a doença de Chagas era um sério problema de saúde pública: no município de Canguçu quase a metade da população rural possuía a doença inoculada pelo barbeiro. Em Santana da Boa Vista, no sudeste gaúcho, do total de pessoas examinadas por uma equipe de saúde de Pelotas, 44% se revelaram portadoras do mal. Também Piratini, Pedro Osório, Lavras do Sul e Herval sofriam do mesmo problema.
   De longe, porém, o caso sazonal mais preocupante de saúde pública no Estado (e no Brasil) era a desidratação infantil, a “fábrica de anjos” que, em 90% dos casos, matava filhos recém-nascidos de famílias de baixa renda.  Apesar das campanhas governamentais a situação não melhorara nos últimos anos.
   Pudera: os esvaziados e caniculares meses de verão em Porto Alegre repetiam o velho drama habitual: hospitais superlotados e falta de leitos para internação. Nos primeiros 17 dias de janeiro, segundo dados da secretaria estadual da Saúde, foram registradas mais de oito mil hospitalizações por causa da desidratação, das quais 1.090 em Porto Alegre – com 16 óbitos confirmados. Em Novo Hamburgo dezenove crianças morreram desta causa de dezembro de 1975 a janeiro de 1976, enquanto outras 238 foram internadas nos hospitais da cidade. Tais números representavam um acréscimo em relação à igual período dos anos passados – em 75 foram 13 mortes. Já em Bagé quatro crianças foram a óbito de primeiro a 31 de janeiro de 1976 e outras cem precisaram de urgente hospitalização.
   Doença altamente contagiosa, a paralisia infantil, ou poliomielite, terror de muitas famílias, também recrudescera de maneira surpreendente na zona sul do Estado. A terceira Delegacia Regional da Saúde, com sede em Pelotas, comunicou a ocorrência de sete novos casos em apenas 45 dias, número bem superior ao mesmo período de 1975 - cinco destes aconteceram na cidade de Rio Grande. Porém, agora, quase no início de maio, com a proximidade do inverno e do frio, surgira outro temor: a meningite meningocócica, cuja campanha de vacinação aconteceria em julho.
   Como fazia mensalmente, no início de maio a secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul confirmou 82 casos, dos quais 25 na Grande Porto Alegre, uma queda geral em relação ao ano anterior, quando 319 casos foram detectados no Estado, de janeiro a maio.
   Doença muitas vezes fatal, a meningite tornou-se uma séria epidemia no Brasil nos anos de 72 a 74, sobretudo em São Paulo, época em que o regime militar tentou reduzir a sua importância e censurar notícias a respeito. No Rio Grande do Sul, de primeiro de janeiro a 3 de outubro de 1974 foram registrados 1121 casos que resultaram em 90 mortes. No ano de 1975, finalmente, o governo federal adotou providências para debelar esse mal graças à vacinação sistemática.
   Por aqueles dias, a fim de tranquilizar a população a respeito de tantos perigos, o coordenador da Unidade de Assistência Médica Integrada da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, o médico sanitarista e escritor Moacyr Scliar (“o mais lido entre os jovens valores rio-grandenses”), de 39 anos, veio a público e garantiu não haver nenhuma epidemia de catapora ou de gripe, mas alertou a população para que se precavesse contra as doenças do inverno, entre elas o sarampo e a rubéola. “Com a chegada do inverno, a doença que mais se acentua é a difteria, ou crupe, que ataca a garganta e a laringe e pode matar a pessoa por asfixia”, informou Scliar.

Primeiro ar condicionado para a maternidade da Santa Casa, em 1975: a modernidade ganhou até espaço na imprensa. CP

    Outra doença grave que havia voltado com toda a força, a tuberculose, atingia sete mil gaúchos a cada ano e atestava o quanto o Estado ainda estava longe de atingir bons indicadores na área da saúde, muito embora o País como um todo não apresentasse um panorama mais animador: segundo dados do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), 1% da população brasileira, no ano de 1975, estava internada ou segregada, vítima de tal bacilo, com 50 mil novos casos a cada ano.  Na Bahia, no mesmo período, o índice de mortalidade devido a este problema era alarmante – 47 óbitos em cada 100 mil habitantes, superior ao registrado nos Estados Unidos na década de 30, quando não havia medicamentos eficazes e muito menos a vacina BCG. No Rio Grande do Sul a tuberculose era a terceira causa de mortes entre a população.

OS VAMPIROS AGEM NO INTERIOR GAÚCHO E ROUBAM O SANGUE DAS CRIANÇAS
    Considerado algo fantasioso, espécie de lenda rural contada pelos pais para impressionar e disciplinar seus filhos pequenos, o roubo de sangue por sinistras quadrilhas de “vampiros” realmente acontecia naqueles anos setenta – e, possivelmente, bem antes disso.


Ao contrário do que muitos ainda pensam, o tráfico de sangue humano era uma realidade e aterrorizava as famílias.


   Explicava-se: até então mesmo a comercialização regular de sangue, a “doação mediante pagamento”, poderia ser feita livremente, uma vez que não havia regulamentação oficial a respeito.  Tal comércio só encontraria proibição a partir do surgimento dos primeiros casos de Aids no início da década de oitenta, embora já se soubesse ser o procedimento responsável pela propagação de muitas doenças, entre as quais a de Chagas.
   O número insuficiente de doadores e a necessidade crescente de mais estoques para salvar vidas que necessitavam de transfusão imediata (o caso dos acidentes de automóvel, por exemplo) serviam como justificativas para a leniência oficial. Entrementes, as autoridades da saúde pública promoviam chamativas campanhas de conscientização e de apelo em favor da doação desinteressada, com destaque para a Semana do Doador Voluntário de Sangue. Mas a seiva humana valia um bom dinheiro e grande parte dela, captada de forma clandestina ou criminosa, saía do Brasil e da América Latina, rumo aos ricos países da Europa e América do Norte. 
   Pessoas doentes, drogadas ou alcoolizadas, desempregados em dificuldades financeiras, sobretudo nas grandes cidades, vendiam voluntariamente seu sangue para conseguir algum dinheiro. No verão de 1976, segundo a imprensa carioca, comprava-se meio litro deste por 15 cruzeiros, repassado por 125 a hospitais e laboratórios, chegando a 700 para os pacientes mais necessitados. Não é difícil se imaginar o valor obtido em países europeus, a ponta final.
    Em abril de 1976, o Correio do Povo noticiava em sua página policial um caso emblemático de tal situação e que envolvia um casal de jovens vindos do interior, os quais sobreviviam em Porto Alegre graças a tal expediente.     

    “Vendia sangue para comprar alimentos
    “Jorge Silva Lima, de 19 anos, e Marlene Silva da Silva, de 15 anos, que o acompanhou quando ele deixou Bagé há uma semana, foram detidos e encaminhados à décima terceira delegacia de polícia. Jorge é acusado de raptar a menor. Na distrital, ele disse que não tinha onde dormir e para poder comprar alimentos para a companheira vendia sangue a laboratórios da capital. A polícia constatou que Jorge é tuberculoso e vai providenciar sua hospitalização. Quanto a Marlene, ela será encaminhada para Bagé, onde residem seus pais”.
 
   Em junho de 1975 o diretor do banco de sangue do Hospital das Clínicas de São Paulo afirmou: “Milhões de litros de sangue e plasma são vendidos mensalmente, através de uma rede de tráfico que se inicia na América Latina e se destina a países europeus, com lucros fabulosos para muita gente, principalmente para os intermediários que mantêm corretores em Miami”.
   Semanas antes, com grande repercussão, a maior autoridade mundial no assunto dentro da Organização Mundial da Saúde, Hendrik Krijnen, havia apontado o Brasil como um dos principais fornecedores de sangue no mercado negro mundial, conquanto o Ministério da Saúde brasileiro dissesse “não ter conhecimento de tal atividade ilícita” – na verdade algo que todos, de sul a norte, sabiam existir.

    Portanto, não era de se estranhar que também no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina o periódico surgimento dos mercadores de sangue se transformasse em notícias na imprensa, muito embora, ao que tudo indica, estranhamente, nenhum de tais vampiros humanos tenha sido apanhado ou preso pela polícia.    
    No verão de 1976, por exemplo, os jornais noticiaram vários desses episódios no interior gaúcho e catarinense, todos geralmente envolvendo um homem e uma mulher, os quais atraíam as crianças com a oferta de doces e presentes. Seduzidas, elas eram agarradas à força, narcotizadas e depois abandonadas à beira da estrada.
    No dia 21 de março, na região de Blumenau, em Santa Catarina, a polícia foi alertada sobre a ação de dois homens e uma mulher que vinham atacando crianças de oito a dez anos de idade no Salto Weissbach, zona colonial do município. Segundo relatos, a mulher percorria a região a bordo de um automóvel Fusca, aliciando os pequenos com a oferta de presentes e os conduzindo em seguida a uma Kombi onde estava montado um verdadeiro ambulatório. A quadrilha preferia agir pela manhã, quando os alunos se dirigiam ao colégio. Os policiais acreditavam que o sangue fosse vendido a hospitais da própria região, habituais compradores do produto.
    Provavelmente fosse a mesma quadrilha que agia no Rio Grande do Sul e que também seria notícia nas semanas seguintes. Em maio, em Cachoeira do Sul, em uma localidade interiorana emblematicamente chamada de Passo da Seringa, um Volkswagen vermelho-claro em cujas portas se liam os dizeres “Banco de Sangue para Crianças”, espalhava o medo entre a população. O casal – ele descrito como de barba longa – abordava as crianças e negociava doces por sangue. Diante das negativas, o homem as agarrava e procurava espetar-lhes “um aparelho parecido com uma pistola” no braço. A menina Fabiane de Fátima Santos, de 11 anos, conseguiu escapar gritando várias vezes e chamando a atenção de outras pessoas. Os traficantes fugiram de carro, em disparada, mas a menina pode ver várias caixas de isopor na parte traseira do carro. A maioria das vítimas, filhas de famílias pobres, residia na beira do rio Jacuí, a 11 quilômetros da cidade.

O CHEIRO DE OVO PODRE DA BORREGAARD E A INÉRCIA DAS AUTORIDADES
    Menos perigoso que os mercadores de sangue, mas quase tão asfixiante quanto a crupe, era o cheiro de ovo podre da Riocell, ex Borregaard, uma fábrica de papel-celulose, localizada na cidade de Guaíba, no outro lado do rio que ninguém ainda chamava de lago.
    Não é preciso grande esforço de memória para lembrar a Indústria de Celulose Borregaard e o que ela representou para a Capital gaúcha nos anos setenta: “Sem o pressentir, solidificou um dos mais combativos movimentos de resistência ecológica que o Brasil já conheceu e inaugurou um inédito processo de revisão de métodos produtivos”, sintetizou, anos mais tarde, a jornalista Lilian Dreyer, autora de uma biografia do ambientalista José Lutzenberger.


    Quando a empresa inaugurou solenemente sua fábrica no dia 16 de março de 1972 – uma quinta-feira precedida de intensas chuvas em Porto Alegre – muitos já sabiam que aquela grande e poderosa indústria, uma das maiores do mundo no seu ramo, vinda da fria e longínqua terra dos vikings, não chegara aos pagos sulinos exatamente para gerar progresso, empregos e impostos, como propagavam os out-doors e grandes anúncios estampados na imprensa gaúcha. Operando “experimentalmente” havia mais de um mês, seu mau cheiro já era conhecido da população da região metropolitana, conquanto outras indústrias de celulose instaladas em Guaíba também contribuíssem para a poluição do estuário.
   A inauguração oficial da maior fábrica de celulose da América do Sul, “totalmente voltada à exportação”, foi o grande acontecimento empresarial daquele ano no Estado, reunindo todo o núcleo do poder civil, eclesiástico e militar, a nata do empresariado, quatro embaixadores escandinavos e mais dois ministros de primeiro escalão vindos diretamente de Brasília.
   No dia anterior o modesto aeroporto Salgado Filho viu aterrissar pela primeira vez em suas pistas um avião DC-8 da SAS (Scandinavian Airlines System), trazendo personalidades estrangeiras para as festividades de inauguração do complexo industrial de Guaíba – dentre elas o presidente mundial da empresa, Rein Henriksen. Por sua vez, em jato presidencial, desembarcavam na capital gaúcha os ministros Marcus Vinicius Pratini de Morais, da Indústria e Comércio, e João Paulo dos Reis Veloso, do Planejamento. À noite um grupo de 500 convidados participou de um concorrido banquete no elegante clube porto-alegrense Leopoldina Juvenil.
    De certo modo participante da festa, o velho matutino da Caldas Júnior dedicou seu editorial de 17 de março, sexta-feira, ao que chamou “O Acontecimento Borregaard”, algo que trazia a “chancela de mestres noruegueses”, com sua “arte de harmonizar o econômico com o social” e que, no entender do jornal, haveria de marcar uma época (e de fato marcou).
 “Nenhum despropósito se note na epígrafe. Realmente trata-se de um acontecimento que se destaca dentre os sucessos de uma semana, um mês, um ano, uma fase inteira da vida do Estado. De um acontecimento em verdade marcante. Que marca uma época. (...) Uma indústria com largas e fecundas perspectivas de desenvolvimento entre nós. E que inclusive dará um impulso de florestamento ao Rio Grande do Sul pela demanda que vai provocar de matéria-prima. E que traz a chancela de mestres noruegueses, o que vale por uma garantia de sucesso. Que melhor concurso para a arrancada desenvolvimentista sul-rio-grandense?”

    A despeito de tal ufanismo, o jornal fez questão de deixar claro de que se manteria alerta e cobraria atitudes no tocante a “um temor e uma preocupação” - a ação poluente da nova indústria de Guaíba, “que até os porto-alegrenses já estão sentindo no nariz”. Em seguida, no mesmo editorial, descreveu algo quase non-sense pelo teor das respostas do entrevistado, quase um cínico deboche e que certamente antecipava toda uma linha de comportamento da empresa nórdica.
    “Sensível ao fato, o diretor-superintendente da Borregaard do Brasil, Sr. Guttorm Ihme, não se escusou de procurar esclarecer o assunto, em entrevista coletiva que concedeu à imprensa, anteontem, no Plaza Hotel.
   “- Efetivamente – disse – Três problemas de poluição surgiram: ruído, ar e água. Mas de uma certa maneira, foram solucionados pela empresa.
   “O senhor Guttorm Ihme esclareceu que a poluição das águas do Guaíba foi solucionada com o lançamento dos detritos através de uma rede de esgotos, que despejam a água dois quilômetros fora da costa.
   “A seu turno, a poluição do ar foi solucionada com o emprego de filtros eletrostáticos, que retiram boa parte do mau cheiro que se espalha pela cidade. E finalizou:
   “– O ruído vai diminuir quando as máquinas entrarem em pleno funcionamento. Além do mais, os produtos lançados na água e no ar são inofensivos, porque o branqueamento e o produto final da celulose são feitos na Noruega”.

   Zero Hora seguia a mesma linha, um misto de entusiasmo bairrista perpassado pelo temor dos possíveis danos ambientais causados pela nova indústria. Resumindo, algo tipo “me engana que eu gosto”.
   “Nova Indústria – Inaugura-se hoje, em Guaíba, a fábrica da Indústria de Celulose Borregaard (...). A Borregaard é um dos marcos do novo Rio Grande do Sul que se prepara para ser a segunda potência industrial do país. Dá novas oportunidades de promoção a milhares de pessoas, cria novas riquezas que se multiplicarão no correr dos anos, beneficiando extensas áreas do Estado. É verdade, também, que se fala muito no perigo que a nova fábrica possa representar para o meio-ambiente. No entanto, segundo declarações dos responsáveis pela sua implantação, as consequências do despejo de resíduos industriais no estuário do Guaíba deverão ser bastante atenuadas: um emissor subaquático levará os resíduos ao fundo do canal, numa distância de dois quilômetros da unidade fabril. Vale lembrar, com respeito ao problema, que equipamentos e instalações para proteção do meio ambiente representam vinte por cento do investimento total realizado pela Indústria de Celulose Borregaard”.

   Desfrutando de toda sorte de incentivos fiscais, a Borregaard viera, sim, para exportar, e exportar representava fazer saldo positivo para a balança econômica (“exportar é o que importa”). Exatamente o que queria o governo, explicou o ministro Pratini de Morais, 33 anos, em seu discurso de elogio a “uma das mais modernas fábricas do mundo” e que iria faturar mais de 20 milhões de dólares anuais (o dólar de então valia bem mais do que nos dias de hoje). A revista Veja, de circulação nacional, por sua vez, foi bem mais equilibrada e menos otimista em matéria publicada na mesma semana. 

   “Só para exportar
    “O Brasil é autossuficiente em celulose, mas nem por isso a inauguração da maior fábrica de celulose do país, na semana passada, em Guaíba, cidadezinha a 35 km de Porto Alegre, deixou de ser uma grande festa. Ela começou com a afinada execução do hino nacional da Noruega pela banda da Brigada Militar gaúcha, comovendo os dirigentes do grupo norueguês Borregaard, acionista do empreendimento, e terminou com um inevitável churrasco que consumiu 500 quilos de carne e 50 barris de chope, para satisfação da pequena multidão de autoridades, empresários e jornalistas gaúchos.
   “A autossuficiência brasileira não é, na realidade, um problema: toda a produção da Borregaard gaúcha (190.000 toneladas anuais) é exportada – a fábrica já funciona desde o fim de 1971 – para a matriz norueguesa, que faz o processamento final, transformando a massa acinzentada em papéis finos e fibras sintéticas, como o raiom.
   “Problema mesmo existe, para a Borregaard norueguesa, cujo presidente, Rein Henriksen, citou em seu discurso de inauguração “as difíceis condições do mercado mundial no momento”. Mais otimista, o ministro Marcus Vinícius Pratini de Morais, da Indústria e do Comércio, preferiu elogiar a avançada tecnologia escandinava, “a melhor do mundo”.
   “Poluição – Este avanço explica como a fábrica de Guaíba, um gigante automatizado, emprega apenas quatrocentos operários, enquanto outros 1.600 são necessários para retirar o equivalente a duzentos caminhões diários de madeira das florestas de eucalipto da Borregaard em áreas vizinhas. Foram investidos 76 milhões de dólares na construção da fábrica e seu capital realizado, de 186 milhões de cruzeiros, está assim dividido: 43% pertencem ao BNDE, 32% à Borregaard, 22% a bancos escandinavos e 3% ao Estado do Rio Grande do Sul.
   “Dirigida por um engenheiro civil norueguês, Guttorm Ihme, desde 1953 no Brasil, e um advogado brasileiro especializado em finanças, Hélio Dias de Moura (coordenador do Conselho de Desenvolvimento Financeiro e Tecnológico de São Paulo), a fábrica foi montada em catorze meses e encontrou uma eficiente solução para o problema do transporte. O navio que leva a celulose para a Noruega volta carregado com ácido sulfúrico para a Fertisul, fabricante de adubos da cidade de Rio Grande, e as barcaças e os caminhões que levam a celulose até o porto de Rio Grande voltam carregados com os adubos da Fertisul. Como exporta toda a produção, leva a vantagem de não pagar nenhum imposto direto.
    “Satisfeita por esse lado, a Borregaard só parece preocupada em minimizar, através de uma campanha de publicidade, as repercussões de seus efeitos poluidores: o ruído ensurdecedor de seus três picadores de madeira, a tinta negra que despeja no rio Guaíba e um insuportável cheiro, semelhante ao de ovo podre, que se espalha pelas redondezas da fábrica e vai incomodar os 850.000 habitantes de Porto Alegre, na margem oposta do rio”.   
   
   Em breve o grande e sonhado investimento que significaria uma nova era na economia gaúcha tornou-se um pesadelo real para mais de um milhão de pessoas. Por suas constantes emanações “fétidas e pútridas”, a empresa, nacionalizada em 1975, quando foi adquirida pelo Montepio da Família Militar e mudou seu nome para Riocell (Rio Grande Companhia de Celulose do Sul), transformou-se em inimiga número 1 dos porto-alegrenses, motivando protestos, passeatas, iradas críticas populares, candentes discursos políticos e repetidas matérias na imprensa local. Imprensa a qual, em peso, se voltou contra o inatingível “monstro norueguês” que apodrecia ares e águas e zombava de todos.
   No início de março de 1975 um estudo ambiental feito por um técnico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul concluiu que a Borregaard lançava nas águas do Guaíba detritos correspondentes ao total despejado por uma cidade de 600 mil habitantes que não faça tratamento de esgotos.
   O laudo havia sido solicitado pelo juiz de direito de Guaíba como parte do processo que um grupo de pessoas do município movia contra a indústria – desta feita, o especialista da Universidade Federal era o “perito desempatador” nomeado, uma vez que os dois laudos anteriores, o primeiro preparado por um técnico ambiental e outro apresentado pela empresa, diferiam radicalmente em números e conclusões. O terceiro perito, desta feita, concluiu que a cada dia a Borregaard despejava 36 toneladas de compostos orgânicos e 15 toneladas de inorgânicos. Isso representava 600 metros cúbicos de rejeitos não tratados por hora, boa parte deles de compostos de enxofre, alterando o próprio PH das águas.
   Até mesmo uma comissão parlamentar de inquérito, a CPI da Borregaard, havia sido instaurada pela Assembleia Legislativa do Estado, gerando uma série de conclusões e sugestões, nenhuma delas levada a sério ou de longe atendida pela empresa.
   Pedia-se, portanto, a desapropriação da área onde a fábrica estava instalada, como propunha o deputado estadual Lino Zardo, do MDB. Ele defendia tirar dali a Riocell e doar a área para a Renault francesa, que propalava intenções de estabelecer uma montadora de veículos no sul do Brasil.
    Ainda com o nome antigo, a fábrica já havia sido fechada no final de 1973 e início de 74, por determinação do pressionado governo estadual, cujos técnicos entenderam que as propostas de modificações apresentadas pela direção da multinacional não atendiam aos mínimos requisitos técnicos. Ainda que temporário, o fechamento da multinacional norueguesa foi comemorado não somente pela população da capital como mereceu o apoio entusiástico de quem mais sofria com o problema da poluição das águas – os pescadores que enfrentavam dificuldades ainda maiores no seu duro cotidiano profissional.
   No dia 17 de dezembro de 1973 Zero Hora noticiou: “Os pescadores gaúchos ficaram tão contentes com o fechamento da Borregaard que resolveram mandar um ofício ao Governo do Estado e à Secretaria da Saúde apoiando o fechamento da fábrica de Guaíba”. A iniciativa partiu do presidente da Colônia Z-5, Modesto Machado Alves, e foi unanimemente apoiada pelos participantes do VI Congresso das Colônias de Pescadores do Estado. Prosseguia o jornal: “Os pescadores reunidos no Congresso confirmam que a Borregaard acaba de matar os peixes que ainda restavam no estuário do Guaíba e começava a liquidar os da parte norte da Lagoa dos Patos. Os mais prejudicados pelos 600 metros cúbicos de resíduos industriais lançados por hora pela Borregaard eram os da Colônia Z-5 e Z-4. Outra grande preocupação dos mais de 20 mil pescadores artesanais gaúchos era o envenenamento dos rios e lagoas pelos pesticidas usados nas lavouras de arroz às suas margens”.
    Em outubro de 1974 o deputado estadual Moisés Velasquez (MDB) usou uma frase de efeito para definir a situação: “Os vikings tomaram de assalto o Rio Grande do Sul”. Para ele a Borregaard estava acabando com a fauna e poluindo o Guaíba, a Lagoa dos Patos e o mar, “e se constitui em uma fonte de sugamento de divisas do Brasil”.
    “Se fosse um treiler de cachorro-quente ou um pequeno restaurante, já teria sido fechada. Mas a Borregaard pode continuar poluindo porque é poderosa”, acusou Moisés, lembrando que o governador se declarara impotente para fechá-la, “muito embora nem alvará de funcionamento a empresa tenha”. Em Brasília, o deputado federal e ex-prefeito de Porto Alegre, Célio Marques Fernandes (Arena), fez um enfático discurso lembrando que “Porto Alegre está triste” e que o pôr-do-sol no Guaíba “já não é mais aquele espetáculo lindo e belo” por causa do “odor terrível”, do “horrível cheiro” que vem “atormentando durante o dia e a noite os moradores” da capital gaúcha.
    Por sua vez o deputado Augusto Trein (Arena), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a fábrica “viking”, disse saber que a empresa estava então utilizando o produto químico “soda barrilha” no seu processo industrial, uma tentativa de disfarçar o mau cheiro e que, no entanto, poluía ainda mais as águas do Guaíba.
   Nessa época o município catarinense de Lages manifestou interesse em sediar a empresa, mas a forte oposição das cidades vizinhas barrou de imediato a ideia: eles alegaram que outra indústria similar na região já havia transformado as águas do rio Canoas, outrora límpidas e piscosas, em “autêntica vertente de venenos” – e não estavam nem um pouco dispostos a repetir a experiência.
   Aqui, o “martírio olfativo” e as atitudes cínicas e até ultrajantes da direção da fábrica (afinal, já existia tecnologia disponível para dar solução ao problema, e ela era aplicada no seu país de origem), bem como o posicionamento omisso das autoridades, eram considerados uma verdadeira afronta ao povo gaúcho.
   Tudo isso se refletia semanalmente nas páginas dos jornais. No dia 5 de fevereiro de 1975, em carta ao Correio do Povo, a cidadã porto-alegrense Márcia Gressler se dizia pessimista e “abalada por toda essa insensatez”. Lembrando que o rio da sua infância era agora “um rio moribundo cujas águas podem ser consideradas venenosas”, lamentava: de nada servira a mobilização da opinião pública e o repúdio da população: “E o trabalho da CPI deu em nada, pois o controle da Borregaard já foi ou será brevemente transferido. Dessa forma o controle acionário em poder de empresários brasileiros será motivo de ufanismo para pseudopatriotas cujo orgulho verde-amarelo se resume numa cifra maior ou menor do PNB e uma cegueira total para as belezas naturais do país, as quais vêm sendo dizimadas a troco de dinheiro”.
   Já em 1976, sempre tentando ganhar tempo, a “nova” Riocell havia anunciado investimentos de três milhões de dólares para a compra de filtros e aparelhos antipoluentes que ao menos diminuiriam o mau cheiro provindo de suas chaminés – mas não era isso, óbvio, o que se sentia de fato, como se vê nesta nota do Correio do Povo de 18 de maio.

Mau Cheiro Volta a Atacar a Cidade

   “A noite de domingo último foi marcada pela volta do velho e por demais conhecido mau cheiro da Borregaard, hoje Riocell. Boa parte da cidade foi literalmente invadida pelos odores fétidos da fábrica, principalmente o bairro Menino Deus. Com efeito, as emanações pútridas por algum período não se fizeram sentir, o que levou muita gente a pensar que finalmente estava resolvida tão humilhante situação. Mas qual o que. O mau cheiro voltou novamente com todo o seu antigo vigor e se antes não estava empestando a cidade é porque as aparelhagens que os produzem são desligadas rapidamente logo que o vento sopra para o lado de Porto Alegre. Isso, aliás, já é uma consideração mas não resolve o problema definitivamente, como ainda se espera. Neste domingo o porto-alegrense teve violado o seu direito de respirar porque os ventos foram repentinos, liquidando o esquema da fábrica e o mau cheiro voltou implacável”.

    As “emanações pestilentas” da “malsinada indústria” se repetiram a 7 de julho, quando um grande número de pessoas ligou para as redações dos jornais e das rádios queixando-se do fedor que as despertou durante a madrugada – a fábrica valia-se comumente de tal ardil. “A Riocell (ex-Borregaard) voltou a agredir o porto-alegrense, na madrugada de ontem, com suas emanações pestilentas”, noticiou o veículo líder da Caldas Júnior na sua edição de quinta-feira, 8.  “Em diversos bairros da cidade o mau cheiro foi sentido de forma violenta, segundo diversas pessoas que telefonaram para a redação do Correio do Povo. Como de costume, os odores fétidos despertaram muitas pessoas, acometidas de cefaleia e náuseas”.


Em pleno milagre econômico brasileiro, a inauguração da Borregaard prometia uma "nova era" para o Rio Grande do Sul. O que se viu depois foi um longo e pestilento pesadelo.




    Dois dias depois, na sexta-feira, o jornal fustigou novamente – “Riocell voltou a massacrar a população”, noticiando que, por volta das 22h30min da noite anterior, trazidas pelo vento, as “emanações pestilentas” começaram a atingir várias áreas da Capital, causando uma onda de telefonemas indignados para a redação: “Todos querem saber até quando o governo vai permitir tamanho desrespeito à população?”
    No final de agosto, durante a Terceira Expointer de Esteio, o fedor surpreendeu os milhares de turistas e produtores que tinham vindo à Capital gaúcha para participar do maior evento da agropecuária brasileira.   “Tornou-se difícil para a gerência dos hotéis explicar aos hóspedes, principalmente os que vieram de outros países, que o terrível mau cheiro que estavam sentindo já se tornou quase rotina em Porto Alegre e que este é “o ônus do progresso”. As explicações não chegaram a ser bem entendidas pelos visitantes perplexos que perguntavam porque o Governo permite tal atentado contra a saúde dos contribuintes. Isto, cortesmente, ninguém respondeu...” (CP, 24 de agosto)
    
    Mas seria justamente em uma cerimônia cívica marcante para a população – o início da Semana da Pátria - que o “odor nauseabundo” retornou com força dobrada, constrangendo até mesmo os altos escalões militares (afinal, a Riocell era presidida pelo general Breno Borges Fortes, ex-comandante do Terceiro Exército e do Estado Maior em Brasília) e motivando mais uma nota irada do Correio do Povo.

  “Voltou a Riocell, ex-Borregaard, a agredir o olfato da população com aquele nauseabundo odor que é sua marca registrada. Mas para que se diga que a nacionalização da empresa, apregoada aos quatros ventos como um feito olímpico, não lhe trouxe nenhum crescimento, ela expandiu seu malcheiroso espectro no tempo e no espaço: fedeu por 48 horas, o dobro do que costumava antes, e ultrapassou seus limites anteriores, infectando até o município de Viamão. (...)
   “É triste assinalar-se que esta situação se prolonga há tanto tempo e se prolongará até Deus sabe lá quando. Porém mais triste e mais revoltante ainda é constatar que anteontem, no Parque Farroupilha, quando o Rio Grande do Sul inteiro, através de suas mais altas autoridades civis e militares e de grande número de populares, reverenciava a Pátria, a Riocell se apresentasse com sua malcheirosa presença, perturbando os que se concentravam num momento de dignificante elevação cívica”.  
  
   No dia 21 de setembro, uma terça-feira que se sucedia às comemorações da data farroupilha, a população viveu “mais uma triste noite”, conforme descreveram os jornais. Por culpa da “malfadada indústria”, os moradores da zona sul e do centro tiveram de suportar o terrível fedor, enquanto o Correio do Povo mais uma vez perguntava: “Até quando continuará esse desrespeito aos contribuintes? Até quando a saúde de uma população inteira será prejudicada por uma empresa? Até quando essa fábrica de celulose continuará poluindo o ar e envenenando a fauna do Guaíba e da Lagoa dos Patos?”
   Vindo de Brasília especialmente para tratar do problema, chegou a Porto Alegre, dia 8 de outubro, o secretário especial para o Meio Ambiente, Paulo Nogueira Neto. Como das vezes anteriores, foi mais uma autoridade a proferir discursos vagos, sem anunciar qualquer medida prática além da promessa de que “estamos estudando uma série de benefícios fiscais para a criação de uma linha de crédito para tais empresas instalarem equipamentos antipoluidores”. Semanas antes o secretário Jair Soares declarara, com a costumeira e dúbia firmeza retórica, que havia se reunido com o general Borges Fortes e que exigira da empresa a entrada em uso dos equipamentos contra a poluição, já adquiridos e instalados.
   Meses depois, já no início de dezembro, subindo ainda mais o tom, o diário de Breno Caldas publicava nova nota de 16 linhas, “O insólito ataque que dia-a-dia se repete”, no qual comunicava a última ofensa olfativa vinda da “prepotente fábrica-de-fedor”. Afinal, nada havia mudado: o cheiro podre, novamente espalhado no ar, decididamente humilhava e indignava os cidadãos de “ilimitada paciência” da capital gaúcha.

   “Cidade de um milhão de habitantes, capital de um dos mais pujantes Estados da Federação, Porto Alegre é todavia uma terra desprotegida, com ares contaminados. Do outro lado do rio, especialmente, trabalha sem cessar uma insensível e prepotente fábrica-de-fedor, que empesta a atmosfera e mina a capacidade orgânica e mental do porto-alegrense. A medida que o tempo passa, cresce a revolta diante da continuada provação. Mas nada é feito no sentido de eliminar ou de minimizar o problema, que, mais que um problema, é um acinte e uma aberração.
   “Ontem ELA atacou com redobrada intensidade. Porto Alegre é, sem dúvida, uma cidade infeliz de ilimitada paciência”.

   Na Câmara Municipal, o vereador Aloísio Filho, do MDB, subiu à tribuna para, em tom de desabafo, dizer que Porto Alegre não era mais a Cidade Sorriso e sim “uma pobre cidade fedorenta” que precisava “extirpar seu cancro”:
    “Hoje, Porto Alegre, além de ter perdido o nome Cidade Sorriso, tornou-se insegura e fedorenta. Trocaram o nome da Borregaard, agora é Riocell. Falaram em botar filtros. Mas o que fazem as autoridades que envenenam a população da cidade? Não bastam filtros. É necessária a extirpação daquele cancro que envenena a todos. Nunca Porto Alegre sofreu tanto como agora. A antiga Borregaard, e não adianta mudar o nome, é a mesma Borregaard que nasceu do descumprimento de pareceres técnicos que não permitiriam a sua instalação. Eu, que moro na zona norte, na outra extremidade da cidade, não suporto, não consigo suportar o mau cheiro. Serei obrigado a mudar-me para o mato, fora de Porto Alegre” – protestou o emedebista.
   A “Questão Borregaard” era algo tão desesperador que um leitor do Correio do Povo sugeriu ao Governo a bizarra canalização do fedor para uma distância “de 40 ou 50 quilômetros”. Sem se identificar, P.B escreveu:
    “Segundo o depoimento de um dos diretores da ex-Borregaard, a mesma jamais será fechada e o odor nunca terminará, pois não existe tecnologia no mundo para tal. Será que o Governo não poderia obrigar (ou até mesmo executar, visando ao bem comum) a Riocell a canalizar por 40 ou 50 km uma saída de odor, transferindo-se assim a chaminé, o cheiro, para bem longe? Exemplo de canalização, é óbvio que não de “odor”, temos na Petrobrás, de Tramandaí a Canoas. Parece-me melhor solução do que a chaminé de 200 metros, proposta por autoridade federal”.

    Considerando também “que os processos tecnológicos não foram suficientes” para dar fim ao problema, outro cidadão porto-alegrense – que se identificou como o “professor Nelson I. Matzenbacher” - ofereceu uma sugestão “ecológica e simples”, em carta publicada no dia primeiro de outubro.
   “Em Guaíba o mau cheiro continua. Aqui, na capital, o mau cheiro vai reaparecer assim que soprar o vento do setor sudoeste ou quando ocorrer uma inversão de temperatura nesta área. (...) Sugerimos pois, como solução final, o plantio de árvores de rápido crescimento nos arredores da ex-Borregaard, em qualquer espaço disponível. Recomendamos o plantio de Eucalyptus glóbulos Labill, que apresenta rápido crescimento e atinge a altura considerável de 30 a 40 metros, com grande vantagem para a apicultura. (...) O plantio de árvores à margem do aterro, em Porto Alegre, também deve ser adotado, a fim de formar-se uma cortina protetora antipoluente de funcionamento inteiramente gratuito”.

   Todavia, algumas boas notícias surgiam na luta pela preservação ambiental no Estado. Em Canela, no mês de fevereiro de 76, a cascata do Caracol, uma das principais atrações turísticas da Serra e que, apesar disso, durante quase 40 anos sofrera com a poluição e o fedor causados por uma fábrica de celulose que funcionava nas suas imediações, tinha agora plenas condições de recuperar a qualidade das suas águas.

   Pressionada por moradores e autoridades, a empresa modificou seu processo industrial e deixou de utilizar a fedorenta “lixívia negra”, passando assim a produzir somente papel e não mais a celulose. Com isso havia esperança da volta dos peixes e da fauna original da região e o término do mau cheiro que incomodava até os turistas de final de semana.

SITUAÇÃO QUE NÃO GOVERNA E OPOSIÇÃO QUE PEDE DESCULPAS
    Falando nisso, fazia tempo que o clima político brasileiro também não cheirava nada bem: os militares estavam no poder havia doze anos e a abertura “lenta, segura e gradual”, a distensão política prometida por Geisel era por demais lenta e gradual – e cheia de recuos, ameaças e riscos. No aniversário da então chamada “Revolução”, o presidente-general disse, secamente, que esta “não admitia contestação”. O recado à oposição era claro: afrouxava-se um pouco as rédeas, mas estas – bem entendido - continuavam curtas.
   No dia 7 de abril, quarta-feira, em Brasília, o diretório nacional do MDB divulgou uma nota à nação na qual criticava as recentes cassações e a continuidade sem fim do estado de arbítrio. Além do presidente nacional do partido, Ulysses Guimarães, discursou somente o gaúcho Pedro Simon: “O MDB concita o Governo a não mais retardar a concretização do compromisso de honra da Revolução para com o povo – há 12 anos uma promessa sempre adiada – de reintegrá-lo nos parâmetros de um estado de Direito, brasileiro, moderno e realizador”. Simon pedia o fim do ato institucional número cinco, “fonte permanente das crises que nos angustiam, destruindo a ordem jurídica e instituindo o governo dos homens e não das leis”.






   Redemocratização, anistia e fim do AI-5 eram as grandes bandeiras desta melancólica e impotente oposição – a qual só restava negociar pequenos e inseguros avanços. Ou como disse o deputado emedebista Magnus Guimarães, 35 anos, um dos “autênticos” do MDB: “A Arena, mesmo sendo Governo, não está no Governo, e o MDB, sendo oposição, não consegue o poder mesmo depois de ter vencido as eleições, e ainda se preocupa em pedir desculpas ao governo pela sua vitória”.
   De qualquer forma aquele início de 1976 marcava – com as mortes do jornalista e militante comunista Vladimir Herzog, no final de 75, a de Manoel Fiel Filho, no início de 76, e a cassação dos mandatos de vários parlamentares – uma nova fase de tensão no panorama político, situação que se agravaria ainda mais até o final do ano, com atentados terroristas praticados por grupos de extrema direita ligados ao aparelho repressivo estatal, inconformados com o possível surgimento de algumas tênues luzes democráticas.
    No Estado gaúcho, onde, naquele mês de abril, já se vivia clima de campanha política, o deputado Pedro Simon (considerado então imbatível nas urnas, inclusive para uma possível eleição direta para governadores) pedia uma investigação rigorosa sobre “panfletos subversivos” atribuídos ao seu partido e apreendidos pela Polícia Federal em Santa Rosa, no noroeste gaúcho.  
   Desconfiando de uma trama armada para prejudicar a oposição, os emedebistas locais acreditavam que tudo não passasse de pretexto para incriminá-los e assim transformar o município em “área de segurança nacional” – o que acabaria com as eleições diretas para prefeito. Simon também afirmou que ele e outros parlamentares se sentiram “constrangidos e humilhados” com a presença ostensiva e provocativa de um cabo do Exército, armado e fardado, no salão nobre da prefeitura de Ijuí, onde, dias antes, acontecera um encontro regional de líderes oposicionistas.

A proibição da apresentação do Balé Bolshoi na TV Globo foi um dos momentos mais ridículos da ditadura militar.



   No segundo semestre, bombas - muitas delas artesanais - seriam colocadas em muitos diferentes locais: na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, no Rio, na sede do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento, CEBRAP, em São Paulo, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na Associação Brasileira de Imprensa, na casa do empresário Roberto Marinho, na Editora Civilização Brasileira, na sede do jornal Opinião, no Rio, em bancas de revista, em jornais, agências bancárias, empresas, repartições públicas e até no prédio da Auditoria Militar, em Porto Alegre.
    O atentado a Opinião (onde, entre outros, escrevia o sociólogo Fernando Henrique Cardoso) aconteceu às 3h50min da madrugada de 15 de novembro, dia das eleições municipais daquele ano, uma segunda-feira, em um sobrado da rua Abade Ramos, Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Com a detonação – cujo estrondo foi ouvido a quilômetros - uma parede foi destruída, duas portas de ferro acabaram retorcidas e todas as vidraças das redondezas se partiram. A bomba havia sido colocada do lado de fora do prédio e deveria ser obra de profissionais, garantiu a perícia técnica. 
    Assumida pela Aliança Anticomunista Brasileira, a ação visava especialmente o proprietário do jornal, o jornalista Fernando Gasparian, 46 anos, a quem os terroristas de direita juraram de morte, conforme manifesto deixado no local: “A Aliança Anticomunista Brasileira decidiu que não é mais possível deixar sem resposta as ações criminosas a soldo de Moscou que este grupo de traidores vem realizando a longo tempo em proveito da comunização do Brasil, através do jornaleco Opinião e outras publicações. Esta é a nossa mensagem de advertência. Da próxima vez ajustaremos contas pessoais com esses excrementos humanos. A hora da verdade está chegando. Fernando Gasparian, e seus asseclas, esteja certo de que pagará com a própria vida a traição à Pátria que está cometendo. Morte à canalha comunista. Viva o Brasil”. Gasparian (também dono da editora Paz e Terra) pediu a punição dos responsáveis e disse que “não queremos que o Brasil chegue à situação em que se encontra a Argentina”.

1975: as prisões políticas continuavam em todo o País, a guerrilha armada havia sido desbaratada e a palavra "subversivo" estava na ordem do dia.  Os órgãos de repressão continuavam atuantes e havia seguidos pronunciamentos de advertência das Forças Armadas.

   No final de setembro a tensão dominava o Rio de Janeiro devido a uma onda de boatos e telefonemas informando sobre possíveis novos atentados por parte da Aliança Anticomunista: muitos locais da cidade eram esvaziados às pressas e em alguns viveu-se situações de quase pânico. Por duas vezes o expediente no Ministério da Educação e Cultura foi encerrado mais cedo por causa de boatos de atentado. Não bastasse isso, dezenas de presos políticos, em São Paulo e no Rio, estavam sendo ameaçados de morte em suas celas, incluindo mulheres grávidas. 
   Em Florianópolis, onde acontecera a Operação Barriga Verde movida pelos órgãos de repressão contra militantes do Partido Comunista de Santa Catarina e do Paraná, os detentos políticos haviam feito greve de fome para pedir o respeito mínimo aos seus direitos – eles estavam bebendo água e nada mais. Na Penitenciária do Estado o advogado Roberto João Motta tentara suicidar-se no início de abril cortando as veias do pulso com uma lâmina de barbear – era a terceira vez que isso acontecia e só a rápida intervenção dos agentes penitenciários conseguiu evitar que desta vez ele obtivesse sucesso. 
   Preso no ano anterior, acusado de ser comunista, Roberto, segundo aqueles que o visitaram, apresentava saúde debilitada, estado que se agravara pois sofria de crônica claustrofobia. Com ele estavam presos outros 40 integrantes do partido, soltos somente em setembro. Também no final deste mês, em Nova Iguaçu, baixada fluminense, o bispo Adriano Hipólito seria sequestrado, espancado e obrigado a beber cachaça. Ele foi deixado nu à margem de uma estrada.
    Enquanto isso autoridades da área militar se revezavam em “pronunciamentos” de advertência que logo ganhavam as páginas dos jornais. Em Curitiba, no final de setembro de 1975, o general Samuel Augusto Alves de Correa, comandante da Quinta Região Militar, afirmara aos seus subordinados que “as minorias subversivas são tenazmente atuantes, fanáticas e intelectualizadas”. Ele lembrou que mais de cem pessoas haviam sido presas naquele ano em Santa Catarina e no Paraná, acusadas de tentar reorganizar o PCB. Um pouco antes, em um ciclo de debates da Ação Democrática Renovadora, em Brasília, o coronel Carlos Oliveira discorreu para mais de 300 pessoas sobre “as técnicas de lavagem cerebral dos comunistas”, especialmente os russos, considerando que o sexo e as drogas são usados por estes para controlar a mente humana e atingir os seus fins, a degradação moral, no que chamou de “psicopolítica”: 
    “A degradação moral é iniciada com a difamação e desmoralização das autoridades constituídas e do Governo, para minar as resistências do povo e da nação. E o sexo é um instrumento conveniente de degradação, servindo admiravelmente para a desmoralização das autoridades, como vem ocorrendo em diversas partes do mundo, um recurso para perverter e alienar do indivíduo e transformá-las em escravos servis”.
   Apesar de abrandada no governo Geisel (podia-se noticiar mais livremente que ela existia), a censura era uma espada afiada roçando o pescoço de todos, até mesmo da poderosa Rede Globo, que, em meados de 1975, resolveu suspender inteiramente a sua novela Roque Santeiro, tantos os cortes de cenas e exigências dos censores que surgiam a todo momento. O mesmo aconteceu com Despedida de Casado, cujo veto foi justificado pelos seguintes fatores: presença de amor livre, mostras de dissolução da família e ódio de filho por pai.
    Nem mesmo Gláuber Rocha, cineasta inovador, mas que escrevera estranhos artigos de elogio ao presidente Geisel, teve poupado seu filme Terra em Transe (1967), o qual deveria ser exibido durante a Semana do Calouro promovida pelo diretório central da Universidade Federal de Santa Catarina, em agosto, em Florianópolis, para comemorar o ingresso de novos alunos nos cursos da instituição. 
   O Departamento de Censura Federal não expedira o certificado de liberação, embora não tenha efetivamente proibido o filme. Também um recital de poesias da chilena Angélica Cadaeta estava ameaçado de não acontecer: a Polícia Federal informou que aguardava do DCE a indicação de um tradutor para assim poder analisar o texto. 
   Sequer Jorge Amado, o maior nome da literatura brasileira, escapava da tesoura: partes de um capítulo do seu novo livro Tieta do Agreste, a Pastora de Cabras, a ser publicado nas páginas da revista mensal Status, foram considerados inadequados e vetados – era a primeira vez que tal fato acontecia em quarenta anos de vida literária do escritor baiano – nem mesmo no Estado Novo ele vivera tal experiência. Pior ainda era a situação do paranaense Dalton Trevisan: um conto seu, também a sair pela Status, fora inteiramente proibido pelos censores.
   No rádio a vigilância não se mostrava menor. A 27 de março de 1976 o Dentel, Departamento Nacional de Telecomunicações, decidiu punir com multa de cinco mil cruzeiros a Rádio Panamericana, de São Paulo, por haver transmitido uma entrevista com o cantor Juca Chaves, 37 anos, “que foge à finalidade educativa da emissora”. Juca teria “tocado em assuntos que ferem a moral e os bons costumes”. No início de setembro o mesmo Departamento divulgou nota informando que aplicaria a portaria do ministério das Telecomunicações de maio de 1974, agora publicada do Diário Oficial e que proibia o uso de gírias em emissoras de rádio e televisão. Gírias, no caso, definidas como “expressões destoantes do vernáculo e da linguagem correta”. A emissora que não se justificasse poderia ter suas transmissões suspensas. 
   Em determinação oficial publicada na imprensa a Censura alertava: todo programa que contenha audição musical, ao vivo ou não, deveria antes ser a ela apresentado, via formulário da sociedade arrecadadora dos direitos autorais, a fim de conceder o certificado de liberação.
    Em setembro o Dentel voltou a lembrar que “o uso de qualquer tipo de radiocomunicação sem o devido conhecimento e autorização do Departamento configura-se como delito”. Quem, de imediato, pagou a conta foi um humilde funcionário da empresa Fripescal, de Recife, condenado a um ano de prisão por ter usado aparelho de rádio para comunicar-se com barcos de pesca que estavam em alto-mar. Em sua defesa, Ananias Baruchi Neto alegou que não sabia que tal simples procedimento constituía crime.
    Igualmente perseguidas, Adelaide Carraro e Cassandra Rios, escritoras de livros considerados pornográficos, reclamavam dos imensos prejuízos financeiros que sofriam, tanto que elas, recordistas em vendas, não estavam mais conseguindo viver dos direitos autorais provenientes das suas obras. Cassandra Rios – dos seus 34 livros, 31 estavam proibidos pelos censores – anunciava que iria morar fora do Brasil, enquanto a sua colega Adelaide Carraro, em entrevista às agências de notícias, argumentava: “A população deste País não é inteiramente sem opinião a ponto de se deixar guiar por Adelaide Carraro. Cada um tem a sua opinião”.  
   Elas também apontavam a total ausência de critérios por parte da censura, que muitas vezes liberava a obra para proibi-la semanas depois, como havia sido o caso de Os Padres Também Amam e De Prostituta à Primeira Dama, de Cassandra Rios.
    Antes, para coroar o ano de 1975, no dia 26 de dezembro, sexta-feira, o ministro Falcão comunicava a todos que, “por atentar contra a Segurança Nacional”, proibira a circulação, distribuição e venda em todo o território nacional do livro Solano Lopes, o Napoleão do Prata, de autoria dos historiadores italianos Manlio Cancogni e Ivan Boris e editado pela Civilização Brasileira. A obra apresentava Lopes – derrotado pelo exército brasileiro no século 19 - como “um patriota paraguaio, contrário ao imperialismo britânico então dominante”. Antes, no dia 20, o ministro da Justiça havia baixado portaria, “proibindo a circulação, distribuição e venda em todo o território nacional”, bem como ordenado a apreensão de todos os exemplares do número extra do jornal “Ex”. A editora sofreria ainda inquérito criminal para apurar “possíveis delitos contra a Segurança Nacional”.  


  

   No início de maio de 1976, Pedro Simon usou a tribuna da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para denunciar o acontecido com o semanário Movimento, editado em São Paulo, e que não circularia como de outras vezes. Motivo: 93% dos textos, 84% das fotos, 46% dos desenhos e 83% dos gráficos da edição de número 45 tinham sido vetados pela censura, inviabilizando sua publicação. “Não há precedentes, inclusive dados oficiais foram censurados”, protestou o deputado, lembrando que não fora dada nenhuma explicação por parte das autoridades de Brasília a não ser um comentário informal do chefe da censura de que “não é possível reunir toda essa matéria só para dizer que a mulher é oprimida”.
    Preparada ao longo de quatro meses, a edição censurada de Movimento era totalmente dedicada à situação da mulher brasileira, com a descrição das suas condições de trabalho, depoimentos de representantes de diferentes áreas, discussões sobre a possibilidade de melhorias da situação feminina e as restrições e preconceitos que ainda existiam.
   Também, naquele momento, entre tantos outros, estavam sendo apreendidos todos os exemplares de Mulher Pecado, escrito por alguém chamado Márcia Fagundes Varella, e Astúcia Sexual, de um tal “Dr. G. Pop”. Até o início de novembro de 1975, conforme estatísticas da própria Censura Federal, dos 117 livros proibidos naquele ano, 90 assim o foram por contrariar a moral e os bons costumes. Tais medidas não impediam que, em alguns casos, tais obras continuassem a circular e ser vendidas clandestinamente, como era o caso do romance Zero, de Inácio de Loyolla Brandão, de 39 anos. 



    As proibições atingiam também o escritor e teatrólogo Plínio Marcos, 40 anos, com sua peça “Abajur Lilás”, o compositor Juca Chaves e ainda o grupo MPB-4, cujo espetáculo musical República de Uganda, no Rio, foi interrompido pela polícia em janeiro, depois de cinco meses de exibição e quando já havia sido visto por mais de 25 mil pessoas, causando grandes prejuízos a todos. A Censura não explicou os motivos do veto e ainda proibiu os artistas de darem explicações públicas sobre o fato – até mesmo os cartazes de divulgação foram recolhidos.  Entre os nomes censurados daquele ano também estavam o colunista social Ibrahim Sued e a cantora Maria Alcina, cujo vestuário mínimo e o comportamento extravagante no palco (em um show ela comeu uma rosa) irritavam as autoridades.
   Em agosto de 76 o livro Aracelli, Meu Amor, do jornalista José Louzeiro, baseado na história real (e nunca oficialmente esclarecida) da bárbara morte de uma menina de nove anos na cidade de Vitória em 1973 e que envolvia figuras importantes da sociedade capixaba, também foi proibido, o mesmo acontecendo com Sexus, um clássico literário do romancista norte-americano Henry Miller, considerado “atentatório à moral e moral e aos bons costumes”.
   Mas certamente o caso mais emblemático – pelo patético da situação – envolveu o balé Bolshoi, no final de março, de 1976. Comprado pela emissora de Roberto Marinho à BBC inglesa – que o revendeu a outros 111 países – o espetáculo Romeu e Julieta, produzido pelo famoso balé, seria exibido depois do Fantástico, o Show da Vida, no domingo, 28, às 22 horas. Todavia o programa foi cancelado um dia antes, conquanto tal proibição não tenha sido oficial – os contatos teriam sido telefônicos entre Armando Falcão e Roberto Marinho, evitando-se qualquer menção à palavra censura. O Itamarati tampouco se manifestou oficialmente, lembrando apenas que as relações entre o Brasil e a União Soviética eram boas, “mas se restringiam pragmaticamente no campo comercial” - a URSS era então o quinto país comprador de produtos brasileiros. Porém, para o chanceler Azeredo da Silveira, a apresentação televisiva do Bolshoi – que já estivera ao vivo no Brasil em 1974 – daria margem a “proselitismos ideológicos, ainda que indiretos”.
    O ridículo autoritário parecia mesmo não ter limites e beiraria o total absurdo no final de 76, conforme publicou a Agência Estado a 19 de dezembro:

   “Marreca Botou ovo com Inscrição Subversiva”
   “São Paulo – Um ovo de marreca provocou hoje grande confusão em Rio Grande da Serra, o menor município do ABC, porque tinha os seguintes dizeres gravados: “Ano propício – perturbe”. Ao notar o fato, o proprietário da marreca, José Romoaldo Borges, comunicou-se com a delegacia de polícia local, onde o soldado Trindade recebeu ordem de encaminhar o ovo, a marreca e o proprietário para o décimo batalhão de polícia militar, sediado em Santo André. 
   “Na casa de José Romoaldo era intenso o movimento de vizinhos que pediam para ver o ovo, procurando confirmar o “fenômeno”. Ao mesmo tempo policiais comentavam que a frase denota caráter subversivo, “motivo pelo qual o décimo batalhão solicitou à delegacia local que não fornecesse maiores informações sobre o caso”.
   “Segundo José Romoaldo, que possui cinco marrecas em seu pequeno quintal, “esta é a primeira vez que isto acontece” e foi sua filha de sete anos quem descobriu as palavras escritas no ovo da marreca cinza. “Tentamos de todas as formas apagar a frase mas não foi possível”, afirmou José Romoaldo, depois de utilizar detergente, Bombril e água.
    “Porém o fato de as letras serem idênticas ao tipo utilizado em jornal faz crer aos policiais que o ovo tenha sido botado sobre um jornal molhado, o que teria facilitado a impressão das palavras, “que coincidentemente fazem sentido”. Tais comentários eram feitos ao mesmo tempo em que o proprietário da marreca garantia não ter colocado qualquer jornal no quintal da sua casa e principalmente onde as marrecas botam ovos”.


   Também sob a alegação de conter dizeres atentatórios à segurança nacional, o quadro Penhor de Igualdade, uma das obras premiadas no quarto Salão Global de Inverno de Belo Horizonte, promoção da Rede Globo de Televisão, foi apreendido pela Polícia Federal no dia 21 de outubro. 
   Artistas renomados como Ruben Gershman, Mário Cravo, Carybé, Frederico Morais e o autor da obra, o pintor Lincoln Volpini, de 24 anos, foram intimados a depor e negaram a interpretação oficial dada ao quadro, que tinha, ao alto da tela, um pedaço de madeira e, na parte inferior, a foto de um menino sentado sobre a raiz de uma árvore, aparecendo aí, em primeiro plano, uma corda. No entender de um agente policial, o pedaço de madeira representava a bandeira nacional e a corda seria um arame farpado. Não bastasse isso tudo, depois de um meticuloso exame de lupa, descobriu-se ainda a escondida frase “Viva a Guerrilha do Pará – 73”.
    Mais sorte tiveram os proprietários da loja Miranda Roupas, de Niterói, cujo inquérito policial em que eram acusados de crime contra a segurança nacional acabou arquivado por determinação da primeira Auditoria da Marinha no Rio de Janeiro. O representante do Ministério Público Militar entendeu não haver conotação política e sim comercial no episódio das chamadas “camisas subversivas”, expostas na vitrine da loja com os dizeres “A gente não tem um pingo de liberdade”.
    Em julho, por ocasião do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o jornal Movimento – sempre muito visado - informou que não mais publicaria a Declaração de Independência, de 1776, em razão dos inúmeros cortes ordenados pela censura. A edição especial do dia 4 tinha sido, aliás, uma das mais censuradas dos últimos tempos: 32 matérias foram vetadas pelo ministério da Justiça. 
   Em setembro o semanário O Pasquim, do Rio, com grande circulação nacional, teve uma edição inteira apreendida pela Polícia Federal “por publicar charge desrespeitosa às cores da bandeira nacional”.
   Mostrando, porém, que nem sempre tudo estava perdido, o juiz Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, titular da primeira Vara de Justiça Federal no Estado de São Paulo, tornou-se notícia em março de 76 ao proferir sentença, em primeira instância, condenando a União a pagar indenização de perdas e danos ao jornal O Estado de São Paulo (que no início do ano se via livre da censura prévia) e Jornal da Tarde, conforme ação movida pela empresa da família Mesquita, editora dos dois diários.
   O magistrado acatou os argumentos do Estadão, impedido de publicar notícias sobre a demissão do ministro Cirne Lima (o porto-alegrense Luís Fernando Cirne Lima foi ministro da Agricultura no governo do general Emílio Garrastazu Médici, de 1969 a 73) nos dias 10 e 11 de maio de 1973, negando assim procedência à tese do governo de que tal censura não poderia ser apreciada pela Justiça, uma vez que se fizera com base no ato institucional número 5.
    Em decisão tecnicista, o juiz Magalhães apoiou-se na tese de que não havia um decreto ou ato do Presidente da República decretando a censura geral à imprensa no País ou, específica, aos jornais O Estado e Jornal da Tarde. Portanto, ou se censurava a todos, indistintamente, ou a nenhum – “porque a censura não poderia e nem pode, data vênia, ser exercida com discriminação”. 
   “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Inexistindo o ato regular do Presidente da República determinando a censura, o censor não pode agir de moto-próprio, devendo estar escudado na lei, a não ser que adentrássemos no campo imenso do arbítrio e da prepotência, o que é inadmissível”, escreveu o magistrado paulista em sua longa sentença. Corajosamente, fora dado o recado.
   Ainda em setembro de 1976 o psiquiatra Washington Loyello também ganhou uma ação judicial contra a Faculdade de Medicina e Cirurgia (integrante da Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro). Em decisão surpreendente, o juiz Evandro Gueiroz, da Justiça Federal, concedeu liminar ao mandado de segurança impetrado pelo médico contra a instituição, a qual, para inscrição em seu concurso de docentes, exigia a apresentação do “atestado de ideologia” – documento fornecido pelo Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, e invariavelmente negado aos opositores do regime. 
   O advogado Paulo Goldrajch alegou que o seu cliente tinha título de eleitor e isso bastava - como este estava em dia, consequentemente a pessoa estava no gozo de todos os seus direitos de cidadão. A decisão judicial criou expectativas, pois também a Universidade Federal Fluminense, UFF, exigia o mesmo atestado de ideologia.
    No final de dezembro, em entrevista coletiva à imprensa, espécie de balanço final dos trabalhos do ano, o diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal, Rogério Nunes, contestou aqueles que julgavam a censura no Brasil muito rigorosa e inadequada – entre os quais a quase totalidade dos jornalistas presentes. Para o censor, ao contrário, “a censura no Brasil é muito liberal e é grande o número de reclamações que recebemos por sermos liberais demais”. Indagado a respeito do fato do intelectual brasileiro odiar a censura, Nunes sorriu e disse: “Há muitos doentes que também odeiam os médicos”. Sobre os autores de novelas, especificamente, insistiu na necessidade de que fizessem “novelas mais curtas, que nós pudéssemos analisar mais rapidamente”, e concluiu: “A censura não age em função do trabalho deles, eles é que têm de trabalhar em função da censura”. No final daquele ano, dos 210 livros apresentados ao setor, 74 foram vetados. 
    Quem não estava querendo trabalhar sob tais condições eram os estudantes do quarto ano do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria. Inconformados com a censura prévia a um encarte de quatro páginas por eles elaborado e que circulava quinzenalmente no jornal A Razão, leram um manifesto de repúdio durante programa da Rádio Santamariense, no início de abril. No documento, denunciavam o veto a várias matérias e diziam não poder admitir “a censura bloqueando a nossa capacidade jornalística”. Ameaçados de represálias pelo coordenador do curso – que aventara futuros “problemas na formatura” – todos tiveram que dar longas e detalhadas explicações à Polícia Federal. 
    Com a vigência do decreto 477, o AI-5 das universidades, proibida a política e discussões nas casas de ensino (consideradas tão somente locais de estudo) podia-se sempre esperar pelo pior – e este invariavelmente acontecia. No final do ano letivo de 1975 quatro alunos do Instituto de Teologia da PUC foram suspensos da universidade por um período de 30 dias. Silvino Heck, Hermes Miolla, Paulo Vidor e Nínive Florisbal Figueiró haviam publicado, no jornalzinho do diretório acadêmico, críticas ao sistema de ensino e ao diretor da instituição, além de uma charge considerada desrespeitosa a bispos e militares. A suspensão dos quatro (três eram seminaristas) custou caro, já que desta forma estavam também proibidos de fazer os exames finais. O DCE da PUC e os seminaristas do Seminário de Viamão saíram em defesa do grupo.       

 HERZOG E MANOEL FIEL SE ‘SUICIDAM’ NAS CELAS DA REPRESSÃO 
   Naquele início de abril de 1976, atestando a volatilidade da abertura, os deputados gaúchos Amaury Müller e Nadir Rossetti foram destituídos de seus mandados, com a perda dos direitos políticos por dez anos, em razão de “graves ofensas ao regime vigente”, conforme afirmou o ministro Falcão.
   No domingo, 19 de março, com a proximidade dos 12 anos do movimento de 1964, os dois haviam proferido veementes discursos no município de Palmeira das Missões, nos quais, também, se fazia homenagem ao visceral inimigo dos militares golpistas, o proscrito ex-governador Leonel Brizola. 
   Na terça-feira, o Correio do Povo destacou a manifestação e transcreveu suas partes mais incisivas: “No Brasil não somos governados pela vontade do povo e sim pela força das armas. Estamos num regime de golpe, não de revolução, dominados pela aristocracia fardada. Chegou a hora de se pôr fim à ditadura”, disse Amaury Muller. Criticando a revolução – “regime duro para o povo, mas aberto para o poder econômico” – garantiu que “a queda do regime é coisa certa, se não for por podre, pela corrupção”.
   Setenta e duas horas depois seria também cassado o deputado federal fluminense Lysâneas Maciel, 49 anos, outro dos “autênticos” e que igualmente estava presente na concentração em Palmeira das Missões.
    Oficialmente, Lysâneas – voz firme a denunciar publicamente torturas, desaparecimentos, prisões e arbitrariedades - foi punido por ter proferido, na sessão do dia 30 de março, em Brasília, palavras de duro inconformismo político: “O mais doloroso e grave, senhores deputados, não são as cassações. É que com elas estamos nos acostumando. Estamos nos acostumando com a falta de liberdade, com a censura de baixo nível que impede até exibições de balé. Estamos nos acostumando com o desaparecimento de brasileiros, com sua tortura, com sua morte presumida”.  
   A propósito: desta vez, acuado pela repercussão na imprensa internacional e por expressivas manifestações dos setores mais esclarecidos e corajosos da sociedade, sobretudo a igreja católica de D. Evaristo Arns, o governo brasileiro respondia laconicamente e a contragosto sobre a brutal morte do jornalista Vladimir Herzog, a 25 de outubro último, em São Paulo. Morte esta que as autoridades insistiam em chamar de suicídio por enforcamento, seguida, menos de três meses depois, em circunstâncias quase idênticas, pelo trucidamento do operário José Manoel Fiel Filho. 

A morte de Manoel Fiel Filho (Correio do Povo) mostrava a crueldade da repressão.
CP




   Preso por agentes do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna), Manoel, de 49 anos, pai de três filhos e metalúrgico da empresa Metal Arte, em São Paulo, foi “encontrado” morto poucas horas após a sua detenção. Os dois casos ocorridos em curto espaço de tempo resultaram no afastamento do comandante do Segundo Exército, general Ednardo D’Ávila Melo. 
   No dia 14 de abril foi a vez da conhecida estilista Zuleica Angel Jones, a Zuzu Angel, 54 anos, mãe de Stuart, militante de esquerda, sofrer um acidente automobilístico na estrada da Gávea, no Rio de Janeiro. Às três horas da manhã, no túnel Dois Irmãos, o seu Karmann Ghia, possivelmente sabotado nos freios, derrapou e caiu na ribanceira.  Zuzu – que havia criado a primeira coleção de “moda política” da história, em Nova Iorque, onde vestia atrizes como Kim Novak, Joan Crawford e a bailarina Margot Fonteyn - fustigava o governo ao denunciar torturas e pedir insistentemente a punição dos responsáveis pelo assassinato de Stuart, filho seu com um cidadão norte-americano, obrigado a respirar gases expelidos pelo cano de descarga de um jipe militar enquanto era bestialmente arrastado pela Base Aérea do Galeão. 
   O enterro de Zuzu foi acompanhado por um grande número de artistas e políticos. Naquele mesmo ano, em circunstâncias também duvidosas, morreriam os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, em agosto, e João Goulart, em novembro.
   Aliás, o ano não começara nada bem no aspecto político institucional: já no dia 5 de janeiro, segunda-feira, em seu primeiro despacho com o ministro da Justiça, Geisel assinara decreto cassando os mandatos e suspendendo os direitos políticos por dez anos do deputado federal Alberto Marcelo Gato e do deputado estadual Nelson Fabiano Sobrinho, ambos do MDB paulista e que depois foram acusados oficialmente de ligações com o Partido Comunista Brasileiro na cidade de Santos. Na hora do anúncio à imprensa, Falcão, célebre por sua frase-bordão “nada a declarar” (e depois pela lei Falcão de restrições ao debate eleitoral daquele ano), como sempre, foi lacônico e impassível na explicação dos motivos: “Os motivos se podem traduzir numa frase: o ato foi baseado no interesse da Revolução de 64. É só”.
   Com isso, em sete anos de vigência, o AI-5 já havia cassado 104 deputados federais, 160 estaduais e mais seis senadores da República, sem contar as baixas no judiciário e no funcionalismo público, entre outros.
    
PMDB PENSA ATÉ MESMO NA SUA AUTODISSOLUÇÃO. ULYSSES É CONTRA.
   De fato, o clima, naquele primeiro semestre de 1976, era de radicalização política governista, especialmente com a chegada de abril e dos doze anos do golpe, chamada de Revolução. 
   No primeiro dia do mês a Justiça Militar decretou a prisão do jornalista Rodolfo Konder, um dos acusados de reorganizar o Partido Comunista. Já o correspondente da France Press em Lima, no Peru, Paulo Canabrava Filho, entrou com um mandado de segurança no Tribunal Federal de Recursos no mês de setembro e no qual pedia a revalidação oficial do seu passaporte - sem isto era oficialmente um apátrida e não poderia exercer seu trabalho de correspondente internacional, viajar a outro país e muito menos voltar para o Brasil (embora tivesse sido inocentado em processo aqui movido contra ele). Outros dois colegas jornalistas em igual situação anunciavam que fariam o mesmo.
   O ambiente, de fato, era desanimador. Sentindo-se inúteis diante do poder armado, duramente atingidos pelas cassações de seus mandatos e seus direitos, alguns políticos da oposição pediam até mesmo a autodissolução do MDB, ao que o seu presidente Ulysses Guimarães se manifestava contra, posição reforçada por Pedro Simon, presidente do diretório regional gaúcho. 
    O contexto internacional tampouco ajudava a trazer ventos democráticos: praticamente não restava nenhuma nação sul-americana que não fosse governada por generais. América que integrava um mundo ideologicamente dividido entre países socialistas (ou comunistas) e países capitalistas e – apesar da “deténte” - ainda sob o temor de uma improvável guerra nuclear entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética.
   De longe o país sul-americano mais convulsionado era a vizinha Argentina. No Natal de 1975, ainda antes do golpe (previsto com meses de antecedência), cerca de duzentos guerrilheiros de uma organização trotskista atacaram um quartel do Exército, a 20 quilômetros de Buenos Aires. Finalmente repelidos, depois de forte fuzilaria, mais de cem deles foram mortos a tiros e os demais aprisionados – incluindo moças e rapazes de menos de 20 anos. Simultaneamente outros grupos da luta armada faziam ações semelhantes em diferentes pontos da Província, metralhando postos da polícia, bloqueando estradas e incendiando veículos. 





   Em janeiro de 76, em plena temporada de veraneio, o elegante balneário de Punta del Este foi sacudido pela explosão de quatro bombas atribuídas a um grupo esquerdista argentino -  os Tupamaros uruguaios já haviam sido praticamente desbaratados pelas forças de segurança daquele país. Em telefonemas às emissoras de rádios e redações de jornais de Montevidéu membros de um autodenominado grupo chamado Operação Aurora proclamaram que “as mãos do povo atacaram os inimigos do povo em seu centro de vício e corrupção”. Mas, apesar da confusão e do susto, ninguém foi seriamente ferido nas explosões.  
   No final de julho de 1976, desde a deposição de Isabelita Perón em março, já passavam de 550 os mortos nos confrontos e atentados diários na Argentina. Temia-se, inclusive, uma generalizada guerra civil.

1975: a radicalização política na Argentina durava anos e se agravaria com o golpe militar de março de 1976.

    Mesmo assim dados divulgados pelo Banco Mundial atestavam que a renda per capita dos hermanos era a mais alta da América Latina e correspondia a quase o dobro da renda dos brasileiros, sem contar que as potentes emissoras de rádio platinas dominavam as madrugadas nos Estados do Sul, causando “prejuízos incalculáveis”. Nesse sentido, representantes gaúchos da Associação Brasileira de Rádio e Televisão, ABERT, e do Dentel, denunciavam argentinos e uruguaios por não respeitarem as regras internacionais do setor, invadindo a frequência brasileira e aumentando a bel-prazer os quilovates da de suas transmissões. A interferência era especialmente danosa nas ondas médias, na qual os argentinos se mostravam mais teimosos.  

DESERTIFICAÇÃO,  CAÇA PREDATÓRIA, VENENOS NAS LAVOURAS E NOS RIOS
   Não menos acirrados, temas como o desmatamento, a caça predatória, a desertificação (atingidas pela erosão, vastas áreas de Alegrete, São Francisco de Assis e Bagé estavam se transformando em verdadeiros desertos), a qualidade das águas, a comercialização de detergentes e, sobretudo, o uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos, colocavam em pauta, naquele momento, as lutas ambientais e a forte consciência ecológica que floresciam naqueles anos setenta, aqui retratadas por figuras como as de José Lutzenberger, Flávio Lewgoy, Augusto Carneiro e Caio Lustosa e nomes da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a AGAPAN. 
   Sem janelas para a asfixiada luta política, a causa ambiental – na qual o Rio grande ocupava a dianteira nacional - servia também como causa e bandeira abraçada por pessoas de diferentes matizes ideológicos e encampada, nominalmente, muitas vezes, pelos próprios governos. O governo Guazzelli havia, inclusive, criado o Plano Estadual de Proteção ao Meio Ambiente. 
   Os agrotóxicos e os detergentes não biodegradáveis estavam na alça de mira: cânceres, deformações genéticas e até sérias perturbações mentais que não raro conduziam ao suicídio eram atribuídos aos efeitos deletérios dos poderosos defensivos químicos. Jornais e revistas de diferentes linhas editoriais publicavam repetidas reportagens a respeito do “envenenamento” do solo e dos rios gaúchos.


   No início de abril a Sociedade de Agronomia do Rio Grande do Sul, “preocupada com as mortes de pessoas, animais domésticos e peixes”, anunciou que estava criando um grupo de trabalho para estudar as causas e os efeitos do uso indisciplinado dos defensivos agrícola em lavouras e hortas. Já o secretário da Saúde do Estado, Jair Soares, preferia mover campanha contra os detergentes não-biodegradáveis, chamados de “espumas da morte”, totalmente banidos dos países do Primeiro Mundo. 
    Naquele momento, nos Estados Unidos, os ambientalistas voltavam-se especialmente para o perigo representado pelas garrafas de plástico que estavam substituindo aos milhões os tradicionais vasilhames de vidro, novidade que colocava em lados opostos defensores do meio ambiente, industriais de refrigerantes e cervejas e o próprio governo americano. Os primeiros sustentavam que agentes químicos venenosos poderiam soltar-se e misturar-se ao seu conteúdo ou seriam liberados durante a incineração ou reciclagem. Mas a Coca-Cola, a mais visada, retrucava: o plástico viera para ficar, reduzia custos e iria revolucionar o mercado de embalagens para bebidas. Naquele momento também a Pepsi realizava testes de mercado e em breve deveria aderir à novidade – que ainda não chegara ao Brasil.
   Porém a luta ecológica ganhara corpo em todo o mundo. A anunciada criação da área ecológica do Taim, (a pioneira, no banhado do Taim, onde jacarés e capivaras vinham sendo brutalmente exterminados por caçadores) a do delta do Jacuí e a do Parque Estadual de Itapuã (por pressão dos setores ambientalistas se iniciou um trabalho de fiscalização para dar fim à destruição causada por pedreiras), além da transformação da ilha da Pólvora e das Pombas em reservas biológicas, representavam algumas importantes vitórias ambientais em território gaúcho.
   A consciência de que a caça indiscriminada estava exterminando a fauna gaúcha de modo nunca antes visto sensibilizou até mesmo os “gringos” da Serra, descendentes de imigrantes italianos que por décadas dizimaram os animais nativos. Em Galópolis, no início de 1976, quinze proprietários rurais se uniram para proibir qualquer espécie de caça em suas terras, algo que, aos poucos, transformou-se em um movimento de defesa ambiental e conscientização ecológica. 
   A iniciativa partiu de um advogado chamado Agenor Basso que, depois de vinte anos longe da sua terra natal, descobriu, ao voltar, que as lebres, veados, macacos, capivaras e pássaros da sua infância não mais existiam. A fauna humana, com o hábito culinário da “passarinhada”, reconhecia ele, era a culpada desse estado de coisas. “Como não aparecem nem mais sabiás ou tico-ticos, qualquer passarinho serve, até beija-flor estão matando para as passarinhadas com polenta”, lamentou o advogado.
   Durante todo aquele verão as páginas dos jornais estavam repletas de reportagens e opiniões sobre o desparecimento de muitas espécies da fauna sulina. Outras matérias relatavam casos de pessoas cuja saúde fora destruída pelos pesticidas. 
    No início de janeiro, em Rosário do Sul, noticiava-se que um trabalhador rural chamado Deroti Teixeira (sem qualquer proteção, trabalhou espalhando pesticidas de fosforados) morrera poucas horas depois de buscar atendimento no posto de saúde local. Em fevereiro, o agricultor ijuiense Ernesto Fernandes, de 39 anos, também morreu ao dar entrada no Hospital de Caridade do município, vítima de intoxicação aguda causada pela inalação de gases venenosos. Ernesto também havia passado o dia pulverizando lavouras.
  
    Em São Luiz Gonzaga quase oitenta reses pereceram intoxicadas na propriedade do produtor Floriano Gonçalves dos Santos: a mesma máquina que ele havia utilizado para aplicar o veneno na lavoura de soja foi depois usada para aplicar carrapaticida nos animais.
   No início de março o hospital de Santa Bárbara do Sul, a 345 km da capital, informava sobre o atendimento a sete vítimas de intoxicação por defensivos agrícolas, alguns em estado grave. Já em junho de 1975 o prefeito José Antônio Dumoncel havia alertado - a maior causa do extermínio da fauna local, algo já visível e flagrante, era a aplicação de inseticidas nas lavouras, especialmente na época do combate à lagarta da soja (janeiro, fevereiro e março), quando um grande número de perdizes e peixes apareciam mortos no rastro dos aviões pulverizadores e das máquinas agrícolas: “A perdiz gosta de se abrigar na lavoura de soja e depois de cada aplicação de inseticida é só percorrer as plantações para verificar a quantidade de perdizes mortas.” 
   Para a autoridade municipal, se não fossem tomadas medidas urgentes por parte dos governos do Estado e da União haveria um forte desequilíbrio ecológico na região. 
   Fenômeno semelhante acontecia em Pelotas naquele verão de 1976, com o registro de um agricultor e um mecânico às portas da morte. O agricultor, de 24 anos, intoxicou-se ao pulverizar uma plantação de soja na granja onde trabalhava. Já o mecânico, de 22 anos, baixou no Pronto-Socorro depois de limpar o motor do avião agrícola do patrão. 


    No mesmo período, em Giruá, o forte e irritante cheiro dos inseticidas aplicados nas lavouras que circundavam a cidade alarmou seus habitantes, os quais pediram providências à prefeitura e à cooperativa local. As autoridades, em resposta, decidiram orientar os produtores a trocarem o veneno em pó, carregado livremente pelo vento, pelo seu equivalente líquido, considerado mais seguro. Mesmo assim um grande número de pessoas acabou no hospital – somente em uma sexta-feira sete adultos procuraram cuidados médicos devido ao problema, quatro dos quais permaneceram internadas.

A questão ambiental dominava os debates na imprensa amordaçada dos anos setenta. Foi nessa época que surgiu a Agapan e a luta ecológica, da qual o RGS foi efetivamente o pioneiro.  

    A ação irresponsável ou criminosa das pessoas que manipulavam tais pesticidas era flagrante. No final de março integrantes da Sociedade Botânica de Passo Fundo denunciavam a mortandade de toneladas de peixes da barragem de Ernestina, da hidrelétrica do mesmo nome, no rio Jacuí – problema tão sério que até as atividades de lazer no local foram proibidas. Segundo os ambientalistas, os agricultores lavavam suas máquinas nas águas da barragem, enquanto, do alto, pilotos dos aviões agrícolas despejavam as sobras do veneno no lago, entre os quais o DDT, o BHC e o Aldrin, todos à base de cloro.
   A situação do Jacuí (que representa 85% do volume de águas do Guaíba) mostrava-se mais preocupante nas proximidades da Capital, em São Jerônimo, onde a contaminação por resíduos tóxicos atingia níveis alarmantes e muito mais altos do que os aceitos como toleráveis pela Organização Mundial da Saúde, a ponto de autoridades e alguns técnicos, naquele momento, o considerarem “o mais poluído do mundo” – um evidente exagero.  
   Como nos demais casos, a poluição tóxica provinha basicamente da aplicação desmedida de pesticidas, inseticidas, fungicidas e detergentes não biodegradáveis, todos – à exceção do último – usados com o objetivo de se conseguir maior produtividade das lavouras de arroz, soja e trigo situadas à sua volta. 
   No final de 1975 funcionários das secretarias estaduais da Saúde e da Agricultura iniciaram uma campanha para conscientizar produtores e moradores ribeirinhos a respeito dos efeitos daninhos de tal prática. Por sua vez o secretário Jair Soares veio a público alertar sobre o perigo real de se frequentar os balneários de São Jerônimo e Triunfo, algo que poderia resultar em casos de enterite, hepatite e outras doenças contraídas em contato com a água poluída.

FEBRE AFTOSA, PESTE SUÍNA E ATAQUES DE CACHORROS LOUCOS
    Como se não bastassem os pesticidas químicos, o Rio Grande do Sul sofria também com os casos de febre aftosa que atingiam o seu rebanho bovino – a epizootia praticamente duplicara em relação ao ano anterior em quase todo o Brasil. 
   Apesar da ampla vacinação, o ano de 1976 fechou com mais de dois mil focos da doença registrados no Estado, colocando em risco a realização da terceira Exposição Internacional de Animais, a Expointer de Esteio, além de ocasionar o fechamento da fronteira com Santa Catarina, Estado que também sofria com o problema. 
   Em julho, na cidade de Cachoeira do Sul, duas crianças foram internadas com ferimentos na boca e na língua que as impediam de se alimentar: os médicos constataram que elas haviam contraído o vírus da aftosa depois de ingerir leite contaminado. A brucelose, outra patologia animal, igualmente preocupava e exigia vacinação massiva.
    Já no dia 2 de abril a Folha da Tarde noticiava que a aftosa se alastrava por Alegrete, onde as feiras e os remates bovinos estavam proibidos, incluindo a Feira da Novilha. A inspetoria veterinária local informou que já chegavam a 28 os focos confirmados apenas nos últimos quinze dias. Também em Rosário do Sul, Cacequi, Uruguaiana e São Gabriel a doença grassava. “Felizmente nesta época do ano o gado está muito resistente”, explicou um fazendeiro. 
   No início de junho novos focos traziam preocupação aos produtores da região do Alto Taquari, embora todos eles considerassem os números reduzidos face aos registrados nos anos anteriores. Antes da vacinação a incidência no rebanho chegava a 70%, explicou o médico chefe da delegacia veterinária de Estrela, Perci de Quadros. “Agora, com a vacinação, não chega a 5% do rebanho”. Segundo ele, durante o mês de maio, nas 4.600 propriedades rurais de Estrela, foram constatados apenas nove focos, mais 11 em Cruzeiro do Sul e outros seis em Lajeado. Havia duas semanas, em Arroio do Meio, um único foco causara a morte de mais de 30 porcos.
    Mesmo assim, estranhamente, os produtores e os frigoríficos garantiam que a comercialização da carne gaúcha continuava em níveis normais naquela primeira metade de 76.  Porém, em sua mensagem à Assembleia Legislativa, no dia primeiro de março, por ocasião do reinício dos trabalhos daquela casa, o governador Guazzelli – mesmo dizendo-se satisfeito com o desempenho econômico do Estado no ano que findara – informava que as exportações da carne gaúcha vinham caindo desde 1973 e, nos dez primeiros meses de 1975, caíram 38% em relação à igual período de 74.
    O ano de 76 encerraria com outra má notícia: a peste suína, que se acreditava sob controle no Estado, havia voltado com redobrada intensidade na região de Três Passos, Crissiumal e Tenente Portela. No início de dezembro mais de 1200 porcos haviam morrido naqueles municípios e um grande frigorífico regional teve sua produção suspensa por ordem do Ministério da Agricultura. 
   O prefeito de Três Passos, Egon Lautert, confirmou, preocupado: “Recebi vários telefonemas do interior e todos afirmam que a situação é mais grave do que pensávamos que fosse. Animais vacinados e que não poderiam mais ser afetados pela doença continuam a morrer”. 
   Havia suspeitas de que o vírus causador da peste não fosse o comumente conhecido no Rio Grande do Sul e sim uma espécie diferente que afetava o rebanho suíno da Argentina, de onde muitas matrizes suínas eram contrabandeadas, considerando que inexistia fiscalização nas duas fronteiras.
   Em setembro, no município de Alecrim, 60% da criação havia morrido por causa da peste, ou febre, com a perda de mais de 16 mil animais em menos de 15 dias. Os porcos, não vacinados, espumavam pela boca e exalavam um cheiro forte e desagradável antes de morrer.
    Os técnicos e veterinários da Secretaria de Agricultura alertavam: o preocupante ressurgimento da peste, que havia sido epidêmica no Estado na década de quarenta, se devia à falta de cuidados dos próprios criadores, considerando que a vacinação não era obrigatória e, sendo assim, muitos produtores simplesmente não a aplicavam. 
   Ainda não chegara o mês de agosto – mês dos cachorros loucos e mês do desgosto, no provérbio popular – e outro milenar fantasma animal mostrava seus dentes: a raiva canina, ou hidrofobia, transmitida aos seres humanos através das mordidas dos animais infectados que vagavam por campos e ruas. Quando seus sintomas já se manifestam no ser humano infectado, a doença não tem cura e leva fatalmente à morte. 
   Apesar da campanha de vacinação antirrábica, mais de cem pessoas tinham sido mordidas (ao menos tiveram contato) por cães hidrófobos em 1975 somente no município de Ijuí, segundo dados do centro de saúde local – o que dava uma média de oito casos a cada mês. Harlei Merten, gerente da Cooperativa Agropecuária Ijuí, lembrou que mais de quatro mil cães chegaram a ser vacinados de uma só vez na cidade. Em março, alarmada, foi a oportunidade da população ijuiense procurar a vacina destinada à imunização humana – vacina esta que, conforme os médicos, tinha contraindicações e não poderia ser aplicada indiscriminadamente.


   Em Erechim, segundo a inspetoria veterinária, a campanha também acontecia anualmente em agosto (cada dono de cão pagava cinco cruzeiros pela vacina), mas cerca de 2.500 cachorros não tinham recebido a inoculação “porque seus proprietários não entenderam a medida preventiva”. 
   Em janeiro de 1976, no bairro do Laranjal, em Pelotas, o grande número de cães vadios aterrorizava os veranistas daquela praia da Lagoa dos Patos – dois animais que apresentavam os sintomas haviam sido mortos em um único final de semana e inúmeros outros foram perseguidos. 
   Mais adiante, na cidade portuária de Rio Grande, um surto de raiva canina vinha ocorrendo desde o mês de setembro de 1975, com mais de cem pessoas acometidas - as quais se submeteram a tratamento e vacinação. Mais de três mil animais já haviam sido vacinados. E na região da fronteira, em São Luiz Gonzaga, no início de março, as autoridades municipais contabilizavam 12 casos registrados, o que ensejava uma medida radical e discutível por parte do prefeito Alceu da Silva Braga: o anunciado extermínio de mais de mil cães vadios da periferia da cidade.


   Em julho, em Alegrete, o médico chefe do centro de saúde, Rui Barbosa da Silveira, mostrou-se preocupado com o grande número de pessoas mordidas por cães raivosos de janeiro a junho, das quais 47 haviam procurado cuidados. Todas elas tiveram de ficar uma semana internadas, além de medicadas com 16 doses da vacina antirrábica.  A maioria dos animais que morderam as pessoas tiveram suas cabeças cortadas e enviadas para exames na Universidade Federal de Santa Maria – lá se confirmou que todos estavam mesmo doentes. Mas nenhum caso fatal em humanos foi registrado.
    Todavia, já naquele primeiro trimestre do ano aconteceram dois óbitos noticiados pelos jornais da Capital: a da jovem ijuiense Ângela Maria Toral da Silva, de 16 anos, em fevereiro, e a do menino Flávio Luis Sanches Froes, de cinco anos, na cidade de Rio Grande, no mês de março.
   A morte de Ângela Maria chegava a ser criminosa: ela morreu dentro da ambulância, na tarde de sexta-feira, 13 de fevereiro, na frente do Instituto de Pesquisas Biológicas, em Porto Alegre, para onde fora trazida.  Desde a sua chegada, às 9h30min, até o seu falecimento, às 14h30min, Ângela havia passado por um posto de saúde do INPS (na galeria Malcon) e três hospitais (Santa Casa, Conceição e finalmente o instituto), em um jogo de empurra-empurra que desesperou seus pais e revoltou até mesmo o motorista da ambulância, Odon de Mello Dorneles. Em todos esses locais ela foi tão somente medicada. Ângela Maria havia sido mordida no início de outubro.
   Um mês depois, também em uma sexta-feira, 12 de março, o menino Flávio Luís, de cinco anos, faleceu no hospital Madre Batista da Santa Casa, em Rio Grande, onde se encontrava internado havia três dias. Vinte e cinco dias antes ele fora mordido por um animal raivoso. Mesmo recebendo logo a vacina antirrábica, no dia 8 o garoto manifestou sinais da doença. Flávio era filho de uma doméstica de 30 anos.
    No final de outubro iniciou-se oficialmente em todo o Estado a campanha de combate à raiva, com vacinação de casa em casa, começando pela região metropolitana. Dados da secretaria da Saúde revelavam a ocorrência de 24 casos de raiva humana no Rio Grande do Sul de 1970 a 75 – a doença era considerada endêmica e um real problema de saúde pública, tal como a dengue, anos depois, sendo registradas nesse período 7.178 pessoas atacadas por cães raivosos somente em Porto Alegre. Além disso, era uma doença cara, já que exigia assistência a milhares de pessoas expostas ao risco de morte.
    Transmitida pela saliva do cão, basta a lambida em algum ferimento na pele para inocular o vírus. O quadro de evolução passa pelos sintomas de ansiedade, dor de cabeça, febre, mal estar e paralisia parcial ou total dos músculos, sendo que o espasmo do músculo de deglutição provoca no doente o medo da água (daí o nome hidrofobia).  Nesta fase há delírios e convulsões, resultando na paralisação dos músculos do sistema respiratório e a consequente morte.
    Em seus folhetos de divulgação (que eram distribuídos pelos funcionários da CEEE e deixados nas caixas de luz), explicava-se os sintomas presentes no cão: “O cão raivoso fica triste, anda com dificuldade e não reage como antes aos chamados do dono. Modifica o latido, que passa a uma espécie de uivo rouco. Frequentemente fica agressivo e ataca os outros animais com os quais convivia bem. Pode fugir de casa ou se esconder em lugares escuros. A paralisia maxilar inferior é outra característica da doença – o animal não come e nem bebe porque não consegue movimentar a boca sem dor forte”. O folheto aconselhava ainda que o bicho não deveria ser morto pela pessoa e sim aprisionado e observado durante algum tempo, para se verificar se está mesmo raivoso, e, em caso de confirmação, iniciar o tratamento. 

 UM MUNDO POLUÍDO, AUTOMATIZADO, ROBOTIZADO...
   Voltando a Porto Alegre, ao lazer e às amenidades culturais: nos cines Cacique, Ritz e Coral, naquela última semana de abril, estreavam Zorro, uma refilmagem com Alain Delon no papel principal. E, no Presidente, W. – A Marca do Terror, a história de uma mulher que é vítima de vários acidentes estranhos, sempre precedidos pela aparição da letra W. 
   Já no Cine Avenida, na esquina da João Pessoa com a avenida Venâncio Aires, em “eastmancolor”, estreava Toda Uma Vida, do diretor francês Claude Lelouch, a história de duas famílias judias ao longo de três gerações. No Cinema 1, Sala Vogue (avenida Independência, 904), o clássico O Grande Ditador, de Charles Chaplin, continuava em cartaz.  
   Sem shopings centers, sem o Brique da Redenção e sem o Parque Marinha do Brasil, a Porto Alegre daqueles meados dos anos setenta somava oito cinemas na sua zona central. Todavia o número de frequentadores caíra nos últimos tempos em virtude do aumento da violência urbana, da concorrência da televisão colorida (e, diziam os donos de cinema, da obrigatoriedade de se exibir uma determinada cota de desinteressantes filmes nacionais a cada mês). 
   Por fatores ainda não bem explicados, a tendência de queda parecia estar se revertendo: segundo apurou um grupo de estudos criado pelo prefeito Villela para apurar a situação, no primeiro semestre de 76 registrou-se em acréscimo de 13% no número de espectadores de cinemas em Porto Alegre. Cinemas que, diga-se, ainda não enfrentavam a concorrência do vídeo cassete, que surgia experimentalmente nos Estados Unidos, com o lançamento do Betamak pela Sony ao nada convidativo custo de dois mil dólares.
    Vivendo uma espécie de encruzilhada, uma gangorra entre o passado e o futuro, o tradicional e a modernidade, a capital gaúcha registrava e lamentava o desaparecimento dos cines Colombo e Rio Branco, “frutos do progressismo”, conforme escreveu o historiador Leandro Telles, lembrando também o fechamento do tradicional Café Rian – símbolo, a seu ver, do “assassinato de Porto Alegre”: “Lá se vai o último reduto da Porto Alegre tradicional no calçadão da Rua da Praia, sacrificado ao poder econômico. Talvez a cidade só compreenda o que significava o Rian quando dele existir só a lembrança. Num mundo automatizado, poluído, robotizado, num mundo dos “sem tempo”, o Rian significava o derradeiro refúgio, o último protesto contra uma forma de vida que rouba ao homem o convívio com o semelhante, a tradição dos bate-papos informais, origem não só das fofocas mas de decisões importantes para a vida particular e pública”.
  
    Rua da Praia e da Feira do Livro, onde ainda se via Mário Quintana passeando com ar pensativo. Prestes a completar 70 anos de idade (o que aconteceria em 30 de julho), o poeta maior dos gaúchos em breve seria alvo de uma série de homenagens, agradecimentos e tributos da sociedade do Rio Grande do Sul.
    Sociedade que, já de modo oficial, restringia cada vez mais um dos maiores prazeres do poeta – fumar.  No Estado, as secretarias da Saúde e da Educação, com o apoio da Associação Médica, haviam lançado campanha alertando para os males decorrentes do tabaco e utilizando como garoto-propaganda o jogador Elias Figueroa. 
   Apesar do lobby econômico e da forte publicidade na mídia, paradoxalmente quase sempre associando o fumo com os esportes e a vida ao ar livre, os fumantes se viam gradualmente acuados em muitos países. Um deputado federal de Brasília propunha até mesmo o radicalismo de se proibir o uso do cigarro em viagens aéreas e nas de ônibus intermunicipais e interestaduais. Na Itália, em agosto, entraria em vigor a nova lei que proibia fumar em cinemas, teatros e locais públicos – para surpresa de muitos, os italianos estavam gostando e até acatando a medida. Os donos de cinemas, por seu lado, se mostraram especialmente satisfeitos, pois, além de não se registrar a temida queda no número de frequentadores, acabaram também economizando boas liras: se antes, a cada dois anos, precisavam trocar poltronas, tapetes e até as telas de exibição (encardidas pela fumaça), agora viam pais satisfeitos trazendo seus filhos pequenos para as sessões.


O tradicional restaurante Dona Maria reabria, depois do incêndio que quase o consumiu.CP

    A prefeitura de Porto Alegre – que proibia o fumo nos coletivos de linha – estava igualmente sendo cobrada neste aspecto, uma vez que o cigarro era, a bem dizer, tolerado no interior dos seletivos urbanos, não raro gerando bate-bocas e incidentes desagradáveis. Pessoas inconformadas escreviam e telefonavam para rádios e jornais, manifestando sua revolta por uma brandura que seguia na contramão dos tempos. Defendendo-se, a direção da empresa Carris enviou nota aos jornais, lembrando que a não proibição vinha de uma lei anterior e que, afinal, “a liberalidade se restringe apenas ao cigarro industrializado, não sendo permitido charuto, cachimbo ou cigarro de palha”.
    Inconformado com o “cheiro nauseabundo da fumaça que provoca mal-estar e dores-de-cabeça”, inclusive nos táxis da cidade, o leitor “A. Pinto” desabafou na coluna do leitor do Correio: “Inúmeras vezes entrei em táxis com a esposa e filhas e o motorista fumando ostensivamente, continuou soltando baforadas de fumaça, sem o mínimo respeito, e até com o risco de acidentes em vista de guiar com uma só mão. Em ônibus interioranos e mesmo aqui na Capital é comum tal desrespeito”. 
    Enquanto isso, nos Estados Unidos (onde, havia anos, a publicidade do fumo estava proibida), divulgava-se estatísticas que apontavam a produção mundial de cigarros como a menor em 14 anos, algo explicado pelas crescentes campanhas de esclarecimento e a pesada tributação incidente em muitos países.

TEATRO DE ARENA, MUSI-PUC, RÁDIO CONTINENTAL, ALMÔNDEGAS
   Na Capital, na área de teatro, na Cidade Baixa, conforme se via na programação dos jornais, A Macaca Esquecida, peça infanto-juvenil encenada pelo grupo A Hora do Anjo e escrita pelo jornalista Caco Barcelos, prosseguia suas apresentações no teatro de Câmara da rua da República, somente aos finais de semana. No mesmo teatro, às 21 horas, estreava a comédia de costumes Rodolfo Valentino, com direção de Luiz Paulo Vasconcelos. 
   Do outro lado, na cidade de Guaíba, baseado no texto de João Simões Lopes Neto e com músicas de Carlinhos Hartlieb, o grupo Seraphin apresentava a Salamanca do Jarau. O ator paulista José de Abreu, 31 anos, havia anos radicado no Estado, integrava o elenco. 
   Na sexta-feira, 30 de abril, no teatro de Arena, nos altos do viaduto Otávio Rocha, seria a vez da estréia de Trágico Encontro, com Ivone Hoffmann e Marlise Saueressig, direção de Jairo de Andrade, gaúcho cujo nome esteve em evidência por todo o mês de fevereiro, quando a peça Mockinpott, dirigida pelo espanhol José Luiz Gomez, foi proibida pela censura federal, depois de meses de aplaudida exibição em diferentes partes do Brasil (em Porto Alegre o próprio governador Guazzelli viera assisti-la). Apresentada no teatro Paiol, em São Paulo, escrita pelo alemão Peter Weiss, autor de “Marat-Sade”, “Mockinpott”, a história de um homem comum que é detido pela polícia, havia sido laureada com importantíssimos prêmios nacionais. 
Programação de teatro na cidade, no dia 27 de abril: o São Pedro continuava fechado para reformas.


   Inconformado com a proibição, Andrade acionou amigos na imprensa e mobilizou a classe artística, incluindo Elis Regina e Ruth Escobar, conseguindo afinal que a censura liberasse a peça, ainda assim com fiscalização permanente e diária de agentes da Polícia Federal. Os censores alegavam que “com gestos e expressões” os artistas haviam mudado o sentido do texto por eles liberado. 
   Na mesma semana de abril, de quarta a domingo, o curioso relacionamento entre patrão e empregado em uma antiga mansão era contado na peça de Ronald Radde, no Clube de Cultura da rua Ramiro Barcelos, com Jurandir Alliatti e Sérgio Ilha.
   Revelando novos e surpreendentes talentos, a música gaúcha urbana também um vivia um bom momento: liderados pelos irmãos pelotenses Kleiton e Kledir Ramil, e embalados por uma recente aparição no Fantástico, o Show da Vida, o grupo Almôndegas (“conjunto que faz música de temática urbana e projeção folclórica”), formado por Kledir, Kleiton, Quico, João Baptista e Gilnei, percorria as principais cidades gaúchas em uma série de apresentações. Uma de suas músicas (Canção da Meia-Noite) fora incluída na trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo, que estrearia na próxima segunda-feira, 3 de maio, às dez da noite. Em julho de 1975, em meio ao crescente sucesso, o grupo havia se apresentado no Gigantinho em companhia dos mineiros Sá e Guarabira e de um surpreendente cantor chamado Morris Albert, “um brasileiro que, cantando em inglês, consegue enganar até os norte-americanos”. 
    Um tanto isolada das demais capitais, a Porto Alegre das caras novas de 1976 ouvia a rádio Continental e aplaudia o pessoal do Musi-Puc, festival de música organizado pelo centro acadêmico São Tomás de Aquino (filosofia e ciências humanas), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC. O evento acontecia no salão de atos da Reitoria (a edição de 76 foi realizada no auditório da Assembleia Legislativa), sem qualquer apoio oficial. 

Rede Globo: a novela Saramandaia, que marcaria época, estava para estreia no início de maio.

   Movimento artístico e musical revelador de um emergente Rio Grande urbano, a edição de 1975, a quarta, foi particularmente importante nesse sentido. Nesses dias, talvez sem saber claramente do seu papel em tal processo histórico-musical, Mister Lee – ou Júlio Fürst, 26 anos, radialista, músico e animador cultural – convidava todos para mais uma edição do seu Vivendo a Vida de Lee, o terceiro concerto a acontecer no Teatro Leopoldina e que reuniria na sexta-feira e no sábado doze nomes do Novo Movimento, entre eles Fernando Ribeiro, Hermes Aquino, Bobo da Corte e Mantra. 
   Os shows sucederiam as apresentações da cantora e tangueira argentina Amelita Baltar, em despedida das terras gaúchas. A principal casa de espetáculos da cidade, o teatro São Pedro, estava fechada para restauração e só seria reaberta ao público em agosto de 1984. No Gigantinho acontecia diariamente o espetáculo Os Cavalos de Viena, enquanto o Planetário – com seus três anos de existência – promovia os educativos A Mensagem das Estrelas e Nós e os Outros Mundos.
   Mais longe, no Rio, o músico Raul Seixas, de 30 anos, adepto da “sociedade alternativa”, trancava-se em estúdio para gravar um compacto simples (duas músicas) que incluía em nova canção chamada Eu Nasci Há Dois Mil Anos Atrás. E no dia 19 de abril, segunda-feira, em Porto Alegre, o pianista Bill Evans, “um patriarca do jazz”, apresentava-se no teatro Leopoldina, promoção da secretaria de Educação e Cultura do Estado. A 16 de setembro, em única apresentação a ser realizada no salão de atos da Universidade Federal, Stan Getz e Trio esgotavam antecipadamente os ingressos à venda na farmácia Panvel do “calçadão”.
   Tal como hoje, a capital gaúcha era destino certo para grandes nomes internacional que chegavam em turnê ao Brasil. Até mesmo o fenômeno mundial Uri Gheller veio a Porto Alegre no início de agosto para faturar alguns bons trocados com suas exibições de suposto paranormal capaz de entortar talheres, consertar relógios e reproduzir desenhos apenas com a força da mente. 


   Para alguns apenas um talentoso e midiático ilusionista, o israelense, de 28 anos, hospedou-se do hotel Plaza San Rafael, deu as tradicionais entrevistas em que se manifestava comovido com o “carinho do povo brasileiro” e fez uma série de caras apresentações no Leopoldina e outra maior, no ginásio Gigantinho.
   Na área de livros, segundo a tradicional lista da revista Veja (o semanário ainda estava sob censura prévia e, desde dezembro, não tinha mais Mino Carta como o seu editor), Gota d’Água (uma peça de teatro), de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes, mantinha-se há quinze semanas no topo da lista dos livros mais vendidos do Brasil, seguido de Rubem Fonseca com Feliz Ano Novo (liberado pela censura em 1975 e novamente proibido um ano depois).  
   Já o filho de Érico Veríssimo (escritor falecido em novembro de 1975 e cujo segundo volume de Solo de Clarineta acabara de ser lançado pela Editora Globo), Luís Fernando Veríssimo, vinha em quinto lugar, com A Grande Mulher Nua, coletânea de crônicas publicadas na imprensa. Dos estrangeiros o mais procurado era uma novela policial já bem conhecida de todos: Cai o Pano, de Agatha Christie, falecida em janeiro último. Grande sucesso cinematográfico daquele verão, dirigido pelo jovem (29 anos) Steven Spielberg, Tubarão, o livro, de Peter Benchley, ocupava o segundo lugar, vindo em terceiro Arthur Hailey, com O Dinheiro.
   No dia 24 de abril, sábado, porém, o mundo literário gaúcho comentava a morte do escritor Gladstone Osório Marsico. Natural de Erechim, o autor do festejado, ácido e satírico romance Cogumelos de Outono (1972) e Cágada, suicidou-se em Porto Alegre, aos 49 anos. Ele sofria de esquizofrenia e jogou-se do sétimo andar de um edifício.  
   
 A SAFRA DE SOJA BATE RECORDE E O RIO GRANDE CRESCE A 10%
   Para os trabalhadores gaúchos e brasileiros, porém, a grande novidade a ser anunciada não era cultural e sim econômica e dizia respeito ao reajuste anual do salário mínimo – o primeiro de maio cairia no próximo sábado e aguardava-se o pronunciamento do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto.  O custo de vida e a inflação (29,4% em 1975) estavam decididamente em alta e tudo indicava tempos difíceis. 
   Após uma longa espera o governo concedeu aumento de 44%, fazendo com que o mínimo (então regional) passasse a ser de 712 cruzeiros no Rio Grande do Sul, Estado que no final de 75 atingiu a renda per capita de 700 dólares.
    Para 1976 o mesmo ministro previa um razoável crescimento do Produto Interno Bruto, lembrando que, em 1975 o desempenho da economia brasileira (4% de crescimento) não fora “nem desesperador nem brilhante”, embora decididamente houvesse acabado o tempo do milagre econômico (em 1973 o PIB brasileiro aumentou em mais de 11%). Mesmo assim o país – atingido pela crise mundial, que seria a maior desde o final da Segunda Grande Guerra - crescera acima das outras nações latino-americanas, que ficaram no 3,3% em 1975.    

    Crescimento este influenciado pelas mãos do governo, fortemente estatizante e intervencionista na economia, o que desagradava setores do capitalismo nacional. Empresários paulistas, os mais inconformados, falavam até mesmo na vigência de um “capitalismo estatal” no Brasil. Em recente documento endereçado ao Presidente da República pela Associação Comercial de São Paulo, sugeria-se medidas práticas “visando a conter o ritmo de crescimento da participação do setor público na economia”.
    Em julho de 1975, o presidente em exercício da Associação Comercial de Porto Alegre, Antônio Carlos Berta, em discurso durante o jantar comemorativa do Dia do Comerciante, alertou para o estatismo (nesse aspecto ele via semelhanças entre o Brasil e a União Soviética) na economia e a grande desigualdade social brasileira, que não tinha sido combatida nos últimos anos.
    No início de agosto de 1976 a revista inglesa The Economist, em um longo artigo sobre o Brasil, aqui repercutido, afirmou que, na última década, a economia brasileira havia crescido “quase da mesma forma como os brasileiros dirigem seus carros: ou seja, com extrema velocidade, sem respeitar ninguém na estrada, expondo-se facilmente a acidentes e não parando para ver se seus passageiros ficaram para trás. No ano passado, com uma sonora freada, o carro entrou num engarrafamento de trânsito e teve de avançar vagarosamente”. 
    “No momento”, prosseguia The Economist, “bastaria dizer que o Brasil deverá fazer uma importante mudança na política econômica, afastando-se de um crescimento vertical a qualquer custo e voltando-se possivelmente para algumas medidas de substituição de importações”.
    “A crise do petróleo e a recessão mundial parecem ter forçado os generais, bem sucedidos em sua política anterior, a rever suas ideias. Para os brasileiros isto é um bem”.
    
   Economicamente, porém, o Rio Grande do Sul, com uma taxa de desemprego de 3,1%, não tinha muitos motivos para reclamar: trigo, a mais importante cultura de inverno, tinha ido mal, sim, mas a boa safra de arroz e a excelente colheita da soja faziam sorrir largamente os produtores, e isso se refletia na vida das pequenas cidades e no consequente aumento do consumo. Em Ijuí, na zona da produção, a empresa responsável pela construção do novo armazém da Cooperativa Regional Tritícola Serrana, Cotrijuí, queixava-se da falta de trabalhadores, os quais precisava buscar em outros municípios, já que havia muita procura por mão de obra de qualquer nível em toda a região.  
   Em 1975 a economia gaúcha crescera 10%, algo significativo comparativamente à média de 5,6% nos últimos 25 anos. A exportação de soja duplicara em relação ao ano de 1974 (o RS era o maior produtor brasileiro) e um novo mercado externo, o Oriente Médio, se abria para os produtores de frangos. Ainda assim a soja, o arroz, o trigo e o milho, somados, responderam por 78% da economia agrícola regional em 1975. 
   A crescente mecanização das lavouras aumentava os ganhos de produtividade dos agricultores, sendo que o Estado – em cujas terras operavam 25% de toda a maquinaria agrícola brasileira - perdia nisto apenas para São Paulo. Até o início de agosto de 1976 o Rio Grande já tinha vendido para o exterior quase 800 milhões de dólares somente em soja. 
    As exportações de calçados também cresceram no período de janeiro a julho de 1976, com quase 80 por cento a mais de faturamento real.  No setor naval, o Estaleiro Só, em Porto Alegre, estava fabricando e entregando dez navios encomendados por armadores gregos e dinamarqueses, destinados à navegação de cabotagem. Um negócio de 75 milhões de dólares. 
   Falando em navegação, aquele mês de abril talvez tenha sido o último em que o Correio do Povo publicou a sua tradicional coluna sobre o movimento de navios no porto da Capital, cuja importância, já então, era apenas um pálido reflexo dos anos dourados dos cais Mauá e Navegantes, nas décadas de 40 e 50, com intensa navegação de passageiros e de cargas. De qualquer forma, na quarta-feira, 14 de abril, estavam atracados nas docas porto-alegrenses os seguintes navios: “Raphael”, de bandeira inglesa, descarregando 370 toneladas de carga em geral procedente da Europa e carregando 1.300 toneladas de madeira; o “Cidade São Luiz”, brasileiro, descarregando 29 mil toneladas de cimento em saco procedentes do Recife e carregando 1.600 toneladas para a mesma cidade; “Alcajar”, de origem singalesa, descarregando 4.500 toneladas de fertilizantes da Europa; o “Serra Verde”, brasileiro, carregando 740 toneladas de carga em geral, também com destino ao Velho Continente; o “Lloyde Hamburg”, brasileiro, descarregando 150 toneladas de carga em geral  procedente da Europa e retornando para lá com 1.400 toneladas; e o “General W. Zainov”,  búlgaro, que levaria cinco mil toneladas de farelo. Para os próximos dias eram esperados os navios estrangeiros “Cosmonaut”, “Wiernetor”, “Crowk” e “Bow Gran”.

OS F-5 “TIGGERS” DA BASE AÉREA DE CANOAS ESTAVAM PARA CHEGAR
    Pesquisa da Fundação de Economia e Estatística descobrira que 56,8% dos gaúchos moravam em cidades (a maioria de minúsculo porte) e que quase 400 mil haviam deixado o Estado entre 1960 e 1970, período em que Rio Grande perdera atrativos para outras regiões brasileiras. Todavia, o nível de escolaridade dos trabalhadores empregados gaúchos era ainda sofrível – 64,76% tinham somente cinco anos de estudo. 
   Na área militar estadual, sempre em evidência – mas desta vez em algo estritamente profissional – a barulhenta novidade envolvia a os aviões supersônicos comprados aos Estados Unidos, 12 dos quais ficariam na Base Aérea de Canoas. Uma pista estava sendo reforçada para receber parte da esquadrilha dos barulhentos F-5, os poderosos Tiggers destruidores de vidraças – mas eles só chegariam em novembro. 
   Ali perto, para alívio dos pobres passageiros dos voos comerciais, anunciava-se para junho a implantação definitiva de um sistema de ar condicionado para o saguão e metade do aeroporto Salgado Filho, “atendendo a uma tendência mundial”. E já se projetava a construção de outro aeroporto, bem maior e mais moderno, para suprir as necessidades dos anos 80, possivelmente no município de Guaíba.
    Mas era o futurista Concorde, a “maravilha supersônica” a serviço da Air France, um dos maiores xodós daquele ano. No dia 21 de janeiro, quarta-feira, o avião mais moderno e veloz do mundo, de imponentes linhas aerodinâmicas, inaugurava a rota comercial Paris-Rio-Paris, com escala em Dakar, Senegal. Apesar de encurtar a viagem convencional em quatro horas (ele voava tão alto que das suas janelas se podia observar a curvatura da Terra), o avião se atrasou em 35 minutos em relação à chegada prevista no Galeão. Entre os seus passageiros estava o costureiro Valentino.
   Em abril de 1976 a programação das emissoras locais de tevê – Gaúcha, canal 12, Difusora, canal 10, Piratini, canal 5, e Educativa, canal 7 (ainda embrionária) – podia ser consultada nas páginas dos seis diários que circulavam então na Capital: Correio do Povo, Folha da Manhã, Folha da Tarde (que completava 40 anos de circulação naquela terça-feira, marcando uma série de comemorações e reencontro de velhos colegas), Zero Hora, Diário de Notícias e Jornal do Comércio.

As rádios FM era uma grande novidade tecnológica daquela metade dos anos setenta.

   Imprensa que, desta vez, com relutância, se transformara, na própria notícia. Desde o dia 11, domingo, um assunto dominava os cafés e as esquinas de Porto Alegre: o assassinato da jovem Maria José Alberton Silva, de 24 anos, estudante universitária e funcionária pública, atingida por um tiro de espingarda calibre 12. Ela trabalhava como assistente social na secretaria estadual do Trabalho e tinha sido secretária particular do seu irmão, Roberto Geraldo Coelho da Silva, titular daquela pasta no governo de Euclides Triches.  O fato ocorreu na madrugada de sábado para domingo, na Sinke, uma tranquila rua do bairro Santa Teresa.
    No início daquela madrugada ela e o médico Paulo Eduardo Freitas, de 26 anos, namoravam no interior de um carro estacionado defronte à residência de um dos homens mais conhecidos do Rio Grande do Sul – Flávio Alcaraz Gomes, de 48 anos.  O jornalista (que afirmava estar sofrendo ameaças nas últimas semanas) teria ordenado ao casal sair do local. Não atendido, disparou contra o veículo.
   Baleada na cabeça e levada às pressas ao Hospital de Pronto Socorro, Maria morreu horas depois. Flávio, diretor da Rádio Guaíba, primo do “big boss” da imprensa no Estado, Breno Alcaraz Caldas, apresentou-se à polícia e alegou disparo acidental – apesar de não ter corrido o prazo de 24 horas que o livraria do flagrante, ele foi liberado em seguida. A partir daí, em espécie de tácito acordo, os demais grandes jornais da cidade dedicaram ao assunto somente discretos informes, o último dos quais publicado naquela terça-feira pela Folha da Manhã – o matutino noticiava os depoimentos prestados no dia anterior pelo casal Darcy e Rita Segger. Foram eles que jantaram com Alcaraz e sua esposa, no Hotel Plaza, pouco antes do ocorrido na madrugada de domingo. Flávio contratou os serviços do advogado Eloar Guazzelli, primo do governador do Estado e conhecido por sua atuação em defesa dos presos políticos.
   No final de 1975 o jornalista havia lançado o livro Um Repórter na China, resultado de sua viagem ao país comunista de 900 milhões de habitantes e que, aos poucos, começara a se abrir à curiosidade do Ocidente. O “próximo livro de cabeceira de Mao”, como dizia o slogan publicitário, editado pela Garatuja, estava à venda “em todas as boas livrarias da cidade”.
                                                                
   Na grade televisiva, combinando ainda muitos programas em preto e branco com outros a cores, sabia-se que às 14 horas daquele dia 27, na tevê Difusora, Canal 10, hoje Bandeirantes, teríamos o filme Caminhos Incertos (colorido), seguido do desenho Jackson Five, enquanto a Gaúcha exibiria, no mesmo horário, Os Monkees Estão Soltos e, às 16 horas, Tarde Cor Especial, com Corrida Maluca.

A programação de TV no dia do incêndio.

   A Difusora abriu sua programação daquela terça-feira às 10h23 da manhã. Às 11 horas apresentou Aventuras de Rin-Tin-Tin, seguido do carro-chefe Portovisão, com Clóvis Duarte, Fernando Vieira, Tatata Pimentel, José Antonio Daudt, Renato Pereira, Cláudio Brito, Lauro Quadros, Larry Pinto de Faria, Sérgio Jockymann, Tânia Carvalho, José Fogaça e Pedro Américo Leal. Até o encerramento, por volta das duas da madrugada, exibiria ainda Os Jetsons, Batman, Perdidos no Espaço, Jeannie é um Gênio, Câmera 10 e Varig, a Dona da Noite.  
    Já o canal 12, filiado à Rede Globo, tinha em sua grade de programação (que naquele dia iniciava às 10h33min) o infantil e elogiado Vila Sésamo, seguido de O Mundo dos Animais, Jornal do Almoço, Sessão das Duas, Tarde Cor Especial, Sessão Aventura e Faixa Nobre (às 17h30min, com o filme O Planeta dos Macacos). Tal como hoje, antes e depois do Jornal Nacional (19h45min), sobravam novelas: Vejo a Lua no Céu (18 horas), Anjo Mau (19 horas, em preto-e-branco), Pecado Capital às 20h15min, e, às dez da noite, O Grito (que, na segunda-feira seguinte daria lugar a Saramandaia, com Dina Sfat, Sonia Braga, Wilza Carla, Juca de Oliveira e Milton Moraes).
   Segunda-feira, aliás, às 21 horas, tradicionalmente consagrada ao humorista Jô Soares e seu Planeta dos Homens, enquanto Chico Anysio, 45 anos completos naquele dia 12 de abril, reinava às quintas-feiras com seu Chico City.  Colado às novelas vinha o seriado Kojak, com o careca Telly Savalas no papel de detetive – havia um bom tempo ele fazia sucesso com sua calva, seu charme, seu chapéu e o seu pirulito.

A superprodução norte-americana Inferno na Torre estreou em Porto Alegre em novembro de 75, pouco mais de meio ano antes do acontecido na Renner. Os anos setenta foram pródigos em grandes incêndios, no Brasil e no mundo.



    Novidade aguardada por muitos no mundo televisivo ainda não acontecera de fato: a nova emissora de televisão do apresentador Silvio Santos, a TVS. Silvio ganhara a concessão governamental do canal 11, de São Paulo, em outubro, e pretendia criar uma rede nacional para divulgar e vender o seu Baú da Felicidade. 
   Enquanto isso, no plano internacional, o governo racista e isolado da África do Sul havia finalmente concordado em implantar tal tecnologia no País – a primeira transmissão aconteceu no dia 5 de janeiro de 1976. Considerada uma influência corruptora e temendo que fomentasse a indesejada integração racial, as autoridades brancas por muitos anos proibiram a televisão naquele país.  Por via das dúvidas, um aparelho de tevê, na terra do prisioneiro Nelson Mandela, custava então cerca de mil dólares, mais ou menos o dobro do que custaria no Brasil. 
   Em uma época tecnologicamente confusa em que os dois sistemas – preto e branco e a cores – conviviam na grade de programação das emissoras, as lojas brasileiras também vendiam os dois diferentes modelos, com seus botões de “horizontal”, “vertical” e “brilho”. Na Casa Klift, por exemplo, as promoções daquela Páscoa de 1976 anunciavam aparelhos a cores (Admiral Solar Color de 13 polegadas) por 4.990 cruzeiros à vista ou 24 vezes de 364,99, Telefunken Pal Color de 26 polegadas (8.930 cruzeiros à vista ou em “suaves prestações” de 653,72), enquanto o de 22 polegadas da marca Colorado sairia por 5.890 cruzeiros. Já um Telefunken preto-e-branco de 24 polegadas custava, à vista, 2.240 cruzeiros. 

PECADO CAPITAL E O INCÊNDIO QUE DESTRUIU OS ESTÚDIOS DA REDE GLOBO
   Desde novembro de 1975, logo depois do Jornal Nacional, os brasileiros acompanhavam as peripécias do taxista Carlão em Pecado Capital. Primeira novela da televisão brasileira a cores no horário das oito da noite, escrita por Janete Clair e dirigida por Daniel Filho, com Francisco Cuoco, Betty Faria e Lima Duarte nos papéis principais, Pecado Capital foi um grande sucesso televisivo e destacou-se também pela trilha sonora, com Paulinho da Viola e Wando. O final, todavia, se mostraria surpreendente: Carlão – atolado em um turbilhão de cobiça e dinheiro – é assassinado e a mocinha, sua amada, casa-se com Lima Duarte.
    A exibição do último capítulo, na noite de 4 de junho de 1976, sexta-feira, dia do pagamento dos funcionários da Rede Globo de Televisão, seria marcada por um fato que abalou os estúdios no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. 
   No meio da manhã fumaças irromperam pelo centro nervoso da emissora, na sala onde são colocadas as imagens no ar, o segundo dos dez andares do edifício. O fogo se espalhou rapidamente pelas instalações do ar condicionado e nas horas seguintes foi destruindo caríssimos equipamentos recém-importados e – de forma irrecuperável - centenas de rolos de fitas, dentre elas os 35 primeiros Fantástico, todas as primeiras edições do Jornal Nacional e quase todas as novelas e programas humorísticos e de variedades da emissora. 
   O que não queimou foi inutilizado pelos jatos de água dos bombeiros. Calcula-se que somente nessa ocasião mais de mil rolos de fita tenham perecido, um prejuízo incalculável para a memória da televisão brasileira. Esse sinistro superou de longe os outros dois anteriores, em 1969 e 1972.
    Mesmo assim a Globo não interrompeu a sua programação normal, que passou a ser transmitida de São Paulo. Cerca de 200 bombeiros combateram o sinistro, que teve muitas pessoas intoxicadas pela fumaça, algumas delas querendo saltar das janelas, mas nenhuma vítima fatalVinte e dois homens e mulheres foram atendidos no hospital Miguel Couto.

   Um dos filmes mais noticiados e aguardados dos últimos meses, Um Estranho no Ninho, de Milos Forman, com Jack Nicholson, 39 anos, no papel principal, ainda não estreara nas salas de cinema de Porto Alegre, embora já tivesse sido escolhido pela Academia de Hollywood, em março, como o grande vencedor do Oscar de Melhor Filme de 1975.  
   Bem mais caseira e acanhada, sem Oscar, sem tapete vermelho e sem nenhum glamour, a produção nacional de pornochanchadas atraía em todo o Brasil um público fiel aos cinemas populares. Em Porto Alegre os mais frequentados eram o Carlos Gomes, no centro, e o Castelo, na Azenha. Também popular - mas sem cenas de sexo - o filme A Quadrilha do Perna Dura, produção de Pereira Dias, com Teixeirinha, 49 anos, e Mary Terezinha, 28 anos, havia estreado nos cinemas gaúchos em março e prometia o mesmo sucesso de tantas outras fitas do Rei do Disco. 
   A despeito de polêmicas e antipatias ideológicas e estéticas que o cercavam desde que gravara em 1961 o seu espetacular sucesso musical Coração de Luto – a história do filho que lembra sua vida a partir da morte da mãe, torrada pelo fogo em um súbito incêndio em sua casinha rural – Victor Mateus Teixeira transformou-se em um ídolo popular, protagonizando diversos filmes de enredo simplório que lotavam os cinemas dos três Estados do Sul ou onde houvesse influência gaúcha. Na rádio Farroupilha, com Mary Terezinha, apresentava o programa matinal Teixeirinha Amanhece Cantando.
   Teixeirinha que, é claro, não esteve no IV Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, realizado em pleno verão, de 20 a 24 de janeiro, o evento mais badalado da grande tela nacional, o Oscar tupiniquim, e que desta vez homenageou o ator Grande Otelo e os diretores Alberto Cavalcanti, Ruy Santos e Roberto Farias. Quem no entanto roubou a cena, “pela plástica e juventude”, foi a dupla Pedro Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”, e a jovem modelo Rose Di Primo, de 20 anos. 
   Com ar blasé, os dois passaram quase todo o tempo juntos, à beira da piscina do Hotel Serra Azul, muito embora fizesse um friozinho na serra e o sol raramente surgisse. Segundo os jornalistas, a modelo e atriz de Eu Transo Ela Transa, Banana Mecânica e Uma Virgem na Praça, a aloirada menina das motos das praias do Rio de Janeiro, encarnava com perfeição “o padrão da beleza moderna”.  
   Quem também se fez notar pela beleza e profissionalismo foi a jornalista (e atriz e modelo) Márcia Mendes, que viera a Gramado para gravar matéria a ser exibida no Fantástico. Márcia, capa de muitas revistas, então casada com o galã Marcos Paulo, morreu vítima de câncer três anos depois, aos 34 anos.
   Ao término desta quarta edição do Festival, O Predileto, de Roberto Palmari, levou a maioria das premiações: os troféus Kikito de melhor filme, melhor ator (Jofre Soares), melhor fotografia e melhor roteiro. A gaúcha Lilian Lemmertz, de Lição de Amor, de Eduardo Escorel (melhor diretor), foi escolhida a melhor atriz, enquanto Arnaldo Jabor, 35 anos, levou o prêmio especial do júri por O Casamento, baseado na obra de Nelson Rodrigues e estrelado por Adriana Prieto, atriz morta em acidente de automóvel no final de 1974.

    No último dia do festival, sábado, o ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, gaúcho de São Francisco de Paula, reuniu-se com representantes da classe artística (entre eles José Lewgoy) para novamente discutir a regulamentação da profissão de ator, algo que, no seu entender, aconteceria em meados do ano – na realidade, isto só ocorreu em 1978.




PARTE 2 – O INCÊNDIO


Foto publicada no CP, sem crédito, possivelmente de Ricardo Chaves



A ARAPUCA E A VONTADE LOUCA DE VIVER
    Naquele dia 27 de abril de 1976 o jornal Folha da Tarde trazia um imenso anúncio, quase de página inteira, divulgando a nova coleção de roupas da Renner, a Vivre, com a foto de um casal de namorados e o slogan: Vivre. Basta uma louca vontade de viver, e pronto: “Em qualquer lugar. A qualquer momento. Vivre é a própria vida, traduzida em gestos livres e roupas espontâneas. Tudo muito à vontade para que você possa fazer o que quiser sem nunca perder a naturalidade, o jeito simples de ser elegante. Vivre, um novo estilo de vestir, para a gente viver melhor”.
 
   Mas, naquele momento, a rigor, não bastaria tão somente uma louca vontade de viver e pronto: a partir das 14 horas daquela terça-feira os gaúchos voltavam atenções para o drama de sobrevivência que se desenrolava na esquina da rua Doutor Flores com a Otávio Rocha, vias centrais da Capital.
   Ali, ainda sem os canteiros e o atual calçadão, erguia-se um edifício construído no início dos anos trinta, um grande magazine de oito pavimentos ofertando extensa linha de produtos que ia de roupas infantis a eletrodomésticos.
   No sétimo andar estava o Terrasse Renner, restaurante e casa de chá e de onde se podia descortinar a bela paisagem do estuário do Guaíba e suas ilhas. Junto ao edifício Renner, em construções geminadas, funcionavam o Armazém Rio-Grandense, a Lojas Imcosul e uma agência da Caixa Econômica Federal. Em volta, muitas e altas construções – o local era, e é, uma das áreas de maior concentração predial e comercial do centro da cidade.
   Naquele momento entre 500 e 600 pessoas se encontravam no interior do edifício, a maioria clientes, além de casais e executivos que ainda almoçavam no Terrasse. Por sorte, metade dos cerca de trezentos funcionários da casa trabalhavam em um sistema de horário alternado e muitos haviam largado o primeiro turno do expediente às 13 horas, para o almoço, só devendo retornar às três da tarde.

                                                                             *
    No primeiro andar, o funcionário Luís Carlos Bandeira atendia a clientes na seção de eletrodomésticos. Tudo se sucedeu com uma rapidez desconcertante, relatou mais tarde:
   “De repente chegou um colega e falou que a loja estava incendiando, que era pra descer todo mundo. Eu e outros seis colegas não descemos, queríamos apagar o fogo, pois eu tinha a certeza de que o incêndio tinha começado ali mesmo, no depósito de tintas. Procurei extintores, mas foi tarde. Havia muita fumaça e a gente percebeu que não adiantava mais nada. Então decidimos salvar clientes e colegas. Subimos três vezes até o terceiro andar, nas duas primeiras vezes foi fácil, mas no último já tinha muita fumaça e estava quente. Cada vez a gente trouxe para baixo três ou quatro pessoas. A gente precisava ajudar porque o pessoal estava meio perdido, tinha até gente subindo as escadas ao invés de descer”.
   Na última tentativa Luís encontrou, agarrada às cortinas, uma jovem completamente histérica que parecia querer fugir pela parede. Ele precisou aplicar-lhe um tapa no rosto para que recobrasse a razão. Pegando-a com os dois braços, pode afinal carregá-la sem resistência.
   Outra que escapou do inferno, Maria Helena, de 24 anos, fazia compras no quarto pavimento da loja quando foi avisada do fogo. Barrada pela cortina de fumaça, não conseguiu descer e rumou instintivamente para o terraço.
   “Todo mundo foi pra cima e um homem me ajudou a subir. Eu disse a ele que estava me sentindo mal e que ia desmaiar. Ele falou: se tu desmaias, tu não sai daqui”.
   No terraço, sem entender se era uma forma de se proteger da fumaça ou se haviam desmaiado, Maria viu pessoas deitadas no chão. Em seguida retirou o lenço que prendia seus cabelos e amarrou-o à boca. “Esperei uns dez minutos e durante todo o tempo tropecei numa porção de gente que estava caída. Tinha uma senhora que queria se jogar, e eu gritava para ela não pular que a escada vinha chegando”. Mal sabia ela que, não muitas horas depois, vivenciaria situação semelhante em outro endereço.
   Em pânico, atropelando-se e pisoteando-se umas às outras, todos corriam para o alto, atitude que custaria vidas e transformaria o trabalho dos bombeiros um penoso confronto contra uma implacável e aprisionante estrutura de cimento e de ferro.
   Mais tarde se saberia: havia, sim, saídas em cada andar, ligando o edifício ao prédio ao lado e também outra, de emergência, no alto. Mas é bem provável que todas estivessem trancadas àquela hora e, mesmo que não estivessem, poucos funcionários conheciam tal recurso salvador: afinal, ninguém havia sido orientado sobre como proceder em caso de incêndio e sequer sabiam o básico: usar os extintores de fogo.
   O jornal Folha da Manhã publicou, na sua edição de quinta-feira, 29, em “Fatos Que Marcaram a Tragédia”, o relato do zelador da galeria A Nação, na rua Doutor Flores - teria ele, em atitude individual, se antecipado à toda a operação de salvamento. Marco Antônio Schimdt afirmou que, ouvindo os gritos desesperados vindos do restaurante, pegou uma escada velha e posicionou-a na baliza do prédio anexo da Renner, cuja parede lateral mais tarde desabaria por inteiro. Conseguiu, com isso, resgatar três pessoas pela sacada.
    Já o estafeta do Corpo de Bombeiros, Eufrásio Conde, mal fechava a porta do veículo estacionado na Doutor Flores e que utilizava para entregar correspondências da corporação, quando olhou para cima e viu uma fumaça escura tomando conta do edifício.
   “O fogo recém tinha começado, eram 13h45min e eu corri para entrar no prédio. Naquela hora já havia muita gente se amontoando aqui por perto, no meio da rua, nas calçadas, todos olhando, querendo ver. Subi no edifício da loja, cheguei até o segundo andar, depois não deu mais, o fogo já tinha invadido completamente os outros andares. Na minha volta, muita fumaça e gente correndo”.
   Aos repórteres da Folha da Manhã Eufrásio contou ter manuseado alguns extintores de incêndio que encontrou mais à mão, porém foi inútil – o fogo prosseguia ainda com mais vigor, enquanto as pessoas corriam em pânico: “No meio da fumaça toda, aquele calor, acho que ninguém pensava direito. Corriam de um lado para outro. Vi que muitos subiam para o terraço, acho que alguém mandou eles para lá. Quando eu saí ainda dava para descer pelas escadas e ganhar a rua. Mas aquilo eu não esqueço mais”.
   Soube-se mais tarde que um soldado da Brigada Militar se encontrava no quarto andar no momento em que as chamas irromperam e poderia, quem sabe, com dois ou três extintores, ter dominado a situação. Porém, por mais que procurasse, o policial não encontrou nenhum destes equipamentos. Ademais, na confusão que se seguiu, não havia ninguém que pudesse informar da localização de coisa alguma. Ele então tratou de salvar a própria pele, descendo as escadas e ganhando a rua.
    Assim o Correio do Povo descreveu aqueles momentos.
   “Veio o estouro desencadeado pelo medo, e na correria dos que procuravam escapar do inferno já prenunciado, pessoas caíram ao chão, feriram-se, tiveram suas roupas rasgadas. Eva Maria Braga Cançândino, atendida no Pronto Socorro com algumas escoriações, estava na sobreloja e declarou que não chegou a ver nem fumaça e nem fogo. De repente sentiu-se empurrada, recebeu pancadas de todos os lados e acabou desmaiando. Quando recobrou os sentidos estava no HPS”.

Matéria da revista Veja. Com a sucursal próxima ao local, teve dois fotógrafos trabalhando: J.B. Scalco e Ricardo Chaves.


   Todavia, para as três dezenas de pessoas que almoçavam no Terrasse Renner, a percepção de que algo extraordinário estava acontecendo demoraria mais alguns minutos.
   Eram 14h10min quando o garçom Kurt Margott notou gritos e uma inusitada movimentação nos andares abaixo. Ao descer para o pavimento inferior, viu nuvens de fumaça obscurecendo a estreita escada de ligação entre os pavimentos. Imediatamente ele voltou para o restaurante, onde o pânico já se instalara.
   Assim como Kurt, Paulo, um confeiteiro de 59 anos, revestiu-se de sua coragem máxima e não se deixou levar pelo desespero.
   Paulo e Kurt, entre outros, ganhariam a condição de “homens fortes” da tragédia, acalmando os mais histéricos e orientando-os nos procedimentos de sobrevivência. De posse dos extintores – que, ao contrário da maioria, sabia utilizar corretamente – Kurt tentou de pronto combater as chamas. Ao constatar a inutilidade do ato ordenou que todos molhassem as próprias roupas e colocassem panos umedecidos junto à boca e nariz para evitar o efeito tóxico da fumaça e atenuar o crescente calor. “Calma, vamos esperar o socorro dos bombeiros, que já estão chegando!”
   Inteligentemente, eles jogaram água da caixa dágua no piso e esperaram pelo salvamento. 
   Uma hora depois, já salvo e sem maiores ferimentos, o garçom contou aos repórteres: “Se eu não mantivesse a calma para orientar os funcionários que estavam nos últimos pavimentos, mais da metade teria se jogado para o chão. Todos estavam desesperados. Eu molhei as roupas do corpo e o avental, fazendo o mesmo com a roupa dos outros. Ensinei que deveriam manter um pano molhado próximo ao rosto”.
   Sidnei Marques da Silva, 40 anos, cozinheira do restaurante, irmã de Everaldo, campeão mundial de futebol na Copa do México, em 1970, não manteve essa calma e tornou-se a primeira vítima fatal da tragédia que mal iniciava – desesperada, saltou no espaço com seu uniforme branco, caiu por quase trinta metros, bateu em uma proteção de marquise e desabou no chão da praça Otávio Rocha, em meio aos gritos da multidão. Ela não morreu de imediato e sim a caminho do hospital. Minutos depois foi a vez de um funcionário da Renner, vestindo calça lilás e blusa vermelha, mais tarde identificado como Paulo Roberto Apolo, de 19 anos, voar para a morte. Outras pessoas ameaçavam fazer o mesmo.
   Eram então 14h10min. Se ficassem onde estavam, protegendo-se com panos molhados, tanto Paulo Roberto como Sidnei, que estava grávida de três meses e havia um ano e meio trabalhava no Terrasse, certamente seriam salvos pelos bombeiros.
   Coincidentemente, a cozinheira morreu no mesmo dia em que seu irmão, sua cunhada e uma filha destes, de apenas três anos, perderam a vida em um acidente de carro, 27 de outubro de 1974, exatamente um ano e meio antes.
   Também por um dessas estranhezas do Destino que parecem acompanhar os grandes dramas outro irmão seu, o enfermeiro e ex massagista do Grêmio Football Porto-alegrense, Ariovaldo Marques da Silva, 34 anos, chegava ao local naquele exato momento e acabou presenciando tudo. Ele ainda abraçou a irmã com vida a caminho do hospital.
   “Só Deus sabe a certeza amarga que tive de que era minha irmã, ao ver apenas os pés para fora da marquise e a ponta da pantalona”, relatou ele, à noite, fumando muito e cercado de parentes e amigos em uma das capelas do Cemitério Ecumênico João XXIII, onde Sidnei foi sepultada.
   Ariovaldo contou que tinha ido ao centro se encontrar com outro irmão seu, quando soube do incêndio e lembrou-se que Sidnei trabalhava no local. Ressaltando as coincidências, os jornais destacaram a trágica sina da família Marques da Silva, perseguida por fatalidades dessa natureza.

    Às 22h30min de 27 de outubro de 1974, domingo, o ex-lateral esquerdo do Grêmio e tricampeão mundial de futebol pela seleção brasileira na Copa de 1970, no México, Everaldo Marques da Silva, colidiu seu automóvel Dodge-Dart contra a traseira de uma carreta Mercedes-Benz, com placas de Santa Maria, carregada com 24 toneladas de arroz.
    Muito popular em todo o Estado, homenageado e paparicado depois da Copa (negro em um clube e em um Estado considerados racistas, foi o único representante gaúcho no selecionado titular), Everaldo havia encerrado a carreira nos gramados e fazia então campanha eleitoral para eleger-se deputado estadual nas eleições de 15 de novembro de 1974 pela Aliança Renovadora Nacional, Arena, partido governista.
    Conduzido ainda com vida ao Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, faleceu a caminho – com ele morreram sua esposa, Cleci Helena, e sua filha Deise, de apenas três anos. Cleci teve morte instantânea – foi arremessada para fora do carro. No dia 3 de maio, também um domingo, morreu a irmã de Everaldo, Romilda, totalizando quatro vítimas fatais. O acidente aconteceu em uma grande reta, na altura do quilometro 43 da BR-290 (Porto Alegre-Uruguaiana), município de Cachoeira do Sul.  Tripulado por sete pessoas – Everaldo, Cleci e Deise e a filha mais velha, de seis anos, Denise, a irmã do jogador, Romilda, o tio Jardelino e a cunhada Maria Madalena Pereira da Silva, o carro havia sido presente de uma concessionária de Porto Alegre pelo tri conquistado no México.
   Apesar de todos, no calor do momento, culparem o caminhoneiro Vergilio Broglio (que disse ser “um gremista doente”), de 48 anos, motorista do Mercedes-Benz, residente em Santa Maria e que seguia em direção a Porto Alegre, constatou-se que Everaldo, cansado e na pressa de chegar logo a Porto Alegre, dirigia em alta velocidade (cerca de 160 km por hora, segundo apurou a perícia). Já o caminhoneiro não calculou corretamente a manobra de saída do restaurante e posto de gasolina, retornando bruscamente à rodovia – ele também não prestou socorro às vítimas e, segundo testemunhas, tentou fugir do local, sendo interceptado por outro carro que o perseguiu. A rodovia, à época, apresentava pistas em bom estado e era bem iluminada.
   O campeão mundial tinha ido a Cachoeira participar de um jogo dos veteranos do Grêmio contra a equipe do ginásio local dos Irmãos Maristas. Os veteranos venceram por 6 a 3 e Everaldo teve uma participação discreta, mas, sem dúvida, foi o responsável pelo bom público pagante. Ele chegou com a família em seu Dodge amarelo (os demais jogadores vieram de ônibus fretado), distribuiu santinhos da sua campanha, deu autógrafos, posou para fotos e, no início da noite, participou de uma confraternização.  Na saída, Loivo – jogador do Grêmio que o apoiava no corpo-a-corpo político - gritou-lhe do interior do seu Chevette: “Nos encontramos em Minas do Butiá pra tomar uma champanha!”.
   Apesar de já não estar mais relacionado entre os titulares do Grêmio, Everaldo ainda mantinha contrato de trabalho com o clube (ganhava 15 mil cruzeiros mensais). Havia, inclusive, acertado com os dirigentes a realização de um jogo de despedida, igualmente comemorativo dos seus 15 anos de casa, marcado para julho do próximo ano. No sábado – lembraram depois seus colegas e amigos – o atleta ainda esteve no Olímpico, participando de trabalhos físicos e treinamentos leves.
   Surgido no Grêmio ainda criança, ele assinou seu primeiro contrato com o tricolor em janeiro de 1961, na categoria infantil - era alto, magro e canhoto no chute. Everaldo foi campeão estadual em 66, seguindo-se os títulos de 67 e 68 (o hepta tricolor). De junho de 1965 a outubro de 1966, esteve emprestado ao Juventude de Caxias do Sul.  Foi convocado para a seleção de 1970 sem nenhuma garantia de ser titular, o que acabou de fato acontecendo graças, sobretudo, à sua aplicação tática e ao seu jogo simples, discreto e eficiente. Na definição do seu ex-técnico Carlos Froner, “era um jogador que crescia de acordo com a importância da partida”. Era também considerado um atleta viril, mas leal em suas disputas, o que lhe valeu o prêmio disciplinar Belfort Duarte da Confederação Brasileira de Desportos.
   Naquele domingo à tarde, no Olímpico, o time da casa, treinador por Sérgio Moacir, havia vencido a equipe do Caxias por 1 a 0, gol de Dionísio. O ataque gremista, formado por Luís Freire, Iúra, Tarciso e Bolívar, teve grandes dificuldades para superar a retranca grená.
   Em meio à grande comoção, Everaldo foi enterrado no cemitério João XXIII, junto com a mulher e a filha – coincidência ou não, o local havia sido campo do Esporte Clube Cruzeiro, tradicional agremiação de Porto Alegre. Mais tarde, em homenagem ao jogador, o Grêmio inseriu uma estrela dourada em sua bandeira oficial.

MORTES DE SIDNEI E PAULO ROBERTO MARCAM “O TERROR IMPLANTADO”                                                                     
   A morte da irmã de Everaldo e funcionária do Terrasse, jogando-se do alto, ainda antes dos bombeiros iniciarem os esforços de salvamento, deu a exata dimensão do que estava se passando no edifício Renner.
   Para o repórter da Folha da Manhã, com exatidão, aquele momento marcava, literalmente, “o terror implantado”:
   “Quase que ao mesmo tempo chegaram os carros dos bombeiros. Muitos gritavam e corriam, sendo evacuados por poucos policiais. O fogo, já forte, tomava conta de todo o prédio e uma parede interna caiu, produzindo um ruído que aumentava o barulho reinante. Um rapaz que lembrara-se que sua namorada havia feito compras pela manhã, na loja, comentava em voz alta: “Muito pior que o Inferno na Torre!”

O desespero de uma das vítimas, cercada pelo fogo e pela fumaça, em foto da imprensa.
O casal, vindo do interior, fizera compras na Renner. Agora lutavam para sobreviver.


A espera e a difícil decisão


   Alguns dos primeiros carros de bombeiros procediam da rua Fernando Machado, ali próximo, onde uma casa de cômodos também estava pegando fogo. Em seguida aportaram os efetivos dos outros quartéis, seguidos das ambulâncias. A fumaça subia em grossos espirais e o fogo lambia e rachava as paredes dos oito andares. Em minutos compareceram ao local três caminhões equipados com escada Magirus, dois caminhões-pipas, duas guarnições da Brigada Militar, uma viatura da Polícia Militar e uma camioneta da Polícia Civil.
   Desta última desceu um senhor que logo se identificou. “Sou inspetor de polícia, vim aqui para ajudar”. Estava chorando e imediatamente revelou o motivo: “Meu filho é gerente de vendas. Trabalha no terceiro andar”. Tratava-se, o pai, de Armênio Seara, 61 anos, lotado no departamento de Diversões Públicas da Polícia Civil. Mesmo visivelmente abalado, ele ajudou os PMs a organizar os cordões de isolamento. O local e as cercanias eram, aquelas alturas, um compreensível pandemônio de eletrizada massa humana.

   “As escadas aproximam-se pela terceira vez do prédio. A maior alcança o último andar e com o auxílio de uma machadinha o bombeiro quebra os cacos de vidro que lhe obstruem o ingresso. Entra e logo depois volta, conduzindo vagarosamente o primeiro a ser salvo naquele andar. Minutos antes a segunda pessoa atirava-se, vindo a cair no meio da evacuada Doutor Flores. Uma ambulância imediatamente retirou uma maca e foi buscar o corpo retorcido, que ainda assim, sem vida, foi levado ao Pronto Socorro Municipal”.
   “Um povo comprimido entre os cordões de isolamento, policiais e bombeiros correndo desesperadamente e mantendo uma precária ordem, quase 30 fotógrafos e jornalistas assistem num dos raros momentos de silêncio entre as duas e quatro horas de ontem, a descida do triste cortejo de funcionários intercalados e amparados por bombeiros”.
   “Eles vêm largando roupas do alto que mais parecem corpos. Vários inteiramente queimados e com a boca preta devido à intoxicação motivada pela fumaça. Chegam ao chão e imediatamente recebem um saco de leite para beber. Um bombeiro explica, em altos brados, ao mesmo tempo em que bebe outro – o leite, nestas horas, é o único remédio contra a intoxicação”. (Folha da Tarde.)

   Embaixo, a multidão tentava acalmar os que estavam no Terrasse, gritando em coro: “Não pulem! Não pulem!” Quem quase pulou foi Ilasir Barreto Gonçalves, de 21 anos, caixa do restaurante havia dois anos e moradora da Vila Esmeralda, em Viamão, na Grande Porto Alegre, para quem tudo parecia um súbito pesadelo.  
   “Tudo aconteceu com uma rapidez incrível. Primeiro veio o cheiro da fumaça e os funcionários e os frequentadores fizeram alguns comentários, sem grandes preocupações. Os funcionários chegaram a lembrar o que aconteceu há alguns meses, quando um circuito no ar condicionado provocou um cheiro parecido, mas que desapareceu logo. Mas desta vez em dois minutos já tinha muita fumaça. Aí todo mundo começou a correr e a gritar. Uns querendo descer, outro querendo subir. O seu Jonas (ecônomo e arrendatário do Terrasse) tentava acalmar as pessoas. Eu gritava “socorro”, chamando pelo seu Jonas e pela dona Teresinha. Corri para a janela, olhei para baixo e pensei em me jogar. Mas fiquei com medo da altura e voltei. Procurei a porta, mas a fumaça tava me sufocando cada vez mais. Aí eu voltei pra janela. Nesse momento eu vi uma escada grande, de ferro, que vinha subindo na minha direção. A escada não chegava nunca, parece que passou toda uma vida. Rezei muito, em voz bem alta, até que eu consegui pegar na ponta da escada. Nessa altura eu já estava quase desmaiando. Depois não lembro de mais nada. Acho que desmaiei. Não sei quem me tirou daquele inferno. Me levaram para um hospital e eu nem sei qual é. Quando me recuperei já estava em casa”.
    Cléia Nunes Silva, outra sobrevivente, trabalhava na parte baixa da loja e conseguiu sair a tempo pela porta da frente da loja. Ela confirmou que todos, no desespero, só pensavam em subir para o terraço: “- Todos queriam subir. Não havia saída dos andares, que são fechados, e só era possível se salvar pelo térreo ou pelo terraço”.
   Já Claudiomiro Cardoso dos Santos, 20 anos, vendedor do setor de camping, no terceiro andar, estava atendendo a um cliente quando começou a perceber um cheiro diferente. Dez minutos depois ouvir um forte estrondo, que imaginou ter vindo do setor de tintas, mais abaixo.
   “– Foi tudo tão rápido que eu nem sei direito” – relatou horas depois, no HPS, onde foi um dos primeiros a ser atendidos. Estava com os olhos vermelhos, os cabelos chamuscados e a roupa toda rasgada: “- A gente tratou de avisar todo mundo e de correr. Não se podia usar o elevador, que ele estava que era puro fogo. Nem mesmo a escada de emergência dava, com toda aquela fumaceira não se enxergava nada pela frente. Só tinha uma maneira de escapar, era pular para o prédio ao lado, que também é da Loja. Caí no telhado, me cortei nas pernas e fiquei muito nervoso”.
   Para o garçom Gentil da Silveira Porto, 37 anos, oito deles trabalhando no Terrasse, escapar ileso foi uma questão de segundos. Graças, sobretudo, à sua presença de espírito.
   Contou ele: logo depois de ouvir gritos de “fogo!”, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foram os conselhos que lera em um livro: em caso de incêndio não pegar elevador ou subir para o terraço.
   Seu raciocínio foi providencial - Gentil desatou a correr pelas escadas, “sem ver nada pela frente”. Ao alcançar o terceiro andar, deparou-se com uma cortina de fumaça que se espraiava pelos pavimentos abaixo sem, contudo, invadir a sobreloja, onde muita gente gritava loucamente e corria às tontas. “Se tivesse demorado um pouquinho mais ou tentasse salvar alguém eu não conseguiria sobreviver”.
   Outra pessoa, não identificada, que conseguiu descer pela escada relatou aos repórteres, na saída: “Passei por várias seções da loja e vi pelo menos os corpos de umas doze pessoas estendidos no chão. Não se mexiam, não diziam nada. Coisa horrível, meu Deus. No meio de tanta fumaça eu às vezes tropeçava nos corpos”.
   De fato, quem teve ao lado alguém com sangue-frio que o contivesse nessa hora pode escapar do pior. Vilma Coutinho Costa, uma senhora que almoçava no Terrasse Renner em companhia do marido, Ary, deve a sua vida ao companheiro – ela mesma reconhecia.  
   No dia anterior Vilma chegara de Jaguarão para fazer exames médicos na Capital. O casal hospedou-se no City Hotel, a poucas quadras da Renner. Depois de feitas as compras na loja os dois decidiram almoçar ali mesmo - foi quando o fogo iniciou.
   Confrontada com a fumaça e o calor, desesperada com o inferno que se originara nos andares abaixo, ela chegou a ensaiar o salto para a morte, colocando um pé na amurada e projetando meio corpo para fora. Nesse instante foi segura por Ary.
   A cena foi vista por todos: com muito esforço, agarrando-a pelo pescoço, ele evitou a queda da esposa durante uma meia hora que lhe pareceu interminável. Salvos pela escada, estava, entre os primeiros a descer. Ary, chorando, com sangramentos na cabeça e os cabelos chamuscados, contou:
   “Nós estávamos almoçando quando todos começaram a sentir cheiro de fumaça. Corremos para a escada de emergência, mas não dava mais. Ela estava cheia de fumaça. Era melhor ficar, pois se tentássemos descer certamente morreríamos sufocados. Mas a fumaça foi aumentando e o calor também. Aí começou o desespero. Era correria para todos os lados. Não sei como eu caí e quase quebrei minha cabeça. Mas isso não foi nada. O pior foi a crise de nervos que deu na minha mulher, ela não aguentava mais, tossia muito e me convidou para se atirar do prédio. Como eu disse para ela que era melhor esperar que a qualquer hora a escada dos bombeiros chegaria até nós, ela correu para a janela e só deu tempo de eu agarrar metade do seu corpo. Sabe lá o que é ficar quase meia hora agarrando ela, com a metade do corpo balançando para fora? Eu estava a ponto de largá-la. Não tinha mais forças para agarrar. Minhas mãos estavam doentes e eu senti que aos poucos ela estava escorregando. Até que a escada apareceu e nós dois descemos. Se os bombeiros levassem mais um minuto para colocar a escada perto de nós, eu ia largá-la”.
   A exemplo de tantas outras pessoas, dona Vilma também recuperou sua bolsa, entregue pelos bombeiros no dia seguinte. Havia ali uma boa quantia em dinheiro (7.500 cruzeiros) e mais um anel de brilhantes avaliado em cinco mil cruzeiros.

Foto CP



    Do lado de fora do edifício, atarantada, sem nada poder fazer, quase em choque, Maria Regina dos Santos, 25 anos, era a imagem da angústia. Ela tentava a qualquer custo saber de uma irmã sua, a caçula, que trabalhava na Renner – não estaria naquela ambulância que saiu, moço?, indagava, empurrando outras pessoas, chorando, pedindo para passar.
   “- O nome dela é Beatriz dos Santos, de 20 anos, trabalha aqui na Loja, o senhor não conhece, moço? Não viu ela sendo carregada, ferida, para dentro de alguma ambulância? Por favor, diz que viu, que ela está bem e que vai voltar para casa hoje no fim da tarde, como sempre”.
    Maria Regina tinha sabido do incêndio em um quarto de hospital, onde visitava sua mãe, que sofria do coração e estava internada para tratamento: “Conversava com ela e nunca ia imaginar o que aquele homem queria quando me chamou para um canto e me falou no ouvido: As Lojas Renner estão pegando fogo, não é lá que trabalha tua irmã?”

TODOS OS HOSPITAIS DA CIDADE SE PÕEM DE PLANTÃO       


        



                                                        
   A chegada dos bombeiros, das ambulâncias e de um batalhão de fotógrafos e repórteres logo seria seguida por soldados do Exército e por dois helicópteros da base aérea de Canoas.
   Toda a região central de Porto Alegre estava paralisada pela tragédia. A massa humana, cada vez maior, foi contida por cordões de isolamento instalados nas esquinas da rua Voluntários da Pátria com a Doutor Flores e Vigário José Inácio, e também na Otávio Rocha com a Marechal Floriano e a Senhor dos Passos; na Andradas com a Doutor Flores e a Vigário José Inácio. Todo o terminal de ônibus da Praça Rui Barbosa, com dezenas de veículos, foi evacuado.   
   Por conta própria ou aconselhados pela Brigada Militar, temendo assaltos e furtos, muitos comerciantes do centro fecharam as portas, enquanto uma excitada turba de comerciários, escolares, office-boys, funcionários públicos e curiosos que acorria ao cenário do incêndio passou a disputar, quase a tapas, o melhor ângulo de visão. Dos prédios mais próximos, por sua vez, algumas pessoas lançavam sacos de leite para quem estava no terraço da Renner. Em breve, porém, tais locais estratégicos seriam também ocupados pelos homens do Corpo de Bombeiros, que ali instalaram mangueiras.
   Atendendo ao pedido das autoridades médicas, as emissoras de rádio transmitiam agora urgentes apelos para que a população comparecesse aos hospitais a fim de doar sangue. Os que se dispunham a isso eram embarcados às pressas em uma ambulância. Deu resultado: uns 300 metros adiante, no Banco instalado no largo da Prefeitura, surgiram duas ordenadas filas, cada qual com dezenas de potenciais doadores.
   Entrementes, a sessão plenária da Assembleia Legislativa que acontecia no Palácio Farroupilha, na praça da Matriz, foi suspensa por “falta de condições psicológicas para o prosseguimento dos trabalhos”, isso depois que o deputado Waldir Walter (do MDB) ocupou os microfones para relatar o que tinha visto minutos antes. Naquele momento, porém, ele, assim como muitos outros, ainda não se tinha a exata dimensão do fato – mas intuía:O caso é tão grave que o Rio Grande do Sul compreenderá. Há dezenas de pessoas lá em cima do prédio, os helicópteros não podem descer. E, na minha opinião, queira Deus que não haja vítimas, mas é da maior gravidade o incêndio que está lavrando nas Lojas Renner, eu vi de perto, testemunhei uma das grandes tragédias do nosso Estado”.
   Na mesma direção, prontamente o presidente João Carlos Gastal colocou a ambulância e o corpo médico da Assembleia à disposição do hospital Cristo Redentor. Especializado em traumatologia e queimados, o Cristo montou uma operação de emergência, podendo mobilizar de 60 a 120 leitos em apenas trinta minutos, conforme garantiu seu diretor, Leo Copstein. Segundo o médico, naquele momento estavam à disposição dez anestesistas, dez cirurgiões plásticos e mais quinze traumatologistas, além de um banco de sangue bem suprido e uma farmácia extra, sem contar a possibilidade da convocação de mais funcionários.
    Bem perto dali, no hospital Nossa Senhora da Conceição, um dos maiores da cidade e pertencente ao mesmo grupo, o diretor-presidente, Wilton Bastos Barroso, também se colocava a postos, auxiliado por cinco cirurgiões plásticos e cinco clínicos gerais. Igualmente solidários, alguns hospitais particulares, como o Lazarotto, formaram equipes emergenciais de socorro. Já a Companhia Rio-Grandense de Laticínios e Correlatos, Corlac, enviou dois caminhões carregados de saquinhos de leite para distribuir aos intoxicados pela fumaça (nessa época acreditava-se, equivocadamente, no poder regenerador do leite) enquanto ambulâncias de clínicas particulares acorriam ao centro a fim de auxiliar na remoção dos feridos.

 BANQUETES E SOLENIDADES SÃO CANCELADOS OU TRANSFERIDOS
    Como é comum em tais circunstâncias, a cidade, surpresa e traumatizada, desorganizou-se quase completamente em muitos setores ou cancelou eventos festivos e alegres. Obviamente o jantar programado para aquela noite na Associação Leopoldina Juvenil, foi cancelado.
   Reunindo mais de 1.400 empresários brasileiros e estrangeiros, a solenidade coroaria o badalado Primeiro Seminário Internacional de Investimentos no Rio Grande do Sul, um megaevento econômico cujo tema central era o Terceiro Polo Petroquímico.
   O Seminário havia superado em duas vezes e meia o previsto em número de participantes. Sisudos e engravatados senhores, a maioria alemães, japoneses, franceses, ingleses, norte-americanos, italianos e argentinos, representando quase setecentas empresas, misturavam-se naquele momento a gigantes do empresariado nacional para sondar as possibilidades de investir e lucrar não só com o Polo como também atraídos pelas excelentes perspectivas do agronegócio no Rio Grande do Sul. Presentes, entre convidados e debatedores, estavam os ministros Alysson Paulinelli, da Agricultura, Mário Henrique Simonsen, da Fazenda, Paulo Tarso Flecha de Lima, representante do departamento comercial do ministério das Relações Exteriores, além dos presidentes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, BNDES, Banco Central e do Banco do Brasil. O general Araken de Oliveira, presidente da Petrobrás, foi um dos palestrantes.
    Por força das circunstâncias, o grande encontro empresarial esvaziou-se quase completamente – a maioria dos participantes, sem clima para negócios, passou a acompanhar o grande incêndio pelo rádio. Muitos deles regressaram para a aparente segurança de seus hotéis.
   Na quarta-feira, o Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre anunciou o cancelamento das comemorações da semana sindical de 1976, transferindo os atos de inauguração do seu setor de serviço médico e também a excursão aquática noturna pelas águas do Guaíba que aconteceriam na sexta-feira. No mesmo dia o secretário municipal da Produção, Indústria e Comércio, Arthur Zanella, alterou completamente a pauta de discussões do tradicional almoço semanal com os diretores da Federação das Associações Comerciais de Porto Alegre. Ao invés de explanar sobre o planejamento da área central da Capital – em rápida transformação – Zanella deteve-se exclusivamente no tema do sinistro da Renner, destacando o projeto de lei, ainda não aprovado pela Câmara Municipal (cuja sessão, suspensa, era basicamente dedicada às homenagens aos quarenta anos da Folha da Tarde), que obrigava os construtores e moradores à instalação de extintores e esquemas de combate ao fogo nos prédios de Porto Alegre.
   O incêndio da Renner também se tornou marcante para os participantes da reunião da Associação dos Jornais do Interior, ADJORI, cuja abertura aconteceu justamente naquela terça-feira, no Palácio do Comércio. Congregando quase 100 jornais do interior gaúcho, a entidade, com 14 anos de existência, realizava o seu centésimo congresso.
   Quem também viera do interior para audiências agendadas na capital era o prefeito da cidade de Rio Grande, Rubens Emil Correa – aqui ele presenciou a tragédia com suas “cenas dantescas”, e se disse admirado perante o heroísmo dos soldados do fogo. Emil lembrou que a sua cidade, uma das mais importantes do Estado, tinha apenas um caminhão-tanque em funcionamento precário para cerca de 50 prédios com mais de quatro andares. Coincidentemente ele levava em sua pasta um pedido às autoridades em favor do imediato reaparelhamento do Corpo de Bombeiros de seu município.
    Talvez pela presença de alguns convidados vindos dos Estados Unidos (entre eles um jornalista do Washington Post), outro seminário, intitulado A Situação Atual e as Tendências dos Meios de Comunicação Social, foi confirmado para aquela quarta-feira, uma promoção do Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre e Associação Rio-Grandense de Imprensa e que prosseguiu até sexta-feira no prédio da Faculdade dos Meios de Comunicação Social da PUC, Famecos.
  
DOADOR DE SANGUE FOI ASSALTADO E ASSASSINADO NO PARQUE DA REDENÇÃO

O gesto humanitário de um doador de sangue acabou resultando na sua morte: assassinado na Redenção, à luz do dia.


 Com 28 anos de idade e treze na corporação, o cabo Alcides Gonçalves era um dos que passavam pelo local na hora do início do fogo. Mesmo com problemas nos pés (estava em licença médica) e sem nada a protegê-lo das chamas, correu para dentro do edifício e tentou salvar os que lá se encontravam.
   Pouco tempo depois, heroico, com o rosto e os braços cobertos de remédios contra as queimaduras, explicou singelamente a sua atitude: “Numa hora dessas a gente não pensa em nada, não quer saber o que vai acontecer. E, depois, bombeiro não pode ver bombeiro mal”.
   Duas faces opostas do mesmo drama: ao tempo em que dezenas de homens e mulheres faziam fila no posto do banco de sangue do HPS no largo da Prefeitura, aproveitadores, punguistas e assaltantes agiam quase impunemente na cidade fragilizada.
   Ao ouvir os apelos no rádio, o auxiliar de enfermagem (trabalhava no Instituto de Cardiologia) José Jorge Escalante, 32 anos, pai de quatro filhos pequenos, saiu de sua casa, na avenida Getúlio Vargas, 379, pegando o ônibus da linha Menino Deus e descendo na André da Rocha, seguindo depois, a pé, rumo ao Hospital de Pronto Socorro. Ao atravessar a Redenção, próximo ao auditório Araújo Viana, foi interceptado por três homens e uma mulher, aparentando idade entre 18 e 20 anos, todos brancos, “mas queimados de sol”, conforme relatou depois uma testemunha.
   Os bandidos ordenaram que Escalante entregasse a bolsa que levava consigo – diante da negativa, ou algo assim, foi esfaqueado no peito. Agarrado ao objeto, ele ainda arrastou-se até a avenida Osvaldo Aranha. “Fui assaltado”, disse ao motorista que tentou socorrê-lo. Foi inútil: o auxiliar de enfermagem morreu quarenta minutos depois, no próprio HPS onde pretendia doar o seu sangue para salvar outras vidas.
    Mais tarde, aos repórteres que compareceram à delegacia de Homicídios, Sérgio, pintor de 27 anos, considerou a morte de seu irmão mais velho “uma dessas coisas incríveis que acontecem na vida”, lembrando que o auxiliar de enfermagem vivia aconselhando os outros a ter cuidado para não serem assaltados. “Inclusive quando eu me mudei para Viamão, ele achou que era muito perigoso e que eu devia evitar ir para casa de noite para não ser assaltado. Justamente ele acabou sendo assassinado por ladrões”.                                                            

 UM VERDADEIRO PRESÍDIO DE GRADES DE FERRO, RELATOU O BOMBEIRO
   O cabo Emilio Rocha Fontoura, com vinte anos de profissão, da Estação Floresta (inaugurada havia seis meses), foi um dos primeiros a entrar no edifício Renner. Ao chegar ao local com os demais colegas o pânico grassava no segundo e terceiro andares do edifício.
   “Cheguei lá e encontrei as pessoas querendo ir para os andares de cima e não descer. Pedi que descessem comigo, mas elas se recusavam. Então concordei em ir com elas até o último andar para poder resgatá-las com as escadas. No penúltimo andar retirei mais de 17 pessoas. Ninguém desmaiou, nem mesmo ficou intoxicado, pois eram retirados rapidamente”.
    O cabo não poupou críticas à estrutura do prédio: “As janelas com grades de ferro tornaram aquilo um verdadeiro presídio, uma ratoeira, não havia jeito de uma pessoa sair daqueles pavimentos. Acredito que um bom número de pessoas poderia ter sido salvo se não existissem aquelas barras de ferro. Não vejo razão para elas”.

Revista Veja. Possivelmente foto de J.B. Scalco.

   Antes os bombeiros tiveram de arredar caminho em meio à multidão de curiosos. Estacionados os carros, a primeira escada Magirus, a maior, subiu lentamente, enquanto outras duas foram dispostas na Doutor Flores. Em volta, a multidão acenava para as pessoas que estavam nos últimos andares, tentando acalmá-las. Ambulâncias começavam a chegar de todos os lados. Das janelas da loja incendiada pessoas sinalizavam com as mãos e lenços, implorando socorro imediato. Parte delas jogava seus pertences do alto.
   De súbito, a cabeça de um homem projeta-se pelo interior das grades de uma janela. Sufocado pela fumaça, e na intenção de alcançar a escada que se aproximava, ele havia quebrado os vidros para respirar ar puro quando, provavelmente intoxicado, desmaiou sobre os cacos pontiagudos e morreu devido aos cortes no pescoço. Exatamente nesse instante um bombeiro pulava no parapeito para tirá-lo dali.
   Sobreviventes do inferno, as primeiras pessoas a serem resgatadas pelos soldados do fogo receberam os aplausos da multidão. Transtornadas, tinham as bocas enegrecidas e tossiam e cuspiam muito.
   Já plantado na calçada, o garçom Flávio da Rocha Borges, o primeiro a ser salvo pelos bombeiros, bebeu alguns goles de leite e informou que ainda havia mais de trinta pessoas no terraço, muitas delas desmaiadas. Em seguida ele próprio desmaiou.
    Enquanto isto, ainda preso no alto do prédio, o confeiteiro Altair Giacometti tirou o casaco e iniciou uma arriscada descida, segurando-se em uma calha, fuga acompanhada com suspense por todos. No meio do caminho a calha entortou e Altair quase caiu. Mesmo assim, com admirável sangue frio, conseguiu escorregar até o terraço e ali finalmente agarrou-se à escada dos bombeiros, chegando são e salvo ao solo, onde recebeu o abraço de um sobrinho seu – identificado como Milton Mânica – que, de um canto da praça Otávio Rocha, desesperado com a cena, gritava, minutos antes, apontando para o alto: “Aquele é meu tio! Aquele é meu tio!”
  
   Uma escada Magirus, a maior – com capacidade máxima para 40 metros e que parecia não conseguir elevar-se além do penúltimo andar (a outra, aparentando problemas, não conseguia altear-se acima do quarto pavimento) – chegava agora ao terraço, onde se destacavam as figuras de mais pessoas à espera do salvamento.
   Elas iam descendo em fila indiana, algumas chorando, muitas tremendo ou em estado de choque. Quando chegavam ao solo eram rapidamente embarcadas nas ambulâncias. Algumas precisaram de respiração artificial.                                               
   O incêndio já durava mais de uma hora. Quinze horas e trinta minutos. Aos poucos a fachada do edifício passa a revelar o efeito devastador do fogo e das altíssimas temperaturas reinantes. As rachaduras eram visíveis e mesmo os objetos mais próximos às janelas iam caindo. Súbito, em um grande estrondo, desabou a parede que guarnecia os oito andares, cobrindo a Doutor Flores com uma nuvem de poeira que levaria minutos para dissipar-se. Uma repórter – que seguiria de volta à redação - não conseguiu controlar os nervos e pôs-se a chorar convulsivamente.

    O tabloide Folha da Tarde retratou o clima de quase histeria que então tomava conta das ruas do centro, tomadas por uma multidão movida pelas mais diferentes reações e sentimentos:                                                                                    
   “O centro, da Borges até a Pinto Bandeira, ficou parado e casas comerciais esvaziaram. O povo tomou conta das ruas aos empurrões, vozes angustiadas de um lado e policiais (civis e militares) do outro, estes tentando conter a curiosidade do público. A cada estilhaçamento de vidro ou objeto que caía do prédio, a multidão se retraía. Então sucediam-se mais empurrões, pessoas chorando, algumas gritando, poucas se afastando. A maioria permaneceu ali, com olhos voltados para o prédio em chamas, não querendo perder um detalhe do incêndio da Renner. Duas pessoas já haviam se jogado e isso poderia acontecer de novo.
   “Na Rua da Praia a confusão foi geral. Dos empurrões a multidão passou à briga, na qual se integraram os policiais, enquanto na Otávio Rocha outros tentavam alargar a área isolada. Os edifícios próximos, a praça e todos os lugares que oferecessem uma visão melhor do incêndio foram ocupados. Até no edifício da Ficrisa, que foi fechado, no décimo andar ainda ficou um homem imprudente, que se arriscava olhar de perto o que ocorria embaixo”.


Contracapa da Folha da Manhã, jornal da Companhia Jornalística Caldas Júnior.


HELICÓPTEROS DA BASE AÉREA ERAM INADEQUADOS PARA O SALVAMENTO
   A essas alturas a compacta e nervosa massa humana teve que ser afastada à força, inclusive com ameaças de jatos de água, em direção a Voluntários da Pátria, Vigário José Inácio, Andradas e Senhor dos Passos. Dois helicópteros militares sobrevoavam agora o local. Com tal evolução um forte deslocamento do ar espalhou a fumaça e atiçou ainda mais as chamas no interior do prédio, o que irritou sobremodo os bombeiros.
   Na verdade, a não ser por uma presumida função psicológica – serviria, em tese, para demonstrar o curso das iniciativas e, por conseguinte, acalmar as vítimas – nunca se entendeu de fato o que tais máquinas faziam no local do incêndio, já que não havia heliporto e nem os helicópteros enviados pela Força Aérea Brasileira mostraram-se apropriados para tais ações de salvamento. Soube-se mais tarde que eles, com sorte, poderiam resgatar somente duas pessoas por vez, e isto em condições favoráveis.  
   Dias depois, em entrevista que alguns classificaram de “muito franca”, os dois pilotos – capitães Cleber Baís e Luis Nogueira Galetto – reconheceram tal inadequação e informaram que somente outro tipo de aparelho, existente apenas na base aérea de Santa Maria, a 290 quilômetros da Capital, poderia executar com êxito a operação de retirada das pessoas do alto do edifício. “Esses possuem um guincho e podem resgatar 15 pessoas de uma só vez, mas a viagem de lá para cá demoraria uma hora e quarenta minutos”.
   Defendendo-se das críticas (“não pudemos nos aproximar devido ao calor reinante e a pouca visibilidade”) os dois militares aproveitaram a ocasião para alfinetar: “- Antes de mais nada, os construtores e as autoridades de Porto Alegre deveriam construir bem menos piscinas nos terraços dos edifícios e mais heliportos, o que já seria um bom princípio em matéria de participação de helicópteros”.
    Na verdade, apurou-se que, naquele abril de 1976, em tais circunstâncias, somente o hospital Nossa Senhora da Conceição possuía heliporto. “O que nós vemos muitos são telhados cheios de antenas de tevê, varais com roupas, caixas dágua e telhados pontiagudos", lamentou um dos pilotos, sugerindo a criação de uma lei que tornasse tais locais obrigatórios em prédios mais altos.
   Outro problema operacional, simples, contudo não menos sério, veio igualmente à tona: nem os pilotos da Força Aérea e nem os homens do corpo de bombeiros conseguiriam, a um só instante, por mais que quisessem, se comunicar à viva voz - a frequência de rádio de ambas as partes era diferente.

   Não bastasse a falta de roupas especiais e de máscaras a protegê-los da fumaça e dos gases – algo que havia sido prometido à corporação depois do que acontecera nas Lojas Americanas – os bombeiros, igualmente, enfrentavam dificuldades adicionais em terra.
   Chegando ao local, a pé, descobriram a insuficiência dos poucos hidrantes - como das outras vezes a saída foi recorrer à generosidade do Guaíba, onde as lanchas da Companhia de Socorro Naval da Brigada passaram a abastecer os carros-pipas. Antes, contidos pelo cimento do muro da Mauá, na altura do cais C-4, os soldados tiveram que pular sobre o imenso paredão de concreto, levando às costas mangueiras e toda a parafernália de combate ao fogo.
   Às 15h15min, através de megafones, a Polícia Militar apelou para que todos se retirassem. Homens da Polícia do Exército, sem maiores delicadezas, afastavam os populares.
   Como de praxe, a energia elétrica dos prédios mais próximos fora desligada. O comandante geral da Brigada, coronel Jesus Linares Guimarães, recém havia chegado ao local quando um soldado informou que alguém acendera uma vela em um dos apartamentos do último andar do edifício localizado na esquina da Vigário José Inácio, onde, no térreo, funcionava a loja Escosteguy. Minutos depois, os PMs e o comerciante respiraram aliviados: tratava-se unicamente da lanterna do zelador que fazia uma ronda de verificação.
   A este tempo os bombeiros estavam convictos de que nada mais de efetivo restava então a fazer. O soldado Jandir Carvalho lamentou: “Tentei tirar várias pessoas lá de dentro, mas elas não passavam pelas janelas”.
   Subitamente no interior do edifício explodiram botijões de gás. Um homem desacordado continuava dependurado com uma perna e um braço para fora da janela. Um bombeiro aproximou-se e lançou-lhe um jato de água. O homem se refez imediatamente e o soldado foi aplaudido pela multidão.  
   O jornal Folha da Manhã retratou tal momento: “Quinto andar. Não dava para sair por nenhuma das janelas, eram muito pequenas e com grades. O fogo já alcançava as escadas do quinto andar e as pessoas corriam desesperadas, em pânico, tentando alcançar o terraço, único lugar onde poderiam fugir daquela ratoeira.
   Um bombeiro, que subiu na escada Magirus para retirar as pessoas que ocupavam o terraço, vindas de todos os andares do prédio, contou depois, desolado: “Da escada deu pra ver o interior do restaurante, no terraço da loja. Entre as cadeiras e mesas, vi perto de uns dez corpos pelo chão, ou mais. Não sei se estavam mortos ou se procuravam se proteger, no desespero”.

   A água era jogada pelos homens posicionados nos andares superiores dos prédios vizinhos, todos agora evacuados. Quem estava no terraço do edifício da Apesul (financeira), na avenida Alberto Bins, pode ver o corpo carbonizado e indistinto de uma pessoa agarrada a uma janela do quinto andar.
   Quem falou com essa pessoa, pouco antes de morrer, foi o PM Eusébio: “Era uma mulher, eu falei com ela, tentei agarrar para trazer para a escada Magirus onde eu estava. Mas não deu. Eu senti o medo e o desespero nela. A janela era estreita demais, ela conseguiu quebrar um vidro e passar um braço e a cabeça. Atrás dela, dentro da loja, estava tudo escuro por causa da fumaça e dava pra ver o fogo também. Não deu pra tirar ela dali”.
   Mais tarde o major Clóvis Defensor dos Santos Oliveira, comandante do Primeiro Grupamento de Incêndio, falou sobre tais cenas e o desespero incontrolável de muitos e o valor de se manter a calma: “Enquanto meus soldados subiam pelas escadas eu gritava e rezava lá embaixo, pedindo a Deus que as pessoas não se jogassem. Nossa primeira preocupação foi salvar o pessoal. Todos tinham perdido a calma, estavam apavorados. Lá embaixo eu gritava para que se acalmassem, pois alguns pareciam querer se jogar. É muito difícil manter a calma numa hora destas. Se tivesse esperado, a irmã do Everaldo teria sido salva”.
                                                                                  
 ENQUANTO ISSO, NO PRONTO-SOCORRO A MULTIDÃO AMEAÇAVA COM INVASÃO
   No prédio do Hospital de Pronto Socorro, na avenida Osvaldo Aranha, a tarefa da direção tampouco era das mais fáceis: tratava-se de improvisar da melhor forma possível um satisfatório esquema de atendimento a dezenas de feridos que ali acorriam, a grande maioria intoxicados pela fumaça (entre os socorridos no HPS e nos hospitais da cidade poucos apresentavam queimaduras mais sérias).
   Um apelo do diretor da instituição, Ubirajara Mota, divulgado por todas as emissoras de rádio e de televisão da Capital, atraiu rapidamente muitos médicos que não pertenciam aos quadros da casa. Unidades móveis haviam sido deslocadas até as proximidades do edifício Renner, porém era no HPS que os familiares das possíveis vítimas poderiam colher informações mais seguras. 
   Obviamente a confusão era total dentro e fora do prédio. Outro apelo do diretor para que os motoristas deixassem livres as vias de acesso aos hospitais da cidade, especialmente a Osvaldo Aranha, a Ramiro Barcelos e a João Pessoa, por onde passavam as ambulâncias e as viaturas, foi devidamente atendido e evitou o caos absoluto.
   Quase quarenta soldados da Primeira Companhia de Guarda do Exército brasileiro organizaram um cordão de isolamento em torno do Hospital, àquela altura ameaçado de invasão por parte dos familiares das vítimas. Comandados pelo major Ivo Fernandes Kruger, os homens seguiram à risca a difícil determinação, a despeito de cenas comoventes que surgiam a cada minuto. 
   O policiamento nas diversas entradas do Hospital e também nos corredores ficou por conta dos agentes da Polícia Civil e integrantes da Guarda Municipal. Usando um Motorola (aparelho de rádio), o major Kruger mantinha comunicação com o delegado Wuilde Pacheco (ex-repórter policial, piloto de aviões e figura emblemática da polícia civil), então diretor da Divisão de Vigilância e Capturas.
   Listas com nomes foram rapidamente elaboradas e postas à disposição das secretárias que trabalhavam na recepção. O capitão da Brigada Militar, Servo Tellier e sua esposa, Alba, buscavam informações do filho, Paulo. Sem conseguir identificá-lo entre os feridos, o militar voltava para junto da mulher quando avistou os dois – mãe e filho – abraçados do lado de fora, ela chorando e ele tentando acalmá-la.
   Paulo explicou: com folga entre as 12 e as 14 horas, saíra a fim de matricular-se no exame supletivo. Quando voltou ao local de trabalho deparou-se com o prédio ardendo em chamas. Preocupado com a sorte de seus companheiros, correu para o HPS – e ali reencontrou a mãe. Quando viu o desfecho feliz o capitão Tellier, com voz embargada, disse que agora era a sua vez de colaborar, doando sangue. E prontamente voltou para o interior do hospital.
   Poucos mantinham esse autodomínio.  José Wilson Rodrigues, cuja irmã trabalhava na loja, não conseguiu sequer chegar ao balcão de informações: antes disso teve um ataque convulsivo e caiu ao chão. Uma moradora das proximidades sofreu uma crise nervosa e, ao chegar ao HPS, só conseguia repetir uma palavra: “Terremoto, terremoto...” Terremoto era o nome de um recente filme-catástrofe estrelado, entre outros, pelos veteranos Charlton Heston e Ava Gardner.
   No final da tarde o Hospital informou que 68 pessoas, todas elas vítimas da tragédia, haviam sido atendidas por seus médicos e enfermeiros. Nenhuma apresentava ferimentos graves e somente o bombeiro Manoel dos Santos permanecia internado devido a um quadro de intoxicação causado pela fumaça.
   Da lista constavam os seguintes nomes – muitos deles certamente grafados com erros e incorreções em função da falta de documentos e também da pressa e do nervosismo de funcionários e repórteres.

   Adão Castro – Alcides Gonçalves – Altair Giacometti – Álvaro Pacheco da Silva – Ângela Beatriz da Silva – Ari Cassal Costa – Carlos Alberto Lima – Dirce Mariano Machado – Celso Torres Alves – Claudemir Cardoso de Sá – Carlos Fontoura Martins – Cláudio Linhares Barcellos – Clenir Silva – Cleni Machado – Cloreci Silveira – Doris Siqueira – Edgar Souza Vieira – Francisco Cunha Vanhare - Elenir Ribeiro Machado – Elenir Rolim – Eunice Flores da Silva – Emilia Silva da Rocha – Eva Maria Braga Lopes – Gercia Regina Maciel Calagagno – Francisco Solano – Gilda de Oliveira – Gilson Stefanou – Glemir Almeida – Guiomar da Silva Ramos – Heloina dos Santos – Haroldo Secco – Idalina Keller – Julia Oliveira Lima – Laura dos Santos – Lindóia Neck Pedroso – Lorena Stein – Lucia helena – Lourdes Siqueira – Lucia Helena Nunes – Luisa Gesswein – Luiz Maria Fagundes – Luiz Carlos Caldeira Rodrigues – Luiz Kreiger – Maivés de Fátima da Silva – Mara Menezes – Maria de Fátima – Maria Doiro – Maria Helena Pinto – Maria Luiz Penha – Manoel Nunes Ferreira – Marli Abreu – Mauro Luiz Ferreira Jacomel – Neiva Spindola Alves – Nelson Pacheco – Nilza Terezinha Lacerda – Rodolfo Augusto Kussler – Salete Padilha – Sandra Correia da Silva – Stefani Zabradinik – Straoberger – Vera Maria Carvalho Silveira – Vera Munhoz – Volnei Barão Formiga – Vera Terezinha dos Santos – Porcina Gomes – Alberto Silveira Valério – Dorival Bento dos Santos – Mario Custódio Alves – Alcides Figueiredo César – Valter Lopes – Bernadete – Leila Gonçalves.

   Os reiterados apelos para que surgissem doadores de todos os tipos sanguíneos atraíram ao terceiro pavimento do HPS – onde estava o Banco de Sangue – mais de 200 pessoas, lotando completamente o limitado recinto.
   O Exército colaborou ativamente. Por ordens de seus superiores, cerca de 150 recrutas de diferentes unidades militares da capital doaram o seu sangue para a formação dos estoques de transfusão, o que levou a direção do hospital a pedir às emissoras de rádio e tevê que retransmitissem um novo aviso à população: o HPS, agora totalmente suprido, não mais precisava de sangue.
    Às 18 horas o movimento no velho prédio da Osvaldo Aranha diminuiu bastante e a Companhia de Guardas do major Kruger pode ser substituída por brigadianos, que assumiram o policiamento externo e o controle do trânsito.

Correio do Povo


 A CIDADE PARALISADA: AS PESSOAS VOLTAM PARA CASA A PÉ OU DE CARONA
     A estas alturas, por assim dizer, Porto Alegre, em grande parte havia parado. Nenhum ônibus podia largar passageiros nos terminais da praça XV e da praça Rui Barbosa.
   Todas as guarnições da Brigada Militar, do primeiro Batalhão, do nono, do décimo primeiro e até os soldados que faziam o policiamento do Palácio Piratini, estavam no local.
   A polícia isolou a Voluntários da Pátria até a elevada da Conceição, a Pinto Bandeira, a Coronel Vicente, a Vigário José Inácio, a Doutor Flores e a Salgado Filho, no sentido bairro-centro. Linhas de ônibus foram desviadas e proibiu-se o estacionamento em muitos pontos. Sem luz e telefone, todos os hóspedes do Rishon Hotel, no início da Doutor Flores, foram transferidos às pressas. A avenida Júlio de Castilhos, uma das principais artérias do centro, transformou-se em um imenso calçadão de pedestres.
   Sensível à tragédia, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, OSPA (que festejara seus 25 anos no final de 1975), divulgava uma nota à imprensa, comunicando o adiamento da apresentação do maestro Isaac Karabitchevsky, 41 anos, e do pianista e solista Roberto Szidon (1941-2011), também programado para aquela noite.
   Por sua vez o prefeito Guilherme Socias Villela compareceu ao Pronto Socorro e condenou, irritado, o que definiu como “exploração da tragédia para fins políticos”: “Não posso admitir que oportunista algum pretenda tirar proveito eleitoral disso”, atacou, sem dar nome aos bois.
   Villela referia-se, possivelmente, ao líder da oposição, Brochado da Rocha, e ao também emedebista Carlos Serafim Pessoa de Brum. O primeiro havia convocado a bancada oposicionista para uma precipitada “tomada de posição quanto ao incêndio das Lojas Renner”, enquanto o segundo – nos instantes em que a tragédia da Otávio Rocha se desenrolava - distribuía aos jornalistas cópias de seu projeto-de-lei estabelecendo normas mais rígidas de “habite-se” e prevendo a construção de heliportos nos edifícios mais altos de Porto Alegre, projeto aprovado pelos vereadores, porém vetado pelo prefeito anterior, Telmo Thompson Flores, sob a alegação de que isso iria encarecer a construção de moradias em um país carente nesse setor.
   De fato, pouco ou nada mudara desde o incêndio das Lojas Americanas, há quase dois anos e meio. A imprensa aproveitou para lembrar os grandes incêndios que marcaram a Capital: o da Imprensa Oficial, em 1947; o do Tribunal de Justiça, no final de 1949; o do Palácio da Polícia, no verão de 1950; o do colégio Júlio de Castilhos, no final de 1951; o da Casa de Correção, em novembro de 1954; o do antigo Grande Hotel (edifício Mallet), em maio de 1967; o do depósito de fogos Fulgor, em maio de 1971 (na verdade uma grande explosão); e, mais recentemente, o do restaurante Dona Maria.

CENA EMBLEMÁTICA: MANEQUINS PEGAM FOGOS, COMO TOCHAS HUMANAS
   Às 15h30min um pedaço do edifício não resiste ao furor das chamas e à devastação das explosões de botijões de gás.
   Por volta das 17 horas, no lado da Doutor Flores, entre a construção principal e a loja Imcosul, parte das paredes externas – o equivalente a cinco andares – vem abaixo. Minutos depois ruiria a parede entre o edifício principal e o Armazém Rio-Grandense. Vidraças, anúncios e objetos próximos às janelas aos poucos também iam caindo. Caminhando em direção a Voluntários da Pátria para ajudar na junção das mangueiras, um velho bombeiro desabafa aos repórteres: “Não se pode fazer mais nada”.
   A fumaça era agora mais intensa do que nunca e, ao se dissipar, revelou a figura carbonizada de uma pessoa com o braço para fora de uma das janelas. Pelos megafones os bombeiros pediram a evacuação dos andares ocupados sobre a loja Comercial Louro.
   Uma cena emblemática (e singularmente tétrica) é colhida pelas lentes dos fotógrafos: os manequins, nas vitrinas, queimando como tochas humanas, derretendo-se à vista do público.



   Nesse momento um dos carros-tanques deixa o local para atender outro incêndio, na rua Otávio Correa, 12, próximo à avenida João Pessoa, no bairro Cidade Baixa. No seu apartamento do edifício Cury, a senhora Albertina Giacomini assistia pela televisão as imagens da tragédia das Lojas Renner quando uma garota bateu à sua porta dizendo que “tudo estava queimando”.
   “Eu sei, estou assistindo”, respondeu ela.
   Somente alguns instantes depois é que entenderia verdadeiramente o que estava se passando ao ver os seus vizinhos correndo em pânico pelas escadas. Um princípio de incêndio lavrava ali mesmo, junto à porta do apartamento do zelador. Os soldados descobriram de imediato a causa – uma garrafa de querosene, em chamas no corredor.
   Enquanto isso, nas proximidades do edifício Renner, a multidão – acrescida por levas de novos curiosos – não queria perder nenhum detalhe da tragédia que já completava quatro horas. Coube aos policiais militares a cavalo afastar e conter os mais inconvenientes. Alguns punguistas, sempre presentes em tais circunstâncias, foram presos e conduzidos algemados à delegacia, entre eles um azarado que meteu as mãos justamente no bolso de um policial civil.
   O fogo continuava lavrando e, surpreendentemente, parecia recobrar de intensidade. Por medida de segurança, máquinas e móveis começaram a ser retirados do prédio ao lado do Armazém Rio-Grandense.
   Com efeito, já não havia mais nada a fazer. A ação dos bombeiros era agora extremamente perigosa e muitos poderiam não retornar com vida do interior do prédio. Os que de lá saíam, exaustos e enegrecidos, eram imediatamente retirados do local a fim de que recobrassem as exauridas forças físicas e psicológicas. Alguns deles demonstravam ar de tristeza e impotência.
    Assim descreveu a reportagem da Folha da Tarde o segundo momento do incêndio:
   “Às 16 horas o fogo liquidava inteiramente com a loja Renner que funcionava anexa ao grande prédio, na Otávio Rocha. Ali o fogo alcançou sua maior violência, com enormes chamas consumindo tudo e provocando enormes rachaduras que viriam a derrubar inteiramente o prédio, fazendo estremecer as ruínas do outro, o grande. A água, que já voltara, através de uma ligação direta com o Guaíba, era pouca para debelar o inferno. Ironicamente, as vitrines do Renner, até então não atingidas, começam a ser varridas pelo fogo, dando um fantástico aspecto aos manequins derretidos que se equilibram entre as chamas.
   “Num centro inteiramente paralisado, com multidões acotovelando-se nas várias ruas, o fogo prosseguiu mais calmo a partir das cinco horas da tarde. As lojas fecharam e dispensaram seus funcionários, pois começavam a ter medo do saque. Sete horas, noite cerrada, e as linhas telefônicas da cidade estavam inteiramente embaralhadas. Milhares de pessoas telefonavam para suas casas, residências de parentes e amigos, querendo saber se tudo estava bem. A angústia do desaparecimento passava a dominar o pânico”.
                        
  PESADELO E DESENCONTRO: FALAVA-SE EM MAIS DE CINQUENTA MORTOS
    Caía a noite e a cidade iria adormecer com uma incerteza em meio pesadelo real: o número ainda desconhecido de mortos (falava-se, inclusive, em mais de cinquenta) e a dolorosa incerteza de saber, afinal, quem estava ou não dentro do edifício.
   Já no final da tarde, sem transporte coletivo, centenas de pessoas que trabalhavam na área central da cidade voltaram a pé ou de carona para casa. Os raros táxis disponíveis foram disputados aos berros ou transformaram-se em lotações coletivas. Outros porto-alegrenses preferiram fazer hora pelos cafés e bares até que o torvelinho amainasse. O assunto era quase um só: o grande incêndio.
   Na redação da Folha da Manhã, a 300 metros dali, Janer Cristaldo, 29 anos (faleceu em 2014) – na época um dos cronistas mais lidos da imprensa gaúcha – estava concluindo seu artigo para edição do dia seguinte e no qual comentava o grande número de mortes causadas pelo trânsito nas cidades e estradas do país (o automóvel, no seu entender, era a arma mortal preferida dos brasileiros). Ao final, acrescentaria: “Enquanto escrevo estas linhas, irrompeu um incêndio no centro da cidade. Pelo ruído dos bombeiros, ambulâncias e helicópteros, deve ser um dos mais graves. Preparem-se os porto-alegrenses para: a) debates apaixonados de políticos em véspera de eleições; b) novos projetos para segurança dos edifícios; c) reuniões de condomínio para estudar o problema; d) aumento do preço das cordas; e) reprise de “Inferno na Torre”. Daqui a seis meses ninguém mais lembrará do assunto. Ocorrerá então outro incêndio. E recomeçará mais uma vez o blá-blá-blá”.


   Dezenove horas. Os repórteres correm para as redações a fim de escrever às pressas suas matérias. Afinal, o sinistro seria manchete em todos os telejornais brasileiros e também notícia em muitas partes do mundo.
   Enquanto isso, do topo dos prédios vizinhos, bombeiros estafados continuavam lançando água sobre os focos restantes de fogo. Em redor, ao longo de toda a área atingida, a escuridão reinava.
   Como se não bastasse, o dia seguinte reservava aos soldados do fogo a mais desagradável e inglória das tarefas – o resgate dos corpos e a contagem das vítimas que não tiveram a sorte de escapar daquela gaiola humana.

   Na quarta-feira, 28, os diários de Porto Alegre circularam com a grande manchete e muitas fotos em preto-e-branco (não havia ainda colorido fotográfico na imprensa diária gaúcha): o grande incêndio, o maior que a Capital já assistira em toda sua história no tocante a vítimas fatais. Como acontece na cobertura das grandes tragédias, as edições rapidamente se esgotavam nas bancas. Sem saber o número de vítimas, a cidade não sabia o que esperar como resultado do inferno surgido na Doutor Flores.
   Os trabalhos de rescaldo iniciaram pela manhã. Desde as sete horas, como se fosse um mórbido piquenique urbano, centenas de pessoas haviam afluído ao centro especialmente para “ver o incêndio”. Desciam dos ônibus, dos táxis, de automóveis particulares, de motos e bicicletas. Muitas procediam de bairros distantes e de forma alguma queriam perder o segundo capítulo do espetáculo – a retirada dos corpos.
   Os jornalistas também já estavam a postos: todos tinham alguma história para contar e todos se mostravam irritados com o tratamento nada amistoso dispensado pelos soldados da Brigada Militar. Em grupos, os PMs – com caras de poucos amigos, bem ao estilo da ditadura, cercavam os repórteres para verificar as credenciais, enquanto um cordão de isolamento isolava o local.
   A rigor, os bombeiros já não tinham mais nada a fazer. Durante a noite os soldados prosseguiram lançando jatos de água e preparavam-se agora para entrar no prédio, verificar a quantidade e a localização das vítimas, bem como averiguar as condições para um resgate seguro dos corpos.
   Zero Hora descreveu assim aquela manhã: “Os bombeiros conversando, os brigadianos complicando pela mínima coisa e o público aumentando”.
   Um pouco antes do meio-dia a assistência foi acrescida por uma leva de balconistas e funcionários de bancos e financeiras localizados no centro. O major Clóvis Defensor dos Santos Oliveira, de binóculo à mão, observava o prédio dos mais diferentes ângulos e fechava-se em copas, respondendo aos repórteres com palavras breves e que pouco acrescentavam às informações já obtidas.
   Em “off”, contudo, alguns bombeiros deixavam vazar suas queixas. Um dos heróis do dia anterior – um tenente um pouco mais loquaz – observou: “Só se lembram dos bombeiros quando ocorre um caso como este. Não se lembram de que não temos recursos para fazer o mínimo necessário. E bombeiro ganha muito pouco. Como as pessoas esperam tudo de um homem que ganha por volta de mil cruzeiros por mês, enquanto os que dependem do nosso trabalho às vezes ganham milhões”. Naquele sábado o salário mínimo regional seria majorado para 768,00 cruzeiros (um exemplar de jornal custava um cruzeiro).
   Outro herói da Renner, o estafeta Alcides, aquele que estava passando pelo local, o primeiro a entrar no prédio para tentar apagar as chamas, estava de volta, desta vez para solicitar ao comandante seu internamento em um hospital. Precisava realmente, pois as queimaduras ulceravam seu rosto.
   Ainda pela manhã, um advogado e mais alguns integrantes da diretoria das Lojas Renner chegaram para retirar documentos que estavam no prédio número 148, em cima do Armazém Rio-Grandense, este parcialmente atingido pelas chamas.
   Saíram discretamente levando papéis, fichas e pastas da folha de pagamento dos funcionários e sequer deram declarações à imprensa, apenas confirmando que o prédio estava totalmente segurado, o suficiente para cobrir as despesas de reconstrução e de reposição de estoques, este último item orçado em mais de 100 milhões de cruzeiros.
   No mesmo dia, em comunicado oficial, a empresa lamentou a tragédia, agradeceu o “auxílio e a compreensão” de todos e informou que a sua sede passaria a funcionar provisoriamente na filial do bairro Passo da Areia, zona norte da cidade. Nenhuma das cinco filiais no Estado – Passo da Areia, Centro Comercial da Azenha, Navegantes, e nas cidades de Canoas e Pelotas - abriu suas portas naquela quarta-feira, retornando contudo ao funcionamento normal já no dia seguinte.
                                                                          
NA PRIMEIRA INVESTIDA SÃO ENCONTRADOS 19 CORPOS
   A primeira investida dos bombeiros aos andares superiores aconteceu às 9h30min e durou apenas alguns minutos.
   Nas ruas mais próximas e na Otávio Rocha divisava-se toda sorte de objetos queimados e uma grande quantidade de saquinhos de leite vazios. Adentrando, antes mesmo de removerem quaisquer escombros os soldados contaram 19 corpos – se é que era possível contar. Do interior do edifício, um monturo de tijolos queimados, ferros retorcidos e toda espécie de objetos irreconhecíveis, ainda provinham constantes estouros.
   Às 12h30min aconteceu uma demonstração de ordem unida, logo imitada pelos PMs. Em seguida os bombeiros pegaram pás, picaretas e enxadas, preparando-se para entrar no prédio. A remoção, entretanto, só começaria mais tarde, quando quatro camionetas estacionaram em frente, três delas entrando até onde foi possível.
   Os restos das vítimas deveriam ser acondicionadas dentro de sacos plásticos, mas estes se revelaram impróprios para tanto e foram substituídos por lençóis de pano branco, mais resistentes e respeitosos. Uma emissora de rádio sintonizada em alto volume foi estrepitosamente vaiada ao informar que 25 corpos já estavam prontos para serem identificados no IML.
    Retratando o trabalho dos bombeiros naquela quarta-feira negra o Diário de Notícias (jornal que fecharia em 1979) anotou: depois de adentrarem no edifício calcinado, “voltavam com as faces traduzindo as cenas que depararam em sua escalada de reconhecimento. Eram cenas indescritíveis, segundo o major Clóvis: homens e mulheres abraçados, corpos contra as janelas, muitos degolados pelos vidros e calcinados pelo fogo. No restaurante foram encontrados os corpos de três crianças. No último andar o corpo de um homem que parecia estar encostado à janela. Outros eram encontrados pelas escadas, à medida que os bombeiros galgavam o prédio. E no ar o cheiro ocre (...)” 

   À tarde já eram 23 os corpos avistados, a maioria nos dois últimos andares, de pessoas que provavelmente desmaiaram ou morreram intoxicadas pela fumaça. Outras foram encontradas perto das janelas ou na escada.
   Em sua totalidade a operação Renner mobilizou um enorme e diversificado efetivo, conforme dados apresentados pela Brigada Militar à imprensa no final de quarta-feira. Denominada internamente de operação número 2.564, abrangeu não somente os edifícios da Otávio Rocha e Doutor Flores como outros dois pontos de atendimento que surgiram quase simultaneamente naquela tarde de terça-feira – o do próprio magazine, mais os focos situados na rua Fernando Machado (pensionato) e na Otávio Correa, esquina com a João Pessoa. No total da operação praticamente todo o efetivo local foi mobilizado, acrescido dos soldados do Exército, em um total aproximado de 600 homens. Quase todo o nono batalhão da BM esteve nesses três locais, bem como a Primeira Companhia do Décimo Primeiro Batalhão, a Primeira Companhia do Primeiro Batalhão e mais o Primeiro Pelotão do Quarto Regimento de Exército. Mais de quarenta viaturas para transporte de feridos e as orientadoras das mudanças no trânsito trabalharam nas imediações da Renner. Doze cavaleiros da Companhia de Cavalaria, cerca de dez ambulâncias e quatro helicópteros foram igualmente utilizados.
   Em apenas um andar havia corpos no meio do pavimento. Dos seis elevadores arrombados – onde, comentavam alguns, muitos tinham se refugiado e perecido – nada restava e nada foi encontrado, afirmou o major Clóvis:
    “Fui acabar com uma dúvida que se tinha, os elevadores. Eles estão realmente no térreo, com as portas abertas e nenhum corpo dentro. Penetrei numa caverna, atrás desses elevadores, e também não encontrei nada”.
    Em meio a tantos destroços e fragmentos enegrecidos não havia certeza absoluta a respeito do número exato de vítimas fatais. Após assistir ao trabalho de rescaldo, um repórter da Zero Hora concluiu que “nunca se saberá ao certo quantos morreram”, lembrando que, de um corpo encontrado, restara tão somente a caixa craniana, “que se desmanchou na mão de um bombeiro”. De outro sobrou apenas a caixa torácica e de um terceiro uma tíbia, completamente carbonizada.
    “Por isso o major Clóvis não sabe se se tratavam de duas pessoas ou de três”, informou o jornal. “Pelo tamanho dos ossos, provavelmente uma era criança. E nunca se acharão os restos que ficaram sob os escombros da ala que se desmanchou na hora em que as máquinas começaram a limpeza”.
   À noite, o cardeal Dom Vicente Scherer, de 73 anos, arcebispo de Porto Alegre desde 1947, esteve em visita ao local.
   O jornal Folha da Manhã retratou o que foi aquele dia seguinte.
   “Junto às cordas de isolamento os argumentos eram os mais diversos, todos com a mesma intenção: chegar mais perto do prédio. “Preciso pagar o imposto predial, posso passar? é lá no décimo andar”, diz o rapaz ao brigadiano, que é irredutível: “O Sindicato está fechado”. 
   Um público bem menor, constituído basicamente de estudantes, e também de pessoas moradoras da grande Porto Alegre, veio “ver o que aconteceu” bem de perto para depois contar às famílias e vizinhos.
   “É o tipo de gente que vai à tourada e torce pelo touro”, desabafou Ismael Rodrigues, executivo que estava fazendo um lanche na galeria A Nação.
   Velhas senhoras aproximam-se dos cordões de isolamento, olham para cima, em direção ao prédio sinistrado e fazem caretas de horror e espanto, como se o fato estivesse ainda acontecendo, enquanto uma grande maioria é impassível e não sabe dizer, objetivamente, por que está ali.
   Mão na boca, cigarros acesos, braços cruzados, como se protegessem alguma coisa, ali estão muitos estudantes, crianças e pessoas, mulheres em particular, que foram fazer compras no centro e aproveitaram para dar “uma espiada” na cena.
   Quando alguém consegue furar o cordão de isolamento, através de qualquer argumento, as outras pessoas, as que continuarão atrás da corda, lançam-lhes um olhar misto de simpatia e inveja, pois afinal tiveram a “sorte” de assistir as coisas mais de perto.
   Em sua maioria, são jovens. Muitos ofice-boys, mães e desocupados ficam satisfeitos pelo fato de fazer parte de tal espetáculo. Não é um público constante, todavia. Pelo contrário, há uma espécie de “rodízio” que possibilita a todos tomarem seu lugar junto à corda. (...)”  



   Populares assistiam a tudo em silêncio, voltando o pescoço a cada translado. Um menino de uns 12 anos ultrapassou o cordão de isolamento e, assediado por um policial carrancudo, exclamou: “Que barato!” Agarrando-o pelo braço, o soldado respondeu: “É uma zorra mesmo, meu amiguinho, mas o teu lugar não é aqui”.
   Calçando “gigantescas e negras luvas”, os bombeiros prosseguiam no trabalho de remoção, a pior parte do processo. Duas vítimas, irreconhecíveis, estavam, por assim dizer, coladas: uma mulher que abraça e protege uma criança.
   No Instituto Médico Legal (com uma equipe de 15 médicos e quatro dentistas a postos) a tarefa de identificação era um penoso exercício de paciência e lógica, trabalho “lento, mas o único possível”, conforme reconheceu um dos legistas. Familiares, parentes, amigos e, principalmente, dentistas que tratavam das vítimas foram convocados a estar presentes.
   Ao final do dia 14 corpos já haviam sido identificados: Joaquim Brum Fernandes, 61 ou 62 anos, e a esposa Ieda Marisa Furtado Fernandes, 44, residentes à rua Luciana de Abreu, bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Os dois viviam de rendas e estavam almoçando no restaurante Terrasse.
   Joaquim foi identificado primeiramente pelo seu irmão Hugo, que nele reconheceu um anel, o isqueiro, o relógio de pulso e um pedaço da camisa. Por via das dúvidas, o dentista de Joaquim compareceu ao IML com a ficha da sua arcada dentária.
   José Wiest, 37 anos, foi o terceiro a ser identificado pelos legistas, depois de Sidnei e Apolo. Com queimaduras leves pelo corpo, foi reconhecido de imediato pelo cunhado. Assim como Sidnei, era cozinheiro do restaurante havia cinco anos. Antes trabalhou na empresa aérea Varig por quase uma década e também no hotel Plaza de Porto Alegre. Morreu asfixiado pela fumaça, pendurado em uma das janelas, à procura de ar – cena colhida por todos os fotógrafos. Ele era solteiro e morava com amigos na rua Dona Margarida, zona norte da cidade.
   Manoel Couto Carvalho, 81, e a esposa Olga Pacheco Carvalho, 79, também estavam almoçando no Terrasse. Foram identificados pela arcada dentária.
   Teresinha Fonseca Precioso, 34 anos morava em Bagé e tinha vindo sozinha a Porto Alegre, a passeio. O marido, Aloisio, capitão do Exército, afirmou reconhecê-la por uma “melindrosa” com os nomes do casal e pelo fato de portar um anel de brilhantes e um relógio de ouro.
   Vera Lúcia Feijó Rodrigues, 25 anos, era funcionária das Lojas Renner. Retardou-se no prédio, tentando salvar o dinheiro do caixa. Foi encontrada na escada, com diversas bolsas de colegas ao seu redor. Residia na Vila Medianeira, Viamão, com a mãe, Sueli, o pai, Milton, e uma amiga.
   Jaci Vieira D‘Avila tinha 47 anos, trabalhava como cabeleireira da loja e residia ali perto, na rua Doutor Flores. Natural de Passo Fundo.
   Doly Teresinha Ballestrin, 47 anos, também funcionária, morava na sua Silveiro, bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
   Edmeo Lobo, 48 anos, advogado, maçom, trabalhava no consultório jurídico da Caixa Econômica Estadual havia 20 anos. Almoçava na hora o incêndio.
   Germano Jonas, 67 anos, gerente do restaurante Terrasse Renner. Nascido em Frankfurt, Alemanha. Brasileiro naturalizado.
   Fátima Elaine Castro Pinheiro, 18 anos, funcionária da loja, morava na rua Edgar Pires de Castro, zona sul de Porto Alegre.
   Luis Carlos Machado, 42 anos, maitre do Terrasse havia mais de 10 anos, morreu porque se retardou muito, ajudando os clientes a se salvarem. Quando tentou sair, já era tarde. Identificado por uma ponte móvel na arcada dentária e por uma perfuração na perna direita.



                                                                            
NO INSTITUTO MÉDICO LEGAL, PRINCÍPIO DE INVASÃO E MAIS CENAS DE DESESPERO
   À tarde de quarta-feira, e durante todo o dia seguinte, centenas de pessoas concentraram-se na entrada do Instituto Médico Legal, no edifício Palácio da Polícia, esquina das avenidas Ipiranga e João Pessoa, na tentativa de identificar parentes e amigos desaparecidos.
   Para a perícia, um trabalho difícil e engenhoso, já que muitos corpos estavam destroçados ou carbonizados e era necessário juntar as partes, como em um macabro jogo de quebra-cabeças.  
   Na maioria dos casos a identificação só era possível mediante o exame da arcada dentária. Obturações, serviços de prótese, dentes ausentes ou algum tratamento específico eram minuciosamente analisados e comparados com as fichas de consultório. Um perito explanou aos repórteres a respeito da pertinência de tal trabalho, lembrando que o corpo carbonizado normalmente diminui suas dimensões normais, já que perde todas as substâncias líquidas. Porém a cavidade bucal, por ser a mais protegida, tende a preservar suas características originais, levando-se em conta que os tecidos que envolvem a arcada dentária, mesmo depois de queimados, impedem que a temperatura se eleve em demasia, preservando assim o interior da boca.
   Para evitar maiores tumultos o local foi isolado por policiais. O major Clóvis admitiu a dificuldade do trabalho de reconhecimento: “Será praticamente impossível determinar o número total de mortos”.
   Às 15h15min chegaram três carros fúnebres: homens e mulheres, em desespero, disputavam cada fiapo de informação. Consolada por um policial, Olinda Wiest, 41 anos, irmã de José Wiest, o cozinheiro, repetia: “Como meu irmão foi morrer? Não consigo suportar tudo isso”.
   Chorando muito, Jani Borges tentava identificar o corpo de sua única filha mulher, de 23 anos, funcionária da loja e que havia sido dada como desaparecida.  “Como é que ela vai ser identificada? Minha filha era perfeita, parecia uma artista de cinema, tinha uma dentadura perfeita, nunca precisou de dentista. Agora isto, que sempre foi motivo de alegria para nós, vai dificultar o seu reconhecimento”, dizia ela. 
   O farmacêutico Norberto Silva procurava sua esposa Luísa Maria Moreira da Silva, de 28 anos, balconista do terceiro andar. Até às 18 horas, depois de preencher a ficha de identificação no centro de operações da Brigada Militar, ainda não havia ainda conseguido qualquer informação.
   Em igual estado, José Dili Cerqueira, 48 anos, buscava o filho José Francisco, de 26 anos, cozinheiro do restaurante Terrasse. Ele, pai, tinha vindo de Pelotas e caminhava desorientado pela capital: “Já procurei por aí tudo e nada”.
   Igualmente atônita, Ibraema Fernandes de Godói, funcionária da loja, solicitava notícias da amiga e colega Vera Lúcia Feijó Rodrigues, que ela havia visto nos primórdios do incêndio. Vera logo constaria na relação das vítimas.
   “Quando desci do terceiro andar (seção infantil) para o segundo, com a palma da mão tapando a boca e comprimindo o nariz com os dedos, praticamente já era impossível a travessia, pois a fumaça ardia nos olhos e estrangulava a garganta e não era possível ver nada mais do que o terror e o desespero daqueles por quem eu passava”, contou ela, com a voz embargada. “Ouvi o chefe da seção, o Marques, gritar para que todos saíssem, mas apesar disso fui encontrar a Vera Lúcia sentada na escada interna, às voltas com sua roupa e o uniforme, com quase todas as bolsas das colegas, atrapalhada com o dinheiro que queria salvar para o chefe e que ela havia retirado às pressas do caixa”.
   De modo vívido, Ibraema lembrava o rosto de sua colega, no buraco do vidro do segundo andar, gritando por socorro e implorando para que a tirassem dali.
   A mãe de Vera Lúcia, Sueli, teve uma crise nervosa quanto tentava identificá-la e precisou de ambulância e cuidados médicos de urgência – serviço que lhe custou o pagamento de 400 cruzeiros, uma vez que o representante da Renner, presente ao IML, negou-se a fazê-lo: “Não temos nada a ver com isso”, segundo testemunhou e anotou um repórter. Sem dinheiro, Sueli apelou para os vizinhos, que fizeram uma providencial “vaquinha”.
    Outro que havia comparecido ao Instituto Médico Legal era o cabeleireiro da Renner. Ele estava à procura de duas de suas funcionárias. Contou Walter Jacques: “- A Jaci Vieira Ávila (48 anos, desquitada) eu tenho certeza de que estava no sexto andar, porque quando saí, às 13 horas, para almoçar, ela estava retornando do seu almoço. Minha dúvida é se a Clair (da Silva Bolner, 22 anos, solteira) estava lá. Ela costumava voltar às 14 horas e é possível que o fogo tivesse começado antes que ela entrasse. Tomara”. 
    As duas trabalhavam havia anos com o cabeleireiro que costumava sair para o almoço às 13 horas e só retornar às três da tarde.
    Mais intrigante era o caso vivido por João de Deus Carvalho, o qual veio do município de Santiago à procura de seu filho Rui, de 19 anos, morador da rua Lavras, no bairro Petrópolis. Ele tinha sabido do incêndio pelo noticiário da televisão na noite de terça-feira. Passados dois dias em Porto Alegre, João de Deus – um homem de 50 anos, funcionário do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, DAER - ainda mantinha esperanças de que o rapaz não estivesse no edifício no horário do incêndio. Segundo alguns colegas, Rui trabalhava no quinto andar quando o fogo começou. Outros disseram que não, que o rapaz tinha saído um pouco antes. Em desespero, João chegou mesmo a afirmar tê-lo visto aquela tarde, caminhando pela avenida Júlio de Castilhos.   
   “Juro que vi meu filho caminhando transtornado por uma rua de Petrópolis. Ele não morreu no incêndio, outras pessoas também viram ele na hora do incêndio, fora do prédio. Eu vinha para cá (IML), hoje pela manhã, e na avenida Protásio Alves avistei meu filho. Ele tava de calça branca, camisa branca listrada de azul. Pedi para o taxista voltar, ele teve que fazer um retorno mais adiante. Quando voltamos, ele já não estava mais lá”.
   Confuso e desesperado, o homem não sabia mais o que fazer. Para todos os efeitos a família já estava providenciando a ficha dentária.
   Cabisbaixa, olhos vermelhos, o rosto inchado, Vera Lúcia Palmeira era a imagem do desconsolo. Pudera: perdeu quatro parentes. Na tarde do incêndio Vera estava na Praça XV quando viu a fumaça e a agitação das pessoas. Imediatamente correu até o edifício onde trabalhavam uma tia e três primas suas. Uma delas, a balconista Sandra, tinha noivado não fazia muito.
   Convocada por fonograma, Maria Zoina viajara 370 quilômetros de ônibus da cidade de Pinheiro Machado, a Porto Alegre, a fim de reconhecer sua amiga Santa Isabel Alves Tarouco, 34 anos, residente à rua João Wallig, inclusa na relação das vítimas e cuja identificação tornava-se quase impossível devido ao estado de carbonização do corpo. Aos repórteres, Maria pedia o urgente comparecimento de um dentista, “o doutor Danúbio, lá da avenida Farrapos”, que atendera Santa Isabel algumas vezes e possuía a sua ficha dentária.       
“Talvez assim se consiga a identificação, mas está difícil” – lamentou.
   Situação semelhante vivia Maria Helena Alexandra, também vinda do interior para tentar identificar o corpo de Maria da Graça Boff, de 21 anos. Depois da devida confirmação, ainda chocada, ele disse aos repórteres ter visto no Instituto Médico Legal os corpos de uma mulher abraçada ao de uma criança, os dois parcialmente carbonizados.
    Já Edmeu Lobo, 48 anos, morador da rua Jacinto Gomes, foi identificado por sua irmã, Ely, que conseguiu localizar sua ficha protética, algo que não acontecia com Luiza Maria Moreira da Silva, 28 anos, funcionária da seção infantil, no terceiro andar. Sua irmã Terezinha veio de São Leopoldo para tentar identificá-la, mas não soube dizer se ela frequentava algum dentista.
   Com intensa fartura de fontes, os repórteres tinham muitas histórias à mão, algumas bem triviais, o caso de dona Ilza Duarte, que não procurava ninguém em especial. Ela foi ao centro na terça-feira para trocar uns sapatos que havia comprado quando avistou o incêndio. Em meio ao corre-corre geral, se deparou com uma senhora que levava um filho pequeno ao colo: à medida que assistia às cenas mais dramáticas, de modo sufocante, esta última apertava mais e mais a criança contra o peito. Súbito, a própria mãe não resistiu às emoções e desmaiou, sendo acudida por policiais que a conduziram para a ambulância, deixando a criança aos cuidados de Ilza, mãe de cinco filhos, agora transformada em babá de emergência.  
   “Foi terrível para mim e só me tranquilizei ao entregar o pequeno de novo para mãe. Fiquei imaginando o que ela iria sentir quando voltasse a si e não o encontrasse”, desabafou aos jornalistas.
   O desencontro de informações era tanto que duas pessoas cujos nomes apareceram nas listas de mortos divulgados em meio ao burburinho do Instituto Médico Legal na realidade estavam bem vivas: o médico José Mariano Vieira Haensel e Fernando de Araújo Carvalho.
   O primeiro trabalhara no próprio instituto como voluntário na identificação das vítimas e o segundo era neto do casal Manoel Couto Carvalho, de 81 anos, e Olga Pacheco de Carvalho, 79 – estes sim, vítimas do incêndio. Outras duas dadas como desaparecidas reapareceram pouco depois: um rapaz que viajara para Caxias e o outro que retornou sexta-feira à tarde para a casa dos pais.
   Em frente ao IML um novo personagem dava agora o ar de sua graça: o agente funerário, facilmente identificável pela conversa animada, risos nem sempre discretos, piadas e olhares ansiosos em direção aos clientes em potencial.  Um grupo de oito ou nove deles, representando as principais funerárias da cidade, tentava, um de cada vez, cabular a freguesia e fechar ali mesmo seus negócios.
   A técnica de aproximação do “papa-defuntos” era quase sempre a mesma: a máscara facial contrita, gestos curtos e respeitosos, achegava-se a algum familiar, aquele que tem cara de quem vai pagar a conta – e aí fazia a proposta.
   “O senhor está procurando algum amigo, algum parente? Eu posso conseguir que o senhor entre no IML, eu conheço bem o pessoal de lá. Ah, leve este cartãozinho aqui... Na volta fale comigo, tá?”
   Quase sempre dava certo.
   Por volta das 14h30min de quinta-feira, horário em que muita gente se aglomerava junto aos cordões de isolamento, tais “corretores” pareciam insuficientes para atender a crescente clientela. Pela manhã boa parte deles empenhara-se em pescar clientes nas antessalas dos hospitais, anotando nomes e endereços de quem havia falecido pela madrugada ou estivesse em estado muito grave. Mas era em frente ao IML – onde a categoria sempre gozou de boas relações – que os negócios realmente frutificavam.
   Um dos estratagemas – o de sugerir “que, a essas alturas, já estão faltando caixões” – influenciava os espíritos mais ingênuos: “Pai, vai logo lá na funerária porque o homem disse que se a gente não for depressa não consegue caixão”, disse uma senhora aflita ao marido. O casal procurava um filho, dado como desaparecido e ainda não identificado pelos legistas.
   Ao sentir à aproximação de alguém estranho – em especial os repórteres – os agentes funerários mudavam de atitude e assumiam de imediato um ar arredio que podia se tornar hostil em poucos segundos. Desviavam a conversa, emudeciam ou recusavam-se a dar nomes. Ou mesmo ameaçavam: “Se tu botar qualquer coisa contra nós aí no teu jornal, tu vai te arrepender, viu?”
   À tardinha partiam rapidamente em suas inconfundíveis kombis sem nenhum letreiro de identificação.
                                                                        
“SEM EQUIPAMENTOS, NOSSO BOMBEIRO USA A CORAGEM”, DIZ COMANDANTE
   Até o final da quarta-feira 14 vítimas já haviam sido identificadas. Na quinta-feira os bombeiros ainda prosseguiam no perigoso trabalho de remoção e de procura de corpos: mais um foi encontrado nesse dia.
   O comércio próximo ao edifício já havia fechado suas portas e os prédios da rede de lojas Imcosul e do Armazém Rio-grandense, abrasados pelo calor, foram declarados impróprios e condenados. Um forte odor de fumaça e de carne humana queimada que saía dos escombros atestava a existência de vítimas – ou parte delas – ainda não localizadas.
   Valendo-se da experiência os bombeiros estabeleceram uma espécie de rota, mais ou menos segura, para chegar aos andares superiores: um a cada vez, medindo cada passo, subiam pelo que restou da escada do prédio, evitando a parte central e procurando se mover somente junto às paredes.
   A um repórter que lhe perguntou se não existiam equipamentos específicos que permitissem certa segurança para aquela tarefa o major Clóvis argumentou – ou tergiversou: “Nosso bombeiro usa a coragem. Existem, sim, equipamentos que nós não temos e de que precisamos. Mas em situações como esta, qualquer equipamento só funciona com a complementação da coragem”.
   Os técnicos do Instituto de Criminalística sequer haviam iniciado a perícia para determinar as causas do acidente e versões divergentes já vinham à tona – problemas em um aparelho de ar condicionado, um curto-circuito, etc. Em matéria publicada na Zero Hora de sexta-feira, o diretor-presidente da Renner, Ricco Harbich, declarou aos repórteres ter certeza de que o fogo iniciou realmente no depósito de tintas do terceiro pavimento (primeiro andar, considerando o térreo e a sobreloja), mais exatamente junto à escada de emergência.
   Segundo ele, o pânico dos funcionários e clientes foi uma tentativa desesperada de se conseguir outra saída, já que a escadaria estava tomada pela fumaça. Harbich garantiu que as outras três escadas do prédio davam livre passagem, visto que várias pessoas escaparam por ali: “Mas outros não quiseram tentar, com medo de morrer queimados. Talvez se eles colocassem um lenço, um pano qualquer sobre o rosto, e enfrentassem a fumaça, pudessem ser salvos. Mas nas escadarias havia um grande volume de fumaça preta. Com medo de que atrás da fumaça houvesse fogo, eles não tentaram”.
   Parecia ser esta a certeza de Lúcia Ondina Wiatrovski, 21 anos, funcionária do crediário, setor localizado no mesmo andar da seção de tintas e que enfrentou e venceu a fumaça. Depois de ser entrevistada pela imprensa, ela foi levada pelos policiais até a Secretaria de Segurança para dar o seu depoimento oficial. Lúcia, natural do município de Dom Feliciano, estava na relação inicial dos desaparecidos quando, na realidade, tinha ido para a casa de um irmão seu, em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre.
   Carlos Guido, perito criminal ali presente, aproveitou para explicar didaticamente as linhas de raciocínio a serem seguidas com vistas a determinar a origem de sinistros desse gênero: primeiro, seria feito o vasculhamento de toda a área atingida e, em seguida, um exame de condensação de fuligem e enegrecimento das paredes, procedimento capaz de denunciar a incubação inicial do fogo. Nesse caso, acrescentou, é também de grande valia o boletim dos técnicos do Corpo de Bombeiros. Eles observam onde há maior incidência de chamas, a sua cor e a cor da fumaça emitida, estabelecendo assim a natureza dos objetos queimados.
   Outro item relevante é o exame da rede elétrica, seja a de força e a de iluminação. No caso da Renner a rede elétrica havia sido trocada havia cerca de dois anos e estava dentro dos padrões exigidos. Segundo técnicos da CEEE, se houve algum curto-circuito interno, seria muito difícil localizar a sua causa, uma vez que os transformadores que alimentavam aquela zona do centro mostravam-se em perfeitas condições. Por outro lado, os representantes da estatal fizeram questão de ressaltar que a responsabilidade da companhia ia somente até a distribuição da energia (no centro da cidade, feita de forma subterrânea), não interferindo na rede interna de cada usuário, o que é da alçada da prefeitura, incluindo a fiscalização adequada. Eles citaram casos usuais de prédios que aumentam os seus gastos de energia depois de um determinado período, sem ao menos informar ou sequer consultar a companhia sobre a sua viabilidade e possíveis riscos. No caso da Renner, era algo que não acreditavam ter ocorrido. 
   Voltando à peritagem da fiação: revisada, esta pode determinar o ponto exato onde ocorreu o curto-circuito – se é que de fato ocorreu. Todo material considerado útil é recolhido aos laboratórios do Instituto, para detidos exames. Obviamente, isso tudo não é uma tarefa fácil, pois o fogo destrói elementos preciosos, sem falar nos danos causados pelo próprio trabalho dos bombeiros.
   São três as causas de incêndio, explicou Carlos Guido. A comum: combustão espontânea, determinada pela ação de bactérias, habitual em matas. A acidental: faíscas, eletricidade estática, pontas de cigarro acesos, tocos de vela esquecidos, fósforos jogados descuidadamente ao chão e também o clássico curto-circuito, comum em construções. E a proposital: casos de piromania, vingança, para esconder crimes ou obter vantagens ilícitas, cobrar seguros etc. De certa forma a causa proposital é a mais fácil de ser esclarecida pelas perícias, já que dificilmente existe o crime perfeito.
   Na verdade – segundo revelou o diretor do Instituto de Criminalística, perito-criminalista Pedro Santos da Silveira – o trabalho dos técnicos do IC iniciou já naquela tarde de terça-feira, pouco depois que soaram as sirenas das viaturas dos bombeiros no centro da cidade.  Intuindo a extraordinária dimensão da tragédia, o diretor destacou de pronto uma equipe para a tarefa que se avizinhava. 
   Orgulhoso das qualidades do IC, Pedro informou que a equipe de odonto legistas do instituto gaúcho era única no Brasil, braço de um minucioso e completo trabalho de levantamento e coleta de dados que integrariam, de forma decisiva, o inquérito policial a cargo da Primeira Delegacia de Polícia de Porto Alegre. Conforme o perito, o laudo técnico deveria estar concluído entre três e quatro semanas, tempo em que a imprensa seria abastecida de notícias e novidades pelo serviço de relações públicas da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e que desde o início centralizava – ou assim tentava - todas as informações oficiais.


    Na sexta-feira, último dia de abril, com grande comparecimento de pessoas, uma das figuras mais conhecidas entre as vítimas foi sepultada no cemitério da comunidade evangélica de Porto Alegre: o gerente do Terrasse Renner, casa de chá e restaurante que funcionava no sétimo andar, Germano Jonas, de 66 anos. Ele havia morrido junto com a mulher, Teresinha, e a sogra, Rubina, de 82 anos. As duas, até aquele momento, ainda não tinham sido identificadas pelos peritos do Instituto Médico Legal.
    Um dos que estavam lá, o garçom Flávio da Rocha Borges, mostrava-se inconformado. Flávio trabalhava com Jonas havia oito anos e considerava-o um amigo: “Nunca encontrei pessoa mais amável que seu Jonas. Todos que trabalhavam com ele o queriam muito bem. Era um homem tão desprendido que, não fosse isso, ainda poderia estar vivo. Na hora do incêndio subiu ao oitavo andar para salvar sua mulher e a sogra”.
    No domingo, em sua coluna semanal Ribalta das Ruas, o jornalista Antônio Carlos Ribeiro, 55 anos, dedicou a Germano a crônica A Morte do Urso Branco:
    “Uma das vítimas, o ecônomo do Terrasse Renner, Germano Jonas. Morreu no posto em que permanecia há 30 anos, desde que veio de Cruz Alta para Porto Alegre, campo maior para a sua formação profissional iniciada na Europa. Gordo e jovial, o jovem imigrante arrendou o salão térreo do edifício Rex, na rua Pinheiro Machado, ao lado da Farmácia Peixoto, e montou uma sorveteria e bar ao melhor estilo germânico: o Urso Branco. Foram os primeiros sorvetes de verdade que minha geração conheceu. Jonas os fabricava com paciência e amor, enquanto aprendia o idioma e se identificava com a cidade. Há tanto tempo, como eu, afastado da velha Rainha da Serra, foi um cruz-altense (nascido em Frankfurt, Alemanha) que morreu terça-feira. A despeito do seu garbo profissional e do impecável smoking, era simples e terno, tímido e afável. Com o velho maitre vai-se um pouco da gente também: infância, memória, saudade...”
                                                                           
  SÍNDROME DO PÂNICO: A CIDADE VÊ UM INCÊNDIO EM QUALQUER PARTE
   Ao passar dos dias, de variadas formas, a cidade inteira ainda se mostrava absorvida e chocada pela tragédia. Nas imediações do local os lojistas, ariscos e nervosos com a súbita notoriedade, preferiam lamentar a interdição da área e a queda no movimento de clientes. Muitos estabelecimentos comerciais situados no perímetro do incêndio, ainda estavam com suas atividades paralisadas. O presidente da Associação Comercial de Porto Alegre, Ênio Aveline da Rocha, pressionava as autoridades – especialmente o chefe da Casa Civil - para que liberassem imediatamente a parte comercial isolada
   Todavia o barulho infernal das máquinas revirando os escombros, o mau cheiro emanado do interior do prédio (e que persistiria ainda nas próximas semanas) o irritante zum-zum das pessoas, as lembranças do sinistro, tudo isso ainda estava bem vivo e presente.
   Passados quinze dias Maria Beatriz, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, já não aguentava mais: “É um martírio ter de vir para o trabalho diariamente. Depois do incêndio não tive mais sossego, chego até a sonhar que o que restou do prédio está vindo abaixo”. Neusa, balconista do Café Haiti, nas proximidades, sofria com o barulho ininterrupto: “O barulho das máquinas começa pela manhã e vai até o final do dia. É tão forte que parece que vai arrebentar com os nervos da gente”.
   Vivendo uma espécie de melancolia pós-traumática, os balconistas aproveitavam a ociosidade reinante para atender os jornalistas que fuçavam tudo e ouviam a todos, anotando às pressas impressões e receios daquelas privilegiadas fontes.
   Iara, 24 anos, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, folgara na terça-feira e tinha sido poupada do espetáculo – quando soube, ficou traumatizada a ponto de não ter coragem de voltar para casa. Seu marido estava viajando, e os dois, como disse, também moravam em uma “gaiola”.
   “Eu estava pensando em comprar um apartamento para mim. Queria um lugar para morar, mas agora mudei de ideia, acho que vou comprar uma casa. Onde eu moro tem um extintor pequeno em cada andar, mas ninguém sabe mexer neles”.
   Faz uma pausa e acrescenta, como se falasse do mundo lá fora: “É tudo um absurdo, eles não pensam nunca na gente, só em vender, e quando acontece alguma tragédia ainda é que vão pensar. Porque antes ninguém pensa”.
    Na sua edição de sexta-feira o jornal Zero Hora observou: “Em todas as lojas os funcionários se confessam terrivelmente assustados. Como se somente agora percebessem a insegurança da cidade e que tragédias assim podem acontecer em qualquer canto, a qualquer momento”.
    Na Casa das Sedas, na Doutor Flores com a Otávio Rocha – uma das primeiras lojas evacuadas – qualquer barulho sobressaltava as funcionárias. Uma delas disse à reportagem que saiu correndo desesperadamente quando tudo começou. Outra se lembrava das pessoas presas no alto do prédio: “A gente via as coitadinhas abanando e não dava pra fazer nada. Aqui, a gente ajudou muitas delas, temos até bolsas guardadas. A tristeza é não ter podido tirar ninguém daquelas gaiolas”.
    Na Lojas Marisa a funcionária Selma, de 28 anos, criticava a falta de condições de trabalho dos bombeiros: “Eles são muito corajosos, fazem o que podem e o que não podem, mas é difícil ajudar dessa forma. Eles demoraram a chegar. Nesse tempo que custaram a vir muitas mais pessoas poderiam ter se atirado do alto. Daqui deu pra ver uma moça que quase não saiu porque uma escada Magirus não conseguiu chegar. Depois tentaram com a outra escada e deu. Essa também podia se assustar e se jogar antes do socorro. E tem mais: todas aquelas pessoas no terraço não conseguiram ser alcançadas pelas escadas”.
    Sua colega Neli recordava as pessoas nas janelas, fazendo sinais. “Não gosto nem de dizer nada porque foi o dia mais triste que já vi. Não é justo. Eu chorei muito. Chorei aqui, chorei no carro, chorei em casa”.
    Ex-funcionária da loja sinistrada, onde trabalhou na seção infantil, Marli Antunes, da Lojas Alfred, citava as janelas basculantes “onde não cabe nem uma criança”. “Como é que podia ter umas basculantes em vez de janelas?”, indagava, já em tom de resposta.


                                                                      
 O TÚNEL DA CONCEIÇÃO VIROU UMA NEURASTÊNICA GARAGEM COLETIVA
   Nos dias seguintes ao incêndio o trânsito de veículos na área central da cidade desorganizou-se completamente (demorou uma semana para retomar à plena normalidade), a despeito do apelo das autoridades para que os motoristas deixassem os carros em casa. Em vão.
   O que se viu então foi uma quase loucura. A avenida Farrapos congestionou na quinta-feira, a Mauá engarrafou e o túnel da Conceição, inaugurado havia poucos anos, transformou-se em uma neurastênica garagem coletiva. Por sua vez, na Júlio de Castilhos, na Independência, na Osvaldo Aranha e na avenida Protásio Alves, formaram-se intermináveis fileiras de carros. Os encarregados do trânsito, sem esconder a forte irritação com as demonstrações do egoísmo dos porto-alegrenses, preferiam lembrar que “bastava as pessoas tomarem consciência do que está acontecendo, do quase impossível que está sendo feito”.
   O resultado de tanta insensibilidade motorizada não poderia ser outro: uma infernal sequência de batidas, confusões, xingamentos e discussões entre os motoristas e acompanhantes, muitos deles os tais fatídicos “turistas do incêndio”.
   A propósito destes últimos, em sua edição de sexta-feira, 30, sob o título Morbidez e Sadismo, o jornal Zero Hora, anotou em sua coluna Informe Especial
:
   “Até ontem à noite uma multidão de curiosos continuava firme ao redor do prédio semidestruído das Lojas Renner, enquanto continuavam os trabalhos de localização e remoção das vítimas. Insensíveis aos apelos das autoridades e mesmo ao perigo representado pela possibilidade de um desabamento, centenas de pessoas ali continuavam, atrapalhando o trânsito e o deslocamento de gente que, por força do trabalho, teria obrigações a cumprir naquela área. Move-as a morbidez e o sadismo, os mesmos sentimentos baixos que fizeram com que muita gente, aos gritos, mandasse saltar as pessoas que apareceram às janelas da galeria Malcon, quando apareceu fumaça no prédio. E mais: diversas pessoas estiveram no IML a pretexto de identificar supostos parentes e amigos, apenas para olharem os restos mortais das vítimas. Triste, mas verdadeiro”.

   Na primeira segunda-feira de maio, dia 3, passados seis dias da tragédia, ZH voltou a documentar a continuidade do fenômeno. “Só falta fazerem cartão postal disso aqui”, lamentou ao jornalista um senhor que trabalhava nas proximidades:
    “Durante todo o dia, ontem, como tem acontecido desde terça-feira passada, centenas de pessoas se aglomeraram perto dos quatro cordões de isolamento, nas imediações do que foi a loja central do Grupo Renner. A maioria dos pais que têm nos fins-de-semana o único tempo livre para sair com seus filhos, descobriu agora um novo divertimento: levá-los para ver “o que ficou do incêndio”. Máquinas fotográficas, pacotes de pipocas, bergamotas e tudo o mais que funcionar como lanche rápido faz parte desse novo tipo de lazer. Por toda parte, esses pais e mães se preocupam em explicar para seus filhos: “Vejam, foram seis pavimentos que caíram. Sim, ainda tem gente aí. De lá foi que a mulher se jogou. Claro, pode desabar com o vento”.
   “E perguntas de crianças é que não faltam, para assombro de Manoel, que diz nunca ter visto nada igual. “Tem até turista – diz ele – pois escutaram um menino, possivelmente argentino, perguntando: “Papá, donde se quedaram las personas?” O papá argentino não escutou a observação de Manoel nem tampouco satisfez a curiosidade do filho, preocupado que estava em conseguir para a mulher e para ele próprio um posto de melhor observação. Mais adiante Ismênia Costa, de 69 anos, cliente há muitos anos das Lojas Renner, não entendia “como tanta riqueza assim pode acabar em tragédia”. E, filosofando, ela própria se respondia: “A vida é assim, e pra Deus quando as coisas têm que acontecer, acontecem. E não adianta beleza, riqueza, nem nada”.
   “Mas, se existe um prazer mórbido nas pessoas que, com frequência, vão até a Otávio Rocha e Doutor Flores para ver o que restou do incêndio, está havendo também, e com maior intensidade, uma conscientização sobre o que representa uma cidade desprotegida. Por isso, ontem, olhando o que ficou, muitas pessoas ainda se perguntam sobre como ficariam as famílias dos que morreram e que tipo de segurança o Grupo Renner vai dar para seus empregados. Outras, com mais firmeza ainda, comentavam: “A realidade é que virá outra loja, assim como em outros incêndios, e tudo ficará como sempre foi”. O motorista do táxi 1896 foi mais além: “Quando a imprensa tá ganhando para fazer propaganda?” E esclareceu: “Fosse gente pobre, eles estavam roubados e ninguém fazia nada de matéria sobre eles”.

  Na primeira notícia, citando a Galeria Malcon, o jornal referia-se a um falso alarma de incêndio ocorrido no dia seguinte ao sinistro, quando, no meio da tarde, alguns rolos de fumaça começaram a sair pelas janelas de um dos andares superiores do grande edifício da rua da Praia. Ao ouvir a palavra “fogo” uma multidão apavorada precipitou-se para fora, enquanto outros se penduravam nas janelas, aos gritos.
   Desta vez boa parte da assistência gritava “pula! pula!”. Minutos depois, com a chegada dos bombeiros, o circo foi desmontado.  O incêndio na realidade resumia-se a um amontoado de lixo em combustão.
   Naquele mesmo dia, em São Paulo, onde o episódio de Porto Alegre repercutira intensamente, uma doméstica pulou do décimo primeiro andar de um prédio no bairro de Cambuci. Apavorada com a fumaça, pensando que o edifício estivesse em chamas, Joana Alves dos Santos Monteiro, de 23 anos, imolou-se estupidamente, pois nenhum morador corria qualquer risco de morte.  Outros nove incêndios em diferentes pontos da capital paulista foram atendidos pelos bombeiros durante aquela quarta-feira, 28, dia seguinte ao incêndio da Renner.
   Em Barra do Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, uma loja de tecidos foi totalmente destruída pelo fogo que iniciou em um prédio de três andares onde estavam armazenadas grandes quantidades de madeira velha. Em seguida o fogo atingiu o Instituto Nacional de Previdência Social, INPS, cujas instalações seriam oficialmente inauguradas no dia seguinte.
   Na tarde de quinta-feira, em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre, uma casa de três peças virou cinzas. Os moradores – um casal e três filhos – tinham saído um pouco antes e ninguém ficou ferido. Segundo um vizinho, a causa foi um escapamento de gás.
   Também um pensionato feminino que funcionava na rua Riachuelo, 1649, no centro, pegou fogo, obrigando mais de 50 mulheres a fugirem às pressas em trajes de dormir. Entre elas estava Maria Helena – aquela que havia escapado do incêndio da Renner e que disse não ter condições psicológicas para enfrentar tal drama novamente. Sem dinheiro e sem ter para onde ir, algumas moças passaram a noite no salão ao lado, cedido pelo Sindicato dos Metalúrgicos. O fogo – presumiu-se – havia sido provocado por um ferro elétrico esquecido em uma tomada. Por sorte ninguém se feriu gravemente.
   O major Clóvis Defensor – com marcadas olheiras e aparência de profundo cansaço – comandou pessoalmente a operação que, não bastasse, revelou mais outra carência no extenso rosário de deficiências da corporação: também não havia holofotes para o trabalho noturno.

A HISTÓRIA DE MARIA HELENA, A SOBREVIVENTE SORTUDA E AZARADA
   A história de Maria Helena – que, em menos de três dias, sobrevivera a dois sinistros – era quase insólita e merecia registro: afinal, ela não sabia se tinha muita sorte ou muito azar, ou as duas coisas juntas. Fosse como fosse, o certo é que estava quase sempre nos locais errados e nas horas erradas – mas sobrevivia.
   Na edição de sábado Zero Hora dedicou quase uma página inteira ao acontecido com esta jovem chamada Maria Helena Morais de Oliveira, descrita como morena magra, 20 anos, funcionária do Hospital Fêmina e que agora só dormia sob o efeito de tranquilizantes e também chorava muito. Aos jornalistas ela relembrou o que tinha passado no edifício Renner, onde fora fazer compras aquela tarde.
   Maria estava no quarto andar quando um funcionário gritou a respeito do fogo. Ela imediatamente quis descer, mas a fumaça era muito intensa, fazendo com que todos fugissem para o alto do prédio. No terraço, sentindo que iria desmaiar – e alertada por um homem que se isso acontecesse ela certamente morreria – retirou o lenço que protegia seu cabelo e colocou-o na face, à espera do socorro.
   “Esperei uns dez minutos e durante todo esse tempo tropecei numa porção de gente que estava caída. Tinha uma senhora que queria se jogar e eu gritava para ela não pular que a escada vinha chegando. Tinha lá umas 40 pessoas, acho que só saíram umas quatorze”.
    Salva pelos bombeiros e medicada no H.PS, foi para a casa de uma colega, onde jantou e finalmente dormiu. Na ocasião ela comentou com a amiga que, se tivesse que passar por tudo aquilo de novo, preferiria se jogar do alto a morrer queimada. Na quinta-feira, já de volta para o pensionato da rua Riachuelo, à espera de um colega que chegaria por volta da meia-noite, começou a sentir cheiro de fumaça, comentando isso com uma amiga. “Para com isso, Maria Helena, que tu estás impressionada e vendo fogo onde não existe”, respondeu esta.
    Porém mais uma vez o fogo existia realmente – “parecia que voltava todo aquele pânico” – e ela teve que fugir do pensionato somente com a roupa do corpo. Sem pertences, sem dinheiro, traumatizada, Maria lembrou que, anos antes, outro prédio onde residiu, na rua General Câmara, também havia incendiado: ela só se salvou porque conseguiu passar para uma construção ao lado usando uma escada colocada por um vizinho.

   Um pouco antes do acontecido no pensionato de Maria Helena, tendo por cenário o térreo do edifício de número 632 da avenida Borges de Medeiros, ali bem perto, ocorreu um princípio de incêndio, possivelmente causado por alguém que jogou um fósforo ou algum cigarro aceso no poço de energia. No local funcionava uma loja de calçados e também o cinema Lido, em sessão naquele horário. Os frequentadores nada perceberam e não houve tumulto.
   Na sexta-feira à tarde, na rua Itaboraí, 380, bairro Jardim Botânico, populares avistaram fumaça saindo das janelas do sexto pavimento de um prédio com cerca de 300 moradores. Dona Porfíria, a proprietária, estava chegando em casa e surpreendeu-se com o alvoroço da vizinhança. Informada de que a fumaça vinha do seu apartamento, exclamou: “ Meu Deus, o pão está queimando!”
   Ela estava fazendo pão no forno a gás e saiu à rua, distraída. Houve confusão e correria pelos corredores. Os bombeiros chegaram rapidamente e ordenaram a evacuação dos moradores. Subindo até o oitavo andar com uma escada Magirus, logo descobriram que a fumaça provinha mesmo do apartamento 601. Meio constrangido, um dos moradores justificou a movimentação e o nervosismo geral: “Estamos apavorados com o incêndio das Lojas Renner. Imagine se este aqui também pega fogo!”
   Ainda na sexta-feira, um antigo prédio que era usado como depósito pela firma de pescados Promar, na cidade de Rio Grande, sul do Estado, foi destruído pelas chamas. No local estavam armazenadas 40 mil caixas de madeira e uma grande quantidade de papel encerado que serviria na embalagem dos peixes destinados à exportação. Os prejuízos chegavam a um milhão de reais.
   Na segunda-feira, 3 de maio, um curto-circuito em uma máquina de costura assustou mais de 50 funcionárias e clientes de uma loja de modas (Sibra Modas) na rua Marechal Floriano, 39, e provocou frisson em todo o comércio circunvizinho. Dezenas de pessoas correram para a rua, houve gritaria e crises nervosas entre as mulheres e grande parte da rua foi fechada ao tráfego pela polícia. “Mais uma vez o pânico dominou o porto-alegrense, que está envolvido por tal estado de espírito desde a tragédia das Lojas Renner”, escreveu o Diário de Notícias.
   Na terça-feira outro curto-circuito, desta vez em uma agência do banco Bradesco da avenida Assis Brasil, causou corre-corre e gritaria. Minutos antes, na vizinha Caixa Econômica Estadual, alguém acionou o alarma geral, assustando mais de 30 funcionários e alguns clientes – eles não sabiam se era assalto ou incêndio.
    Naquele mesmo dia, 4 de maio, o sétimo da tragédia, “com a presença das mais altas autoridades”, incluindo o governador e o prefeito, celebrou-se a missa “in memoriam” dos “mortos no acidente” da Renner pelo arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer. Oficiada na catedral metropolitana, às 19 horas, a cerimônia religiosa foi aberta à população.
    Também na terça-feira um depósito da firma Azevedo Bento, na rua Santos Dumont, zona norte da capital, foi atingido pelas chamas, com a destruição quase total dos estoques de cordas, ferragens, sal e gêneros alimentícios. Os bombeiros tiveram dificuldades com um hidrante defeituoso e um deles, sem equipamento de proteção, teve os olhos atingidos pela fumaça, sendo encaminhado ao hospital da Brigada Militar.
    Curiosamente, no momento em que o alarma soou e os bombeiros foram chamados para atender o incêndio na rua Santos Dumont, mais de vinte jornalistas acompanhavam a entrevista coletiva do governador Sinval Guazzelli, no quartel-geral da corporação e que versava sobre as providências para seu reerguimento. Eles estavam justamente assistindo a projeção de um filme sobre o edifício Joelma cedido pelos bombeiros paulistanos.
   Na quarta, 5, os bombeiros correram para a rua Santana – o fogo estava se alastrando em um prédio de 18 apartamentos – e encontraram lá um morador que havia dormido com o cigarro aceso: era o jovem Hugo Cornélio, 20 anos, e que depois do almoço deitou na sua cama para ler revistas e fumar. Ele acabou pegando no sono e só acordou às 16 horas, quando as chamas já tomavam conta do seu apartamento no terceiro andar. Cambaleando e já intoxicado pela fumaça, foi conduzido ao Pronto-Socorro.  Quinze homens da Estação Central, tripulando um carro-bomba e um carro-pipa de oito mil litros chegaram em poucos minutos e controlaram a situação.
   Na quinta-feira em um apartamento da rua Leopoldo de Freitas, número 83, bairro Passo da Areia, uma mulher identificada como Rosa entrou em pânico depois que uma “espiriteira” pegou fogo e atingiu sua empregada, Gládis Maria, de 22 anos. A doméstica recém iniciava o seu dia de trabalho - ao acender o fogareiro teve as vestes incendiadas e entrou em desespero. A patroa, por sua vez, pensou no pior e correu até a sacada, de onde se jogou, caindo no piso, dois andares abaixo. As duas foram encaminhadas ao Pronto Socorro e ao hospital Lazarotto, ali perto – a doméstica com queimaduras de primeiro e segundo graus e a patroa em estado ainda mais grave.
   A existência de hidrantes próximos (e em perfeito estado de funcionamento) facilitou o trabalho dos bombeiros que, no entardecer de sábado, primeiro de maio, controlaram em pouco mais de 30 minutos as chamas que destruíram parcialmente a madeireira Cruz de Malta, na avenida Presidente Vargas, em Alvorada. O incêndio foi notado pelos vizinhos, os quais, semanas antes, haviam alertado sobre o perigo representado por um fio que saía de uma loja contígua e que provocava visíveis curtos-circuitos em dias de chuva. Se o fato acontecesse três meses antes teria consequências muito mais sérias, já que no local funcionava um depósito de gás. Segundo os bombeiros (quem primeiro atendeu a ocorrência foi a estação do Passo da Areia) a empresa já tinha sofrido sinistro semelhante sete anos atrás. Desta vez, porém, o proprietário sofreu uma crise nervosa.
   Na tarde de sexta-feira, 30 de abril, um nome saíra oficialmente da lista de desaparecidos da tragédia das Lojas Renner, que agora baixava para 17 pessoas. O funcionário Luiz Gabriel da Cruz apareceu são e salvo: por sorte, dias antes da tragédia ele havia sido transferido para a loja do centro comercial da Azenha, fato que seus colegas desconheciam – inclusive muitos já o davam como morto e carbonizado. 
   Enquanto isso, como sempre, alguns vigaristas muito vivos aproveitavam o momento para a prática de velhos golpes.
   Na sexta-feira soldados da Brigada Militar prenderam dois homens que se faziam passar por bombeiros. Eles visitavam o comércio, vendendo anúncios para uma suposta revista especializada e pedindo dinheiro para “restaurar” a corporação. Desconfiado, o proprietário de uma loja de móveis do bairro Jardim Itu ligou para o quartel-central e foi informado de que os bombeiros não possuíam nenhum órgão de divulgação e muitos menos autorizavam alguém a recolher dinheiro em seu nome.
   No centro, agentes da Polícia Civil deram voz de prisão a dois sujeitos que ofereciam aos transeuntes imagens coloridas da tragédia. Também a atitude de funcionários de uma conhecida loja de material fotográfico foi interpretada como exploração comercial do fato – eles expuseram na vitrine instantâneos do incêndio e chamaram a atenção do irritado delegado de polícia que os prendeu.
   Neste mesmo dia a direção da Companhia Estadual de Energia Elétrica informou que já havia sido normalizado o fornecimento de energia, desligado por mais de 70 horas. Vários estabelecimentos comerciais e residenciais situados nas proximidades da zona atingida voltaram ao expediente normal.


Coincidência extraordinária: Sidnei, a irmã de Everaldo, morreria no mesmo dia que ele, um ano e meio depois.

TERMINAL GRANELEIRO DEIXA SETE FERIDOS EM RIO GRANDE
   Nas semanas seguintes o Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo pareciam regidos pelo elemento fogo, ao menos nos noticiários da imprensa, que – lembrando os episódios das Americanas e do Joelma - destacava com lentes focais tudo que cheirasse a queimado. Enquanto isso mensagens de pesar chegavam de todas as partes do Brasil e do mundo, endereçadas ao governador do Estado e ao prefeito municipal, incluindo a enviada pelo presidente Ernesto Geisel e também a do embaixador da República Federal da Alemanha em Brasília, Horst Roeding.
   Naquele momento, aliás, misteriosos sinistros pareciam brotar do nada. Nas proximidades do quartel general do Terceiro Exército, nas proximidades do Gasômetro, os moradores de um edifício de onze andares entraram em pânico com um princípio de incêndio que surgiu no quinto andar.  Soldados de Departamento Regional de Moto Nivelação e da Brigada Militar debelaram o fogo que já havia destruído uma mesa e um armário de cozinha. Um andar acima, outro morador, sentindo o cheiro da fumaça, feriu-se nas mãos ao quebrar o vidro de uma janela.
   Em Caxias do Sul, a fábrica de acordeões da marca Universal pegou fogo, destruindo rapidamente cerca de 30% do prédio de três andares e mobilizando mais de trinta bombeiros. Mesmo agindo rapidamente, estes levaram cerca de três horas para extinguir as chamas, possivelmente originadas de um curto-circuito na seção de materiais elétricos.
   Em Paso de Los Libres, na Argentina, uma farmácia só livrou-se do pior graças ao auxílio dos vizinhos brasileiros da cidade de Uruguaiana, do outro lado da ponte que liga os dois países. No centro de Canoas, município da Região Metropolitana, a 17 de maio, bombeiros da base aérea daquela cidade uniram-se aos colegas para apagar o fogo que consumiu o depósito do supermercado Zottis – as labaredas iniciaram no estoque de papel higiênico e duraram mais de duas horas.
   Perto, em Sapucaia do Sul, um curtume escapou por pouco da destruição total. Bem mais sério, o incêndio em uma das balanças do terminal graneleiro da Cooperativa Tritíticola Ijuí, Cotrijuí, na cidade de Rio Grande, resultou em sete operários feridos no início da tarde do dia 12 de maio – quatro deles em estado grave, um dos quais teve de ser removido de helicóptero para Porto Alegre. Segundo algumas testemunhas, a causa mais provável seriam os “canecos” do elevador de carga que se atritaram com as paredes metálicas da máquina, gerando faíscas – ou fogo por fricção. A presença de grandes quantidades de farelo de trigo que estava sendo transferido para os porões de um navio facilitou a propagação. Um elevador explodiu.
    No início de junho a fábrica de colchões e estofados Cosmospuma, em Porto Alegre, foi parcialmente destruída pelas chamas que iniciaram às três horas da madrugada, na rua Aurélio Porto, bairro Partenon. Segundo os bombeiros – que, com três guarnições, levaram vinte minutos para controlar a situação – o fogo iniciou em tonéis com material inflamável.

A FÁBRICA DA PEPSI-COLA PEGA FOGO E OS MORADORES FOGEM DAS CASAS
   Talvez por influência psicológica dos filmes-catástrofe Inferno na Torre (superprodução que estreara em Porto Alegre em novembro), O Destino de Poseidon, Terremoto e Tubarão, os perigos do fogo, reais ou imaginários, vinham intranquilizando o Estado.
   Na noite de 16 de janeiro, sexta-feira, por volta das 20 horas, o depósito da firma Cassim Lahude, na avenida Professor Oscar Pereira, bairro Glória, foi totalmente destruído por um incêndio que também atingiu uma casa de madeira e chegou a ameaçar o prédio de apartamentos vizinho em cujo térreo funcionava uma agência do Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Oitenta mil pares de calçados foram queimados: todavia, não se tratava do velho golpe do seguro – os bombeiros descobriram que este estava vencido.
    Na mesma noite outro sinistro de proporções bem maiores e preocupantes mobilizou praticamente todas as guarnições da capital e trouxe sérios transtornos aos moradores do bairro Menino Deus, muitos dos quais abandonaram às pressas suas casas: faltando quinze minutos para as onze horas grandes labaredas surgiram na oficina de manutenção da empresa Refrigerantes Sul-Riograndense, fabricante da Pepsi-Cola e que há mais de vinte anos funcionava na avenida Praia de Belas, esquina com a Marcílio Dias, populosa e valorizada zona residencial de Porto Alegre.
   Segundo funcionários que trabalhavam na manutenção, o fogo irrompeu próximo aos depósitos de gás carbônico e amoníaco. As labaredas já estavam altas quando a Brigada Militar obrigou-se a isolar uma vasta área em volta, temendo que as sucessivas explosões dos tubos de oxigênio e latões de óleo ali armazenados fossem seguidas de outras – o que parcialmente aconteceu. Um destes botijões voou a muitos metros de distância e caiu em uma das piscinas da sede esportiva do Clube do Comércio, nos fundos. Após horas de trabalho, o comandante de uma das guarnições queixou-se da falta de hidrantes e de água (três mil litros eram consumidos a cada cinco minutos de incêndio). Já os assustados moradores lembravam aos repórteres que, há tempos, todos eles pressionavam pela saída da empresa daquele local.
   Dois dias depois, nos primeiros minutos do domingo, 18, o cargueiro Itagiba, do Loyde Brasileiro, seguia do porto de Rio Grande rumo a Buenos Aires quando, na altura do farol de Sarita, próximo a águas uruguaias, a casa de máquinas pegou fogo. O barco, com 168 metros de comprimento, ficou à deriva, sem motores, sem geradores, sem sistema de rádio e sem poder atender aos chamados das autoridades marítimas. O rebocador Triunfo, da Marinha do Brasil, conseguiu trazê-lo do alto mar até a entrada da barra de Rio Grande. Segundo o seu comandante, o capitão João Dilermando Gonçalves, o Itagiba – que deveria depois seguir até a Austrália – levava uma carga mista que incluía muitas toneladas de carne congelada. Não houve feridos mas o barco precisou de fortes reparos em estaleiros brasileiros.
      Na tarde de segunda-feira, em Pelotas, os bombeiros não conseguiram salvar o Supervarejo Fernandes, na estrada da Barbuda. Os dois caminhões da corporação tiveram de buscar água em hidrantes da avenida Fernando Osório, a dois quilômetros de distância. A estrondosa explosão de 15 botijões de gás do depósito assustou a vizinhança e causou danos parciais em um prédio ao lado.
    Ainda na segunda-feira, 19, incidente bem mais sério ocorreu na favela do Caju, no Rio de Janeiro, deixando desabrigados mais de três mil moradores e causando a morte de uma criança. O fogo se propagou com grande rapidez, ajudado pela inexistência de hidrantes nas proximidades, e a grande maioria dos moradores fugiu somente com a roupa do corpo. Uma vela deixada acesa no interior de um dos casebres teria sido o princípio de tudo.
   De bem maior gravidade, e repercutindo intensamente na imprensa, o acidente com um avião da Transbrasil Linhas Aéreas na tarde de quinta-feira, 19, no aeroporto de Chapecó, cidade do oeste catarinense, a 550 km da sua capital, começou com o provável estouro de um dos pneus, embora a hipótese de incêndio nos motores não fosse descartada.
   O modelo Bandeirantes saíra de Florianópolis havia menos de duas horas, fazendo escalas em Joaçaba e Concórdia. Reabastecido em Chapecó, seguiria para Erechim e Porto Alegre. Com a explosão, sete dos nove ocupantes tiveram morte instantânea e os dois sobreviventes – incluindo um cidadão boliviano – sofreram ferimentos graves, um dos quais morreu dias depois. Segundo testemunhas, a aeronave subiu cerca de 30 metros e então despencou sobre o solo.
   A rapidez das chamas também foi apontada como a responsável pela morte da menina Kátia, de um ano de idade, carbonizada no interior de uma casinha de madeira na estrada Juca Batista, zona sul da capital gaúcha. Os adultos saíram cedo para trabalhar, enquanto uma mulher permanecia em casa cuidando dos 12 filhos dos dois casais. Ela saiu para apanhar lenha e, ao retornar, encontrou o barraco talado pelo fogo – a criança de um ano foi esquecida lá dentro pelos irmãos. O fato aconteceu na manhã de sexta-feira, 23.
   No mesmo dia, na garagem Bachier, em Uruguaiana, dois automóveis, uma camioneta e uma lancha foram destruídas durante incêndio acontecido de madrugada. Na avenida Sete de Setembro, centro de Cruz Alta, na noite de quinta-feira, 29, grande quantidade de madeira, móveis e máquinas foram tragadas pelo fogo que atingiu uma fábrica de móveis. Chamados 40 minutos depois, os bombeiros se limitaram ao isolamento da área. Muito tranquilo, o proprietário da empresa explicou que havia, sim, seguro total.
   Enquanto isso, na madrugada de 26 de janeiro, em uma grande favela da cidade do México, a explosão de dois botijões de gás deixou três crianças mortas e mais de quatro mil pessoas desabrigadas. Cerca de 250 barracos feitos com folhas de zinco e madeira foram totalmente destruídos. Alguns moradores garantiram que a tragédia tinha sido proposital.         

O SINISTRO DA WOLENS QUASE MATA VÁRIOS BOMBEIROS
   No final da tarde de sexta-feira, 30 de janeiro de 1976, aconteceu o sinistro da Wolens, tradicional e elegante magazine de moda e vestuário localizado no número 1000 da avenida Protásio Alves, em Porto Alegre. Mais de 30 bombeiros, seis carros auto bombas e escadas Magirus foram usados para apagar as chamas que destruíram o prédio de três pavimentos onde funcionava a fábrica da empresa – felizmente não havia mais funcionários no local.
   Os bombeiros dispunham de pouca água e quantidade insuficiente de máscaras contra gases. Mesmo protegendo-se com lenços molhados, vários soldados foram hospitalizados e três deles escaparam da morte ao fugir do desabamento de uma imensa laje. O problema só não foi maior porque se conseguiu isolar um edifício residencial ao lado e também a lanchonete Trianon, muito frequentada por taxistas.
  
   O mês de fevereiro – escaldante em Porto Alegre, porém congelante em países do hemisfério norte – começou com a notícia das mortes de seis idosos de um hospital do bairro de Cícero, em Chicago, Estados Unidos. O fogo iniciou no quarto dos nove andares do edifício.
   Na mesma data, nas primeiras horas da madrugada, na ilha de Manhattan, cidade de Nova Iorque, próximo ao rio Hudson, também com intenso frio, dez pessoas, das quais sete eram crianças, não resistiram à inalação de gás carbônico cuja combustão se originou em um apartamento inferior do prédio de seis pavimentos, propagando-se rapidamente pelos canos da calefação. Cinco vítimas foram encontradas acocoradas em uma das peças.
   Dia 2, segunda-feira, na Inglaterra, uma mãe preferiu morrer junto com os três filhos pequenos a salvar-se sozinha. Segundo despacho da agência de notícias UPI, Winnie Downie, 24 anos, moradora da cidade de Manchester, poderia facilmente ter saltado para o telhado da casa ao lado, mas preferiu tentar o salvamento de uma filha de quatro anos, um filho de três e outro recém-nascido.
    No Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, onde fazia 20 graus abaixo de zero, também naquela segunda-feira, quatro menores foram envolvidos pelas chamas: Sally, sete anos, Michelle, de 12, a babá Diane, de 16, e mais uma menina de 13 anos que estava de visita ao apartamento. Nenhuma escapou.
   Na sexta-feira, 6 de fevereiro, outra tragédia familiar destruiu a família de Henri Russeau e de sua esposa de 34 anos. Segundo informou a agência de notícias United Press International, UPI, o fogo envolveu rapidamente a residência do casal, na província canadense de Ontário. Henri e sete dos seus nove filhos pequenos pereceram no local, salvando-se apenas a mulher e dois rapazes de 18 e 15 anos.
   Voltando à capital gaúcha, o amanhecer de sábado, 7, não foi propriamente trágico e sim trabalhoso para os bombeiros e policiais militares chamados a atender uma tentativa de suicídio no edifício Aspecir, localizado na avenida Alberto Bins, esquina com a rua da Conceição. Lá, por volta das seis horas da manhã, o zelador do prédio, de nome Raul, 25 anos, casado, pai de dois filhos, há quatro meses no emprego, entrou em violento e incontrolável surto psicótico, cena que atraiu uma numerosa multidão e paralisou totalmente o trânsito por quase quatro horas. 
   Ao alto, tal como um Tarzan urbano, armado de barras de ferro, o homem começou a quebrar os canos de ligação do reservatório de água. Ao constatar que estava sendo observado por dezenas de curiosos, passou a atirar tijolos arrancados do prédio, ao mesmo tempo em que ameaçava saltar para o asfalto. Soldados do Nono Batalhão da Brigada Militar foram chamados e as cercanias da Otávio Rocha se transformaram em um grande circo a céu aberto.
   No final, o zelador suicida optou por afogar-se nas profundezas da caixa dágua predial. Retirado dali por um bombeiro “homem-rã”, na observação irônica de um repórter, dominado por dez policiais que logo o amarraram, gritava “Eu sou o caminho, a verdade e a vida!”. Sua esposa não resistiu às fortes emoções e desmaiou, enquanto o marido era embarcado em uma ambulância e levado para o hospital psiquiátrico São Pedro.
   Na Grande Porto Alegre, quarta-feira, dia 11, às 12h30min, pouco depois que os operários saíram para almoçar, nem mesmo a pronta atuação de três brigadas de incêndio das indústrias calçadistas impediu a “redução a escombros fumegantes” de uma fábrica exportadora da cidade de Campo Bom (Calçados Artis, rua São Paulo). Os bombeiros de Novo Hamburgo, a 14 quilômetros dali, chegaram em 20 minutos, mas nada puderam fazer. Presumiu-se que a causa tenha sido um curto-circuito.
   No mesmo dia e quase no mesmo horário, um daqueles acidentes domésticos tão comuns nos lares brasileiros quase matou o garoto Rudinei Oliveira, 16 anos, morador de uma construção de madeira da rua Castro Alves, bairro Independência, na capital. O menor brincava com um litro de álcool na cozinha junto à chama acesa do fogão a gás quando o combustível pegou fogo. Rudinei recebeu graves queimaduras e foi transportado para o Hospital de Pronto Socorro, ali próximo.

    Há exatamente um ano, naquele mês de fevereiro, o edifício mais alto de Nova Iorque e um dos mais altos do mundo escapava de se transformar em um cenário real do filme “Inferno na Torre”. Na noite de sexta-feira, 14, o décimo primeiro andar dos 110 andares que constituíam a torre norte do Word Trade Center, o gigantesco Centro Mundial de Comércio, as “Torres Gêmeas” da ilha de Manhattan, pegou fogo. Avançando pelos fios elétricos e pelos canais de ventilação, espalhando uma nuvem de fumaça preta até o vigésimo sexto, só foi dominado horas depois. Devido ao calor e à forte fumaça, os bombeiros não conseguiam, individualmente, permanecer mais que cinco minutos no local. Muitos deles desmaiaram e 28 foram conduzidos aos hospitais da cidade. Ninguém morreu e ninguém da direção do Word Trade, destruído por um atentado terrorista duas décadas depois, quis falar a respeito.

   Em Porto Alegre, no final da tarde de segunda-feira, 16, em uma oficina de chapeação na rua Teixeira de Freitas, bastaram 20 minutos para que todo o local e mais seis automóveis fossem destruídos - outros quatro saíram bastante danificados. Os irmãos Valdomiro, Elias, Domingos e José, donos do negócio, explicaram que tudo começou quando um dos seus funcionários usava a solda elétrica no reparo de um fusca. Uma faísca atingiu o tanque do veículo e as chamas alcançaram Valdomiro que, ao fugir, espalhou-as por toda a oficina. Conforme os vizinhos, os irmãos eram “gente boa, porém um tanto irresponsáveis”. Não havia qualquer seguro e os prejuízos foram totais.   
   Na quarta-feira, 18 de fevereiro, o que parece ter sido um curto-circuito na instalação elétrica destruiu completamente o setor de estofaria da fábrica de carrocerias Marcopolo, às margens da BR-116, em Caxias do Sul. Na pressa, mas sem feridos, uma camioneta da Brigada Militar que atendia o chamado capotou sobre a rodovia. Outro soldado, intoxicado pelos gases da combustão, precisou ser internado no hospital Pompéia.
   Antes disto, no final da tarde de terça, uma residência de madeira localizada na estrada que liga Caxias à localidade de São Giácomo foi consumida pelas chamas em poucos minutos. O próprio dono, de nome Armando, 40 anos, foi acusado por sua esposa de ser o autor do fato – para isso teria usado um lampião.
   Na manhã sexta-feira, 20, na cidade de Carazinho, a 285 km de Porto Alegre, a explosão de um botijão de gás destruiu a casa de Ari Assunção, na rua Assis Chateaubriand. Ele e os familiares tiveram que fugir somente com as roupas do corpo.
   Na segunda-feira, 23, na vila Santa Rosa, zona norte de Porto Alegre, cinco famílias que moravam em três casinhas da rua K tiveram prejuízos totais quando a residência de Nei Silva, 19 anos, pegou fogo - ele preparava a comida e não notou o vazamento do gás de cozinha. Ninguém ficou ferido, mas também nada restou das três moradias.
   Também com poucas pessoas feridas, o rompimento de um oleoduto da Petrobrás, na Grande São Paulo, provocou um grande incêndio que se alastrou por cerca de dois quilômetros e forçou a interdição parcial daquele trecho da via Anchieta, principal ligação rodoviária entre São Paulo e Rio. O oleoduto conduzia nafta, derivado do petróleo usado como matéria-prima na indústria petroquímica.  O acidente aconteceu na quinta-feira, 26 de fevereiro.
   No dia seguinte, início dos festejos de Carnaval em todo o Brasil (vencido, no Rio, por uma pequena e desconhecida escola de samba da baixada fluminense, a Beija-Flor de Nilópolis, e em Porto Alegre pela Praiana), dois homens morreram nas profundezas de uma mina de carvão da Companhia Rio-Grandense de Mineração, CRM, no distrito de Minas do Leão, município de Butiá, a 85 km de Porto Alegre. O incêndio surgiu às 6 horas da manhã, a 125 metros de profundidade, em virtude dos gases. Segundo os bombeiros os dois não pereceram queimados e sim asfixiados. Um deles estava noivo e iria casar no final do ano.
    No bairro Sarandi, zona norte da capital, na madrugada de sábado, 28, os soldados agiram prontamente e conseguiram impedir que o fogo irrompido na Madeireira Silveira, na rua Domingos de Abreu, atingisse os prédios vizinhos. Mesmo assim parte do depósito e a maioria dos produtos para a construção civil foram perdidas.
    O mês de março registrou muitos outros sustos e também vítimas pelo mundo. Já no primeiro dia do mês, segunda-feira, a imensa e caótica Cidade do México enfrentou enormes engarrafamentos de trânsito por conta de um gigantesco incêndio em uma de suas estações do metrô. Durante mais de quatro horas os bombeiros lutaram contra as chamas – dois deles sofreram intoxicação. Todo o sistema de transporte subterrâneo permaneceu parado e mais de 300 lojas comerciais foram destruídas.   
   Já na pequena e italiana Flores da Cunha, próxima a Caxias do Sul, região dos vinhedos, centenas de turistas que estavam na Terceira Festa da Vindima desta vez assistiram, ao vivo e a cores, o espetáculo do fogo que destruiu uma cantina no final da tarde de sexta-feira, 5.   
   Nos Estados Unidos, no dia 9, terça-feira, nove pessoas ficaram feridas e uma morreu em um hotel de 72 quartos, próximo ao aeroporto de Los Angeles, Califórnia. O sinistro iniciou no térreo e não teria alcançado o segundo andar se a pessoa que o descobriu fechasse imediatamente a porta. Em pânico, vários hóspedes se jogaram lá de cima. A única vítima fatal foi uma mulher que não conseguiu sair a tempo.

MENINO CAIU DO DÉCIMO NONO ANDAR E SÓ QUEBROU O FÊMUR
    Na sexta-feira daquela mesma semana, 12 de março de 1976, algo absolutamente insólito e espetacular - e que, por sua total inverossimilhança, causaria deboches até mesmo se fosse incluído em alguma cena de novela mexicana - aconteceu no centro da capital do Rio Grande do Sul, mais precisamente no edifício Galeria Di Primio Beck, construção de 23 andares junto à praça da Alfândega: um garoto de 13 anos despencou em queda livre do décimo nono andar – incrivelmente, milagrosamente, ele sobreviveu a isso sem ferimentos graves.
    Trinta e dois dias depois, quando finalmente deu alta do hospital, Jeferson Silva de Melo, conhecido como Pingo, contou aos repórteres que, naquele dia, havia saído à tarde de casa para ser atendido por um dentista que era parente seu. Enquanto esperava sua hora de consulta, debruçou-se à janela para contemplar a paisagem do centro. Todavia, ao olhar para baixo sentiu uma forte tontura e suas vistas escureceram – desse momento em diante não lembrava de mais nada, além do fato de acordar imobilizado em um leito de hospital.  Pingo fraturou a tíbia, o tornozelo e o fêmur da perna direita.
   Na verdade ele despencou do décimo nono andar (alguns jornais falaram em décimo sexto) do edifício, a quase 60 metros de altura, e caiu estrondosamente sobre o telhado da livraria Coletânea. Conduzido ao Pronto Socorro, foi depois transferido para o hospital Independência, de onde recebeu alta no dia 14 de abril, com direito a uma grande matéria da Folha da Manhã e à curiosidade divertida de todos os seus amigos que o aguardavam na rua Silvio Romero, bairro Partenon, onde chegou engessado até a cintura.
    Morando ali, em uma casinha de material de quatro peças, “sem reboco, com vidros quebrados e madeiras carcomidas pelos cupins, com escassos móveis e paredes nuas”, junto com o pai, dois irmãos de sete e 16 anos, mais o avô e a avó, Jeferson achava que poderia ficar “mais de dois anos” sem poder jogar no time dos seus amigos, o Ajax. Contrariando seu hábito, não quis ler as revistas que guardava embaixo do travesseiro e não demonstrou estar preocupado com as faltas escolares. Pingo ainda deveria retornar ao hospital dali a vinte e cinco dias para retirar o gesso e iniciar a longa fisioterapia de recuperação dos movimentos.
    Outro caso não menos insólito havia acontecido naquele verão porto-alegrense, quando um franzino garoto de 11 anos fez o que os jornais chamaram, sem qualquer exagero, de “viagem fantástica”. Assim como Pingo, Paulo Roberto Betines Cardias, morador do bairro Medianeira, também virou celebridade, posou para fotos e deu muitas entrevistas. Afinal, se ele não despencara de nenhum alto edifício do centro, havia realizado – com plena consciência de cada segundo vivido - uma travessia bem mais escura e vertiginosa empreendida nada menos do que quatro quilômetros adentro do sistema de esgotos pluviais da capital.
   A data – 26 de janeiro de 1976 – dificilmente seria esquecida pelo menino que morava com seu pai na rua Oscar Schneider, 265, nas proximidades do estádio Olímpico e nas encostas do morro da Glória. Naquela segunda-feira, ao tentar apanhar um boneco de plástico trazido pela enxurrada do arroio Cascata, desequilibrou-se e caiu em um bueiro.
   Agarrado a um pedaço de madeira, Paulo Roberto iniciou uma jornada quase irreal e que só terminaria uma hora e meia depois, nas águas do arroio Dilúvio, proximidades da rua Botafogo. Lá, com leves escoriações na testa e nos joelhos, ele viveu a pior parte da sua aventura: sem saber nadar, debateu-se na corrente do riacho até conseguir alcançar a margem e correr de volta para casa, onde foi recebido com um misto de euforia e incredulidade. Afinal, os bombeiros já estavam à procura do seu corpo na foz do arroio Dilúvio com o Guaíba, e ninguém apostaria um tostão furado na sobrevivência do garoto.
   No dia seguinte o Correio do Povo dedicaria quase uma página ao fato na sua crônica policial: “Menino arrastado 4 quilômetros pelo esgoto pluvial escapa ileso”
    “Agarrado a um pedaço de madeira, Paulo Roberto Betines Cardias, de 11 anos, realizou, ontem, o que se pode chamar de uma “viagem fantástica”. Arrastado pelas águas do arroio Cascata, onde caiu ao tentar apanhar um boneco de plástico que a enxurrada que descia do Morro da Glória carregava, Paulo Roberto foi levado de roldão, mergulhou num bueiro e iniciou, agarrado a um pedaço de madeira, uma aventura que só terminou bem - segundo os mais velhos – porque Deus assim o quis.
   “Da Rua Oscar Schneider (ele mora no número 265) foi levado à grande velocidade pelo esgoto pluvial, por um trajeto de aproximadamente 4 quilômetros. Ele conta que só pensava no pai, na mãe e nos irmãos, enquanto a água o impulsionava. Do ponto em que mergulhou no bueiro, ele passou sob a rua General Gomes, sob a Avenida Carlos Barbosa, percorreu toda a extensão da Rua Coronel Gastão Hasslocher (nos fundos do Estádio Olímpico), chegou ao bairro Menino Deus passando sob a Rua José de Alencar, e atingiu a Rua Botafogo, para ser lançado, finalmente, cinco quadras adiante, no arroio Dilúvio. Ali o menino viveu a pior parte de sua aventura: debateu-se desesperadamente até alcançar a margem e a segurança. Depois, sem saber que uma guarnição do Corpo de Bombeiros estava postada no local em que o Riacho desemboca no Guaíba, esperando para resgatar seu corpo, e que ali também se encontrava seu pai, o agente penitenciário Paulo Vespúcio Cardias, de 36 anos, este desesperado e apegado à esperança de que um milagre pudesse salvá-lo da morte que todos julgavam inevitável, Paulo Roberto, apenas com escoriações leves nos joelhos e na testa, e com o calção rasgado, iniciou a corrida de volta para casa, sem duvidar um instante que o resultado daquele passeio seria uma surra memorável.
   “Ora correndo, ora caminhando, ele venceu os quilômetros que o separavam de casa e parou na esquina de sua rua, amedrontado, ao ver tenta gente na frente de casa. Então começaram os gritos. Uns vizinhos vieram ao seu encontro, para carregá-lo; outros, eufóricos, chamavam sua mãe, dona Evinha; a avó, dona Doralina, de 77 anos; os irmãos de Paulo Roberto, que são seis. A família inteira, com exceção do pai, a essa hora rezava pedindo a Deus e a todos os santos pela vida do menino.
   “No encontro foi um choro só. Paulo Roberto, como disse depois um amigo da família, “veio chegando meio cabreiro, certo de que iria apanhar”. Mas a felicidade foi tanta que a ninguém ocorreu a ideia de castigá-lo, ele que tinha escapado de morrer afogado na escuridão do esgoto. Os bombeiros e o agente penitenciário Paulo Vespúcio Cardias estavam firmes nos seus postos, junto ao Arroio Dilúvio, quando chegou a boa nova: o menino, são e salvo, tinha voltado para casa por seus próprios meios! A princípio ninguém queria acreditar e foi preciso que todos vissem Paulo Roberto em carne e osso para crer.
   “Depois, já mais calmo, Paulo Roberto, que se tornou o centro de todas as atenções, contava os pormenores da “viagem” que durou bem uma hora e meia, mas que para ele pareceu um século. Disse que, pensando no pai, na mãe e nos irmãos, dominado pelo medo, às vezes enxergava a claridade dos bueiros, sob as ruas por aonde ia passando. Mas, embora tentasse alcançá-los, não o conseguia. E assim foi até o Riacho, em cujas águas foi atirado com violência.  Depois foram os momentos terríveis que passou, lutando para não morrer afogando, bebendo muita água. Paulo Roberto conseguiu, com muito esforço, subir para a margem e correu até a ponte da Azenha para iniciar a viagem de volta”.

   Voltando para o elemento fogo: sem nenhum óbito ou feridos, o novo edifício central da Caixa Econômica Federal, na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, ainda em fase de construção, com 31 andares, incendiou na manhã de 16 de março, terça-feira. Cinco viaturas do Corpo de Bombeiros acorreram ao local – cujo sinistro anterior, muito suspeito, deixara um prejuízo de 170 milhões de cruzeiros e um vigilante morto dentro do elevador. Desta vez os próprios operários sufocaram as chamas.
   No sábado, 21 de março, em São Paulo, um incêndio proposital destruiu a Galeria Antártica, no bairro do Bom Retiro. Durante o socorro os bombeiros descobriram tocos de vela e cobertores e logo suspeitaram que tudo se tratasse de uma grande armação. De fato, nos dias seguintes três donos de uma loja de confecção, detidos pela polícia, confessaram a autoria: estavam em dificuldades financeiras e tencionavam receber o valor do seguro, não imaginando que as chamas se propagassem com tal voracidade e causassem tamanha destruição - os três últimos andares do prédio simplesmente desmancharam.
   Entrava o mês de abril e toda a zona portuária da cidade de Paranaguá, no litoral do Paraná, por pouco não ia pelos ares, livrando-se de uma grande tragédia na manhã de sexta-feira, 9, quando um incêndio em um depósito da Esso matou duas pessoas e deixou outras 11 feridas. Segundo os jornais, o terminal de inflamáveis, todo o bairro do Rocio e parte da cidade portuária não foram pelos ares tão somente por milagre, já que o reservatório de gasolina da empresa continha, naquele momento, apenas 60 mil litros – se fosse alguns dias antes estaria lotado com quase nove milhões.

NERVOS À FLOR DA PELE, MULTIDÕES NAS RUAS


Diário de Notícias

   Em meados de maio os bombeiros da capital gaúcha divulgaram estatísticas referentes ao mês de abril, informando ter atendido o total de 196 ocorrências, das quais 74 eram incêndios.
   O major Clóvis, mesmo reconhecendo a expressividade dos números, assegurou que isso não era algo inédito e nem tão surpreendente assim – segundo ele, grandes incêndios, como o da Renner, habitualmente acontecem nos meses mais frios do ano, quando a população se fecha em casa e tem mais dificuldades de perceber os focos de combustão, ao contrário do verão, período em que estes se expandem e se fazem notar com mais facilidade. 
   “O impressionante é que em um curto espaço de tempo, de 27 ao dia 30, houve um grande número de incêndios, começando na Fernando Machado, seguindo-se o Renner e outros”, declarou o oficial. “Só na quinta-feira, 29, atendemos a uma meia dúzia de pedidos, e isto, em um só dia, é muito”.
   Quase dois meses depois do acontecido na Renner os porto-alegrenses ainda estavam com os nervos à flor da pele neste quesito, o que pode ser efetivamente comprovado na tarde do dia 10 de junho, quinta-feira, quando grande parte dos moradores, transeuntes e trabalhadores da zona central da cidade parou para acompanhar o trabalho de quase 100 bombeiros chamados para atender uma ocorrência na esquina das ruas Doutor Flores - novamente ela - e General Vitorino.
    Lá, a parte baixa de um edifício de quinze andares, onde se localizava o depósito de embalagens da rede de lojas Cambial, pegara fogo e grossos rolos de fumaça evolavam da construção, o que atraiu uma multidão quase tão numerosa como a que ocorreu na tarde de 27 de abril para ver o incêndio das lojas Renner, constatou um repórter.
   O fogo foi dominado e extinto em duas longas horas de muito trabalho. Dois bombeiros acabaram intoxicados pela fumaça, mas ninguém se queimou seriamente. Como sempre, a Brigada Militar teve dificuldades para conter os curiosos. Muita gente abandonou seus escritórios e apartamentos, temendo uma nova tragédia.


   Outro grande sinistro – também só com prejuízos materiais – aconteceria na estação férrea Diretor Pestana, proximidades do aeroporto Salgado Filho, zona norte da Capital, no início da tarde de segunda-feira, 21 de junho, quando uma locomotiva chocou contra um vagão-tanque recém-chegado da refinaria Alberto Pasqualini. Devido ao choque, as chamas rapidamente se alastraram para quatro vagões de transporte de óleo diesel, destruindo um total de 120 mil litros e se elevando a mais de 50 metros de altura. Parte da BR-116 teve que ser bloqueada.
    Porém, na madrugada anterior, domingo, 20, as labaredas não eram acidentais – pelo contrário, tinham endereço certo e conhecido: o colégio Anne Frank (que completava dez anos de fundação), na avenida Cauduro, nas proximidades da Osvaldo Aranha e do parque da Redenção, foi criminosamente incendiado, com várias salas destruídas, repetindo algo já tinha ocorrido no início daquele mês. Em uma parede, encontrou-se a inscrição “Viva a Alemanha, abaixo os Judeus”, levando a crer em um atentado antissemita.
    Enquanto isso, a milhares de quilômetros de Porto Alegre, funcionários e clientes da agência centro do Banco do Brasil, em Fortaleza, levaram um tremendo susto no final da manhã de quinta-feira, 3 de junho, horário em que um curto-circuito no sistema elétrico do elevador de carga provocou um princípio de fogo. Houve muita fumaça, correria e pânico nos 17 andares do edifício, localizado na praça do Carmo, centro da capital cearense. Três pessoas saíram feridas, incluindo uma que fraturou um dos pés ao saltar de um lance de escada. Os bombeiros dominaram a situação em quarenta minutos e constataram que o prédio – inaugurado havia dois meses – não dispunha de escadas externas de emergência para fogo e as caixas dágua, destinadas prioritariamente ao sistema de combate às chamas, estavam totalmente vazias.
    Um dia depois, na sexta-feira, foi a vez da sede da Rede Globo de Televisão, no bairro Jardim Botânico, Rio de Janeiro, ser parcialmente destruída pelas chamas. A despeito de a emissora ter desenvolvido um sistema anti-incêndios particular, nada disso funcionou minimamente e foram necessárias várias guarnições de bombeiros cariocas para combater as chamas, só controladas no final do dia. O excesso de material inflamável nos estúdios e, principalmente, o fato de o fogo não ter sido combatido logo no início, explicavam a grande destruição de sofisticados produtos eletrônicos e a irreparável perda de fitas de vídeos-tapes dos arquivos da emissora.
    Julho iniciou com outro susto na área central de Porto Alegre: o edifício Formac, perto do cais do porto, teve todo o seu sétimo andar queimado na madrugada do dia 6. Felizmente não houve feridos. Também a rua Leopoldo de Freitas, no Passo da Areia, tornou a ser notícia devido ao fogo que aconteceu exatamente no mesmo prédio (número 83) em que patroa e doméstica se feriram no início de maio. Desta vez, porém, havia uma vítima fatal, de apenas um ano e cinco meses de idade – o menino Fábio, carbonizado no início da manhã de 10 de julho, sábado. Segundo testemunhas, o bebê e um irmão seu, de dois anos, tinham sido deixados sozinhos pelos pais.  Às 7h30min os vizinhos notaram a densa fumaça que saía do local e arrombaram a porta. Eles ainda conseguiram salvar a criança de dois anos, mas Fábio morreu na cama onde dormia. Os bombeiros aventaram a possibilidade de o garoto mais velho ter riscado inadvertidamente um fósforo próximo ao colchão.
    No interior do Estado, em Camaquã, três aviões agrícolas abrigados em um dos hangares do aeroclube daquele município foram destruídos na noite de segunda-feira, 12. Os prejuízos foram totais, já que nem o carro-pipa da Prefeitura, situada a cinco quilômetros de distância, pode chegar a tempo – tampouco havia destacamento do Corpo de Bombeiros na cidade.  Os três aparelhos, pertencentes às empresas Sotriar e Jopani, eram usados para pulverizar com pesticidas as lavouras da região. Devido ao mau tempo, nenhum deles havia decolado aquele dia.
   Na quarta-feira da mesma semana, na rua Portugal, zona norte de Porto Alegre, um violento incêndio destruiu a vulcanizadora Metrópole. Segundo o major Clóvis, não fossem os problemas com os hidrantes, que não funcionavam o sinistro poderia ser bem menor. No dia seguinte, durante os trabalhos de rescaldo, os bombeiros encontraram, em uma peça dos fundos, o corpo carbonizado de Marino Martins da Silva, funcionário do almoxarifado. Ele foi morto pela explosão de um tonel de tíner.    
   Em julho outro grande susto voltou a evocar a tragédia do Renner: na manhã de segunda-feira, 26, a uma quadra do edifício sinistrado, mais exatamente na esquina da rua Otávio Rocha com a Senhor dos Passos, um princípio de incêndio congestionou as ruas do centro e atraiu centenas de curiosos que observavam a contínua fumaça que saía do prédio do grupo Alfred. Quando os bombeiros chegaram a situação já estava sob controle graças à pronta ação dos próprios empregados do hotel, dos colegas das lojas Alfred e de moradores da vizinha galeria A Nação.
    O fogo havia iniciado na cobertura plástica do filtro de água que servia ao sistema de refrigeração do edifício. A causa não poderia ter sido mais banal: alguns pingos candentes de solda caíram do terraço, onde operários fixavam uma grade de proteção. Os mais de 70 hóspedes do hotel não chegaram a ser retirados do local.
    Prejuízos imensos tiveram os proprietários de uma indústria de parque da cidade de Guaíba, em grande parte destruída pelas chamas na madrugada de 6 de agosto, fato este que exigiu a intervenção dos bombeiros de Porto Alegre, queimando, além de valiosas máquinas importadas, mais de 100 mil metros quadrados de tacos prontos, metade dos quais seria exportado para os Estados Unidos. O fogo começou no setor de colagem, logo depois que os mais de 120 operários deixaram o trabalho no final da sexta-feira. Segundo os diretores da Prepark, somente o laboratório, a oficina e locais da administração foram salvos.
    Na noite de 16 de agosto, segunda-feira, a mesma fábrica de refrigerantes que havia incendiado e explodido naquele verão voltou ao noticiário, novamente causando angústia entre os moradores do bairro Menino Deus. Desta feita um vazamento de amoníaco no laboratório fez com que muitas pessoas abandonassem suas casas e chamassem os bombeiros. O cheiro do produto químico era tão forte que poderia ser sentido a quadras de distância. A despeito do quase pânico geral, os próprios funcionários conseguiram resolver o problema.
   No dia 18 de agosto uma explosão na fábrica da Olvebra, em Pelotas, deixou cinco trabalhadores feridos, três deles em estado grave. Eles trabalhavam no setor de moagem, de madrugada, quando três elevadores explodiram. Os bombeiros impediram que o incêndio se espalhasse aos milhares de toneladas de óleo de soja ali depositadas.
   A noite fria do último dia do mês, terça-feira, foi de mais sustos para os porto-alegrenses: três empresas localizadas na avenida Osvaldo Aranha, zona central da cidade, arderam em chamas, mobilizando mais de 50 bombeiros que pouco puderam fazer para evitar a destruição quase total da pizzaria La Favorita, da imobiliária Schaffran e do café Bonfim. O fogo iniciou em um dos fornos da pizzaria, onde sete ou oito pessoas jantavam, e se propagou rapidamente pelos dois prédios vizinhos. Dez veículos, incluindo caminhões-tanque e até uma escada Magirus, foram usados no combate às chamas que ameaçavam alastrar-se para outros pontos da avenida – na rua Felipe Camarão, 715, por força disso, as vidraças das janelas de um apartamento se partiram e as cortinas chegaram a pegar fogo.
   Mais uma vez os bombeiros perderam um precioso tempo procurando inutilmente por hidrantes - no final foram obrigados a retirar a água do chafariz central do parque da Redenção. Logo se verificou que nenhuma das três firmas possuía qualquer equipamento anti-incêndio ou sequer extintores. Tampouco havia seguro contra fatos dessa natureza – sintomaticamente um dos proprietários da pizzaria, cidadão uruguaio, foi visto correndo para a rua, abraçado à caixa-registradora. Os vizinhos disseram que no local funcionava também uma malharia clandestina. Ninguém saiu ferido.

O tradicional restaurante Dona Maria, no centro, reabriu em setembro, depois de ter sido consumido pelo fogo.

    Menos de duas semanas depois, a 11 de setembro, o frigorífico da Cooperativa Central Oeste Catarinense, em Chapecó, foi quase totalmente destruído pelas labaredas que iniciaram na estufa defumadora e só não consumiram todas as construções à volta graças à pronta iniciativa dos empregados da empresa. Eles usaram habilmente de todos os extintores disponíveis e ainda saíram à cata de outros, em firmas das redondezas.
    De menores proporções, porém imensamente mais trágico, foi o que aconteceu para uma das 36 famílias de imigrantes japoneses radicados no município de Ivoti, nas proximidades de Porto Alegre, local da maior colônia nipônica do Estado.
   Na terça-feira, 14 de setembro, Tadaiko Osaki, de 43 anos, e sua mulher Yasue, podavam o parreiral da sua propriedade, a quatro quilômetros da cidade, quando viram nuvens de fumaça saindo da casa onde haviam deixado três filhos pequenos – Hideto, de quatro anos, Rie, de três, e Cláudio, de 11 meses. Infelizmente nada mais foi possível fazer: eles encontraram os pequenos já carbonizados entre os escombros da casa. O casal tinha mais três outros filhos em idade escolar.
    Chorando muito e amparado pelos vizinhos, Tadaiko – havia 15 anos no Brasil – relatou a sua vida, espantosamente marcada por muitos fatos comoventes e negativos. Três anos antes, um dos seus filhos, também de três anos, morrera afogado na Barra do Ribeiro. Recentemente sua filha de dois anos havia sofrido acidente, fraturando um dos braços – ela ainda estava hospitalizada na capital. Como se não bastasse, no ano anterior a família havia perdido quase toda a safra de uva devido ao excesso de defensivos agrícolas aplicados no parreiral. Os Osaki foram consolados pelos vizinhos brasileiros e pela própria comunidade nipônica, incluindo o cônsul do Japão em Porto Alegre, que foi até lá oferecer ajuda oficial.
    No dia 20 de setembro (que, em 1976, não era feriado estadual), segunda-feira, o supermercado Porto-Alegrense, no centro da cidade de Dom Pedrito, na região da Campanha, a 440 km da capital, foi consumido pelas chamas que iniciaram com um curto-circuito no forno da padaria. Os bombeiros mais próximos, da guarnição de Bagé, só chegaram a tempo de efetuar o rescaldo.
   Na madrugada seguinte, no município de Mata, próximo a Santa Maria, dois dos três pavilhões de um engenho de arroz da firma Paraboni e Filhos sofreram destino semelhante. Os bombeiros santa-marienses foram chamados – alegando, porém, possuir apenas um carro para atender todas as ocorrências regionais, deixaram que a tarefa fosse feita por populares e funcionários da empresa.
   Também um prédio desocupado da empresa Samrig, na zona portuária de Pelotas, queimou no dia 29, exigindo mais de cinco horas de esforços para ser debelado.
    E, a 30 de setembro, os jornais de Porto Alegre anunciavam uma boa notícia: o tradicional restaurante Dona Maria, ponto de encontro de artistas, jornalistas e intelectuais, no centro da cidade, reabriria suas portas no dia seguinte, sexta-feira. A casa, que incendiara meses antes (destruindo também muitas máquinas fotográficas dos “lambe-lambes” que, por cortesia do proprietário, Ernesto Moser, ali guardavam seu material de trabalho), fora restaurada e voltava à ativa.   
   
UM MILHÃO DE PERITOS EM PREVENÇÃO DE INCÊNDIOS, DIZ SÉRGIO JOCKYMANN
   Bem antes disso tudo, na sexta-feira, 30 de abril, três dias depois da tragédia, o jornalista e intelectual Sérgio Jockymann (46 anos de idade completos no dia anterior) escreveu em sua coluna diária na Folha da Tarde: “Pois há três dias que Porto Alegre tem pelo menos um milhão de peritos em prevenção de incêndio”.

Sérgio Jockymann, um dos mais importantes jornalistas e intelectuais gaúchos.

   Para Jockymann, “o milagroso, o extraordinário, o espantoso é que essas calamidades só aconteçam de vez em quando. O normal seria que tivéssemos uma tragédia por dia.”
   No mesmo jornal a cronista Ivete Brandalise, 35 anos, cobrou das autoridades as prometidas e nunca aplicadas medidas de segurança. Para ela, enquanto tragédias como aquela aconteciam a Prefeitura e a Câmara continuam discutindo a conveniência ou não da obrigatoriedade de um extintor de incêndio por andar: “E de que adiantaria um extintor de incêndio ontem, nas Lojas Renner?”. Adiante, a colunista sublinhou: “Enquanto o Código de Obras continuar ignorando o assunto e liberando projetos que não apresentam nenhuma segurança em relação ao fogo, nós continuaremos expostos, sem qualquer proteção, ao perigo eminente”.
    Em sua coluna de Zero Hora de sexta-feira, 30, o jornalista e político Jorge Alberto Mendes Ribeiro, 46 anos, pedia explicações ao prefeito Villela: “Quero saber, querem todos saber, pois todos nesta cidade somos candidatos a personagens de outras tragédias: quando as leis serão cumpridas? Quando teremos estação central? Quando teremos hidrantes? Quando os bombeiros terão mais do que a coragem e a própria vida para combater as chamas?”
   O conhecido humorista Carlos Nobre, 47 anos, não perdeu o trocadilho para tecer um justificado humor negro: “As discussões dos políticos para tomar medidas contra incêndios servem apenas para botar mais lenha na fogueira”. Ao lado, alfinetou: “Sim as resoluções para evitar tragédias nos incêndios por certo queimarão mais etapas. Agora a indiferença se chama etapas”.

Carlos Nobre, talvez o mais popular humorista gaúcho dos anos setenta.

    Em Brasília, na quarta-feira, o senador paraense Jarbas Passarinho, 56 anos, da Arena, subiu à tribuna para comentar o episódio de Porto Alegre e pedir, em caráter de urgência, normas nacionais de prevenção contra incêndios em edificações urbanas. Passarinho lembrou de uma mensagem nesse sentido enviada pelo ex-presidente Emílio Médici logo após o sinistro do Joelma e no entanto retirada de discussão no início do atual governo.
    Na contramão de tudo isso o jornalista e colunista político Adil Borges Fortes da Silva, 59 anos, o “Hilário Honório” da Folha da Tarde, considerado por muitos como um reacionário, considerou o evento algo “praticamente inevitável”, isentando a todos, e principalmente a empresa Renner, de toda e qualquer culpa ou responsabilidade.
   “Medidas contra incêndios? Por acaso os próprios estabelecimentos não os tomam da melhor maneira possível? Por acaso tragédias como a de ontem e a de dois anos e meio atrás (Lojas Americanas) não estão acontecendo em centros muito mais adiantados?” (...)
   “Por que, então, acusar-se este ou aquele administrador, a falta desta ou daquela medida? Lamentavelmente, são fatos praticamente inevitáveis, incêndios como esses que abalaram toda a cidade”.

   No Correio do Povo, a escritora Dinah Silveira de Queiroz recordou, em uma de suas crônicas publicadas diariamente em vários jornais do País, o inesquecível pavor que passara, anos antes, durante um princípio de incêndio no prédio onde havia morado, no Rio, relacionando tal experiência às repetidas cenas do edifício Renner vistas pela tevê em todo o País: “Hoje vivi, entregue ao inconsciente, o pesadelo do fogo, sugerido decerto por aquelas terríveis notícias de Porto Alegre, ainda não esquecidas; as minúcias terríficas daquele braço queimado visto contra a janela do sexto andar; as rádios da cidade noticiando que as Lojas Renner haviam pegado fogo. Visualizava o antigo jogador do Grêmio (sic) correndo a apanhar sua irmã que morria em seus braços, antes de chegar ao hospital; e aquela moça Lazir que, quando se contavam os vinte e três mortos, principiou a chorar recordando a cara gordalhona do chefe do restaurante. Enfim, no grande mar da tragédia, os casos isolados”.
   Também no CP, mais técnico e contundente, Sérgio da Costa Franco (“Morte por Atacado”) criticava os direitos privados e imediatistas que construíam “ratoeiras”: (...) “Se vamos erguer um prédio para lojas, escritórios ou residências, desejamos edificá-lo pelo menor custo, para que nos dê um rendimento maiúsculo. Tudo o que nos pedirem a título de defesa coletiva nos parecerá insuportável exigência, que onera os custos, eleva os preços, minora os lucros. Se o poder municipal reduz o gabarito de altura, isso nos parece atentado aos direitos do proprietário. Se nos exige mais áreas de circulação, escadas de incêndio ou outros dispositivos de segurança, estrilamos com veemência. E logo arranjamos algum técnico que deite entrevistas para garantir que escadas de incêndio estão superadas. Sem oferecer qualquer alternativa de solução. Assim somos nós – os tranquilos donos da urbe. E o nosso interesse privado e imediatista vem prevalecendo sempre. De modo que continuamos a construir ratoeiras onde aprisionamos o povo. E fornos para cremá-los”.

    Passado um mês os jornais observariam uma visível metamorfose psicológica que acometida a população da Capital. Nesse período a mera menção da palavra “fogo” bastava para fazer estrilar os telefones do Corpo de Bombeiros.
   “É a psicose dominando o povo. Se há fumaça já parece incêndio”, afirmou o Diário de Notícias. “E assim se alimenta a psicose coletiva. Há gente que dorme sobressaltada, há gente que permanece alta madrugada, olhos acesos, com o ouvido preso ao distante lamento de uma sirena qualquer”, emendou a Folha da Tarde, vendo o surgimento de “uma fase de incêndios” que precisava ter fim: “Toda e qualquer saída dos bombeiros passou a merecer registro dos jornais e rádios. Em suma, passou a ser notícia”.
   A população, antes quase indiferente ao perigo, via agora um Andraus, um Joelma, uma Americanas e um Renner em cada prédio. Pessoas evitavam tomar elevadores, síndicos faziam reuniões extraordinárias para discutir medidas de segurança, instalações elétricas eram vistoriadas de cabo a rabo, fumantes eram estigmatizados como incendiários em potencial e corretores de seguros – mais desembaraçados e seguros do que nunca – festejavam a boa fase em seus negócios. Vivia-se a era de Mercúrio.
   Mercuriais e igualmente candentes eram os debates e as cobranças. Todos concordavam em um ponto: a tragédia poderia ser evitada, embora ninguém assumisse a culpa e dela, na realidade, todos saíssem chamuscados.
   “Aproximadamente 50% dos prédios de Porto Alegre poderão oferecer cenas tão ou mais dramáticas que as da Renner”, declarou o técnico Cláudio Alberto Hanssen, integrante da Comissão de Estudos e Prevenção de Incêndio da Prefeitura. Já o secretário municipal de Obras e Viação, engenheiro Jorge Englert, afirmou que “janelas não são fundamentais” em casos de incêndio e enumerou algumas vantagens dos edifícios “gaiolas”: economia de ar condicionado e, em caso de fogo, o seu abafamento, pois “não há alimentação de oxigênio: “O importante são as saídas especiais e isoladas”. Mas ressaltou: no caso de o proprietário recusar-se a cumprir a lei a Prefeitura não teria como obrigá-lo a isso.
   Englert, sobretudo, dizia defender a capacitação do pessoal que trabalha em edifícios: “Não tenho dúvidas de que os primeiros cinco, dez minutos de um incêndio são fundamentais. Se, num edifício de médio ou grande porte, o pessoal que nele vive ou trabalha estiver treinado, sempre se poderá evitar tragédias”.  
   Já o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Rio Grande do Sul, Mário José Maestri, concordou com a exigência de normas mais rígidas, “mas não levadas a extremos”. Segundo autoridades, cerca de 70% dos prédios da capital gaúcha sequer contavam com um simples extintor de incêndio.
   Capital que detinha, ela própria, a solução tecnológica plenamente disponível para dar fim à carência crônica de equipamentos dos bombeiros, assegurou o diretor administrativo da indústria de equipamentos de prevenção de incêndios Kidde Sul, Rui Pinheiro. Dois dias após o sinistro da Renner, ouvido pela Folha da Tarde (matéria paga, talvez, mas que não diminui sua importância informativa), o executivo informou que “todo o equipamento necessário para que um carro de bombeiros fosse bem aparelhado para o seu serviço já existe em Porto Alegre e é fabricado pela Kidde Sul. Os recursos tão invejados dos bombeiros europeus e norte-americanos podem ser adquiridos aqui e, no entanto, nada é utilizado. É claro que o preço não é dos mais acessíveis. Mas enquanto o governo dá verbas para obras e outros serviços importantes, um maior interesse pela prevenção de incêndios deveria haver”.
   Segundo explicou Pinheiro, sua empresa produzia sistemas de combate ao fogo por hidrantes, gás carbônico, sprinklers, spray, halon, espuma, sem contar detectores, alarmas e extintores. Até mesmo produtos mais sofisticados, como uma substância química (sem cheiro e sem produzir manchas) que, impregnando panos e tapete, impedia a propagação das chamas, e um engate de metal em forma de S preso a uma corda, que possibilitaria a qualquer pessoa descer suavemente de qualquer altura, tudo isso estava disponível no mercado local naquele momento.
    Existiam, de fato, tais métodos e equipamentos, todavia não havia interesse em adquiri-los por uma questão de mentalidade, entendia o diretor: “Incêndios de grandes proporções, como o que aconteceu terça-feira nas Lojas Renner poderiam ser evitados se fosse modificada a mentalidade dos empresários gaúchos, que só pensam em fazer investimentos com retorno imediato. Como a prevenção de incêndio é algo em que se investe na probabilidade e não na certeza, eles se recusam a investir dinheiro”.
    E prosseguia: o problema básico começava mesmo é nos órgãos governamentais: “A comissão da Prefeitura que estuda a prevenção de incêndios é formada por pessoas que não conhecem muito a fundo o assunto. Somente o engenheiro Cláudio Hanssen, que é meu concorrente e fez parte desse grupo de estudos, entende disso. Eu apoio o trabalho deles, claro, mas não adiante exigirem equipamentos de alto custo, pois o poder aquisitivo de nossa gente é baixo. A portaria tem que conscientizar para um meio de prevenção e não para um meio comercial. Nossos empresários, principalmente, não se preocupam com a segurança de seus estabelecimentos. Continuam sendo construídos prédios comerciais sem a mínima segurança. O que matou muita gente na Renner foi o fato de não existirem saídas suficientes para desafogar o interior. E o problema das grades nas janelas pode ser notado em grande parte das lojas da zona central. Há lojas que possuem vários andares, sem nenhuma janela ou abertura. Um seguro custa barato, mas para a morte e não a vida. Nosso serviço custa caro e garante a vida. Acho que é melhor uma empresa gastar um milhão de cruzeiros na instalação de um equipamento de prevenção do que terminar perdendo tudo. E o pior não é isto. Quando ocorre um incêndio a morte de funcionários gera um problema social imenso. Quanto tempo os parentes das vítimas da Renner terão que esperar para receber alguma coisa? Muitos empresários se recusam a gastar com prevenção e terminam não conseguindo dormir, de consciência pesada, quando acontece o inesperado”.

A IMPRENSA E O PODER DA RENNER, SÍMBOLO EMPRESARIAL DO RIO GRANDE   
   A imprensa porto-alegrense, por sua vez, mesmo concordando no essencial, variava no tom e no enfoque a respeito da tragédia do edifício Renner e dos seus desdobramentos gerais. Enquanto o Correio do Povo enfatizava o “esquema perfeito” de socorro e atendimento às vítimas, a Folha da Manhã (diário da Caldas Júnior, mais arejado e combativo) ressaltou que, no dia da tragédia, “a cidade, de um modo geral, não funcionou”. 
   No item prevenção, a rigor, os principais órgãos evitaram críticas diretas – ou mesmo indiretas - à direção das lojas Renner, algo explicável pelo grande volume de anúncios que a empresa, um dos orgulhos empresariais do Rio Grande do Sul, carreava para seus departamentos comerciais: havia tempo, a Renner comprava espaços de páginas inteiras dos jornais e também patrocinava programas de rádio e televisão, entre eles o Correspondente Renner, na Rádio Guaíba, espécie de Repórter Esso do rádio gaúcho. Conceituando cada vez mais a própria marca, o grupo investia em prestigiosos eventos, incluindo o badalado Rainha das Piscinas, o qual reunia representantes dos mais conhecidos clubes sociais do Rio Grande do Sul: naquele ano, por exemplo, haveria um grande show da cantora Clara Nunes (ela vivia o seu auge como cantora) no ginásio Gigantinho, do Sport Clube Internacional.
   A bem da verdade, o descaso dessa empresa com a questão da prevenção a incêndios nada tinha de particular e sim, a rigor, representava todo o contexto da época: literalmente, o que aconteceu na rua Doutor Flores na tarde de 27 de abril bem poderia acontecer a qualquer outro edifício empresarial, público ou residencial de Porto Alegre, do Estado e do Brasil naquele ano de 1976.  

   O grupo Renner – um símbolo de operosidade e da solidez empresarial gaúcha - nasceu em janeiro de 1912, quando Antônio Jacob Renner, neto de imigrantes alemães, fundou uma modesta indústria de fiação e tecelagem na cidade de São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da Capital.
   Nascido a 7 de maio de 1884 na localidade de Feliz (então distrito de Caí), Antônio criou-se em Montenegro, para onde seus pais se mudaram quando ele tinha apenas dois anos. Aos 14 veio para Porto Alegre, empregando-se como aprendiz de ourives na Joalheria Föernges. Aos 19 anos voltou para São Sebastião do Caí, onde se casou com a filha do mais rico comerciante do lugar, abrindo uma ourivesaria e depois associando-se ao próprio sogro. Em 1911 fundou uma pequena tecelagem – o início do império empresarial.
   A princípio a empresa destacou-se pelo pioneirismo na fabricação de capas de chuva impermeáveis (que o próprio A.J. Renner experimentou e desenvolveu depois de trabalhar como caixeiro-viajante), as quais, por sua qualidade e resistência (não deixavam passar a água da chuva), se tornaram famosas em todo o Estado e substituíram os “ponchos peruanos” dos tradicionais gaúchos campeiros. Lançada em 1913, nascia a famosa e prática capa Ideal, na cor cinza, um imediato e duradouro sucesso de vendas. Em 1914 a indústria chegou a Porto Alegre. Vinte anos depois a Renner estava produzindo roupas, comercializadas em mais de cinco mil pontos de venda em todo o Brasil, além de calçados de couro, máquinas de costura, resinas e tintas para construções.
   No final da década de trinta, a organização, com mais de dois mil funcionários, já era uma das principais empregadoras do Estado e, mais tarde, nome de um clube de futebol, o Grêmio Esportivo Renner, bancado e ligado à empresa, campeão citadino e gaúcho de 1954. No início dos anos setenta as Lojas Renner conquistavam o primeiro lugar entre as redes de magazines do Estado, investindo pesadamente em anúncios publicitários. Ao falecer, em 27 de dezembro de 1966, aos 82 anos, Antônio Jacob Renner, o “patrono da indústria gaúcha”, foi alvo de homenagens e artigos elogiosos na imprensa, da qual, por sinal, era ativo colaborador. Era considerado um industrial progressista e preocupado com a assistência e o bem-estar de seus empregados.

  FALTA QUASE TUDO EM TODA A PARTE, A CONSTATAÇÃO DAS SUCURSAIS
   Em abril de 1976 havia seis diários em Porto Alegre, pertencentes a diferentes grupos econômicos – de alguma forma competindo entre si: Correio do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde (Caldas Júnior); Zero Hora (RBS); Diário de Notícias (que fecharia em 1979) e Jornal do Comércio.
   Já no dia posterior à tragédia todos os correspondentes dos principais jornais, nos mais variados recantos, foram mobilizados para checar as condições de segurança contra o fogo nas maiores cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. De Pelotas, Caxias do Sul, Santa Maria, Rio Grande, Passo Fundo, Novo Hamburgo, Lages, Florianópolis – emergiam as mesmas constatações: em todos os casos, sem exceção, o que acontecera em Porto Alegre apenas mudaria de nome e endereço.
   Em Caxias do Sul só existiam 21 hidrantes para uma população de 180 mil habitantes e mais de uma centena de edifícios – quando a necessidade era de dois para cada quadra. Pesquisa anterior feita por uma emissora de rádio local descobriu que apenas dois em cada quinze caxienses sabiam utilizar um extintor, o que talvez explicasse a ocorrência de mais de cem incêndios na cidade durante o ano de 1975, período em que o Quinto Grupamento de Incêndios local somava um efetivo de pouco mais de 40 homens. Segundo reclamava o seu comandante, major Luiz Carlos Casales, “os arranha-céus de Caxias são verdadeiras armadilhas”.
   Dois meses mais tarde, ao término de um levantamento feito pelo Grupamento e por técnicos da prefeitura, em colaboração com entidades empresariais, constatou-se a necessidade de 865 hidrantes em toda a cidade. Os empresários, por seu lado, “estudavam meios” de angariar recursos.
   Em meio a tantas carências caxienses, pontificava uma solitária exceção urbana: com seus 17 andares, a recém-inaugurada agência do Banco do Brasil da “Pérola das Colônias” dispunha de um moderno sistema anti-incêndios - duas saídas de emergência, paredes externas feitas de concreto em vez de tijolos, paredes internas sem a presença de material inflamável ou combustível, amplas janelas de vidro e alumínio e um moderno mecanismo de evacuação estilo tobogã. Podia-se assim soltar um tubo de lona desde o alto até o chão - escorregando nele, desceriam as pessoas. Dois elevadores – ou “jaús” – presos em trilhos nas paredes externas e capazes de parar em qualquer ponto do prédio serviriam igualmente como opções de fuga – se para tanto houvesse o indispensável treinamento humano, é claro.
   Já na histórica Pelotas, cidade com 200 mil habitantes e muitos casarões antigos, as escadas e os estreitos corredores combinavam-se com o total despreparo da população para tais situações de emergência. A única escada Magirus atingia somente o sétimo andar das edificações, nenhuma das viaturas dos bombeiros dispunha de rádio e os cerca de cem enferrujados hidrantes citadinos não eram nem um pouco confiáveis. No bairro Cohab - onde viviam mais de 1500 famílias em cerca de 400 prédios de quatro andares - não era possível sequer estacionar um caminhão entre as construções.
   Os bombeiros aproveitaram a curiosidade providencial dos repórteres para lembrar o grande incêndio acontecido em 1970 no mercado central - com apenas duas viaturas, eles pouco puderam fazer.  Mais tarde, com os casos do Andraus e do Joelma, as discussões voltaram à tona e políticos, empresários e lideranças locais prometeram mais e melhores equipamentos para a corporação. Como sempre, só prometeram. 
   Em Santa Maria, também uma das principais e mais estratégicas cidades gaúchas, o efetivo de setenta bombeiros deveria atender todos os demais municípios da região, entre eles São Sepé, Júlio de Castilhos, Tupanciretã, São Pedro do Sul e Jaguari. A maior escada mecânica atingia tão somente nove metros e meio e faltavam materiais elementares no combate ao fogo como utensílios para arrombamentos de portas e janelas, e escadas leves. As leis municipais tampouco ajudavam: o plano diretor, datado de 1969, nada exigia dos responsáveis por construções no tocante à prevenção. 
    Em reunião com lideranças da Associação Comercial e Industrial, no dia 7 de maio, o comandante da corporação santa-mariense foi incisivo ao afirmar que “existe irresponsabilidade quase que total da comunidade quando se trata de prevenir incêndios”. E informou: em diversas garagens da cidade existiam bombas de gasolina e grandes depósitos de combustíveis que poderiam ocasionar tragédias.
    No mês de junho de 1975 o mesmo jornal havia feito uma série de matérias abordando as precárias condições dos bombeiros daquele município. E tinham motivos de sobra, já que a municipalidade cobrava de todos os cidadãos santa-marienses uma taxa anual expressamente destinada à compra de materiais para a corporação. Mas, apesar da expressiva arrecadação, esta última nada recebera – nem mesmo as prometidas máscaras contra gases. 
    E assim era em outras regiões gaúchas. No Vale do Rio Taquari havia apenas um carro-pipa, nenhuma escada Magirus e um efetivo de 19 bombeiros sediados na cidade de Estrela, para atender 13 municípios, o que incluía a vizinha Lajeado e a distante Arvorezinha, a mais de 100 quilômetros. Ouvido pela reportagem, o sargento Adão Xavier lamentou ainda a inexistência de hidrantes em quase todas estas comunidades. E lembrou que por ocasião de um grande incêndio ocorrido na região em 1974 foi necessário pedir socorro aos colegas de Santa Cruz do Sul, Novo Hamburgo e até mesmo de Porto Alegre. Quando estes finalmente chegaram, uma fábrica de rações, uma fábrica de óleo e as instalações de uma cooperativa já tinham virado pó.
   Não muito distante dali, na cidade de Cachoeira do Sul, a “capital do arroz”, os bombeiros locais dispunham de três veículos para o combate ao fogo, cada um com capacidade para três mil litros de água. Com 11 edifícios, todos de até cinco andares (uma lei municipal proibia a construção de prédios mais altos), nenhum destes contava com sistema de prevenção. A guarnição local recebia uma pequena verba anual da Prefeitura para a sua manutenção, 40 mil cruzeiros – dinheiro este gasto quase todo com combustível e material de uso diário.

Folha da Manhã

   Em São Gabriel, a “terra dos marechais”, a situação, no dizer da imprensa, lembrava certas sequências de comédias tipo pastelão do cinema mudo: o último incêndio na cidade, no final do ano anterior, fora debelado com baldes de água. Ao chegarem ao local, os “bombeiros” (somente um sargento da brigada tinha curso especializado no combate ao fogo) descobriram que os extintores estavam todos vazios. “No caso de um incêndio no quinto andar de algum prédio a única coisa que podemos fazer é isolar o local e deixar queimar”, queixou-se o sargento Euvídio Balconi.
   Em Uruguaiana a lei municipal que previa escadas de incêndio para prédios com mais de 15 metros “só existe no papel”, denunciou o vereador Lafayette Isidro de Lima, exigindo do executivo que ela fosse imediatamente aplicada “ou então revogada de vez”.
   Maior município em extensão do Estado, Alegrete, na fronteira oeste, a 500 quilômetros de Porto Alegre, não contava sequer com um caminhão-tanque: o corpo de bombeiros local, criado em 1968, tinha, a bem dizer, mera função decorativa. O único velho veículo Ford fora aposentado, pois o tanque de água estava furado e totalmente corroído pela ferrugem. “Quando ocorria um incêndio, o caminhão já chegava ao local com o tanque pela metade”, descreveu um soldado.
    Situação muito parecida vivia a comunidade de Santa Rosa onde os seis bombeiros dispunham de apenas um velho carro – veículo, aliás, cujo motor havia sido fundido. Em casos mais graves eles precisavam pedir auxílio aos seus colegas de Santo Ângelo.
   Rezar muito. Este foi o desabafo do comandante da guarnição dos bombeiros de Cruz Alta.  João da Silva Dorneles chefiava um efetivo de menos de vinte homens que não contavam com escadas Magirus e sofriam a falta de máscaras contra a fumaça e demais equipamentos de salvamento.

IJUÍ, RARO EXEMPLO DE PREOCUPAÇÃO, TREINAMENTO E PREVENÇÃO
   Pertinho dali, em Ijuí, o reaparelhamento da corporação havia sido criteriosamente discutido no final de janeiro, três meses antes da tragédia da Renner, quando o legislativo local criou uma comissão específica para estudar o assunto e sugerir medidas “para que os bombeiros possam prestar melhores serviços à comunidade”. Ao término de longos debates os vereadores recomendaram que fosse instalada uma oficina a fim de que os próprios soldados, alguns deles mecânicos, pudessem fazer a manutenção das viaturas. Pediram ainda que fosse substituído com urgência o mais antigo carro em atividade, de 1954. A par disso consideravam que os prósperos municípios vizinhos de Catuípe, Augusto Pestana e Ajuricaba, atendidos pelos bombeiros da “Colmeia do Trabalho”, bem poderiam abrir os cofres em favor de algo que lhes beneficiava diretamente.
   O Alto e o Médio Uruguai, nos fundões do Rio Grande, viviam situação curiosa: havia um carro-bomba na cidade de Frederico Westphalen, porém não havia uma única guarnição de bombeiros ou alguém especializado no combate ao fogo nos dez municípios da região. Adquirido em 1974, graças a recursos captados junto à própria comunidade, o veículo permanecia parado, à espera de uma resposta do governo estadual. Nesse período ocorreram vários sinistros, entre eles o de uma indústria de óleos vegetais.
   Via de regra, não havia surpresas quanto à precariedade técnica e operacional das corporações. Em nenhum – absolutamente nenhum – município gaúcho eram oferecidas aos bombeiros condições sequer razoáveis. O engenheiro Cláudio Hanssen, veterana autoridade no assunto e sempre ouvido nestas horas, lembrou que o próprio equipamento dos soldados da Capital, em conjunto, revelava-se defasado em pelo menos duas décadas – as duas únicas Magirus, por exemplo, remontavam ao distante ano de 1957.
    Membro da Comissão de Estudos e Prevenção de Incêndios da Prefeitura e professor do curso de aperfeiçoamento de oficiais do Corpo de Bombeiros, além de empresário do ramo, Hanssen ressaltou que muita coisa nova havia surgido ao longo dos últimos anos, tal como roupas aluminizadas e dotadas de equipamentos de respiração que permitiam aos bombeiros penetrar sem maiores perigos junto ao fogo mais intenso. Segundo ele, as autoridades porto-alegrenses não só se mostraram despreocupadas com o reaparelhamento da corporação como sequer repunham peças danificadas ou vencidas ao longo do tempo. No caso da Renner, os bombeiros tiveram que pedir emprestadas até máscaras de oxigênio e lidaram com a carência de hidrantes na zona central da cidade. Hanssen pedia ainda uma legislação “rígida e incisiva”.
    Na real, nem mesmo a Câmara de Porto Alegre ou a Assembleia Legislativa do Estado, esta com 12 andares, mostravam-se de acordo com os padrões de segurança – caso fossem assolados pelo fogo, previa-se que os políticos, funcionários e visitantes teriam, talvez, destinos semelhantes aos das vítimas da Renner. Os 21 vereadores porto-alegrenses – que, naquele momento, pediam ao prefeito que interditasse os prédios municipais sem segurança, como estava se fazendo em São Paulo depois do Joelma – logo descobriram que o seu próprio ambiente de trabalho era uma “ratoeira”. Funcionando então em três andares situados no grande edifício da chamada “prefeitura nova”, na rua José Montaury, (as obras da atual sede da Câmara, na avenida Loureiro da Silva, só seriam iniciadas no final do ano), seu sistema elétrico estava inteiramente sobrecarregado e havia sempre o iminente risco de um curto-circuito. Nem sequer o ar condicionado central poderia ser ligado e inexistia qualquer saída de emergência ou o mais elementar plano de fuga.
   A propósito disso, o presidente da casa, José César de Mesquita, informava que muitos vereadores, assustados com as cenas da Renner, estavam agora pedindo a mudanças de seus gabinetes para o primeiro e segundo andares. No prédio todo, com seus quatro elevadores, trabalhavam cerca de 600 pessoas, incluindo os edis Antônio Magadan e Rafael dos Santos: curiosamente, na sessão de segunda-feira, 3 de maio, os dois arenistas usaram a tribuna para destacar o luto que atingia toda a cidade e também enfatizar “não haver culpado ou culpados na questão”.
   De um modo geral assim era o Brasil naqueles anos setenta. Sob o título “Trágica ratoeira humana”, a revista Veja que circulou no dia 5 de maio tentava, sem êxito, encontrar uma exceção à regra geral na mentalidade de descaso para com a segurança contra o fogo. São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Rio de Janeiro – na prática o Brasil pouco aprendera com as repetidas tragédias e os habitantes dos grandes e médios centros estavam entregues às mãos do Destino.
    Em Belo Horizonte, já então a terceira maior cidade do País, não havia um código de posturas que tratasse da prevenção e os maiores edifícios não contavam – além dos prosaicos extintores – com nenhum equipamento de segurança. O conjunto residencial Juscelino Kubitscheck, com 34 andares, por exemplo, já havia sido condenado pelo corpo de bombeiros no ano anterior – mesmo assim rigorosamente nada foi feito. Salvador, com seus muitos casarões seculares, dispunha apenas de um código generalizado no referente a tal tipo de prevenção e bombeiros desaparelhados. Questionado a respeito, o comandante local afirmou “não garantir o êxito” no caso de um mais exaustivo combate às chamas.
   Não só na capital baiana como em outra nenhuma cidade do Brasil qualquer incêndio surgido no sétimo ou oitavo andares poderia ser debelado com eficiência e rapidez, garantiu ele, lembrando a necessidade da instalação obrigatória dos pequenos chuveiros acionados automaticamente quando aumenta a temperatura ambiente, tipo “splint”.
   Em outras capitais, mais pobres e esquecidas, a situação conseguia ser ainda pior: “Em Teresina, por exemplo, a precariedade da corporação chegou a provocar episódios ridículos, como no início do ano passado, quando uma turma de salvamento foi estrondosamente vaiada ao descer de um táxi e sem levar qualquer instrumento ou ferramenta capaz de apagar o fogo que destruía uma simples residência, no centro da cidade. “O Corpo de Bombeiros aqui não existe”, afirmou o comandante da Polícia Militar”, relatou Veja.

 EM SANTA CATARINA SÓ DEZ MUNICÍPIOS TINHAM CORPO DE BOMBEIROS
   Nem se precisaria ir tão longe. A sucursal da Companhia Jornalística Caldas Júnior em Santa Catarina informou o que acontecia naquele Estado: dos 197 municípios, apenas dez contavam com corpo de bombeiros e só havia uma escada Magirus em todo o território barriga-verde.
   “Para uma população superior a três milhões de habitantes, o Estado conta com apenas 600 homens, contingente total das unidades de corpo de bombeiros. E, dos 197 municípios, apenas 10 contam com estações de corpo de bombeiros, e mesmo assim impedidos de executarem suas tarefas pela ausência absoluta de meios de ação.
   “Santa Catarina tem municípios com edifícios de até 16 andares, muito embora a maioria tenha estabelecido o gabarito oficial de 12 pavimentos. O atendimento em casos de incêndios será procedido sempre com limitações. Os catarinenses dispõem de apenas uma escada Magirus, que atinge a altura de apenas 30 metros, e que estaria em condições de possibilitar atuação dos bombeiros apenas até o oitavo andar dos prédios maiores.
   “Em Joinville, onde sobrevive uma das três últimas unidades de bombeiros voluntários, o prédio mais alto tem 12 andares e uma ultrapassada escada manual de 10 metros representa o único meio de ação.
    “No Balneário Camboriú, com dezenas de construções modernas e vários arranha-céus localizados na Avenida Atlântica, uma população flutuante superior a 150 mil pessoas, na temporada de verão, não existe uma unidade de corpo de bombeiros. Uma emergência naquele importante centro de concentração de veranistas e turistas somente poderia ser atendida pelo corpo de bombeiros de Florianópolis. A estação mais próxima, situada em Itajaí, igualmente considera-se inabilitada para o trabalho de combate a incêndios.
   “Em todos os municípios de Santa Catarina, somente em Florianópolis constrói-se um edifício – o CECONTUR – que previu um heliporto. Todos os demais encontram-se em total carência para evacuação de moradores em ocorrências graves de incêndios.
   “Nas cidades importantes, como Florianópolis, Blumenau, Joinville, Lages, Itajaí, Rio do Sul, Chapecó, Joaçaba, Tubarão e Criciúma, não existem um só edifício com escadas externas de segurança” (...)
   “Contando com 600 homens, no efetivo total, o Corpo de Bombeiros de Santa Catarina está presente em somente dez municípios dos 197: Florianópolis, Tubarão, Criciúma, Itajaí, Lages, Chapecó, Mafra, Rio do Sul, Blumenau e Porto União”.

   O próprio comandante geral da corporação, coronel Alvair Nunes da Silva, reconhecia: na grande maioria dos estabelecimentos comerciais e industriais, os extintores, quando existiam, estavam em locais impróprios ou mesmo escondidos, sem contar o fato de que poucas pessoas sabiam de fato manuseá-los: “E em muitos órgãos públicos e também privados os extintores estão simplesmente descarregados”.  
   Também a falta de hidrantes tolhia terrivelmente o trabalho dos bombeiros da própria capital catarinense, como se comprovaria a 12 de novembro daquele ano, dia em que o depósito de mercadorias da empresa João Moritz, no centro de Florianópolis, não pode ser salvo da destruição total por falta de água para as mangueiras. Sem escada Magirus, auxiliados até pelos Fuzileiros Navais, os bombeiros tiveram que buscar o líquido em local distante, em sucessivas viagens de caminhão. Todo o estoque de produtos para as festas de final de ano armazenado na empresa foi dado como perdido.
    Em setembro, quando a guarnição completava 50 anos de existência, o mesmo comandante reclamou pelo fato de não ter recebido, até aquele momento, qualquer das melhorias prometidas em abril, por ocasião da comoção nacional decorrente da tragédia do edifício Renner. Com certa ironia, ele atribuía à intercessão de Santa Catarina, padroeira do Estado, o fato de nunca haver se registrado na ilha um incêndio sequer semelhante ao ocorrido em Porto Alegre. “Parece que nossa padroeira protege muito bem a nossa ilha, pois se ocorrer um incêndio de grandes proporções não vai ser nada fácil dominá-lo”.
    Outro exemplo negativo vinha de Joaçaba, estratégico polo do meio oeste catarinense, a 370 km de Florianópolis e cuja economia iniciara com a exploração da madeira. Lá se dispunha de apenas um carro-pipa e algumas míseras escadas que mal davam para alcançar o segundo andar. Nem os soldados haviam recebido o treinamento específico para combater o fogo, nem havia condições materiais para atender outros municípios da região. Embora a cidade já tivesse edifícios com mais de dez andares, tampouco havia qualquer legislação municipal específica para regular a prevenção.
    Com 110 mil habitantes, Blumenau, polo têxtil e turístico situado no vale do Itajaí, estava “cheia de ratoeiras humanas”, conforme afirmou um vereador local, lembrando que, dos 15 prédios com mais de sete andares localizados na zona central da cidade, nenhum contava com sistema de segurança ou prevenção contra incêndio. Já os cerca de 50 homens do Corpo de Bombeiros local dispunham de dois obsoletos carros-bomba e nenhuma escada Magirus.

PREVENÇÃO, ‘PROBLEMA DE SEGURANÇA NACIONAL’
   A falta de treinamento geral diante dos perigos do fogo, a retórica vazia das autoridades e a ganância de muitos outros foram lembradas por um bombeiro aposentado, morador de Santa Maria, em um ponderado desabafo publicado no Correio do Povo, O Incêndio Não Deve se Repetir. 
   Com autoridade técnica, Jones Santellano, então vereador santa-mariense e ex-comandante dos bombeiros em Passo Fundo, falava em “calamidade pública”, considerava o assunto de “segurança nacional, no seu sentido universal”, e mostrava-se preocupado com a venda indiscriminada de produtos por parte de comerciantes e industriais oportunistas e inescrupulosos. A par disto lamentava a leviandade e desconsideração com que, de costume, eram tratados estudos e parecerem técnicos.

   “Está na pauta o assunto fogo. Até quando, desta vez? Não sei, mas pelo menos a imprensa está colaborando, esclarecendo. Ainda que às vezes não adiante, como no caso da Borregaard. Nunca se viu tanto papel e tinta gastos... Afinal, conseguimos alguma coisa, pelo menos: o cheiro agora é nacionalizado... 
   “Há os que esperam faturar grosso, vendendo indiscriminadamente material contra incêndio, agora em alta cotação na bolsa... Devemos moderar sua ganância, só comprando o necessário e que for realmente aconselhado por um técnico, de preferência honesto, da nossa gloriosa corporação de bombeiros, que possui uma seção técnica especializada no assunto e não aconselha além do necessário, pois não vende nem fatura as desgraças.
   (...) “Não adianta material de incêndio sofisticado se não tiver uma pessoa treinada, especializada, para usá-lo no momento preciso. (...)  Nenhuma prevenção alcançará seu objetivo se não houver treino, um plano simples de fuga (em caso de bloqueio das saídas principais).

   No final do texto o bombeiro Jones sugere ações educativas e continuadas no tocante à prevenção, lembrando que a imprensa, de um modo geral tão crítica nestas horas dramáticas, também se omitia a respeito, uma vez que - destacando grandes sinistros como o da Renner e do Joelma - pouco ou nada fazia, depois, para educar de fato a população. Propunha, ainda, cursos especializados por parte não só do Estado como da iniciativa privada, nos moldes dos oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial. 
   (...) “Precisamos urgentemente, isto sim, um “espaço educativo” nos jornais, rádios e TVs do País, onde velhos bombeiros, sem interesse em aparecer, tragam sua palavra ponderada e experiente para acalmar o povo, instruir como agir em diferentes casos. Aí sim a imprensa estará no seu verdadeiro papel, porque, além de informar, estará ajudando a educar”.

PSICÓLOGO É CONTRA DAR AULAS DE PREVENÇÃO PARA OS ALUNOS
    Proposta semelhante partiu de uma das poucas igrejas que pareciam não ver o sinistro da Renner como uma fatalidade criada por Deus para castigar os homens: em lúcida nota oficial firmada pelo seu Conselho Regional, a Igreja Metodista de Porto Alegre pedia orações pelas vítimas, mas enfatizava primeiramente a necessidade de providências práticas imediatas, principiando com treinamento preventivo em escolas e edifícios. Ao público interno, o bispo Sadi Machado da Silva aconselhou treinamentos periódicos em todos os templos da sua fé.
   Estranhamento, em sentido contrário, o psicólogo Vinicius Jockymann – irmão do jornalista – manifestava-se na imprensa contra a ideia de se dar aulas de prevenção de incêndios nas escolas, sob a tese de que “o incêndio não é um fenômeno natural, e não se prepara os filhos para enfrentar desastres, incêndios e acidentes”. No seu entender, “o popular não é um bombeiro” e tais aulas serviriam apenas para reforçar ainda mais a sensação de medo e até mesmo pânico entre a população, o que seria “péssimo”. Quanto à neurose que tomava conta da cidade por aqueles dias, previa o seu término em dois meses, “para depois tudo cair no esquecimento”.  
    Passadas duas semanas outro leitor (não identificado) lembrou os inúmeros prédios, residências e construções antigas existentes no centro de Porto Alegre, no seu entender “verdadeiros alçapões” capazes de produzir mais tragédias humanas. Superficialmente reformados, embelezados com “vistosas fachadas” e destinados ao uso comercial, eram, dizia, “decoração para a morte”.
    “Uma verdadeira floresta de ferro é implantada nestas velhas paredes para apoiar pesadas geringonças decorativas e ocultar carcomidas paredes destruídas pelo tempo. Aberturas, sacadas, portas e janelas ocultam-se e dissimulam-se sob ferragens e chapas coloridas. Só respeitam mesmo é a parte da entrada (ou de saída). Tudo o mais é chumbado, bloqueado, obstruído”.
   “Pergunta-se agora: se de um momento para o outro acontecer um princípio de incêndio num desses “alçapões”? Que consequências poderão resultar? Apenas uma porta para sair: a do térreo. E todas aquelas pessoas que se encontrarem nos outros andares? (...) Como poderão os bombeiros dar combate às chamas, se as aberturas que existiam foram fechadas, lacradas, emparedadas? Como poderão evitar que o fogo se propague aos prédios vizinhos, se todas as possibilidades de acesso foram eliminadas? Quem aprova semelhantes alterações de fachadas, com a obstrução total das aberturas do prédio?”
   E prosseguia o leitor, falando em “fornos de incineração humana”:
   “Se a Prefeitura – através da SMOV (Secretaria Municipal de Obras e Viação) – jamais aprovaria uma reforma em prédios que oferecem precárias condições de segurança, quem está aprovando, então, projetos para essas “novas” fachadas, com o propósito de “embelezar” velhos pardieiros para fins exclusivamente comerciais? É mais um crime que se está praticando contra os indefesos habitantes desta “mui leal” e... criminosa “cidade sorriso”... Velhos prédios se transformando em “fornos de incineração humana.”

   Na Folha da Manhã o cidadão-leitor Wanderlei Fernandes dos Santos traçava analogias entre a tragédia da Renner e as imagens fortes do filme Inferno na Torre, estrelado por Steve Mcqueen, Paul Newman e Faye Dunaway, para depois lembrar alguns incêndios que haviam assolado o Rio Grande e o Brasil nos últimos anos e a necessidade premente de se apontar os culpados: “Atrás do Joelma, do Andraus, da Wolens, das Lojas Americanas, vieram novas campanhas, novas vítimas e novos prejuízos. Discursos, promessas, comissões. Não se falará de outra coisa nos próximos dias, a não ser em incêndio. Depois tudo cessará, até que um novo prédio seja consumido pelo fogo. Os edifícios continuam sendo erguidos, diariamente, com massa corrida, porteiro eletrônico, mas sem extintores de incêndio ou escadas de emergência. Arranha-céus sem heliporto, sem prevenção. (...) Faz-se demagogia e lindos discursos. (...) As construções devem ser fiscalizadas in loco e não só no projeto. E o principal: em qualquer incêndio é necessário apurar os responsáveis, e sempre existirá um culpado, já que os incêndios não são fruto do acaso”.

    Já o leitor Clóvis Panizzi, morador da cidade de Bento Gonçalves, na região da serra, apostava em soluções prosaicas e básicas: por exemplo, o treinamento prático e periódico da população nas ações contra o fogo, o “ovo de Colombo” esquecido em meio a tantos debates retóricos: “É necessário antes de mais nada ensinar as pessoas a usar extintores de incêndio e outras medidas de isolamento”. Panizzi lembrou que, no início das chamas Renner, um brigadiano subiu ao quarto andar – onde tudo começou - e implorou por um extintor: “Ele garantiu que teria debelado o incêndio, mesmo em fase mais adiantada. Mas ninguém, naquele andar, soube usar os extintores, nem sequer soube entregar os mesmos para alguém habilitado que se fez presente na emergência’.
      
    Entre as sugestões e críticas destacava-se uma, enviada ao prefeito Villela no início de maio. Em carta de cinco laudas, o ex-comandante do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre entre os anos de 1953 e 1955 (quando ocorreram, entre outros, os incêndios da Casa de Correção e os decorrentes das agitações do suicídio de Vargas, e quando se deu início à construção da nova estação central da praça Rui Barbosa), coronel Tisiano Leone, enumerou uma série de medidas práticas que, caso fossem prontamente adotadas, viabilizariam a prevenção e o combate ao fogo, algo que, a seu ver, não estava acontecendo. 
    “Fogo é a primeira reação em cadeia que se conhece. Lutar contra ele, praticamente só com extintores, como foi ou está sendo pretendido, é mais do que um erro, é um crime. É querer combater a bomba atômica, ou uma divisão Panzer, com estilingue”, sentenciou o militar aposentado, lembrando que em sua época enfrentou muitos “interesses subalternos” e “conveniências eleitoreiras”, entre as quais a que determinou a extinção da “taxa de bombeiros”, algo que ele considerava necessária.
    Outras medidas consideradas fundamentais por Leone eram os “sprinklers” – chuveiros espalhados pelo teto das construções, acionados automaticamente a partir de 70 ou 80 graus. Isso, no entanto, exigiria obras suplementares como caixa dágua subterrânea e um reservatório no alto, além de canalizações adequadas. Ele também considerava extremamente necessário os pisos corta-fogo, fechando a abertura das escadas à propagação, as porta corta-fogo, além de uma rede de hidrantes espalhada por toda cidade, independente da rede domiciliar, abastecida por estações localizadas à beira do Guaíba e das hidráulicas municipais.  Para o corpo de bombeiros, especificamente, via a necessidade de “equipamentos pesados”, tais como instrumentos para arrancar grades e demolir paredes (o que poderia ter salvo muitas vidas na tragédia da Renner e das Americanas), canhões dágua capazes de disparar jatos até cem metros de altura e, claro, a melhoria do equipamento convencional.
    Bem mais simplista – na verdade, quase hilária - foi a proposta apresentada por dirigentes do Clube dos Diretores Lojistas de Porto Alegre, CDL: a entidade queria (esboçou até mesmo lançar uma campanha nesse sentido) que a proibição de fumar no interior de estabelecimentos comerciais fosse incluída entre as novas medidas de prevenção a incêndio, “mas não como uma imposição”.
   A propósito da tímida sugestão, em editorial, a Folha da Tarde, mesmo apoiando a ideia, considerou o hábito de fumar em qualquer lugar (incluindo churrascarias, restaurantes em horário de almoço e até mesmo elevadores) algo já arraigado entre os gaúchos – portanto, medidas bem mais amplas e eficazes deveriam ser tomadas para evitar o que aconteceu na Renner. E aproveitou para lembrar: nos magazines elegantes da Europa o hábito de fumar já estava proibido – embora a prática ainda fosse comum em bares e restaurantes.
   

Folha da Tarde: neurastenia?

 INICIA A CAMPANHA PARA DOTAR A CIDADE DE MAIS HIDRANTES
   No entanto, o incêndio da Renner – uma das muitas tragédias na pródiga safra dos anos setenta – deixara suas indeléveis marcas e algo precisava ser feito para satisfazer a opinião pública.
   Nas semanas seguintes – a exemplo do que tinha acontecido com as tragédias da Fulgor e das Americanas - a Prefeitura de Porto Alegre mobilizou o seu departamento de fiscalização a fim de verificar as condições dos edifícios da cidade, e muitas portas lacradas que impediam a ligação entre um andar e outro foram derrubadas a golpes de marretas, sob o aprovativo olhar dos moradores.
   No dia 14 de maio o prefeito Villela enviou projeto de lei à Câmara propondo a doação de uma área de mais de seis mil metros quadrados, no bairro Praia de Belas, para a instalação da nova estação central do Corpo de Bombeiros. Ao mesmo tempo foi dado início a uma campanha comunitária com o objetivo de dotar a capital de uma eficiente e unificada rede de hidrantes – existiam cerca de 500 em toda a cidade quando as necessidades mínimas exigiam 4.500 mil. Nos dias seguintes ao sinistro da Renner, indagado a respeito da falta de hidrantes na cidade, Villela havia justificado: “O fato é que os bombeiros nunca nos pediram mais hidrantes”.
   Agora sob o argumento de que não se dispunha de recursos para fazer frente a tal volume de despesas (cada dispositivo, segundo as autoridades, custava cinco mil cruzeiros, cerca de sete salários mínimos) Villela apelou para a colaboração dos empresários, os quais poderiam “adotar” quantos quisessem. Em positiva resposta, no dia 20 de maio, 24 grandes empresas anunciaram a destinação conjunta de 800 mil cruzeiros para a compra e instalação de 160 novos hidrantes na cidade – o nome dos doadores, inclusive, era publicado em espaço de página inteira na Folha da Tarde, e também gravado no próprio equipamento a ser instalado.
   Oito dias depois já havia 316 doações – para tanto o doador depositava cinco mil reais em uma conta bancária e comunicava isso à Prefeitura via telefone. Somente o grupo Gerdau depositou o valor referente a 30. O grupo Ipiranga, o Estaleiro Só e as Organizações Renner pagaram 20 de tais aparelhos, cada qual. 
   Para variar, descobriu-se que a capital gaúcha, havia tempo, também estava pessimamente aparelhada nesse quesito – existiam apenas cerca de 500 de tais fontes em toda a cidade. Ou, como disse então o vereador João Severiano, do MDB, presidente da morosa comissão especial criada para examinar o projeto de lei que estudava o uso obrigatório de extintor de incêndio nos prédios de Porto Alegre: “A cidade é bem abastecida de água, tanto que foi preciso construir um muro contra as enchentes, mas na hora em que a água representa o ponto principal num trabalho de controle ao fogo, não há hidrantes necessários para isso”.
    Havia, ademais, outro problema, o da “bitola”. Antigos e instalados sem muitos critérios técnicos, não estavam ligados a encanamentos de diâmetro suficiente para a vazão necessária ao trabalho dos bombeiros. O diretor do Departamento Municipal de Águas e Esgotos, DMAE, Jacob Lerner, reconhecia que a grande maioria estava conectada a redes distribuidoras de escassa dimensão. À medida que a rede se afasta do reservatório de água o diâmetro do encanamento também diminuía, enfraquecendo ainda mais os jatos das mangueiras. Isso acontecera, por exemplo, na tragédia das Lojas Americanas.  
   No início da semana seguinte ao incêndio da Renner o governador Guazzelli reuniu-se com o alto comando da Brigada Militar e prometeu publicamente, em tom incisivo: “Não vou regatear recursos, tudo o que o nosso corpo de bombeiros precisa para ser reequipado eu vou dar”. Jogando por baixo, calculava-se o valor a ser gasto com os bombeiros entre 70 e 80 milhões de reais – dinheiro em grande parte a ser repassado pelo governo federal.
   Guazzelli também informou que o Estado reexaminaria a lei estadual 6019, de agosto de 1970, que dispunha sobre convênios com municípios para o serviço de combate ao fogo, considerado muito oneroso para as prefeituras, que arcavam com quase tudo, além de castrador em relação à autoridade da corporação. Ele adiantou ainda que o governo gaúcho apresentaria ao governo federal sugestões para a criação de um código nacional de prevenção e combate ao fogo, uniformizando toda a legislação.
   Outra medida anunciada dizia respeito à educação e treinamento da população em situações como a ocorrida nas lojas Renner, ensinando, sobretudo em colégios, como se comportar e agir para evitar o pânico – e que, claro, nunca foi posta em prática.
   Abrindo o encontro no quartel central, os bombeiros convidaram o governador, bem como as demais autoridades e os jornalistas presentes, a assistir a um filme sobre a ação da categoria nas tragédias do Andraus e do Joelma, na cidade de São Paulo. O coronel Wellington Carlos Soveral, comandante da corporação (e que seria substituído dali a poucos meses), pediu a Guazzelli a rápida construção de uma sede no centro e duas mais distantes da zona central – uma no bairro Navegantes, na zona norte, e outra em Teresópolis, na zona sul. Quanto aos equipamentos, reivindicou-se a remodelação da frota de auto bombas, a compra de mais escadas Magirus e auto jamantas, bem como veículos leves e ambulâncias. Queriam também algumas escadas semelhantes às Magirus, porém mais ágeis e com maior mobilidade, as quais só poderiam ser adquiridas no exterior. Outra solicitação eram as roupas especiais de proteção, para penetração em locais mais arriscados e, finalmente, máscaras de ar comprimido. No tocante ao pessoal, foi solicitado um aumento do efetivo e a inclusão de uma equipe oficial de engenheiro nos quadros da corporação.
    A 4 de maio, analisando as deficiências dos bombeiros em Porto Alegre, Zero Hora traçou uma radiografia da situação do Primeiro Grupamento de Incêndio, que funcionava “em modestas dependências” da rua Silva Só, e cujas atribuições abrangiam todo o município de Porto Alegre, além de dar cobertura a outras unidades da região metropolitana.
   As quatro escadas mecânicas então existentes poderiam, no máximo, atingir a altura de um edifício de dez ou doze andares, dependendo do tipo de construção. Outras quatro estações, no Partenon, na Tristeza, na Floresta e no Passo da Areia, dispunham apenas de dois carros auto tanques-bomba, tripulados cada um por nove homens. Em pior estado, a Companhia de Socorro Naval, instalada junto ao Armazém C-5 da avenida Mauá, às margens do Guaíba, contava com duas jurássicas lanchas fabricadas em 1903 – setenta e três anos passados.

DESCOBRIU-SE: BOMBEIROS TIVERAM DIREITOS RETIRADOS AO LONGO DO TEMPO


2 de Julho, dia do Bombeiro: eles não tinham equipamento adequado e eram menosprezados pelas autoridades.

    O jornal também descobriu que os bombeiros sequer tinham autonomia para a escolha de seu próprio pessoal, previamente selecionado pela Brigada Militar e depois a eles encaminhado para a realização de cursos de treinamento.
   Aí, sim, tornavam-se bombeiros – e, diga-se, muito mal remunerados: em abril de 1976 os recrutas da corporação recebiam 575 cruzeiros de salário mensal. Acrescidas algumas vantagens, o total percebido não ultrapassava 800 cruzeiros (o salário mínimo seria reajustado para pouco mais de 700 naquele primeiro de maio). Ademais, a revogação da lei da insalubridade, em 1971, fazia com que os soldados do fogo trabalhassem os mesmos 30 anos de qualquer outro funcionário público para obter direito à aposentadoria – antes, eles poderiam se aposentar com 17 anos e meio de serviço.
   “O bombeiro é muito mal remunerado”, reforçou, em editorial, o Jornal do Comércio em sua edição de 6 de maio: “Sua função de salvamento e de perigo constante não tem em contrapartida sequer um salário de doméstica”.
    A promessa de Guazzelli de reequipar – ou equipar – a corporação nas principais cidades gaúchas foi seriamente questionada pelo deputado oposicionista Lélio Souza, no início de maio. Lélio constatou que, dos dois recentes projetos de lei enviados pelo executivo para a abertura de créditos suplementares, nenhum dizia respeito aos bombeiros.
   Saindo em defesa do governo, o líder da bancada situacionista, Celestino Goulart, admitiu que o Estado realmente não dispunha de tais recursos, mas estava buscando ajuda do governo federal. “Tudo está sendo feito para que no menor prazo possível os bombeiros estejam perfeitamente equipados para evitar tragédias como a das Lojas Renner”, afirmou.
   Na esfera municipal, no final de maio, ainda sob o evidente impacto da tragédia, uma nova lei seria em breve votada e aprovada por unanimidade, desta vez para ser cumprida no prazo máximo de 60 dias: a instalação obrigatória de extintores de incêndio em todos os prédios com mais de quatro andares – a lei complementar número 20. Discutia-se, ainda, a obrigatoriedade dos chuveiros automáticos, os sprinklers, nos edifícios com mais de 20 metros de altura.   
   Aproveitando o clima de comoção, Villela encaminhou ao legislativo, no mesmo momento, o código de instalações hidráulicas elaborado pelo Departamento Municipal de Águas e Esgotos. E, junto com este, o decreto que tornava obrigatório o parecer favorável do Corpo de Bombeiros para a concessão da carta de Habitação, o “Habite-se”, medida que atingiria todos os processos em andamento e os projetos de reformas dos prédios já existentes, a qual previa novo parecer e nova aprovação por parte dos bombeiros em caso de qualquer outra posterior alteração. Ficavam de fora, contudo, as residências domiciliares.
    Quanto aos prédios porto-alegrenses raríssimas exceções pontificavam em meio ao cenário absoluto de descaso. Os jornais destacaram especialmente o caso o edifício da Caixa Econômica Estadual, na avenida Borges de Medeiros, esquina com a rua Andrade Neves, talvez o único dotado de uma escada apropriada para fuga em caso de emergências. No caso, garantia-se que a escada – instalada fora do corpo do prédio – não seria varrida pelas chamas, por mais fortes que estas fossem, embora isso jamais fosse testado.
    Também moradores e síndicos de alguns grandes edifícios do centro anunciaram que, agora sim, iriam abrir a mão e gastar com obras de prevenção. O síndico Cândido Bertolini, do problemático edifício Formac, anunciou que, em comum acordo, todos os condôminos haviam decidido dotar a construção de medidas urgentes de prevenção e fuga às chamas. A decisão – segundo ele, tomada meses antes da tragédia da Renner – incluía criar uma escada externa fixada em uma das paredes junto ao vizinho edifício Brasília, dez andares mais baixo. Com isso, em caso de incêndio, os moradores poderiam descer até o terraço deste último prédio e depois alcançar a rua em segurança por meio de elevadores. Também, disse, iriam instalar portas corta-fogo em muitos andares.
   Ironicamente, o Formac – um dos mais altos edifícios de Porto Alegre (28 andares), na travessa Leonardo Truda – quase se transformou em uma réplica do Renner no dia 6 de julho, terça-feira, provando que o discurso não correspondia à prática e que a sorte, ainda ela, era a grande auxiliar em tais casos.
   O fogo surgiu na madrugada e se espalhou por todo o sétimo andar, onde se localizavam os gabinetes dentários do SESI, Serviço Social da Indústria, e só seria contido, com muitas dificuldades, quatro horas depois, causando novamente pânico entre os moradores do centro. Como sempre, os bombeiros “acudiram com seus parcos recursos”, trazendo uma escada Metz, considerada mais moderna que a Magirus, mas logo constataram que ela não seria suficiente para alcançar o local das chamas.
   O comandante da guarnição – um tenente que, providencialmente, se chamava Cristo – pediu então a vinda da Magirus, mas esta demorou muito a chegar pois não havia motorista disponível para isso, descobriu a imprensa.
   Debelado o incêndio, que destruiu totalmente o sétimo pavimento e paralisou durante semanas os serviços odontológicos da entidade, os bombeiros constataram que nada do prometido havia sido posto em prática, além da simples colocação de mais extintores. Nem sequer a escada de fuga fora iniciada – a prefeitura tampouco dera autorização oficial para tanto, e todos se perguntavam o que teria acontecido se o fogo surgisse em horário comercial e não no meio de uma madrugada vazia do úmido e frio mês de julho.
    A existência de saídas de emergência, tal como o projetado para o Formac, e que permitiriam às pessoas passarem de um prédio a outro, diferenciava os edifícios Chaves e Di Primio Beck, do Multibanco e da Fin-Hab, os quatro na rua dos Andradas e ligados entre si por escadas de passagem. Segundo explicaram os síndicos, tais melhorias foram efetuadas depois do acontecido com as Lojas Americanas.
    De todos os bons exemplos de prevenção ao fogo, entretanto, o mais modelar (e que em fevereiro mereceu páginas inteiras, pagas, na imprensa gaúcha) não fora motivado basicamente pela preocupação com a segurança e integridade das precárias vidas humanas e sim com o ardoroso zelo em defesa do patrimônio material: o centro de processamento de dados do governo do Estado (11 mil metros quadrados), instalado em um dos edifícios do ainda inconcluso Centro Administrativo do Estado, na Praia de Belas, dispunha, do “mais moderno sistema de prevenção do país”, conforme orgulhosa declaração do secretário do Interior, Desenvolvimento Regional e Obras Públicas, Otávio Germano.
    O CPD estadual estava equipado com “a última palavra do gênero em segurança contra incêndios em aparelhos eletrônicos de computação”. Os técnicos da empresa paulista Kidde S.A. explicaram que, ao invés de usar o costumeiro gás carbônico (CO2) para combater o fogo, o sistema – já aprovado pelo CPD do Banco do Brasil em São Paulo - adotava outro tipo de gás, o “halon”, que não causava envenenamento, não tinha qualquer toxidade e não danificava os equipamentos eletrônicos. Mais de cento e vinte cilindros de tal gás foram distribuídos pelos três andares do prédio, além de termostatos, detectores de fumaça e “chuveiros” (sprinklers) estrategicamente colocados.   
    Mas o primeiro edifício de Porto Alegre a ser concluído conforme as novas exigências da Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, e da prefeitura municipal, em termos de prevenção a incêndios, somente seria inaugurado no dia 10 de setembro, na rua Chaves Barcelos, 36, entre as avenidas Júlio de Castilhos e Mauá. O Montecooper Business Center, com 18 andares e 11 mil metros quadrados de área construída, contava, basicamente, com tudo que vinha sendo recomendado pelos bombeiros: escada enclausurada, porta corta-fogo, câmara e antecâmara, além de outros mecanismos paralelos de prevenção. Totalmente em concreto armado, com 25 centímetros de espessura, as paredes do prédio permitiam o isolamento das peças e, portanto, do fogo.

O PREFEITO E O GOVERNADOR DÃO SEUS PÊSAMES À DIREÇÃO DAS LOJAS RENNER
   Dois dias depois da tragédia todas as filiais das Lojas Renner reabriram normalmente. Representantes da empresa já haviam percorrido os hospitais da cidade tentando encontrar seus funcionários com vistas a determinar o número exato de desaparecidos, embora o cálculo final somente fosse possível na sexta ou no sábado, quando os últimos se reapresentariam a fim de receber os salários relativos ao mês de abril.
   Os jornais noticiavam então que os diretores Herbert Bruno Renner, Ricco Harbich e Henrique Pernau compareceram ao gabinete do prefeito Villela, e também seguiram até o Palácio Piratini, onde se avistaram com o Governador Guazzelli, a fim de agradecer as providências tomadas pelos dois poderes públicos. Tratados muito respeitosamente como vítimas, nada lhes foi cobrado – ao menos oficialmente - no tocante à segurança e prevenção contra o fogo, atitude que, na realidade, não era de se estranhar - para muitas pessoas, sobretudo as autoridades, a Renner, era, sim, a maior vítima do episódio de 27 de abril.
Jornal do Comércio


   Segundo noticiou o Correio do Povo, “o governador Sinval Guazzelli, ao mesmo tempo em que renovou o pesar do Estado pelo incêndio que destruiu as lojas Renner no centro, causando tantas vítimas, disse que o governo estava interessado em dar todo apoio para que aquela organização não veja prejudicada as suas atividades”.
   Em seguida os diretores visitaram a Companhia Jornalística Caldas Júnior, onde foram recebidos por Breno e seu filho Francisco Caldas. Lá também externaram “seu agradecimento pela solidariedade recebida da CJCJ através de seus jornais e da rádio Guaíba” e detalharam “providências diversas que estão sendo tomadas para normalizar o ritmo de trabalho após o grande impacto sofrido”.  Já a Associação Riograndense de Imprensa, ARI, em nota oficial do seu presidente, Alberto André, não estendeu condolências à empresa e sim destacou o luto pelo acontecido, elogiando porém “os esforços da municipalidade” e de outros órgãos, que “de alguma forma tiveram sua ação voltada para a debelação do sinistro”.
   Por sua vez, em decisão interna da diretoria, a equipe de funcionários que trabalhava no edifício incendiado foi remanejada para as demais filiais da Renner, incluindo Pelotas e Novo Hamburgo. A sede provisória, no bairro Passo da Areia, foi adaptada às pressas para a nova função, enquanto um grupo de secretárias recebia a dolorosa incumbência de prestar informações a respeito dos mortos e desaparecidos. A cada toque do telefone seguiam-se embaraçosas explicações, permeadas de silêncios emocionados e lágrimas nem sempre furtivas.
   “Sentimos muito, meu senhor, mas esse nome está na lista do Instituto Médico Legal e o senhor deve se dirigir para lá” – dizia a secretária de plantão, esforçando-se para manter um tom de normalidade.
   Alguns velhos clientes, acostumados a comprar com determinado funcionário, queriam saber desta ou daquela pessoa, se estava bem ou se constava na relação das vítimas fatais ou dos desaparecidos. Nem sempre recebiam boas notícias.
   Nas semanas seguintes o grupo veiculou uma série de anúncios institucionais com depoimentos de antigos clientes que externavam seu apreço e carinho por uma das marcas mais conhecidas do Estado. Possivelmente de forma espontânea, em seu início, algumas pessoas enviaram cartas aos jornais lamentando a tragédia, ao mesmo tempo em que evocavam lembranças pessoais agradáveis da empresa.
   Intitulado “Solidariedade”, um desses textos foi publicado no “Correio do Leitor”, do Correio do Povo, na edição de domingo, 2. Sem lembrar as vítimas, uma leitora, que assinou simplesmente como “Maria”, fala da sua relação sentimental com o magazine Renner.

(...) “Foi lá que comprei a primeira peça do meu enxoval de casamento. Quase menina, cheia de ilusões. Era tudo tão lindo! A esperança no futuro, o meu enxoval.”(...)
“Compro a primeira camisinha para o meu bebê e a seguir todo o meu enxoval. O carinho da balconista ao me atender, o sorriso respeitoso do gerente e a delicadeza da empacotadora contribuíam de maneira marcante para a formação de um conjunto de alegrias e felicidade já existente com a expectativa do ser que estava para nascer e que, em breve, vestiria aquelas roupinhas que, com tanto carinho, escolhemos.
“O primeiro corte de cabelo, com o “cineminha calmante”, na sessão (sic) infantil; o primeiro sapatinho, as calcinhas e as camisinhas, tudo tão lindo...
“Nova gravidez, outro menino, mais compras e novas alegrias. Eram três os cortes de cabelo, a escolher presentes e a serem atendidos carinhosamente pelos funcionários.
“A bicicleta com caroneira, a boneca, o jipe do Exército, a bola colorida, a chuteira e tantos outros brinquedos.
“Passam-se os anos e as crianças crescem, se modificam, mas a lojas Renner permanece acolhedora, embora maior e mais moderna. Surge então o primeiro traje com gravata e paletó para o meu “bebê” já homenzinho; os vestidos graciosos para a minha menina-moça. E agora o traje esporte para o caçula de 16 anos, última compra que fizemos na “familiar” loja Renner da Octávio Rocha, onde sentíamo-nos em casa. A casa da qual trazemos tão grata lembrança e lamentamos a destruição”.

   Na edição de 10 de maio o mesmo texto – desta vez com o nome completo, a foto e o endereço da autora – foi republicado na íntegra em página inteira da Folha da Tarde e também do Jornal do Comércio. Certamente a Renner havia comprado tal espaço na tentativa não só de melhorar sua imagem como de provar que tal pessoa não era uma personagem e sim existia de fato, em carne e osso: chamava-se Maria Rosa de Lima Pires, residente à rua Salvador Calamucci, 71, parque Madepinho, no bairro Cavalhada, em Porto Alegre. Abaixo, em rodapé, vinha o texto da empresa: “Um amigo na necessidade é um amigo de verdade. Nas últimas horas e dias, descobrimos quantos e que bons amigos temos. As palavras solidárias que estamos recebendo nos animam e comovem. Elas dizem tudo o que sentimos e o que gostaríamos de ter dito. A d. Maria e todos os nossos amigos, muito obrigado. Renner”.                                                                  
              
   Ainda no mês de maio, a Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul anunciou publicamente que, a exemplo do que acontecera com o Joelma, em São Paulo, por parte da sua similar paulista, a entidade gaúcha havia criado uma comissão técnica para estudar detalhadamente as causas e os efeitos do incêndio das lojas Renner.
   Coordenada pelo engenheiro Antônio Carlos Pereira de Souza, presidente, tinha nomes de expressão responsabilizando-se por diferentes áreas: engenheiro Cláudio Hanssen (engenheiro químico, especialista em prevenção a incêndios); Alberto Elnecave (estruturas); Hermann Bojunga (instalações elétricas); Raul Rego Faillace (edificações); Ibá Ilha Moreira Filho (engenharia legal) e Dirceu Duarte Calegari (materiais de construção).  O laudo técnico resultante dessa união de esforços seria tornado público e encaminhado aos órgãos oficiais, garantiu Pereira de Souza, ao tempo em que solicitava livre acesso a todas as informações e procedimentos.
    Todavia, estranhamente, tal documento nunca veio a público e sequer voltaria a ser mencionado nas páginas dos jornais – nem mesmo quando se completou o primeiro ano da tragédia. Também do inquérito policial nada mais se falou.
   Já no dia 30 de abril, três depois do acontecido, a Folha da Manhã externava o seu ceticismo com a apuração dos acontecimentos, lembrando de dois episódios anteriores, o dos Fogos Fulgor e o das Americanas. Nos três casos, um mesmo personagem, o delegado de polícia:
 “O inquérito que vai as causas do incêndio das Lojas Renner será presidido pelo delegado (Geraldo) Ivo Gaston. O mesmo policial foi responsável pelos inquéritos do incêndio das Lojas Americanas, a 29 de dezembro de 1973, no qual morreram cinco mulheres. Até hoje o delegado não divulgou nenhuma informação a respeito, não sabendo-se a que conclusões chegou o inquérito, e que revelações estão contidas nele. Quando era procurado pelos repórteres o delegado dizia não ter satisfações a dar a ninguém. O mesmo delegado, atualmente na Primeira Delegacia, também orientou e presidiu o inquérito sobre outro grande incêndio ocorrido em Porto Alegre: a explosão da fábrica de fogos de artifício Fulgor, no Navegantes, na tarde de 3 de maio de 1971. Extraoficialmente foi tornado público que morreram 16 pessoas, e essa cifra até hoje é discutida. Mesmo passados cinco anos o delegado não informou nada sobre o inquérito policial, e nem a que conclusões levaram as investigações. Ontem, o delegado foi procurado inúmeras vezes pela imprensa, não sendo localizado”. (Folha da Manhã, “A Investigação do Incêndio Será Presidida por Ivo Gaston”, 30 de abril de 1976, sexta-feira)
                                

HOMEM ATEIA FOGO NA LONA DO CIRCO: MAIS DE 500 MORTOS E COMOÇÃO MUNDIAL
   Um mês antes do fogo no edifício Renner, na noite de sábado, 26 de março, a imprensa de Porto Alegre destacava a chegada à cidade do circo Norte-Americano, uma das mais famosas e tradicionais companhias circenses que percorriam as Américas.
   Instalado na esquina das avenidas Borges de Medeiros com Ipiranga, o Norte-Americano permaneceria na capital até o dia 2 de maio, domingo - sua presença, naquele momento, tinha um significado emblemático que remetia ao mais tenebroso incêndio da história brasileira e um dos mais mortíferos de todo o mundo.
   Mais precisamente à tarde de domingo, 17 de dezembro de 1961, proximidades das festas de final de ano, em Niterói, Rio de Janeiro, onde uma multidão calculada entre duas e três mil pessoas – metade das quais eram crianças - assistia à apresentação final dos trapezistas do Gran Circus (sic) Norte-Americano quando o toldo de lona pegou fogo e, em menos de três minutos, deixou mais de duzentos mortos, a maioria pisoteados. Outros tantos morreram nos dias seguintes nos hospitais de Niterói e do Grande Rio. Os cálculos apontaram então 600 feridos e 323 vítimas fatais – no final, com os posteriores óbitos em hospitais, computou-se mais de 500 mortos.
   A tragédia – nas proximidades dos festejos de final de ano - chocou o mundo. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Argentina ofereceram ajuda às autoridades brasileiras. Os Estados Unidos enviaram uma remessa de plasma sanguíneo e medicamentos. Um avião da Força Aérea Argentina trouxe médicos e especialistas do Instituto de Queimados de Buenos Aires. Todos os cirurgiões plásticos da Guanabara (a cidade do Rio de Janeiro era então um Estado), inclusive o doutor Ivo Pitanguy, que ainda não despontara para a notoriedade mundial, foram convocados a trabalhar e estabeleceu-se uma ponte marítima entre Rio e Niterói para o transporte de feridos e toneladas de medicamentos – bem como uma ponte aérea entre São Paulo e o Rio. Solidário, o Estado gaúcho coletou e enviou em avião da FAB cinquenta litros de plasma sanguíneo.
   O presidente João Goulart foi pessoalmente visitar os feridos nos hospitais. Em um emocionado apelo nos rádios e na tevê, o popular palhaço Carequinha pediu mais doações de sangue.
   Porém algo mais chocante se revelaria nos dias seguintes, quando se comprovou o caráter criminoso do fato. Surgiu então o “Monstro de Niterói” – Dequinha, ou Adilson Marcelino Alves, favelado carioca, preso inúmeras vezes por furto e vadiagem, e que possivelmente havia ateado fogo no circo para se vingar de um tratador de elefantes que o esbofeteara - e também, como reconheceu, para saquear as vítimas mortas.
   Feita a combinação sinistra, um cúmplice seu jogou gasolina na lona – um sintético feito à base de derivados de petróleo – e Dequinha riscou o fósforo. No dia seguinte, absolutamente tranquilo, o incendiário vendeu alguns litros de sangue nos hospitais do Rio e foi preso somente depois que sua companheira de barraco comentou o fato com alguns vizinhos e estes procuraram a polícia.
   Para não ser linchado, o “Monstro de Niterói” foi recolhido à fortaleza de Santa Cruz, sob a guarda de soldados do Exército. Mais tarde, submetido a exame por um grupo de psiquiatras, foi classificado como “oligofrênico, imbecil e sugestionável”, com idade mental de seis anos, conquanto capaz de entender o ato que praticou.
    A tragédia de Niterói serviu para que, nos anos seguintes, as autoridades passassem a fazer uma fiscalização rigorosa de tais locais, explicou o secretário do “novo” Circo Norte-Americano ao repórter da Folha da Manhã, em reportagem publicada na segunda-feira, 3 de maio. Miguel Martins – descrito como um homem sério e engravatado que não gostava de falar sobre o acontecido em dezembro de 1961 – lembrou que aquela era a primeira vez que a companhia retornava a Porto Alegre depois daquele triste fato de quinze anos atrás.
   Segundo ele, nesse período não somente a fiscalização e a consciência dos perigos se tornaram maiores como a própria evolução tecnológica viera em auxílio à segurança, com o surgimento de lonas não combustíveis, revestidas por uma camada química que impede a propagação do fogo, algo que não havia no Brasil no início dos anos sessenta.
   “O comandante dos bombeiros de Caxias do Sul, quando veio fazer a vistoria, começou a rir quando dissemos a ele que a lona não queimava. Ele não queria acreditar, e só acreditou quando tentamos tocar fogo em alguns pedaços e não aconteceu nada”, relatou Martins. “Mas esse tipo de lona é muito caro e só é acessível a circos médios e grandes, como é o nosso caso. Tem uma empresa de São Paulo especializada na fabricação dessa lona incombustível sintética”.  
   “O circo, hoje, é uma das casas de espetáculo que oferece mais garantias de segurança para o público”, garantiu o funcionário, lembrando que, em toda e qualquer cidade, a fiscalização “in loco” feita pelos bombeiros pautava-se pelo rigor no cumprimento das normas técnicas. Além disso, era agora expressamente proibido fumar no interior de qualquer circo e todos os empregados haviam sido treinados no manuseio de extintores e de como proceder em casos de emergência.
   Também a abertura das lonas laterais facilitava a saída de três ou quatro mil pessoas em questão de minutos – nas laterais do Norte-Americano, por exemplo, existiam três portas de emergência com seis metros de largura cada uma, sem contar a abertura frontal de 30 metros. Os cabos elétricos, por sua vez, eram todos blindados e colocados do lado de fora. A chave-geral da eletricidade desligava automaticamente com o surgimento de qualquer curto-circuito.

   Antes da tragédia de Niterói o maior flagelo desse tipo no Brasil – ao menos em sua história urbana mais recente - parece ter sido registrado a 14 de junho de 1953, na cidade de São Paulo, quando centenas de pessoas, a maioria “gente de cor” e “empregadinhas domésticas”, na expressão da revista O Cruzeiro, divertiam-se ao ritmo dos sambas em um baile popular em homenagem a Santo Antônio, o santo dos casamenteiros.

O "baile das empregadinhas" terminou de forma trágica: não havia saídas (CP, 1953)

   Instalado na parte de cima de um velho sobrado, o clube 28 de Setembro - rua Florêncio de Abreu, centro da capital paulista – contava com um único acesso e uma única saída, uma velha escada de madeira que rangia ao peso de poucas pessoas. Embaixo, funcionava uma loja de tecidos.
   Poucos perceberam o calor estranho que vinha do assoalho até que aos 25 minutos da madrugada rolos de fumaça invadiram o salão, fazendo com que uma verdadeira onda humana se projetasse em direção à escada. Em poucos minutos muitos corpos, caídos ao chão, foram sendo esmagados, enquanto outras pessoas atiravam-se das janelas. No final de tudo contabilizou-se 53 mortos, incluindo um bombeiro. Poucos estavam carbonizados – o pânico incontrolável, mais uma vez, foi o elemento assassino.
    Também o pânico, tão somente ele, foi o causador da grande tragédia envolvendo crianças na mesma cidade de São Paulo, 25 anos antes. O acontecido no Cine Theatro Oberdan ficou gravada como um dos mais tristes e traumáticos ocorridos na então tranquila terra da garoa.
   Domingo de Ramos, 10 de abril de 1938, bairro do Brás. Segundo a versão mais aceita, um garoto de pouco mais de dez anos que assistia à sessão, em apuros intestinais, foi sozinho ao banheiro: ele não encontrou o “lanterninha”. Para iluminar o local, incendiou um pedaço de papel. Alguém viu aquilo e começou a gritar “fogo, fogo!”, desencadeando uma incontrolável onda de terror entre os presentes. Neste momento, na tela, surgia a cena de dois aviões se chocando no ar.
   Saldo final: trinta e uma crianças entre sete e 14 anos, a maioria filho de operários (somente uma mulher adulta, que tentava proteger o filhinho de colo, morreu), jaziam sem vida no piso de um dos mais vistosos e conhecidos cinemas de São Paulo. Eles tinham ido à sessão vesperal assistir o filme Criminosos do Ar, com a jovem atriz Rita Hayworth, precedido pelos seriados X-9 e Ameaças da Selva.  
    No local havia apenas duas escadas de um metro de largura e que se afunilavam. A perícia da época constatou a existência de quatro saídas de emergência, todas elas trancadas por fora, mas os proprietários, imigrantes italianos, não foram responsabilizados (seus documentos estavam em dia). O cortejo fúnebre das vítimas do Oberdan, na segunda-feira, com desmaios e as cenas de desespero, parou as ruas centrais da capital.
    Todavia o horror daquele episódio, nos anos trinta, resultou em mudanças, ainda que primárias, nas normas de segurança das casas de espetáculos paulistanos: as portas de saída não poderiam mais ser trancadas por fora, como era então o costume, e os corredores deveriam permanecer iluminados durante as sessões. Os proprietários também perceberam a importância de se contar com escadas internas espaçosas em caso de pânico e correria.

CENAS DE HORROR DO EDIFÍCIO JOELMA SÃO TRANSMITIDAS AO VIVO: FEVEIRO DE 74  
   Nas duas décadas seguintes o fogo retornaria às páginas da imprensa. O da boate Vogue, no Rio, em 14 de agosto de 1955, poucos dias depois do falecimento de Carmen Miranda, com cinco mortos e mais de cinquenta feridos, tragédia esta que abalaria a alta sociedade carioca; o do edifício Astória, também com cinco mortos e também no Rio, em junho de 1963; o da Favela da Praia do Pinto, que destruiu 800 barracos, feriu 32 e deixou cinco mil desabrigados. E, em São Paulo, o de São Bernardo do Campo, na fábrica da Volkswagen, às margens da via Anchieta, em 18 de dezembro de 1970, com um homem morto e cerca de 100 feridos (a empresa negou que um caminhão com 30 operários tivesse sido soterrado, matando a todos, episódio ainda hoje nebuloso), seguido do edifício Andraus, na capital, em 24 de fevereiro de 1972, com 16 mortos, quase 400 feridos e seis horas de duração.
   Mas é do Joelma que os brasileiros mais lembram. O edifício, na avenida Nove de Julho, no coração de São Paulo, fora inaugurado havia apenas dois anos e nele estavam instalados a sede e os escritórios da financeira Crefisul, pertencente ao City Bank norte-americano. Seus 25 andares, revestidos internamente com lambris, cortinas e muitas divisões de madeira, além de incontáveis aparelhos de ar condicionado que sobrecarregavam a rede elétrica; seu telhado de placas de cimento e amianto térmico e uma grande caixa dágua que impedia o pouso de helicópteros – isso tudo, somado, formaria o fatídico cenário para a grande tragédia.


   Assim a revista Manchete de 16 de fevereiro de 1974, edição número 1.139, da Bloch Editores (que, no desastre da Renner, não publicou uma linha sequer a respeito), resumiu o sinistro do Joelma:

   “Foi uma das maiores tragédias do século no Brasil. Primeiro dia de fevereiro, mês da alegria. Sexta-feira, véspera do fim de semana. Nove horas da manhã, quando todos iam para o trabalho. Tudo aconteceu de repente no centro de São Paulo, a megalópole brasileira que em dez anos terá ultrapassado Nova Iorque e será a maior cidade do mundo. São Paulo não parou, apenas. Toda sua população, tomada de pânico, concentrou seu pensamento numa só ideia: a ideia da morte. Essa morte que na grande cidade se tornou bem mais complexa e dramática do que se possa imaginar. De quem a culpa? Basicamente, de todo um modo de vida que inclui as catástrofes, a poluição, a neurose e a violência. O saldo: medo, angústia e muitas vidas perdidas – muito mais do que podem indicar as frias cifras oficiais. E talvez uma lição amarga, portadora de mudanças que façam alguma coisa para que desastres como os incêndios do Andraus e do Joelma não se repitam”.

   Tudo começou quando faltavam 15 minutos para as 9 horas da manhã de sexta-feira, primeiro de fevereiro, no décimo segundo andar. Em 20 minutos o fogo chegava ao topo, tempo que os bombeiros, driblando o caótico trânsito paulistano, levaram para chegar ao local, levando três escadas Magirus que atingiam o limite máximo de 45 metros. Um helicóptero da Operação Para-Sar – o único apropriado para a situação - conseguiu manter-se imóvel a centímetros do teto e salvou muitas vidas.
   Pelo menos vinte pessoas já haviam se jogado pelas janelas. Apesar do heroísmo da corporação, somente uma hora e meia depois do início do fogo é que o primeiro bombeiro conseguiu saltar no alto do prédio para dar início ao dificílimo resgate.
   Dezenas de soldados e oficiais – dos 450 que participaram da operação - arriscaram a vida rodopiando nas cordas e escalando andar por andar. Carros-pipa trouxeram água de uma distância de até 30 quilômetros. Às 16h15min, quando as últimas chamas foram debeladas, cerca de 500 mil paulistanos tinham assistido ao vivo o drama.
   A causa possivelmente estava em um ar condicionado, costumeiro vilão de tais episódios. E talvez pudesse ser combatida a tempo, e quem sabe debelada, se os ocupantes do prédio soubessem manejar os equipamentos anti-incêndios instalados em cada andar. Os próprios bombeiros testemunharam: os extintores e as mangueiras estavam intactos em seus lugares.
    A revista Manchete, de Adolpho Bloch, assim como quase todo o restante da imprensa, denunciou a antiquada legislação em vigor (se é que se poderia usar o termo “legislação” para algo que era “opcional”) e o total descaso das autoridades que na prática nada haviam feito depois da tragédia do edifício Andraus e de suas cenas chocantes.
   (...) “A população paulista, entretanto, prefere acusar o seu Código de Obras, um documento em vigor há 40 anos, quando a cidade tinha menos de um milhão de habitantes. Obsoleto, sem qualquer adequação com a realidade de hoje, o velho código permite a construção de edifícios sem os modernos sistemas de prevenção contra o fogo, dos quais a técnica hoje dispõe. As próprias construtoras é que procuram dotar suas obras da maior segurança possível, mas esta segurança é relativamente opcional: faz quem quer e compra quem puder. Enquanto isso o fogo se encarrega de provar que há algo de exageradamente combustível nos gigantes de concreto armado”.



     Considerando que o Joelma “não era um pardieiro caindo pelas tabelas”, falar em “fatalidade” era ofender o senso comum, lembrou a revista, externando seu pessimismo quanto aos resultados das investigações. Oitocentas e sessenta e uma pessoas trabalhavam no prédio, das quais cerca de 600 estavam no local, à hora do início do fogo.
   “Em sua maioria, as vítimas trabalhavam na Crefisul, uma poderosa companhia financeira que alugara a parte superior do edifício Joelma para ali instalar seus escritórios. E o prédio, em si, não era um pardieiro caindo pelas tabelas. Muito pelo contrário, tratava-se de um edifício novo, construído há pouco menos de dois anos, com todos os chamados requisitos de conforto e a segurança – até prova em contrário – era garantida pelo habite-se das autoridades competentes. O inquérito que a Prefeitura de São Paulo mandou abrir responderá a muitas questões levantadas por mais este desastre, mas a conclusão final – a menos que se prove uma ação criminosa – revitalizará aquele antigo substantivo polissílabo abstrato: fatalidade.” (Manchete)
  
   O prefeito (nomeado) de São Paulo era então o jovem economista Miguel Colasuonno que, no dia seguinte ao incêndio, festejava os seus 35 anos de vida. Uma semana depois tal autoridade editou um decreto estabelecendo normas oficiais para ocupação dos edifícios, pela primeira vez fixando a obrigatoriedade da instalação dos chuveiros automáticos (sprinklers) nas construções. Também se passou a exigir escadas de incêndio e uma laje no teto capaz de suportar o peso do pouso de um helicóptero.
   Mesmo tardias, eram medidas que faziam parte do primeiro e histórico regulamento oficial e efetivo sobre incêndios no Brasil, espécie de marco divisor no assunto e para o qual quase duzentas pessoas pagaram com a vida. Bem ao estilo brasileiro, não bastasse o acontecido com o Andraus, em 1972, foi preciso mais uma grande tragédia, ao vivo e a cores, de intensa repercussão mundial, para que São Paulo acordasse e tomasse providências. 
   Doze dias após o acontecido no Joelma, uma notícia vinda de Caracas, via agência UPI, demonstrou cabalmente os resultados da presença de equipamentos de salvamento na hora e local necessários – neste caso, sem intencionalidade alguma. A presença fortuita de um guindaste gigante nas proximidades de um edifício de 12 andares que pegou fogo na capital venezuelana acabou por salvar a vida de mais de uma centena de pessoas, aglomeradas no alto do prédio e resgatadas de lá graças ao manuseio inesperado do equipamento utilizado na construção de outro prédio ao lado. “A presença de um guindaste ali foi providencial”, reconheceu, aliviado, o comandante dos bombeiros locais – assim como os brasileiros, sem escadas à altura da escalada.

O FOGO NAS LOJAS AMERICANAS E A TRAGÉDIA DO QUARTO DISTRITO
   Porto Alegre já havia sentido na carne o efeito de pelos menos dois grandes sinistros com vítimas fatais e não precisava mirar-se no exemplo do Andraus ou do Joelma para extrair lições e adotar medidas de prevenção a tragédias.
   Na tarde de segunda-feira, 3 de maio de 1971, poucos minutos depois das 15 horas, a cidade foi sacudida pela explosão do depósito de Fogos de Artifício Fulgor, na rua João Inácio, número 138, entre a avenida Voluntários da Pátria e a Presidente Roosevelt, no bairro Navegantes. 
   A chamada “tragédia do quarto distrito”, zona operária e fabril, de casas modestas, quase às margens do Guaíba, matou pelo menos oito pessoas, feriu mais de cinquenta, destruiu totalmente onze residências e vários carros, quebrou as vidraças da Quarta Delegacia de Polícia e causou danos materiais consideráveis em um raio de dois quilômetros. A vibração foi sentida até mesmo em alguns edifícios do centro, a quatro quilômetros de distância. Segundo testemunhas, “parecia que haviam jogado uma bomba atômica ali”.  
   Depois de visitar o local, o arcebispo de Porto alegre, d. Vicente Scherer, chegou a declarar ter visto “uma das maiores catástrofes da história desta cidade”.
   Contrariando suas práticas, o Correio do Povo abriu de capa uma grande foto da explosão, vista de longe, com um imenso rolo de fumaça se alteando contra o céu, e destacou, em letras garrafais, a seguinte manchete “Explosão Arrasa Área do Quarto Distrito”.  O jornal dedicou duas páginas internas ao acontecido.
   Segundo testemunhas, uma explosão fortíssima foi seguida por uma segunda, tão forte quanto a primeira, enquanto labaredas subiam a grandes alturas. Um cogumelo de fumaça elevou-se contra o céu, onde, coincidentemente, naquele momento passara um avião que havia decolado do aeroporto Salgado Filho – muitos moradores imaginaram que ele havia caído e explodido contra o solo. De igual forma não se descartava, em um primeiro instante, um atentado de “grupos terroristas” – a luta armada contra o regime militar estava em pleno curso.
   “De longe, em todos os cantos da cidade, o cogumelo foi avistado”, assinalou o Correio.
   Veja, em sua edição 140, de 12 de maio, dedicou uma página ao assunto (“Os fogos da morte”) e também traçou comparação imaginária com um grande acidente aéreo: “Os quase cinquenta repórteres que correram para o local, na tarde de segunda feira passada, levavam inicialmente a incumbência de cobrir um desastre de avião, única explicação que os primeiros informantes davam para as proporções do acidente”.
   Logo em seguida guarnições do Corpo de Bombeiros, conduzindo cerca de 100 soldados, 12 viaturas transportando 60 homens da Polícia do Exército, todas as camionetas do Serviço de Ronda e Vigilância da Polícia Civil, cinco ambulâncias do Hospital de Pronto Socorro e duas da Associação dos Funcionários Municipais, mais três veículos do Instituto Médico Legal, convergiram para o local.  
   “A confusão era total”, descreveu o repórter da Caldas Júnior. “Os moradores das vizinhanças, os que se encontravam em casa, além dos ferimentos recebidos pelo desabamento de paredes e telhados, encontravam-se em estado de choque. Havia vários focos de incêndio. Documentos, retratos, roupas, pedaços de móveis, utensílios de cozinha amassados, material de escritório, tudo se misturava a estilhas de tijolos, telhas, pedaços de vigas, fogos de artifício ainda intactos, fragmentos de carne humana, automóveis destroçados e algumas paredes de pé cujas janelas olhavam nuas para o nada”.

   Funcionário de uma oficina situada nas vizinhanças (rua Santos Dumont), o mecânico Valtoni Spíndola, de 39 anos, foi um dos primeiros a chegar ao cenário da explosão e lembrou que “estremeceu tudo” devido ao impacto.
   “Os fogos ainda estavam explodindo, mas assim mesmo me meti entre os escombros e pude retirar dois homens e duas mulheres, todos com vida. Outro homem que arrastei estava morto”, relatou ele.
   Valtoni colocou os feridos em automóveis que passavam, enviando-os aos hospitais mais próximos, enquanto presenciava pessoas em pânico correndo pela rua e “gritando como loucos”.
   Dezenas de repórteres que acorreram ao local constataram um “cenário de filme de guerra”. Um deles, transmitindo ao vivo pela tevê, comentou: “Isso não é o Vietnã, é Porto Alegre em 197l”.  Cerca de sessenta feridos foram conduzidos ao Pronto Socorro. Sobre um telhado, a mais de meia quadra, recolheu-se pedaços de um homem. Já o proprietário do estabelecimento, Clemente Dias de Andrade – que se encontrava na fábrica no exato momento da explosão – foi literalmente pulverizado.  
   Uma dessas históricas quase incríveis que parecem acompanhar tais catástrofes foi relatada por moradores próximos – o de uma moça chamada Elsa Borges, de 19 anos, que residia em uma casa nos fundos do depósito da Fulgor em companhia de um irmão. Conforme os vizinhos, Elsa – dada agora como desaparecida – residia lá fazia pouco tempo. Fugindo ao trauma e buscando uma vida nova, ela e o irmão tinham vindo de São Paulo, onde seus pais teriam morrido em um incêndio acontecido na fábrica da Volkswagen de São Bernardo do Campo, em dezembro de 1970.
   Azar também teve o menino Ângelo Biazeto, filho de um representante comercial que estava carregando sua camioneta DKW com uma partida de foguetes. Ele brincava em frente ao prédio quando tudo aconteceu. Em compensação, uma menina de cinco anos, Márcia Rosa Lopes, filha de um viajante e moradora em uma casa vizinha ao depósito de fogos, foi apontada pela imprensa como a sobrevivente milagrosa da catástrofe. Mais de duas horas depois de iniciados os trabalhos dos bombeiros, ela foi descoberta pelo choro quase imperceptível que provinha dos destroços.
   O bombeiro que a recolheu não resistiu à emoção e também chorou convulsivamente ao ver tal criança ali, em estado de choque, mas sem ferimento algum: a pequena, na verdade, estava caída em um vão, entre a geladeira e uma laje.
   O milagre, por assim dizer, não era algo individual e sim coletivo e somente uma imensa dose de sorte pode explicar porque dezenas de outras pessoas não perderam a vida naquela tarde de segunda-feira: atrás da fábrica Fulgor localizava-se uma grande arrozeira com mais de 200 empregados, os quais, tal hora da tarde, faziam o seu lanche habitual, desta vez encerrado minutos antes da explosão. Já os 500 mil sacos de arroz estocados junto a uma das paredes laterais acabaram por servir de escudo ao impacto e às chamas na hora da explosão, e isto salvou muitas vidas.        
   Não tardou a ser apurado que a fábrica de artifícios – na verdade um tosco armazém de dois pisos, um antigo sobrado concentrando não só foguetes e bombinhas de traque – estava abarrotada de explosivos a base de pólvora, em desobediência ao plano diretor do município que proibia essa atividade naquela área. O alvará expedido pela Prefeitura somente autorizava a venda de explosivos e não a sua fabricação.
   A tragédia, de fato, fora anteriormente sinalizada: o depósito já havia sofrido duas explosões menores e não dispunha da mínima segurança. Mas, como de regra, nada de efetivo fora feito ou cobrado pelas autoridades.
   Entre as hipóteses aventadas como causa da explosão, a primeira dizia respeito a um caminhão carregado que teria tocado um fio de energia elétrica, na rua, originando curto-circuito na rede. Mas nunca se soube e provavelmente jamais se saberá de coisa alguma: o inquérito a respeito nunca foi divulgado. Em 1971 tais fatos não precisavam ser respondidos ou explicados. 
   No editorial “Lições da Tragédia”, o Correio do Povo comparou as cenas ao cogumelo atômico de Hiroxima, em 1945: “Porto Alegre, nestes dias, é uma cidade abalada com a catástrofe que ocorreu no Quarto Distrito. (...) “Os jornais, as rádios e as televisões revelaram ao povo de Porto Alegre e de todo o Estado cenas de devastação e de horror: casas demolidas, destroços humanos, paredes desabando, as nuvens da fumaça repetindo, no espaço, o cogumelo apocalíptico de Hiroxima e Nagasaki. Os que assistiram a tragédia reagiam como se estivessem diante do absurdo.


CP


    Dias depois alguns adolescentes se transformaram em vítimas correlatas dos fogos fabricadas pela Fulgor. No sábado, 8, na rua São Carlos, cinco meninos brincavam com um insólito artefato que haviam encontrado em meio aos destroços quando este subitamente explodiu. Um dos garotos perdeu a mão direita.
    Nas semanas seguintes à explosão, os debates, os discursos e o conhecido jogo de empurra-empurra e de cobranças de culpa frequentaram as páginas dos jornais e geraram eloquentes pronunciamentos na Câmara de Vereadores. Em resposta, policiais e órgãos do executivo municipal, por sua vez, fizeram algumas vistosas (sempre acompanhados da imprensa) operações de fiscalização e aplicação de multas – a costumeira encenação que se segue às tragédias de impacto. A igreja católica, por seu turno, mobilizou-se em favor das vítimas da catástrofe, lançando uma campanha de doações e de amparo aos feridos carentes – alguns deles mutilados - e suas famílias.
   Na sessão da Câmara Municipal o assunto motivou inúmeros pronunciamentos e um pedido de informações ao prefeito municipal, Telmo Thompson Flores, encaminhado pelo vereador Glênio Peres, do MDB, partido cujo líder, César Mesquita, cobrou duplamente das autoridades executivas, considerando o fato dos depósitos de explosivos serem controlados pelo Exército, “e desde 1964 o controle foi ampliado”.
   “Os responsáveis pela tragédia do Quarto distrito devem ser apontados”, pediu Mesquita. Já o vereador situacionista Martin Aranha, líder da Arena, considerou que houve uma “burla” por parte da empresa Fulgor, já que o alvará só autorizava a venda e não a fabricação dos foguetes. 
   O tema também repercutiu na Assembleia Legislativa, onde o deputado Pedro Simon, de 41 anos, manifestou seu pesar e solidariedade às vítimas, ao passo que sugeria um estudo detalhado, a fim de que a legislação impeça a localização de uma firma de explosivos “no centro de uma região tão populosa”. O governador e major reformado Euclides Triches, de 57 anos – engenheiro caxiense que assumira o cargo havia menos de dois meses – esteve pessoalmente no Hospital de Pronto Socorro, em visita aos feridos lá internados.
   Enquanto isso, menos solidários em seus atos, ladrões promoviam um lucrativo saque em muitas das casas danificadas pela explosão e que haviam sido abandonadas por seus moradores, o que fez com que a polícia, de forma evidentemente tardia, montasse um esquema de policiamento no local.

CINCO MOÇAS MORREM ABRAÇADAS NO BANHEIRO DAS LOJAS AMERICANAS
A tragédia das Americanas evidenciou os problemas com os hidrantes e a precariedade dos bombeiros; 1973.



   Dois anos e meio depois da Fulgor e um mês antes do Joelma, a 29 de dezembro de 1973, um sábado (início de um feriadão, pois o dia primeiro cairia na terça-feira), uma pequena confraternização de final de ano dos funcionários das Lojas Americanas, conhecida rede de magazines com filiais espalhadas por todo o Brasil, transformou-se em uma tragédia que estragou o Reveillon de muitos gaúchos.
   E aconteceu em um conhecido edifício comercial do centro da cidade, na rua da Praia, quase esquina com avenida Borges de Medeiros, a hoje “Esquina Democrática”. Não causou mais vítimas porque, por um destes desígnios da sorte, não havia movimento de clientes. Dos cerca de trezentos funcionários não mais do que quinze estavam no local - os demais, encerrado o coquetel, haviam saído fazia minutos. 
   Tal como o edifício Renner, o prédio era uma jaula, com apenas duas saídas para diferentes ruas e quase todas as janelas vedadas por grades. A causa mais provável teria sido – assim como na Renner – um curto-circuito elétrico no interior da sorveteria, no lado da rua dos Andradas.
   O fogo iniciou por volta das 15h30min, denunciado pela fumaça que vinha do painel de eletricidade da sobreloja. Cercadas por fogo e fumaça, em pânico, Sueli Ferreira Lopes, Remildes Maria de Jesus, Marli Silva, Iracema Mengaldo e Marli Almeida buscaram abrigo no banheiro do segundo andar. Morreram por asfixia – abraçadas. Já a colega Vera Lúcia Leche, de 23 anos, conseguiu chegar a uma janela e de lá saltou sobre a marquise, despencando sobre a calçada de uma altura de sete metros. A despeito de graves fraturas, foi a única sobrevivente do grupo. Um popular quis entrar no prédio para salvá-las, mas foi impedido pela polícia e preso por desacato. Vários botijões de gás de cozinha explodiram no interior da loja, como se fossem bombas de guerra. Todo o centro de Porto Alegre foi interditado.
   Os bombeiros chegaram em 20 minutos (ou 30, afirmaram alguns), sem escadas, sem máscaras contra gases, sem instrumentos de demolição de janelas e grades e com um dos carros sem água.  Água que também faltou nos hidrantes – ou melhor, faltaram os hidrantes, retirados por contingência das muitas obras que rapidamente iam cobrindo a cidade com um tapete de cimento e concreto. Valendo-se de uma lancha da corporação, cerca de 100 mil litros precisaram ser bombeados do Guaíba, a meio quilômetro de distância.
    Mais tarde soube-se (ou pelo menos assim se alegou) que, dos 12 hidrantes ao longo da Rua da Praia, nenhum funcionou naquela hora – ou estavam estragados ou simplesmente não puderam ser operados pelos bombeiros.   
   Em sua edição de 9 de janeiro (“O preço da água”), a revista Veja enfocou a questão crucial: “Entre as acusações estava a de que faltou água na hora de combater o fogo, pois muitos hidrantes foram retirados em consequência de obras municipais. Além disso, alegando que a água tratada está muito cara e a prefeitura precisa economizar, 100 000 litros foram bombeados do rio Guaíba, a 500 metros de distância. O município deve estar satisfeito. Menos cinco consumidores para uma água tão cara em tempos de rigorosa economia”.

   Defendendo-se das críticas, os bombeiros pediram maior fiscalização da prefeitura, garantindo que, neste caso, não lhes foram passadas as mínimas informações necessárias - sequer lhes disseram que havia gente no prédio, lembrou o comandante da Brigada Militar, coronel Clóvis Antônio Soares.
   À noite eles ainda trabalhavam no rescaldo das Americanas quando foram chamados a atender uma nova ocorrência: parte do mercado público estava sendo consumida pelo fogo – treze bancas do centenário prédio ficaram totalmente destruídas, um entre vários incêndios que acometeram o histórico local.
    Na esteira da tragédia das Americanas, a fim de acalmar o clamor público, encenou-se a mesma e surrada ciranda de hipocrisias, jogos de cena e ocos brilhos retóricos (“vamos estudar medidas”). Uma “comissão especial” foi constituída rapidamente por Telmo Thompson Flores “para definir de uma vez por todas um código de normas de prevenção contra incêndios”, ocasião em que o prefeito ressalvou que “este assunto é um dos mais polêmicos da atualidade, tanto assim que em nenhuma parte do mundo se chegou a uma conclusão definitiva a respeito. A prevenção de incêndio é muito complexa”. Lembrou ainda que aquela não era a primeira vez que se preconizava a necessidade de tal código de prevenção: na segunda administração José Loureiro da Silva, no início dos anos sessenta, uma comissão semelhante dedicou-se por um ano a tal tarefa e acabou por não chegar à conclusão alguma.
   A despeito disso o prefeito prometeu que daria todo apoio e todos os recursos necessários aos bombeiros. Ao mesmo tempo esquivou-se das críticas à falta de hidrantes, dizendo que isso não cabia à Prefeitura e sim ao Corpo de Bombeiros, do Estado: “Eles indicam os locais e o DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos) providencia a colocação”.
   Por ironia, o próprio prédio central que abrigava a grande maioria das secretarias municipais, na rua Siqueira Campos, tinha sido notícia justamente por causa de um princípio de incêndio que acontecera no final da noite do dia 2 de novembro de 73, uma sexta-feira, matando um servente de pedreiro que trabalhava na reforma da secretaria da Fazenda, localizada no terceiro andar. A vítima foi identificada como Rubens Riveira, 36 anos, residente na Vila Farrapos. Ele foi encontrado horas mais tarde pelos técnicos do Instituto de Criminalística que foram fazer o levantamento do sinistro. Estava caído no interior de um pequeno banheiro junto ao elevador, provavelmente morto pela inalação da fumaça. Talvez sem ânimo ou dinheiro para voltar para casa depois do expediente, ficara irregularmente para dormir no local de trabalho.
   Em fevereiro de 1974, já com o caso do Joelma em evidência, usando a tribunal do legislativo estadual, o deputado Pedro Simon encaminhou um pedido de esclarecimentos sobre a situação dos bombeiros gaúchos – com a adesão do colega Waldir Walter e do arenista Hugo Mardini. Em longos discursos, os três reivindicaram maiores recursos “e outras medidas do governo à prevenção e combate a incêndios em nosso Estado, em face das últimas ocorrências trágicas”. Mardini, líder da bancada da Arena, lembrou que um amigo seu, o engenheiro Rudolf Hoffmeister, havia perdido uma filha na tragédia do edifício paulistano.
    No dia primeiro de janeiro de 1974, terça-feira, com a cidade ainda chocada com a tragédia da rua da Praia, o Correio do Povo, em editorial “O Incêndio das Americanas”, falava que as cinco jovens mortas “devem servir como trágica motivação para que se revise a política de prevenção contra incêndios da cidade” – cidade, segundo o jornal, “sem proteção contra incêndios”. A 15 de fevereiro, voltando ao tema, o diário lamentava: “As experiências do passado ensinam o povo a descrer do que lhe é prometido ao impacto de um grande sinistro ou de um grande acidente, pois, ao passar do tempo, tudo é esquecido”.
    No seu editorial “Lições da Tragédia”, na quarta-feira, 2, o concorrente Zero Hora destacou o contraste entre a bravura dos bombeiros e a precariedade dos equipamentos que estes tinham à disposição para o seu trabalho, sobretudo a falta de hidrantes. Frisou ainda que “o prédio sinistrado era uma verdadeira ratoeira” (“prédios cujas janelas sequer permitiram que as pessoas se atirassem por elas”) e lembrou que as consequências seriam bem piores se o fato tivesse acontecido em outro horário: “Dezenas de pessoas teriam sido vitimadas pelas chamas ou pisoteadas num tumulto, caso o incêndio tivesse ocorrido em hora de movimento comercial”.  
   No dia seguinte, em sua seção Informe Especial, o tabloide da RBS voltou a criticar a construção de edifícios “sem as mínimas preocupações contra o fogo”, bem como uma prática “verdadeiramente criminosa, tolerada tanto pelos bombeiros quanto pela fiscalização municipal”: a existência de portas cerradas entre os andares, fechando o acesso às escadas. Considerando, sobretudo, que “está na hora de ser usado o poder de polícia para evitar mortes perfeitamente evitáveis”, finalizava: “Enquanto os ratos andam às soltas na cidade, ameaçando de epidemias a população, permite-se a existência de ratoeiras para as pessoas humanas”.
    O político e jornalista Mendes Ribeiro, no mesmo jornal, em sua coluna, também criticou com contundência o descaso com a prevenção a incêndios vigente desde sempre na capital e lamentou a morte das cinco funcionárias, “gente humilde, que exalto”.  Curiosamente – retratando, talvez, grande parte da mentalidade da época – rebateu: “Não leiam aqui acusações contra os empregadores das mortas. Não, nada disso. Fizeram o que podiam fazer, o que todos fariam que (sic), afinal, o fogo não identifica antes de matar”.
    Na verdade todos os empresários, sem exceções, da boca para fora, se diziam sinceramente preocupados com o perigo de incêndios e de tragédias humanas, todos apontavam deficiências, omissões e culpas neste quesito – no entanto todos que assim falavam o faziam como se não lhes competisse, individualmente, nenhuma ou quase nenhuma responsabilidade concreta em tal questão: simplesmente isso era sempre passado adiante, a um terceiro, a “eles”, geralmente “o Governo”, “as autoridades”, os bombeiros, ou algo ainda mais incorpóreo e difuso: “a legislação vigente”.  Bem ao jeitinho brasileiro, não havia mea culpa. Entre culpados, omissos e coniventes, salvavam-se todos.
    Ouvidos por Zero Hora nos dias seguintes à tragédia (“Comércio preocupado com incêndios”, 6.01.74, domingo), todos foram unânimes em reconhecer que “95% dos edifícios e casas comerciais de Porto Alegre não possuem as mínimas condições de segurança contra incêndios”.
   Boa parte de tais empresários culpou a precariedade técnica do corpo de bombeiros de Porto Alegre e a “necessidade de criação de leis que obriguem todos a se equiparem”.
    “Porto Alegre é talvez a única cidade do mundo em que os bombeiros vão encher os tanques de água depois que o incêndio já iniciou”, comentou um comerciante. Já o gerente de uma filial da Ibraco na rua dos Andradas disse que os estabelecimentos comerciais deveriam “reagir energicamente” para impedir novas tragédias. Ele achava que “deveria haver leis obrigando engenheiros e arquitetos a incluírem nas plantas dos edifícios áreas próprias para evacuação rápida”, opinião que era também do diretor das Lojas Safira: “Obrigam a usar cinto de segurança nos veículos. Então por que não obrigam a construir prédios com segurança contra incêndios?”.  Já a responsável pela Calçados Paquetá sugeriu que cada prédio tivesse uma escadaria de emergência “que desse para a rua”, enquanto José, gerente da Casas Pernambucanas, considerava os bombeiros “parcialmente culpados” pelo que aconteceu nas Americanas: “Eles demoraram 40 minutos a chegar ao local”.
    Preocupadas de fato estavam as funcionárias da loja Lenarts, instalada em sala com apenas uma porta e sem nenhuma janela, nos fundos de um prédio da rua da Praia. A gerente confessava estar “com a pulga atrás da orelha”, mas garantiu que todas as suas funcionárias haviam apreendido a manejar corretamente seus quatro extintores. A exemplo de tantos outros, também criticou a falta de água no salvamento das Americanas: “Bombeiro quer dizer socorro. Socorro quer dizer estar preparado para casos de emergência. E estar preparado quer dizer tanque cheio”.
    A imprensa mais uma vez descobriu o óbvio ululante: 95% dos prédios de Porto Alegre haviam sido construídos sem qualquer preocupação com os sinistros desse tipo, mais de 50% não trocavam a carga dos extintores na época certa e 90% dos prédios residenciais não contavam com qualquer sistema de proteção. E, claro, nenhuma fiscalização severa e periódica era exercida por qualquer órgão municipal.
    A repórter Marilena Marasca, de Zero Hora, acompanhou a vistoria efetuada por um técnico em planejamento contra incêndios nas duas semanas subsequentes ao acontecido nas Americanas. Era o distante mês de janeiro de 1974 – mas talvez o resultado não fosse muito diferente do encontrado no século 21.
    Por exemplo, no edifício número 612 da avenida Borges de Medeiros nenhum dos corredores dos seus 21 andares, onde viviam cerca de 600 pessoas, possuía qualquer extintor de fogo, a escadaria tinha largura para apenas uma pessoa passar, não havia portas de isolamento e os hidrantes estavam instalados de forma errada. Segundo Fernando Vieira, técnico que procedeu a vistoria, “este é o tipo do edifício que, se dá um incêndio lá pelo décimo andar, o pessoal dos andares de cima não tem como escapar”.
    No teatro Leopoldina, na avenida Independência (aquele que teria um princípio de fogo em abril de 1976, durante o show de Amelita Baltar), casa com mais de 1200 assentos, então o local preferido para bons espetáculos em Porto Alegre, o panorama tampouco se revelava animador: não havia extintores na sala de espera, nem junto à plateia e ou no mezanino – quando tais equipamentos deveriam ser colocados na entrada e na saída, de forma bem visível. O pior mesmo era o palco, considerado ainda mais perigoso pelo técnico: “As instalações elétricas estão desorganizadas, puxam fios daqui e dali, sem proteção. E este pequeno extintor (havia um apenas) é insuficiente”.
   Conclusão: o Leopoldina não poderia ter conseguido alvará do Corpo de Bombeiros, pois não possuía extintores à vista na plateia e nem hidrantes exigidos para casa de diversões”.
    O problema da falta de extintores à vista era ainda mais notório em ambientes requintados. Os hotéis de luxo, por exemplo, preferiam ocultá-los das vistas de sua distinta clientela. Em contraposição, o tradicional cinema Vitória e o hospital Ernesto Dornelles poderiam, então, ser definidos como padrões nesta área: possuíam extintores em bom número, hidrantes adequados, saídas de emergência, instalações elétricas isoladas por área (o que permitiria o uso de elevadores), depósitos de materiais inflamáveis em local isolado e um quarto da água da caixa dágua reservada para incêndios.

ILDO MENEGHETTI TENTOU MAS NÃO CONSEGUIU
    A resistência – ou mesmo franca oposição – dos empresários da construção à criação e aplicação de medidas legais de prevenção de incêndios não era nenhuma novidade na história de Porto Alegre – e provavelmente tampouco na história de todas as médias e grandes cidades brasileiras. Vinte anos antes, no final de 1952, o então prefeito Ildo Meneghetti tentou efetivamente implantar uma legislação moderna e inovadora que, se levada a efeito naquela época, teria poupado posteriormente muitas vidas humanas e milhões em prejuízos ao patrimônio da capital – inclusive evitando a tragédia da Renner. Ele havia sancionado a lei 1023, proposta pelo vereador Lúcio Marques, a qual previa a obrigatoriedade da instalação (em prédio a ser construído ou mesmo reformado) com três ou mais andares – de dois reservatórios de água com capacidade de 20 mil litros cada qual, um localizado no subterrâneo e outro no alto, todos eles ligados a um simples e eficiente sistema de combate ao fogo. Caso isso não fosse feito a municipalidade negaria o “habite-se” da construção.
    Imediatamente, em viva voz, o então Centro de Proprietários de Imóveis manifestou o seu veemente protesto. A entidade, presidida por Fanor de Azambuja Marsillac, classificou a lei como “inexequível, antitécnica e, principalmente onerosa”, conforme registraram os jornais da época. Pressionado, Meneghetti voltou atrás e não se falou mais no assunto.
   Em junho de 1966, logo depois do incêndio do edifício Mallet, no centro da capital e no qual até a década de 50, funcionava o célebre e chique Grande Hotel, o tema voltou a ser debatido com intensidade. O conhecido comissário E.W. Bergmann, em artigo para o Correio do Povo, da qual era assíduo colaborador, considerou que “Porto Alegre é uma cidade ludibriada em sua prevenção de incêndios”.  Ele se reportou a prédios públicos, como a Biblioteca do Estado, na rua Riachuelo e onde mais de 80 mil volumes de papel poderiam arder a qualquer momento, já que as instalações elétricas internas eram comprovadamente falhas e perigosas. O local não tinha um plano de prevenção ao fogo, o que se verificou em dezembro de 1965, quando um princípio de incêndio causado por um curto-circuito por pouco não se alastrou pelas salas e depósitos do velho e mal-conservado prédio, “um emaranhado de fios expostos”. O mesmo acontecia com o Museu Júlio de Castilhos, ali perto.
    Em julho de 1966, dez anos antes da tragédia da Renner, o engenheiro Cláudio Hanssen declarou, em palestra aos alunos da Faculdade de Engenharia da URGS: “Lamentavelmente, a quase totalidade dos grandes edifícios de Porto Alegre, quer residenciais, quer de escritórios, não dispõem de meio que, pelo menos, ofereçam segurança às vidas dos ocupantes”. Ele pedia uma lei municipal de prevenção, “realmente adequada, sem exageros, sem artifícios, reunindo a experiência de engenheiros, bombeiros, legisladores, e que estabeleça um mínimo de proteção para os prédios que se construírem”.
   O jornalista Ivo Egon Stigger, em matéria de página inteira no Correio, a 2 de maio, domingo, historiou a questão dos incêndios e a legislação a respeito (“A Necessidade de Leis e Fiscalização Mais Severa”). Ele via no cipoal da burocracia, nas burlas das normas, na morosidade geral e na falta e na aplicação de leis claras e rígidas, bem como nas atitudes desleixadas da própria população, o combustível maior para grandes tragédias como a Renner e o Joelma. Um dos entrevistados, integrante da Comissão de Estudos e Prevenção de Incêndios, criada em 1974, durante o governo Thompson Flores e a primeira que a cidade já teve, o arquiteto David Leo Bonder, lembrou que vinte milhões de cruzeiros – menos que o prêmio semanal da Loteria Esportiva – seriam suficientes para tornar ideal a obsoleta e não padronizada rede de hidrantes da cidade, ressaltando porém as responsabilidades do cidadão comum, pouco afeito aos cuidados com segurança: “Pela basculante do banheiro a turma joga pedaços de papel, revistas, embalagens de xampu, etc, que se depositam no térreo. Um cigarro aceso pode custar 200 vidas. A colocação de uma simples tela nos basculantes pode impedir o que a educação não nos deu”.





O FOGO CONSOME A RÁDIO FARROUPILHA MAIS UMA VEZ
    O mês de janeiro de 1974 – cujas temperaturas, como de habitual, chegaram a 38 graus na Capital e região metropolitana – registraria outro sinistro, sem vítimas, mas de grande repercussão noticiosa: no sábado, 12, no meio da tarde, os estúdios da Rádio Farroupilha, no morro Santa Teresa, foram rapidamente tomados pelas chamas, fazendo com que as 15 pessoas que lá estavam trabalhando naquele momento fugissem correndo.
   O fogo, provavelmente causado por um curto, foi percebido no momento em que os apresentadores da casa gravavam o programa Sou Fã de Roberto Carlos. Quatorze viaturas e mais de 60 homens do corpo de bombeiros acudiram prontamente e conseguiram controlar a situação em 45 minutos. Mesmo assim os danos foram consideráveis, atingindo os dois estúdios grandes da emissora, o estúdio de comerciais, a central técnica, a central de esportes, a direção, a discoteca e a fitoteca. Nesta última os prejuízos eram também históricos – a fitoteca armazenava as gravações das vozes de grandes figuras da constelação artística ao longo dos anos, acervo este que se perdeu.
   A Farroupilha, aliás, já havia sofrido com o incêndio de 24 de agosto de 1954, quando populares, militantes políticos, acrescidos de vândalos e desordeiros, atearam fogo na emissora, então pertencente ao grupo Diários Associados, para vingar a morte do presidente Getúlio Vargas, no Rio.
    Incêndios e sinistros em veículos de comunicações nunca foram novidades. Em junho de 1972 (marcado, dia 14, pela morte da jovem atriz Leila Diniz, em acidente aéreo na Índia, e pela ocorrência de fortes chuvas que deixaram mortos e desabrigados em todo o Estado) tinha sido a vez dos prédios da Rede Brasil Sul de Comunicações, também no morro Santa Teresa.
   Aquele 9 de junho entrou para a história da RBS como a sexta-feira negra de prejuízos incalculáveis para a rede que iniciava a sua forte expansão estadual. No sinistro perdeu-se equipamentos sofisticados, três estúdios da Televisão Gaúcha, dois da Rádio Gaúcha e todas as instalações da Rádio Porto Alegre, que operava em fase experimental (e onde começou o fogo), além da aparelhagem da TV Tuiuti, de Pelotas, emissora que deveria ser inaugurada dali a duas semanas.
   Em rápida reação, sob o comando de Maurício e Jayme Sirotsky, a empresa imediatamente deflagrou uma operação de guerra para retomar as suas transmissões de televisão e rádio. A rádio Gaúcha voltou a funcionar poucas horas depois, transmitindo da redação do jornal Zero Hora, via telefone, para a residência de Maurício Sirotsky e de lá, por micro-ondas, para os transmissores na avenida Getúlio Vargas. Enquanto isso, valendo-se de um caminhão de externas, em breve se retomou a geração das imagens do Canal 12. Um transmissor foi trazido da rádio e televisão Imembuí, de Santa Maria. A Embratel, por sua vez, cedeu alguns equipamentos seus que estavam em depósito. A Rede Globo, no Rio, também colaborou, enviando aparelhagem.
    Já os soldados do fogo encontraram sérias dificuldades operacionais: além do grande ajuntamento de curiosos no local, prejudicando o trabalho, simplesmente não havia hidrantes no morro Santa Teresa. Também um depósito de água com 500 mil litros, localizado junto à emissora, não pode ser utilizado, uma vez que não havia tomada adequada para o encaixe das mangueiras. 

IMPLOSÃO INÉDITA, PRESSA E NENHUMA HOMENAGEM AOS MORTOS




   Na manhã de 30 de maio, um domingo cinzento e úmido, o que havia restado da sede das Lojas Renner foi visto pela última vez por centenas de curiosos que se comprimiam atrás do cordão de isolamento para assistir o “gran finale”.  
   Em pequenos grupos, pouco mais de 200 pessoas comprimiam-se em um perímetro que compreendia as esquinas da Otávio Rocha com a Senhor dos Passos, Doutor Flores com Andradas, Otávio Rocha com Vigário José Inácio e Senhor dos Passos com Andradas. 
   Uma comitiva de dezenas de jornalistas, autoridades, amigos e parentes das autoridades, penetras e alguns convidados Vips compareceram ao local, todos portando crachás especialmente confeccionados pela Secretaria da Segurança. Afinal, a inédita implosão era agora, digamos, um grandioso espetáculo histórico, um momento único na história da cidade.

   Na sexta-feira, no seu espaço da Folha da Tarde, o cartunista Santiago, 25 anos, publicou uma charge que valia por muitas palavras – acomodado em uma escrivaninha, tendo ao fundo uma fileira de ônibus de excursão, um circunspecto homem de óculos escuros cobrava ingressos da multidão. Acima, os dizeres: “Neste local sensacional implosão. Sessão única. Ingressos aqui”.   
   Outro chargista, o veterano Sampaulo, pai do personagem “Sofrenildo”, compareceu com uma charge de página inteira: “Coisas nossas: RGS – ano 2000”. Ao centro, um único e solitário edifício era contemplado de longe por um grupo de turistas. O guia explicava: “... E agora visitaremos o prédio que não incendiou”.

   Inicialmente muito questionado, tal tipo de destruição instantânea chegou a ser considerado “muito pouco viável, principalmente porque pode ainda haver corpos soterrados e a implosão acarretaria um maior entulho, impedindo a remoção de cadáveres que ainda se encontram no local”, opinou o secretário Jorge Englert no início do mês de maio.
   Logo, porém, tais manifestações humanas de escrúpulo e algum respeito para com os mortos foram atropeladas pela nova ordem dos fatos e pela urgente necessidade de se “limpar” o centro daquele esqueleto malcheiroso e incômodo, com sua inevitável carga de lembranças e cobranças.
   Focando unicamente os problemas técnicos (e certamente um tanto melindrado pelo esquecimento), um dos mais tradicionais empresários do ramo de demolições na capital manifestou-se publicamente contra a implosão – Leopoldo Lago de Castro entendia que o terreno no qual estava assentado o edifício era movediço, “muito barrento e próximo do Guaíba”. Para ele, a aplicação de tal técnica - que via “com muitas reservas” - abalaria os prédios vizinhos. Antes disso, assegurou, era antes necessário um criterioso estudo do solo. “É melhor prevenir do que remediar”.
   Já os técnicos da Triton – os quais evitaram a exposição pública - diziam estar mais preocupados com as condições climáticas reinantes na data marcada, que não poderiam ser de fortes chuvas (“provocaria uma diminuição da estática”) e nem de tempo muito seco, “com poeiras”.
    No aspecto humano, no entanto, desde a data da tragédia, o local se tornara um ponto central de aglomeração de populares e curiosos e também o cenário que ainda alimentava a angustiante esperança de alguns familiares em busca dos despojos insepultos de seus pais, filhos, maridos, irmãos, parentes ou amigos, oficialmente dados como desaparecidos.
   O caso de Rosemary Manomics, de 36 anos, residente à rua Riachuelo, chamava a atenção: quase diariamente ela ia ao local do sinistro e por vezes ao prédio do Instituto Médico Legal, na avenida João Pessoa, tentando identificar algo do seu ex-marido Alberto, de quem estava desquitada havia 11 anos – tarefa até ali em vão. Morador da cidade de Estrela, Alberto, ajudante de engenharia, tinha vindo a Porto Alegre naquele 27 de abril especialmente para comprar sapatos na Renner. “Depois ninguém mais soube notícias dele. Não aguento mais essa angústia”, desabafou ela aos repórteres.     
      Sábado, dia anterior à implosão, quase uma centena de quilos de explosivos havia sido estrategicamente colocada em pontos sensíveis do prédio que, em poucos segundos ruiria de “fora para dentro”, uma explosão peculiar, quase asséptica, sem riscos para a vizinhança, garantiam técnicos e autoridades em tom de autossuficiência. A implosão – neologismo consagrado a partir da experiência pioneira com o edifício Mendes Caldeira (30 andares), em São Paulo, sete meses antes, por si só já era um espetáculo: para aqueles que haviam assistido às imagens na tevê, o efeito lembrava a “explosão de uma bomba atômica”.
   Com efeito, durante semanas os técnicos da empresa paulista Triton haviam planejado cuidadosamente a operação em Porto Alegre, anunciada com muita antecedência e cercada de algumas polêmicas e questionamentos. O nervosismo geral era visível: nada poderia dar errado. Ambulâncias e policiais posicionados nas calçadas para o caso de qualquer eventualidade. Todos os moradores dos prédios mais próximos foram evacuados, arcando com as próprias despesas de translado, uma vez que nenhum hotel lhes foi oferecido pela Renner ou pelas autoridades públicas.
   A saída de casa era uma determinação, não uma proibição – os que insistissem em ficar deveriam estar cientes de todos os riscos e responsabilidades de tal atitude.
    A maioria, no entanto, saiu ainda na noite de sábado, pernoitando em casas de parentes e amigos. Os mais retardatários partiram no início da manhã de domingo, ainda com cara de sono, levando os pertences que julgavam mais necessários, já que só deveriam retornar aos seus apartamentos às 10 horas da manhã.
   Destes, alguns demonstraram irritação com a mudança forçada, o caso de dona Nelci Monteblanco, que residia no prédio 65 da praça Otávio Rocha, o primeiro fora do limite estabelecido dos 100 metros de segurança: “Tive que sair, mas acho que aqui existe muita ganância, querem demolir logo para já fazer outra loja”. 
   Quase todos os que saíram pela manhã o faziam com ar apreensivo. Alguns diziam que não havia muita certeza de que a operação desse certo, envoltos em cuidados para não pisar nos fios amarelos que já começavam a ser estendidos.
   Levando seus dois filhos e duas sacolas de roupas às mãos, dona Elisabete Fernandes disse aos repórteres, pouco antes de partir: “Estamos apenas fazendo um passeio forçado, não tomei qualquer cuidado em casa, só fechei bem as janelas para que o pó não entre. Como não temos parentes aqui, não pudemos passar a noite fora”.
    Dona Ieda Duarte, síndica do edifício Comercial Louro, uma das últimas a sair, havia transferido sua mãe para um hotel no sábado. “Só fiquei aqui porque pode ocorrer qualquer problema, como um morador se recusar a sair do prédio”.
   Dezenas de repórteres, cinegrafistas (a tevê transmitiria flashes ao vivo) e fotógrafos colocaram-se a postos desde o início da manhã: às seis horas, a área em volta foi isolada por soldados da Brigada Militar e em seguida foi feita a verificação dos prédios vizinhos, para ver se restava alguém lá dentro. Cinco viaturas dos Bombeiros se postaram na praça Otávio Rocha, junto ao hotel Alfred, além de duas ambulâncias do Pronto Socorro municipal. Cerca de 150 homens do Nono Batalhão da PM isolavam o local, sendo que, até 100 metros do local da explosão, só entravam pessoas credenciadas.  
   O público – muitos com expressão aflita ou comovida, outros com ar de gaiatos - começou a chegar já às oito horas da manhã, disputando os melhores ângulos de observação. Alguns traziam binóculo, máquina fotográfica ou filmadora. Os terraços dos edifícios mais altos estavam lotados de curiosos e até mesmo os hóspedes do elegante hotel Plaza São Rafael, nas proximidades, posicionaram-se às janelas.
   Por sua vez, em frente à igreja do Rosário os habituais mendigos e moradores de rua pareciam demonstrar pouco interesse no espetáculo, alegando que “domingo é um dia para faturar, a gente não gosta de abandonar aqui a porta, perdendo os devotos da missa”.  Um deles considerou que o medo da “improsão” e a chuva fria que teimava em cair haviam afastado muitos fiéis. Uma pedinte – descrita como uma senhora de olhos muito azuis e cabelos totalmente brancos – lembrou que havia perdido um filho em um trabalho de pedreira e que tinha horror à dinamite: “Se soubesse da explosão, nem tinha vindo”.
   Aquela era a terceira vez que se fazia uma implosão no Brasil e a primeira em que se contratava uma empresa nacional – a Triton S.A., com sete anos de experiência na área, a mesma do Mendes Caldeira, prédio demolido para dar passagem à linha do metrô paulistano. A demolidora orgulhava-se de ter absorvido o “know-how” norte-americano em tal setor, e que, em sua origem, baseava-se nas técnicas utilizadas em minas da América do Norte. 
   Segundo o engenheiro responsável e diretor técnico da empresa, Hugo Takahashi, 365 bananas de tritonita, uma variante da dinamite desenvolvida (e batizada com este nome) pela Triton, dariam cabo das fortes estruturas construídas havia quase meio século. A “tritonita”, ensinou, é um explosivo de alta velocidade, grande força de expansão, insensível a choques mecânicos, à fricção e isento de gases tóxicos. Sua formulação foi aprimorada por ele, Hugo, depois de um mês de pesquisas nos laboratórios do Exército Brasileiro, na Serra da Mantiqueira.
    Takahashi explicou que o princípio básico da implosão é cortar vigas e colunas com a finalidade de “descalçar” o prédio.  Sendo assim, as vigas que estão no centro têm que ser as primeiras a ceder, já que o edifício precisa desabar para dentro, na direção do seu ponto de equilíbrio. Na implosão da Renner seriam usados 93 quilos de tritonita – os outros 50 haviam sido utilizados nas explosões preparatórias preliminares. No entanto o técnico considerou a implosão de Porto Alegre diferente das demais já feitas pela empresa, já que desta feita eles não contavam com a orientação da planta arquitetônica da obra, queimada durante o incêndio. Assim, para evitar surpresas, algumas paredes do arcabouço restante do edifício foram antecipadamente retiradas com vistas a permitir mais espaço para a queda do material. Havia mais de quinze dias que técnicos vindos de São Paulo trabalhavam nos destroços.


    Os jornais descreveram os minutos que precederam o acionamento: às 8h40min os técnicos saíram da área cercada pelo tapume e se dirigiram para a escada da praça Otávio Rocha que fica defronte à porta do hotel Alfred, trazendo “os fios amarelos” ligados ao detonador e que comandariam todo o sistema. Às 8h50 soaram as sirenas de um carro dos bombeiros, alertando que faltavam três minutos para a explosão, algo que se repetiu dez segundos antes do final, concedendo-se assim mais três minutos adicionais de prazo. 
   Eram exatamente 8 horas e 58 minutos quando se ouviu um barulho surdo calculado em cerca de 80 decibéis, seguido de uma grande nuvem de poeira branca que envolveu toda a praça. Pequenos pedaços de pedras voaram a uma distância de até 30 metros. Do início ao fim, até o momento em que todo o prédio ruiu sobre sua própria base, passaram-se apenas seis segundos.
    A Folha da Tarde descreveu o espetáculo: “Um estrondo semelhante ao disparo de um canhão, seguido de dez outros de menor intensidade, sacudiram o local. No primeiro som, uma pequena nuvem de pó saiu do meio do edifício, que se uniu com a imensa fumaça que se ergueu na base, na sequência das detonações, escondendo a estrutura que começou a cair seccionada. Em um momento, a imensa nuvem de poeira se expandiu, alcançando uma altura aproximada de 25 metros e um raio semelhante. No minuto seguinte, começou a baixar o pó e os escombros do que antes havia sido a Renner surgiram em meio à névoa, num espetáculo surrealista”.

    Junto com o barulho das detonações foi ouvido um som de vidros quebrados das vitrinas da Comercial Louro, na esquina oposta, e da churrascaria Quero-Quero, as duas atingidas por pedras lançadas no espaço – danos estes que seriam cobertos pelo seguro que a Renner havia firmado. Os manequins e a decoração interna da loja também vieram abaixo.
   Diversos outros estabelecimentos comerciais das imediações sofreram avarias nas suas vitrines, enquanto muitas pessoas correram assustadas, incluindo um policial que depois se desculpou: “Eu fui fugindo da poeira”. Nas igrejas de São José e do Rosário, ali próximas, os padres interromperam as missas e pediram orações em favor das vítimas de 27 de abril.
   Assim que se dissipou a espessa nuvem foi-se embora também a carga de tensão humana que antecedeu todo o espetáculo. Aliviados e tentando disfarçar o nervosismo, os funcionários da empresa começaram a conversar animadamente com os repórteres e as autoridades. Hugo Takahashi comentou, satisfeito: “A implosão foi perfeita”. O major Clóvis repetiu a expressão e o secretário Jorge Englert foi ainda mais ufanista: “Isso é uma prova do adianto da engenharia brasileira”.
   Praticamente toda a cidade de Porto Alegre ouvira o barulho, semelhante ao de um avião voando muito baixo, e sua nuvem de poeira foi avistada a muitos quilômetros de distância. Para surpresa geral, minutos depois a janela de um edifício da Otávio Rocha descerrou-se para revelar expressivas faces vincadas: contrariando as ordens oficiais de abandonar o local, sem luz elétrica (cortada na noite anterior), duas velhinhas que moravam juntas trancaram-se furtivamente em seu apartamento e lá ficaram até quando tudo acabou.
   Quem também ficou – ou melhor, resistiu – foi um objeto inanimado e emblemático. Intacto, se destacava à vista entre todos os despojos e negrumes oriundos da grande explosão: o cartaz da campanha “Vivre”, aquela cujo anúncio foi publicado nos jornais no dia 27 de abril, “Basta uma vontade louca de viver, e pronto”.
   Findo o grandioso espetáculo, o público assistente – alguns vindos do interior especialmente para ver o evento - dividia reações a respeito. O pensativo José Prezer lembrava o acontecido no final de abril. “Trabalhei na Renner, revistando os aparelhos de ar-condicionado. Da implosão não deu para ver muita coisa, mas acho que isso não vai conseguir apagar aquelas imagens horríveis na história da cidade”. Já a doméstica Ereni da Silva disse ter sentido uma “sensação horrível”: “- Parecia que o mundo vinha abaixo, mas acho que foi a melhor solução, demolir aos poucos seria pior. Só o que é triste, na minha opinião, é que os corpos ficaram ali, sei que os parentes dessas pessoas não poderiam discordar, mas é triste saber que não se tem nem o corpo da pessoa depois de morta”.
   Empunhando um guarda-chuva, envolto dos pés à cabeça em agasalhos, um homem queixava-se, decepcionado: “Não deu pra ver nada, só a nuvem de poeira”. Outro senhor que havia chegado cedo ao local e depois seguiria para a missa, opinava para terceiros que “era pecado explodir corpos”, argumento um pouco divergente da opinião emitida pelo pintor Nei Vieira dos Santos, de 40 anos, casado, cinco filhos, para quem tudo aquilo era “um milagre” que já estava previsto na Bíblia, nos escritos dos profetas, nas palavras de Jesus, e só acontecera realmente “por força de Deus”.

Charge de Sampaulo, na Folha da Tarde.

    Argentino e estudante de Sociologia, um rapaz chamado Ricardo revelava-se bem menos emocional em suas impressões. Há dez anos no Rio Grande do Sul, ele considerou tudo aquilo “belo, mas triste”, e lamentou que o Brasil – capaz de, neste caso, ter uma tecnologia que nem o seu país possuía – não se valesse de técnicas tão precisas no tocante à prevenção de tragédias. Para o futuro sociólogo tais coisas não poderiam, de modo algum, ter se repetido depois do ocorrido com as Lojas Americanas. Também criticou as condições de trabalho dos bombeiros locais: “Na Argentina as escadas Magirus são altíssimas, com plataformas mecânicas a cada dez metros, abastecidas com jatos poderosos de água e com espaço para permitir a ação de pelo menos três bombeiros”.
    Perto dele, dona Zilda Ferreira, proprietária de um restaurante no centro, disse ter sentido um pouco de medo antes da implosão. “Mesmo eles dizendo que seria segura, a gente nunca sabe o que pode acontecer. Mas é triste a gente assistir uma coisa que teve o sacrifício de vidas humanas”.
   Autêntico turista da implosão, vindo de Tapes, cidade a 100 quilômetros da capital, seu Constantino Medeiros mostrava-se emocionado com o que havia presenciado – ele mal conseguia falar e preferia não se aproximar muito dos monturos. O mesmo fez o casal Sebastião José e Edi Melo, pelotenses que adiaram a sua viagem de volta a fim de assistir a cena - eles diziam “não ter palavras”.  Por sua vez as porto-alegrenses Araci Morfeu e sua filha Susana não se importaram em pagar uma corrida de táxi da avenida Azenha até a avenida Salgado Filho. Emocionadas, as duas garantiam que “o espetáculo valeu a pena”, opinião compartilhada pela estudante Márcia, que viera da Praia de Belas com seu pai - os dois chegaram pontualmente às oito horas da manhã. Márcia considerou o efeito “fabuloso”.  Bem menos entusiasmado com o que vira “em um piscar de olhos”, João de Lima, 39 anos, achava que “as coisas só têm graça no momento em que estão acontecendo”. Ele classificava a implosão como “uma coisa natural, que amanhã todo mundo já esqueceu”. Já Leo Oliveira, antigo morador do centro, traçava comparações entre o que havia presenciado naquela manhã e a lenta e cansativa demolição do Grande Hotel, dez anos antes: “Hoje em vi um edifício cair em poucos segundos. Eu lembro que o Grande Hotel foi demolido a picareta. Se existisse esse método naquela época seria tudo bem mais fácil”.
    Igualmente pragmático e, sobretudo, aliviado, Oscar Kurtz, do departamento de relações públicas das Lojas Renner, foi um dos primeiros “expulsos” da vizinhança a retornar com a família para casa, um apartamento no segundo andar do prédio número 190 da rua Doutor Flores e onde a luz ainda não havia sido religada, tanto que eles tiveram de subir com cuidado as escadas recobertas de pó e estilhaços de vidros.
   Maria Luísa, tia, lembrou da tragédia que assistiu dali mesmo e cujas lembranças não a abandonavam desde então: “Foi como ter visto o inferno na Terra. E a gente ainda fica mais triste quando sabe que no meio destes escombros existem cinzas de cadáveres. Mas a operação foi perfeita”. 
   Na verdade, foi tudo muito perfeito e técnico, “aborrecidamente técnico”, anotou um repórter. De qualquer forma a destruição dos escombros punha um termo final à busca pelos restos dos desaparecidos. Destes, três trabalhavam na própria loja e os demais eram pessoas que saíram de casa dizendo que iriam fazer compras na Renner e nunca mais retornaram.
    Na seção “Correio do Leitor” de terça-feira (o CP não circulava nas segundas), primeiro de junho, alguém, assinando com as iniciais C.E.M, escreveu a respeito da implosão e, de quebra, propôs algo insólito, ou talvez irônico, no tocante à memória das dos prováveis desaparecidos e que jamais seriam identificados:

    “Efetivada a implosão do que restava do prédio de Lojas Renner, viam-se dezenas de caminhões removendo os entulhos a fim de restabelecer, no mais curto espaço de tempo, a normalidade do trânsito do centro da cidade. Tive oportunidade de observar que grande parte do material em remoção está sendo espalhado nas obras do aterro do futuro Parque Marinha do Brasil, no Menino Deus.
   “Misturados com aquele material, existem cinzas de cerca de 15 pessoas, cremadas no mais pavoroso incêndio que Porto Alegre já assistiu. Ocorreu-me então uma ideia que apresento como sugestão ao Prefeito Municipal: espalhar cinzas humanas em parques públicos ou particulares é prática tradicional em vários países. Por que não se aproveitam as circunstâncias para erigir, na área aterrada, um mausoléu com nomes daqueles cujos corpos foram incinerados?
   “A cidade, que acompanhou compungida o seu trágico final, estaria, desta forma, prestando-lhes uma perene homenagem e seus familiares teriam um local digno para reverenciar suas memórias”.
       
    Já o historiador Sérgio da Costa Franco cobrou “mais respeito” para com os mortos e apontou o que considerava um leviano espetáculo circense, “algo quase festivo” que envolveu a implosão do edifício incendiado. Franco lamentou que sequer uma simples homenagem, ou simbólica cerimônia, fosse feita no local da tragédia.

    (...)“Mas onde ficou o respeito que se deve tributar aos mortos? Teriam esquecido que ali, sob os escombros das Lojas Renner, perduram os restos de quatorze desaparecidos, presumivelmente sacrificados no sinistro? Havia, pelo menos, três funcionários da firma, que se achavam trabalhando na ocasião do incêndio e nunca mais apareceram. E onze outras pessoas que saíram de casa declarando como destino o estabelecimento fatídico, e que não retornaram a seus lares.
   “Quatorze soldados desconhecidos da selva urbana deixaram seus corpos irremediavelmente misturados ao entulho e ao pó da festejada implosão. E não li que tivesse havido alguma homenagem fúnebre em sua memória, antes da final destruição de todos os vestígios. Nem um sino que dobrasse a finados, ou uma banda que entoasse a marcha fúnebre. Ou um simples clarim que tocasse e continência aos mortos.
   (...) “Penso, todavia, nas famílias desses mortos jamais encontrados. Imagino que se tivesse perdido algum dos meus, ainda estaria pessoalmente remexendo nos escombros, à procura de um anel ou de um sapato, de uma fivela de cinto ou de uma carteira de identidade. E que olharia aquelas ruínas como se fossem a própria sala de um velório nunca encerrado. Envio daqui a mensagem de solidariedade a essas famílias pobres e sem brasões, que não tiveram a graça de um responso pelos seus mortos. Eles morreram e foram inumados como autênticos cidadãos de uma cidade sem alma.  E de escassa piedade”.

   Com razão, familiares e amigos destes vinham tentando, sem sucesso, adiar a implosão – eram, contudo, vozes demasiado fracas para serem ouvidas.
   Bem antes disso, na noite do dia 15 de maio, sábado, uma equipe de médicos, odontologistas, legistas e peritos conseguiu identificar (ou assim afirmaram) três corpos: Luísa Rodrigues Fernandes, 30 anos, Shirley Chaves, 39, e José Francisco Nunes Cerqueira. Eles foram encontrados por volta das 14 horas por uma equipe de funcionários da Triton que fazia a remoção dos escombros. Estavam vestidos e não portavam documentos.
“Com certeza não há mais nenhum aqui”, declarou um dos técnicos, em tom definitivo.
   Captada a senha, as autoridades municipais sentiram-se à vontade para proclamar que o período de resgate dos corpos estava definitivamente encerrado: o empenho para encontrar aqueles que constavam na lista dos desaparecidos cedeu lugar aos preparativos técnicos que antecediam a implosão.
   Nesse meio tempo os operários comentavam coisas que logo ganhavam às ruas e respingavam nas redações dos jornais. Sabia-se que a quilômetros dali, em um conjunto de barracos da Vila Farrapos, zona norte da cidade, algumas crianças maltrapilhas, habituadas a brincar com o lixo, haviam encontrado coisas estranhas e malcheirosas em um terreno baldio. A despeito disso, no aterro sanitário do Departamento Municipal de Limpeza Urbana, na rua Frederico Mentz, as caçambas prosseguiam despejando peças de roupas, máquinas e tecidos quase intactos – o espólio do grande empório Renner, devidamente ressarcido pelo seguro.
   Plenamente satisfeitos com os resultados da célere demolição das sobras do antigo edifício, os diretores da Renner agora só pensavam em erigir uma nova e moderna construção em cima do mesmo valorizado local. Contratado para levantar a nova loja, o engenheiro Hugo Roque Bing se mostrava entusiasmado com a oportunidade a ele confiada, declarando textualmente aos repórteres que pretendia “tirar proveito da desgraça”, melhorando determinados detalhes da obra a ser erguida no prazo mais rápido possível. “Se for possível, trabalharemos 24 horas por dia, dia e noite, porque esse serviço tem que ser feito logo”. Para tanto, a rua Doutor Flores permaneceu mais uma semana fechada, sob o constante entra-e-sai de caminhões e caçambas.
   Abatido e amargurado, no dia seguinte à implosão, uma segunda-feira fria que já prenunciava o cinzento inverno gaúcho, seu João de Deus Carvalho, pai de Rui, o rapaz de 19 anos que alguns disseram ter visto caminhando pelas ruas de Porto Alegre na tarde do incêndio e que João pensou ser seu filho, arrumou suas malas e preparou-se para voltar à cidade de Santiago, na distante região da Campanha.
   Durante um mês – gastando o que não tinha - seu João vivera o pesadelo da dúvida, o exasperante drama de percorrer hospitais, albergues e delegacias à procura de uma figura intangível que vira, mas não vira.
   Na terça-feira, primeiro de junho, o pai receberia a notícia final: o corpo do seu filho havia sido identificado pelo pessoal do IML, onde permanecia ainda o corpo carbonizado de uma mulher de identidade desconhecida. Na manhã de 17 de agosto, três meses e 21 dias depois da tragédia da Renner, este mistério também se desfez: tratava-se de Virgilina Ayala Soares, identificada por Pedro de Paula, seu companheiro, que residia no bairro Matias Velho, em Canoas. Ela foi reconhecida por um detalhe na única parte do seu corpo que escapara ao fogo (não havia exames de DNA na época): um dos pés tinha uma unha defeituosa encravada, pintado com o usual esmalte cor de vinho.
   Virgilina, natural de São Luiz Gonzaga, trabalhava como ajudante de cozinha no restaurante Terrasse e estava inclusa na lista dos desaparecidos, que agora, oficialmente, se resumiam a 11 pessoas. A polícia, todavia, não soube explicar porque só agora, tanto tempo depois, Pedro havia finalmente identificado a sua companheira.
    Ainda constavam na lista dos desaparecidos os nomes de Kátia Rosane da Silva, Maria da Graça Boff, Maria Oliveira, José Siqueira de Campos, José Elói da Rocha, Tânia Ribeiro, Berenice Antas Lopo, Helena Morais, José Barbosa, Alberto Manomics e Carmen da Silva.

                                                                             *
    Encerrando o ano de 1976, decorridos mais de sete meses da tragédia de abril, às portas do escaldante e seco verão porto-alegrense, o Correio do Povo novamente alertava a respeito do risco de novos incêndios, lamentando velhas promessas não cumpridas e a vergonhosa morosidade da aplicação das leis já existentes. Compreensivelmente cético, o editorial do dia 11 de dezembro, sábado, concluía: “O recurso é a prevenção de caráter particular e que, embora não sendo grande, mostra-se sempre proveitosa. Apelemos, pois, para ela. Mesmo porque não há outra solução”.
      Com efeito, três dias depois, na manhã de terça-feira, mais um sinistro assustava os moradores da área central. Na esquina das ruas Sarmento Leite e Osvaldo Aranha, o velho casarão da Faculdade Católica de Medicina por pouco não ficou reduzido a cinzas.
   O ecônomo Rui Rodrigues explicou que tudo iniciara com o escapamento de gás na cozinha na lanchonete do centro acadêmico, o que foi confirmado pelos bombeiros – os quais, sem a água que faltou nos hidrantes, tiveram que captá-la bem longe. Duas velhas casas contíguas, e que serviam como moradias para os funcionários, foram quase inteiramente destruídas pelas chamas. Felizmente os três locais estavam devidamente segurados contra fatos desta natureza.    
   Um mês depois, no dia 10 de novembro, ao meio de uma tarde de quarta-feira, os mesmos bombeiros evitaram o que poderia ter sido outra tragédia, desta feita em um sobrado da avenida Benjamin Constant, zona norte de Porto Alegre. Ocupado na parte térrea pelo “Chico Bar” e na parte superior por uma república de estudantes, o local – com escadas estreitas e íngremes – só não foi totalmente consumido pelo fogo graças a rápida presença  de duas guarnições da Estação Floresta. Ao término do socorro, de uma maneira um tanto ingrata, o proprietário do estabelecimento comercial lamentou que a água vertida pelas mangueiras tenha causado, segundo ele, mais danos que o próprio fogo.
   No domingo, 28 de novembro, um prédio comercial de quatro pavimentos entre as ruas Garibaldi e Voluntários da Pátria foi quase totalmente devastado pelas chamas. Seis carros de bombeiros, um deles com escada Magirus, tripulados por mais de 50 homens, conseguiram impedir que as labaredas se alastrassem para as construções vizinhas. Conforme retrataram os jornais, pela primeira vez nos últimos meses os bombeiros não tiveram problemas com a água, já que todos os hidrantes funcionavam a contento. Um dos socorristas, porém, sofreu ferimentos na cabeça por força dos estilhaços de um botijão de gás.
   No dia 12 daquele mês, em um luxuoso apartamento em Los Angeles, Califórnia, morria o ator e cantor Jack Cassidy, de 49 anos, então um dos nomes mais populares da televisão norte-americana e que havia participado de seriados como Gunsmoke, Bonanza, Columbo e Havaí 5.0. Fumante inveterado, ele possivelmente deixara cair um cigarro aceso no tapete. O corpo só foi identificado mediante o exame de arcadas dentárias.
   Menos trágico foi o caso do milionário paulista Osvaldo Lara Vidigal, o Osvaldinho, um playboy muito conhecido por suas brincadeiras de extremo mau gosto. No final da madrugada do dia 17, no interior do restaurante Pandoro, na avenida Cidade Jardim, ele foi surpreendido por funcionários da casa quando tentava incendiar o toldo do estabelecimento, atitude nada surpreendente para quem, meses antes, desfilara a cavalo pela elegante rua Augusta. Osvaldinho também se notabilizara por lançar de um helicóptero mais de 50 quilos do efervescente Sonrisal na piscina do fechadíssimo Clube Harmonia, em represália por ter sido expulso dali ao desfilar nu em um dos bailes de carnaval.
   Voltando à realidade popular da capital gaúcha, o ano do dragão e do fogo de 1976 encerraria de forma triste para o casal Vera Lúcia e Roberto, moradores de duas modestíssimas peças localizadas nos fundos de uma obra na avenida Primeira Perimetral, zona central da cidade. No início da noite de terça-feira, 28 de dezembro, dois homens armados de paus e facas invadiram o casebre, à procura de dinheiro. Vera reagiu, apanhou e ainda levou uma facada. Na saída os ladrões derrubaram propositalmente uma das velas acesas que estava sobre a mesa, ocasionando um incêndio que devorou tudo do pouco que o casal possuía – incluindo um toca-discos.
40 ANOS DEPOIS - A tragédia do edifício Renner, com as cenas transmitidas pela televisão e pelo rádio, é lembrada até hoje pelos porto-alegrenses como um dos episódios mais traumáticos na vida da capital gaúcha. Em número de mortos, todavia, foi amplamente superada pelo acontecido na boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013 e cujas semelhanças de causas mostram que o rigor na prevenção a incêndios pouco mudou em relação a 1976. O incêndio da Kiss - também ocorrido em um dia 27 - matou 243 pessoas (um rapaz que auxiliou no resgate morreu dois anos depois, por complicações pulmonares), a quase totalidade jovens que se divertiam no local.
Estranhamente, o acontecido em Porto Alegre há quatro décadas praticamente não foi mencionado pela imprensa por ocasião do episódio da Kiss. Os telejornais, reportando a incêndios anteriores no Rio Grande do Sul, mencionaram, muito rapidamente, o incêndio de "um grande magazine" em abril de 1976, sem nomeá-lo.
Até hoje há quase um pacto não oficial para não se lembrar do que se passou naquele 27 de abril de 1976. Nenhum jornal - nem mesmo o Correio do Povo - fez qualquer matéria um ano, cinco anos ou dez anos depois, o mesmo acontecendo com outros veículos de imprensa do Rio Grande do Sul. Não há imagens do incêndio na Internet e as emissoras de televisão não as projetam em circunstância alguma - embora tais imagens existam em arquivo. Também as vítimas sobreviventes foram esquecidas.
Mesmo assim imaginava-se que por ocasião do transcurso dos 40 anos do evento - a 27 de abril de 2016 - se publicasse alguma matéria a respeito nos grandes jornais, rádios ou televisões de Porto Alegre. Nada disso aconteceu.
Houve porém uma honrosa e corajosa exceção: o jornal Metro, publicação de distribuição gratuita do Grupo Bandeirantes em Porto Alegre, trouxe, de 25 a 27 de abril, uma série de três reportagens sobre os 40 anos da tragédia, ouvindo sobreviventes, bombeiros, profissionais e testemunhas e revivendo o que tinham sido aqueles dias de angústia. De autoria do jornalista André Mags, de 40 anos, é um trabalho de exceção que merece ser lido.

Ver no Youtube ("Vitor Minas", "incêndio da Renner", "tragédia da Renner"), a entrevista com o fotógrafo  Ricardo Chaves, o Cadão, testemunha ocular do acontecido no edifício Renner: "O incêndio das lojas Renner, visto por um fotógrafo, 40 anos depois".
Foro retirada da Internet.


Outros incêndios que marcaram época:

1947: A IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO É CONSUMIDA PELO FOGO
    Quarta-feira, 22 de outubro de 1947. Eram 5h30min quando as poucas pessoas que transitavam pelo centro de Porto Alegre observaram grossas nuvens de fumaça que saíam do terceiro pavimento do prédio onde funcionava a Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do Sul, na esquina da Rua das Praia com a Caldas Júnior – o antigo e belo prédio do jornal A Federação, órgão oficial do Partido Federalista gaúcho, hoje abrigando o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Ao ver a cena o dono Restaurante Ghiloso, José Ghiloso, não teve dúvidas de que se tratava de um incêndio e imediatamente comunicou-se com o Corpo de Bombeiros. Estes chegaram em poucos minutos mas já encontraram todo o terceiro andar, onde estavam as seções administrativas e o arquivo, devastado pelas chamas. Mesmo assim conseguiram evitar que o fogo se alastrasse para o segundo e primeiro andares, nos quais funcionavam os setores de tipografia e encadernação.
    Depois de cinco horas de trabalho os bombeiros dominaram a situação, sendo dois deles feridos pelos escombros. O governador do Estado, Valter Jobim, do Partido Social Democrático, PSD, eleito em março daquele ano e que estava em viagem ao município de Santana do Livramento, lançou nota oficial lamentando a destruição do prédio e a perda completa do seu rico acervo.



NOVEMBRO DE 1949: EM CHAMAS, A JUSTIÇA GAÚCHA SOFRE UM DURO GOLPE
   Um sinistro de prejuízos incalculáveis, um divisor na história do judiciário gaúcho, um mistério nunca esclarecido: o incêndio que destruiu o Tribunal de Justiça e a Secretaria do Interior do Estado “ficará nos anais policiais da cidade como um dos mais dramáticos e ruinosos, pois que, entre outras coisas, poderá retardar e até desviar a marcha da Justiça em questões de transcendental importância”, noticiou o Correio do Povo naquela sua edição de domingo, 20 de novembro de 1949.
    O cenário era o “vetusto” prédio da Praça da Matriz, construído ainda na época do Império e chamado então, com evidente exagero, de Palácio da Justiça. O dia era sábado, 19. O horário, cinco horas, mostrava uma capital quase deserta, com raros transeuntes e noctívagos nas ruas e alguns entediados motoristas de táxi que faziam ponto na praça. Foram eles os primeiros a avistar um “tênue fio de fumaça” que escapava do edifício e rapidamente se transformava em “grossos e assustadores rolos negros que irrompiam pelas frestas do portão principal e pelo teto, já então lançando para o ar um cone de chamas”, conforme descrição do Diário de Notícias.

CP

   Por volta das 5h15min a parte principal da construção parecia “um vulcão em plena ebulição”. Às 5h30min mais nada havia a se fazer. A fumaça, o crepitar do fogo, o desabamento de vigas, ofereciam um “espetáculo dantesco” aos circunstantes. 
   Mais de dez horas depois, auxiliador por populares e voluntários, os bombeiros das quatro unidades que compareceram ao local ainda apagavam os últimos focos. Comandados pelo tenente Jarci de Queiroz, eles perderam a batalha por questão de minutos: já no início do combate um dos hidrantes falhou, permitindo que as chamas se alteassem novamente de maneira incontrolável. Pior mesmo foi a falta de uma escada mecânica que atingisse o segundo andar, atestando a precariedade dos equipamentos da corporação.
SEM VIGILÂNCIA – A despeito de ser um dos mais vitais prédios públicos do Estado, o Tribunal da Justiça e a Secretaria do Interior estavam sediados em instalações acanhadas que datavam de 1870 e nem de longe condiziam com a sua importância.  Juízes chegavam até mesmo a fazer fila a fim de concederam audiências em suas poucas salas e dezenas de advogados que por ali circulavam, bem como o quadro de funcionários permanentes ou dos cartórios, acomodavam-se como podiam em exíguas e toscas repartições. Outro fato lembrado dizia respeito à absoluta ausência de vigilância, já que não havia sequer um guarda destacado para a ronda da noite.
   Dias antes um funcionário havia notado pegadas suspeitas nos seus corredores e que convergiam justamente para o local onde o fogo supostamente teria iniciado. Também se constatou que havia massa na fechadura, indicando talvez que alguém havia tirado um molde da chave para entrar no local sem ser percebido. Tais hipóteses, no entanto, caíram por terra quando os técnicos do Instituto de Polícia Técnica concluíram que o foco inicial do incêndio teria sido, possivelmente, a sala de cafezinho da Secretaria do Interior: lá existia um “bico de gás” e que teria ficado aceso durante a noite.
    Quanto aos prejuízos, não somente para a Justiça como também para o funcionamento da Secretaria do Interior, foram imensos e dificilmente mensuráveis. Um bombeiro relataria mais tarde a um repórter que havia, por sorte, salvado o dossiê de um processo volumoso. Ao entregá-lo a um funcionário do Forum, este, ao ler na capa o nome de uma parte envolvida, jogou os documentos de volta às chamas... Um dos mais importantes cartórios de crime – onde estavam processos sobre a colocação de bombas Molotov e outros que diziam respeito ao Partido Comunista Brasileiro (colocado na ilegalidade apenas dois anos antes pelo governo Dutra) foi totalmente destruído, a despeito de ser um dos últimos a serem atingidos pelo fogo. Outros milhares de documentos e ações foram igualmente consumidos ou seriamente afetados. Processos de heranças familiares, partilhas de bens e inúmeros vindos do interior do Estado, em grau de apelação, também acabaram destruídos, bem como 40 mil cruzeiros em dinheiro – queimados ou, talvez, surrupiados.
    Os prejuízos culturais não foram menores. A queima total da biblioteca do Palácio da Justiça foi uma das consequências mais irreparáveis para a cultura do Estado, já que esta era considerada uma das mais completas do País em sua área, com obras raras do direito e sentenças antigas lavradas em latim e caprichosamente encadernadas. Já os documentos de casamentos – cujas cerimônias cíveis aconteciam em uma das dependências do edifício – não foram afetados pois eram guardados em um edifício próximo e não no Tribunal. Até mesmo os matrimônios programados para aquele dia, sábado, não precisaram ser cancelados, apenas sendo transferidos para os cartórios do registro civil.
   A situação da Secretaria Estadual do Interior – que funcionava em parte do casarão que dava para a Rua Riachuelo – tinha agravantes e foi descrita como um “prejuízo incalculável” devido aos processos que por ali transitavam – convênios entre o Estado e prefeituras do interior, bem como com vários corpos consulares (Porto Alegre, na época, abrigava muitos consulados) e a junta comercial. De parte de tais documentos dependiam a Repartição Central de Polícia, o Departamento das Prefeituras Municipais, o Arquivo Público, a Junta Comercial, a Brigada Militar e até mesmo a Biblioteca Pública ali vizinha.
    Com a destruição do edifício do Tribunal de Justiça os serviços judiciários gaúchos sofrerem um desarranjo que levou meses para ser reparado, se é que isto era possível. Certamente intencional, o incêndio foi objeto de muitas discussões nos meses seguintes. O Diário de Notícias insistiu em seu caráter criminoso, muito embora a deficiente polícia técnica da época não tenha conseguido provar tal fato. Meses depois, no ano de 1950, um tipo estranho, um vigarista e mitômano de naturalidade espanhola, o “Major Aragón”, e que estava preso em São Leopoldo, bradou aos jornalistas que havia sido ele o autor do sinistro. Mas a história era por demais inverossímil para ser levada a sério. No dia 23 de agosto de 1952, sábado, tal personagem foi assassinado a tiros por outro detento no pátio da Casa de Correção – um crime encomendado ou talvez motivado por ciumeiras ou rixas com outros detentos.

    Em 1959 Manoel Frederico Gonzales de Aragon estava preso em São Leopoldo, identificado com outro nome. Acusado de estelionato, ele já tinha passagens por outros presídios brasileiros, entre os quais o de Curitiba, de onde fugira usando uma farda de major do Exército – o que lhe valeu a alcunha de “major Aragón”. Nascido na Espanha, calvo, ar inofensivo e de boa cultura, Aragón era um vigarista especialista em criar “sociedades anônimas”, levando todo o dinheiro arrecadado fraudulentamente. Em estranha coletiva convocada pelas autoridades policiais ele afirmou ter fugido da prisão do Vale dos Sinos com a finalidade de roubar um famoso processo criminal para assim chantagear as partes interessadas e conseguir muito dinheiro. Também disse ser o autor do incêndio da Repartição Central de Polícia – nas duas versões, poucos repórteres de fato acreditaram no que afirmava. Mais tarde o Major Aragon alegou ter sido torturado pela polícia para que assumisse a autoria dos dois sinistros – algo também questionável.
 
   O certo é que, se houve muitos prejudicados com o episódio (incluindo quem trabalhava no Foro e perdeu o emprego e fonte de rendas), outros tantos também auferiram grandes vantagens com a destruição de processos e acusações. Mais tarde se tentou estabelecer uma justificável ligação entre o incêndio do Tribunal, bem como o da Repartição Central de Polícia, com um grande aumento da criminalidade em Porto Alegre no ano de 1950.
   Até a construção de uma nova sede para o judiciário rio-grandense, os cartórios e repartições passaram a funcionar de maneira improvisada em diferentes locais da cidade, tais como o grupo escolar Paula Soares, na rua General Auto, e em casas da rua Duque de Caxias, onde antes funcionava a Secretaria da Agricultura.  No mesmo local do prédio incendiado seria construído mais tarde o Foro Central da capital dos gaúchos.

   
1950: MILHARES DE PROCESSOS ARDEM NA REPARTIÇÃO CENTRAL DE POLICIA
    Se havia realmente um incendiário a postos para queimar prédios públicos, tal pessoa, ou pessoas, sabiam muito bem o que queriam: depois do Tribunal de Justiça, foi a vez da Repartição Central de Polícia, na rua Duque de Caxias, outro sinistro histórico que destruiu milhares de inquéritos policiais e quase matou mais de 50 presos desesperadamente trancafiados em um dos xadrezes da construção. Foi mais um duríssimo golpe nos serviços de segurança pública do Estado e seria apontado como uma das causas do grande aumento da criminalidade registrado na Capital aquele ano.
    O incêndio da RCP aconteceu também em um sábado, às 2 horas da madrugada de 14 de janeiro de 1950, transcorridos apenas 55 dias depois do acontecido com o Foro, com a diferença de que se alastrou de maneira muito mais violenta e causou temores redobrados em toda a população do centro, aterrorizada com a sequência de explosões de granadas de mão armazenadas no depósito de munições e com a possibilidade ainda mais dramática de tudo aquilo, inclusive os colégios femininos situados nas vizinhanças, como o Sevigné, ir pelos ares caso as chamas atingissem um depósito de gasolina e diesel existente nos fundos do prédio, sem contar um grande paiol de explosivos.  No final, felizmente, os danos foram somente materiais e judiciários, pois ninguém morreu queimado.
   Dos 52 presos na cela cujo cadeado teve que ser arrombado a pé-de-cabra apenas um, detido por vadiagem, fugiu. A população, por sua vez, acordou sobressaltada e surpresa, receando, quem sabe, a eclosão de um movimento militar ou de uma nova revolução: o estampido das granadas, acomodadas em um cofre, e o barulho de balas explodindo, bem como a altura das chamas, faziam prever pelo pior, até mesmo uma guerra. Afinal, na Duque, na parte alta da cidade, hoje considerada centro histórico, está também o Palácio Piratini, sede do governo estadual.
    Tal como o casarão do Tribunal de Justiça e da Secretaria do Interior, o prédio da chefia da Polícia também era quase um pardieiro, uma construção antiga, repleta de paredes, divisórias e tabiques de madeira servidos por arremedos de instalação elétrica. Sem dinheiro e endividado, assim como hoje, o Estado gaúcho, comandado por Valter Jobim, havia interrompido ou adiado a construção ou reforma de grande parte dos seus prédios públicos. Pedindo providências para solucionar o problema, o jornal Correio do Povo, ao noticiar o fato, lembrava que, caso isso não acontecesse e não se desse fim a casos daquela natureza, “ninguém mais convencerá a opinião pública que esses eventos não são provocados por mãos criminosas, ou que se verificam pura e simplesmente devido à negligência e ao indiferentismo do poder executivo”.
PREJUÍZOS INCALCULÁVEIS – O fogo teria começado na parte alta, no sótão do segundo andar do prédio, provavelmente em uma sala que servia de depósito de colchões e papéis, o que facilitou extraordinariamente a propagação das chamas, percebidas somente por alguns policiais de plantão e por um carpinteiro que dormia ao lado. Um deles comunicou o fato ao inspetor-chefe, Nuno Alves Guimarães – neste momento as chamas já saíam pelas janelas. O delegado Geraldo Monteiro Alves, que estava de plantão momentos antes e fora deitar em uma das camas, acionou os bombeiros, os quais, mesmo chegando em grande número, pouco puderam fazer.
    O incêndio da Repartição Central de Polícia consumiu milhares de processos, destruindo sobretudo aqueles que diziam respeito aos réus soltos afetos aos “atentados à propriedade”, os quais foram beneficiados pelo fato de não haver cópias dos documentos, ao contrário dos dossiês dos réus presos. O Instituto de Polícia Técnica também amargou grandes prejuízos de equipamentos e de material, embora o seu responsável, José Lubianca, garantisse que 95% dos prontuários criminais estavam apenas chamuscados nas bordas e poderiam ser aproveitados. De tudo o que havia no plantão daquela noite apenas se conseguiu salvar duas máquinas de escrever, duas mesas, duas cadeiras e o livro de ocorrências.
     Bem ao espírito da época (Guerra Fria e polarização ideológica em um ano de eleições presidenciais no Brasil), as autoridades da segurança pública estadual se apressaram em tentar jogar a culpa nas costas de militantes do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, o quarto mais importante e votado no país, proscrito recentemente pelo general e presidente eleito Eurico Gaspar Dutra. O líder comunista Flávio Argolo, um cirurgião dentista que passava férias na praia de Capão da Canoa com sua família, foi preso como suspeito e teve de recorrer a advogados, os quais impetraram um habeas-corpus a fim de libertá-lo. As cópias do processo contra ele, trancadas no cofre do gabinete da chefia de Polícia, mostraram-se intactas quando se abriu o cofre, na quinta-feira, 19. Tal peça, mesmo queimada e avariada, ainda assim resistiu.
    Meses mais tarde o mesmo “Major Aragón” – aquele que se declarou o incendiário do Tribunal de Justiça - reivindicou a autoria do fato.   


NOVEMBRO DE 1951: O MISTERIOSO FOGO QUE DESTRUIU O COLÉGIO JULINHO  
    Talvez hoje, em meio a tantos fatos ruins e à indiferença geral, a destruição de um grande colégio público não causasse comoção a Porto Alegre. Porém no início dos anos cinquenta o ocorrido com o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, consternou verdadeiramente os habitantes da Capital, zelosa dos seus valores e orgulhosa do alto padrão educacional de um estabelecimento modelar que simbolizava o que então o Rio Grande do Sul tinha de melhor: o seu relativamente mais avançado padrão civilizatório frente aos demais Estados e o genuíno orgulho que isso trazia ao povo gaúcho.
   Público e gratuito, com um ensino considerado de excelência, o colégio dava acesso direto ao terceiro grau e nele estudaram, entre tantos, nomes que depois de tornaram famosos ou notórios em muitas áreas, incluindo Leonel Brizola, Paulo Brossard, Paixão Cortes e Barbosa Lessa – uma elite intelectual e pensante vinda democraticamente das muitas camadas da sociedade gaúcha. Foi também no Julinho, em 1948, que iniciou o Movimento Tradicionalista Gaúcho, embrião dos milhares de CTGs que se espalham pelo mundo.  

CP

    O incêndio foi marcado pela forte suspeita – na verdade, uma certeza – de ter sido um ato intencional e premeditado, “praticado por mãos criminosas”, como disse o Correio do Povo, ou por um “piromaníaco insano”, um “perigoso tarado que vê seus instintos doentios despertar em determinadas épocas do ano”, conforme escreveu o Diário de Notícias.  Era, desde 1947, o quinto grande prédio público a queimar desta forma. Em nenhum deles o inquérito policial apontou a autoria e muito menos se estabeleceu uma ligação direta entre os fatos.
    A destruição daquela que era considerada a unidade de ensino mais avançada e democrática em todo o Estado aconteceu na primeira hora da madrugada de 16 de novembro de 1951, sexta-feira, ao final do feriado da Proclamação da República, uma noite ventosa na cidade que ainda mal se recuperara do renhido combate eleitoral, no dia primeiro, entre Leonel Brizola (PTB) e Ildo Meneghetti (PSD) para o cargo de prefeito municipal – Meneghetti virou o placar e venceu ao final com diferença de apenas mil votos. Os dois, aliás, engenheiros formados pela Escola de Engenharia e ligados à história do Julinho. Curiosamente, naqueles dias uma greve geral mobilizava os estudantes universitários de todo o Brasil. Radicalmente politizado, o efervescente Julinho repercutia internamente isso tudo.
   Também naquele início do ano de 1951 os alunos haviam deflagrado uma greve pedindo o cancelamento da decisão de separar os rapazes das moças – um prédio da rua Doutor Flores já teria sido alugado para abrigar as alunas, relatou o radialista, ex-vereador e então aluno Lauro Hagemann em depoimento para o livro Julinho: Cem Anos de História, organizado pelos professores Paulo Ledur e Otávio Rojas Lima (Editora AGE) no ano de 2000.
   Motivos ou pretextos à parte, o certo é que em poucas horas a imponente construção, inaugurada em 1908 na avenida João Pessoa, defronte à Escola de Engenharia, ao qual era ligada, e à vizinha Faculdade de Direito, veio abaixo devido à espantosa rapidez das chamas. Os prejuízos, porém, eram ainda bem maiores para toda a cultura do Rio Grande do Sul, já que da biblioteca – tal qual a do Tribunal de Justiça, com valiosíssimos e raros volumes de livros dos séculos XVIII e XIX – também nada havia restado. O mesmo aconteceu com o museu, um dos mais completos do Rio Grande.
    Dias depois o jornalista Wilson Müller, 22 anos, ex-aluno da instituição, publicou no Diário de Notícias uma crônica em que lamenta “o que nunca imagináramos pudesse acontecer”: “(...) Quem não conheceu o Julinho? Naquele casarão velho da João Pessoa formou-se a consciência democrática de milhares de gaúchos. A alma farroupilha vibrou dentro do Colégio Júlio de Castilhos, desde 51 anos passados, quando, no ofuscar do século passado e no dealbar do presente, levantou-se o nosso colégio como a barreira invencível do espírito indomável do estudante gaúcho. Quem por ali passou jamais o esquecerá. Quem viveu algum tempo no “Julinho” sempre dirá, com um orgulho que só nós podemos ter: “Eu estudei no Julinho”. Basta isso para endossar a vida estudantil de um homem. Assembleias barulhentas e tumultuosas. Greves contra os professores. Abaixo-assinados de protesto contra esta ou aquela medida. Discussões intermináveis sobre a teoria do conhecimento e sobre a quarta dimensão. Passeatas de regozijo e de protesto. Exames orais e escritos feitos sem conhecimento da matéria. “Colas” e provas anuladas. Colóquios amorosos nos corredores, às escondidas dos professores e perto dos professores. Fim do curso e uma sincera homenagem aos que nos guiaram lá dentro. Um vestibular. A faculdade. Um agradecimento eterno. Lodeiro, Melo, Marieta, Tristão, Abílio, Ripol, Ataualpa, Zilá, Damasceno, Morais, Orlando, Paixão e o Machadinho são nomes que ligaram nossa mocidade à vida futura e são a garantia do patrimônio moral do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Adeus, Julinho...” 
SINISTRO ANUNCIADO – Na realidade sabia-se que, mais cedo ou mais tarde, o colégio pegaria fogo – só não se poderia precisar em que circunstâncias isso ocorreria. Uma simples questão de tempo e de oportunidade.
   Com efeito, por diferentes vezes o Julinho esteve às voltas com malogradas tentativas de incêndio, a última das quais na quarta-feira, 14. À noite, nessa data, uma das serventes encontrou quebrados os vidros da porta da secretaria, situada ao lado do prédio principal. Dentro, jogado no chão, estava um pano embebido em gasolina que só não pegara fogo devido à forte umidade decorrente das chuvas caídas no dia anterior.
   Ciente do perigo que rondava a instituição, o diretor José Lodeiro solicitou policiamento às autoridades estaduais, algo que deu muito a falar nos dias seguintes: a Polícia Civil, em nota emitida por seu chefe-geral, Germano Sperb, confirmou que recebera o pedido e havia designado um guarda-civil para o policiamento do local, mas que este, dias antes, havia sido dispensado da tarefa pela direção, embora estivesse presente na noite do incêndio – tanto que teria sido o primeiro a comunicar o fato à polícia e aos bombeiros. Lodeiro, por sua vez, desmentiu categoricamente tal afirmação, garantindo que, por sua própria conta, o vigilante deixara de comparecer ao serviço, fazendo com que ele, Lodeiro, costumasse vistoriar o colégio antes de dormir – o diretor residia nas proximidades. O Grêmio Estudantil, por sua vez, saiu oficialmente em apoio à direção e acusou a polícia de “ter colaborado positivamente com o incêndio”, conforme nota assinada pelo presidente do Grêmio, Onofre Quadros. Também o resultado do trabalho da perícia foi diferente da versão de muitas testemunhas e até mesmo dos bombeiros. Para a perícia o sinistro poderia ser, quem sabe, ocasional, enquanto direção e estudantes batiam-se pela tese única da intencionalidade – certamente a mais plausível. O certo é que a chave-geral da energia elétrica havia sido desligada durante o feriado, dia em que o prédio estava deserto, e isso afastava a possibilidade de um curto-circuito interno.
    Segundo testemunhas, o fogo foi avistado das ruas e residências vizinhas à meia-noite de quinta-feira ou aos quinze minutos da madrugada de sexta-feira, quando as chamas já tomavam conta do telhado, espalhando-se com incrível rapidez em virtude dos ventos que sopravam. As mesmas pessoas afirmaram ter visto três focos na cumeeira – nas extremidades e no meio da cobertura, onde se elevava a bela cúpula central. Mais tarde, em depoimentos aos jornais, alguns estudantes (dentre os primeiros a ver as chamas) negaram que isso fosse verdadeiro e asseguraram ter visto apenas um único foco. Em um “espetáculo contristador”, os repórteres anotaram que as folhas de zinco que cobriam as cúpulas “desprendiam-se em brasa sobre a cerca de grades de ferro pontiagudas”.
     Durante quatro horas cerca de 50 bombeiros vindos principalmente da estação da avenida Júlio de Castilhos enfrentaram algumas dificuldades operacionais, já que o hidrante mais próximo mostrou-se dotado de pouca vazão de água e foi suprido pelos demais instalados na avenida, defronte ao necrotério e também na esquina da rua Avaí. Quatro veículos da corporação foram posicionados nas imediações enquanto uma grande multidão, vinda de várias partes do centro, se comprimia em volta a fim de presenciar aquele momento histórico. Grossos rolos de fumaça chamavam a atenção dos transeuntes que passavam pela João Pessoa, nas proximidades da antiga praça do Portão. Chefiando a operação de combate às chamas estava o oficial-aspirante Jesus Linares Guimarães – anos mais tarde comandante geral da Brigada Militar e participante das ações do edifício Renner em 1976.
   Depois de muitos esforços os bombeiros conseguiram isolar o local e evitar a propagação do fogo para a Escola de Engenharia – que teve apenas duas janelas atingidas. Linares disse ter estranhado a celeridade com que as chamas se espalharam por todo o segundo pavimento, mas deu graças pelo fato de um dos seus soldados ter escapado por pouco do desabamento de um dos tetos – se atingido, seria morte certa.
   Ao término de tudo, dezessete salas de aula, mais a biblioteca e o museu, haviam se transformado em cinzas fumegantes. Por sorte quinze valiosos aparelhos de microscópio e outros de física, emprestados dias antes à Faculdade de Filosofia, escaparam ao cômputo dos prejuízos gerais, calculados em cerca de 10 milhões de cruzeiros. No dia seguinte, entre tantos curiosos ilustres, visitaram o local o governador Ernesto Dorneles, o secretário da Educação, Júlio Marino de Carvalho, o professor Mabilde Ripoll, superintendente do ensino secundário, e o reitor da Universidade do Rio Grande do Sul, professor Alexandre Martins da Rosa. O governador prometeu a imediata construção de um novo prédio para o Julinho (que já fazia parte dos planos), desta vez localizado na praça Piratini, também na avenida João pessoa. Enquanto isso as aulas passariam para o prédio do Arquivo Histórico do Estado, na Riachuelo.
    Felizmente ninguém morreu ou saiu seriamente ferido em consequência do incêndio do Julinho naquela noite-madrugada de quinta para sexta-feira. Porém uma semana depois, no início da tarde de 26 de novembro, segunda-feira, o operário Antonio José Nascimento, 27 anos, branco, casado e residente no Passo da Cavalhada, na Capital, pisou em falso quando trabalhava na demolição do primeiro andar. Ele caiu de uma altura de cinco metros e morreu no Hospital de Pronto Socorro, minutos depois.
NOVO PRÉDIO – No dia 29 de junho de 1958, domingo, em meio a “brilhantes festejos”, o governador Ildo Meneghetti inaugurou oficialmente o novo prédio do Julinho, na praça Piratini, muito embora este, na prática, já estivesse em funcionamento. O local tinha capacidade para cinco mil alunos e dava fim ao período no precário casarão do Arquivo Público.
    A data fora escolhida por ser o dia de aniversário de Júlio Prates de Castilhos, patrono da instituição, e também dia do padroeiro do Rio Grande do Sul, São Pedro.   
  

NOVEMBRO DE 1954: O INCÊNDIO DA “CASA DOS HORRORES”
   Um “plano diabólico” para a fuga em massa de mais de mil detentos, “celerados da pior espécie” – assim os jornais resumiram um dos fatos mais marcantes na história de Porto Alegre, o incêndio na Casa de Correção, o “horrendo cadeião da Ponta do Gasômetro”, a “casa do inferno”, a “casa dos horrores”, o “tétrico casarão”, ocorrido três meses depois do quebra-quebra pela morte de Getúlio Vargas e mais um marcante episódio no capítulo dos grandes sinistros em prédios públicos registrados na década de cinquenta na capital gaúcha.
    Era o dia 28, último domingo do mês de novembro de 1954, nem haviam transcorridas duas semanas da eleição de Ildo Meneghetti como novo governador rio-grandense e dois meses da inauguração oficial do estádio Olímpico, do Grêmio, quando o complexo prisional às margens do Guaíba ardeu em chamas durante quase 20 horas, expelindo rolos de fumaça que podiam ser avistados dos quatro cantos da cidade. Cidade que temeu seriamente pela própria sorte: caso tal tentativa de fuga tivesse dado certo as consequências seriam imprevisíveis para os seus quase 500 mil habitantes.
    Tudo começou às 18h30min, logo após o encerramento do horário das visitas na rebatizada “Penitenciária Industrial”, já então considerada uma das piores do Brasil, uma “masmorra medieval” com capacidade para 300 presos, porém superlotada por mais de mil.
   O fogo irrompeu na cela 72, no segundo andar, na parte dos fundos da construção, e se propagou com uma rapidez, atingindo também a padaria e a tipografia – até porque tudo havia sido planejado por um grupo de presidiários, os quais praticamente controlavam o funcionamento interno da instituição, tal como hoje dividida em facções criminosas.
   Desde o mês de agosto daquele ano nada menos do que três princípios de incêndios e de motins já haviam ocorrido ali e a deflagração e outro parecia simples questão de tempo. No dia anterior os agentes penitenciários haviam encontrado no forro de uma das celas um colchão, um monte de palhas e oito litros de gasolina. O clima entre os detentos era, mais do que nunca, de extraordinária tensão – os nervos estavam à flor da pele.
    No entardecer daquele domingo, encerrado o horário de visitas, depois da conferência dos detentos, um grupo destes recusou-se a voltar às celas – prenunciando o que viria a seguir, eles só concordaram com isto sob a promessa dos agentes de que estas permaneceriam abertas. Com o início repentino das chamas outro agrupamento passou a percorrer as demais celas: armados de facas, facões, adagas e porretes, obrigaram os outros detentos a também incendiar tudo.
   Em seguida, em “estrondo”, todos começaram a correr pelos corredores em direção à parte térrea e ao portão, forçando a saída. Segundo a direção, havia 1.093 apenados no local, contra não mais do que 40 brigadianos e agentes penitenciários para contê-los. Os bombeiros chegaram em poucos minutos, vindos da estação central, na praça Rui Barbosa, enquanto homens da brigada e um grupo de socorro da Guarda Municipal, comandados pelo delegado José Henrique Mariante, detinham os revoltosos a golpes de cassetete e bombas de gás lacrimogêneo, a muito custo impedindo que chegassem à rouparia: se isso acontecesse eles teriam acesso a roupas civis e poderiam se misturar até mesmo às autoridades e fugir às ruas.
   Estabeleceu-se no pátio um “cinturão” de segurança, com duas linhas de praças da Brigada armados com fuzis-metralhadoras e soldados com baionetas caladas, que “calçavam” e imobilizavam os presos contra as paredes. Nesse trabalho destacou-se o tenente Cantalício Camargo, comandante do destacamento local. Com poucos recursos, e dando apenas três rajadas de metralhadora para o alto, ele e seus homens enfrentaram a maré humana de mais de 500 presos, conseguindo fazer – oficialmente sem vítimas fatais – que recuassem.
    A raivosa determinação de destruir de vez o velho cadeião, queimando-o inteiramente, e a certeza de que o plano havia sido elaborado com a participação de gente de fora das grades, foram evidenciadas pelo fato de que, no mesmo instante em que as chamas se propagavam às margens do Guaíba, os bombeiros haviam se deslocado para combater outra ocorrência em um matagal do morro de Teresópolis, adiante do final da linha dos bondes. Segundo os repórteres, de lá divisava-se perfeitamente o interior do presídio, o que levantava a suspeita de que a pessoa que ateou fogo no terreno pudesse ser comandada à distância pelos detentos, quem sabe através de um jogo de espelhos. Do mesmo modo estes poderiam, das janelas da Casa, avistar a chegada dos caminhões. Outro fato sintomático foi a depredação antecipada da bomba de água do Cadeião.
PÂNICO NA CIDADE – A possibilidade de que cerca de mil homens conseguissem fugir e se espalhassem pelas ruas da cidade, tomando a população de refém, a visão dos rolos de fumaça, o cair da noite, bem como a péssima fama da instituição prisional, a promiscuidade, o histórico de fugas e os fatos bárbaros que lá ocorriam geraram um evidente clima de medo entre os moradores da capital, os quais, naquele entardecer de domingo, encerravam o seu pacato e modorrento final de semana.
     Falava-se inicialmente em muitos mortos e em sangrentas cenas de ajuste de contas entre os próprios presos, com inúmeros esfaqueamentos e até degolas. Um preso disse aos repórteres tem visto uma cabeça jogada dentro de um vaso sanitário – algo não confirmado depois. Todavia, pelas versões oficiais, não só nenhum sentenciado teria conseguido se evadir como ninguém, fosse apenado, policial ou funcionário, morreu durante ou depois do episódio.
   Aos poucos, em contrapartida, surgiam relatos de alguns funcionários que enfrentaram o perigo das chamas e da violência para retirar detentos que ficaram presos em suas celas e outros, doentes (a maioria com tuberculose) hospedados na enfermaria e mesmo os inválidos ou com dificuldades de locomoção.
     Na edição de terça-feira, 30, jornal Folha da Tarde, na matéria “A Trama Sinistra dos Presidiários”, relatou o clima depois do incêndio, quando a situação já havia sido dominada, algo que revela o inferno humano que caracterizava o local: “Em todas as fisionomias dos presos notava-se intensa satisfação. Riam e pilheriavam já que, para eles, qualquer situação será melhor do que a da Casa de Correção. Um presidiário adiantou-nos que há muito vinha entrando gasolina no presídio, em pequenas quantidades, e que em todas as celas havia um foco preparado ao qual foi ateado fogo quando deram alarme na primeira, a 72”. Já o Correio do Povo lembrou que “foi um sinistro dos mais terríveis de que se tem notícia” e que se o plano desse certo “Porto Alegre estaria até agora em pânico, com suas ruas invadidas por homens para quem os conceitos de vida e de respeito ao próximo pouco ou nada significam”.

Folha da Tarde

   Em grandes operações de segurança os detentos foram sendo realocados em diferentes locais – quartéis da brigada, delegacias de polícia, no Instituto Psiquiátrico Forense (manicômio judiciário) e, principalmente, na Colônia Penal Daltro Filho, na localidade de Mariante, município de Venâncio Aires, para onde cerca de 300 deles foram conduzidos em barcaças do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, DAER – a viagem pelo rio Jacuí demorava cerca de quatro horas, com os revoltosos vigiados por soldados armados de metralhadoras. O policiamento na colônia agrícola já havia sido fortemente reforçado por uma companhia do primeiro Batalhão de Caçadores.  
   Na Casa de Detenção permaneceram 550 homens, abrigados em barracas, em pavilhões não totalmente queimados ou recolhidos aos fétidos e úmidos porões, o “buraco”, enquanto os mais colaborativos voltavam às suas funções habituais. Para a oitava Delegacia de Polícia, em Petrópolis, seguiram os elementos mais perigosos, entre os quais aqueles apontados como os líderes da rebelião. O chefe do Departamento de Institutos Penais do Estado, Neu Reinert, ordenou o isolamento total do presídio, proibindo qualquer tipo de visitas. O desespero maior, no entanto, provinha dos familiares dos presos, concentrados em frente e que imploravam por notícias.
    Em depoimento oficial, um preso chamado Vavá – ou Gaspar Ávila da Silva, líder de quadrilha - afirmou ter sido ele o principal líder do movimento, junto com Washington Aires, o Paulistinha, e Nelson Bassani, os três agora recolhidos aos xadrezes da Oitava DP. As declarações de Vavá surpreenderam as autoridades – até mesmo ao secretário do Interior e Justiça, Theobaldo Neumann, e o diretor do presídio, Aires Rodrigues da Cunha - já que era um preso considerado de bom comportamento. Outro detento chamado Veríssimo Caduri Leal também assumiu a liderança.
ESCOLA DE VÍCIOS – Em maio de 1971, quando o antigo Cadeião já tinha vindo abaixo, o repórter Isaías Valiatti, durante anos setorista policial da Caldas Júnior e nome reconhecido da imprensa gaúcha, escreveu um interessante artigo intitulado “Casa de Perversão”:
   “Felizmente nem sequer o portão da medonha masmorra que tinha o nome de Casa de Correção ficou de pé para lembrar um passado indescritível. Vamos e venhamos, para que conservar a memória de coisas horríveis? O mundo talvez não se torne ideal com a supressão de imagens nefandas, mas pelo menos a nova geração não terá de perguntar: “O que é aquilo ali?” E a resposta, para ser correta, seria longa, chocante e incompreensível. Não tenho engenho e arte para descrever o que vi e ouvi na medieval cadeia ao longo de tristes anos de reportagem policial para o Correio do Povo e, em certa época, para a Folha da Tarde. Espetáculos que superavam a imaginação de Hitchcock e cenas que nem Dante conseguiu traçar em seu Inferno repetiam-se de tempos em tempos, entre um motim e um incêndio provocados pelos próprios detentos. Paradoxalmente, a Casa de Correção era, em verdade, a escola dos vícios e das anomalias que só uma Casa de Perversão seria capaz de “ensinar” e praticar.
   “Por mais de uma vez, através das colunas deste jornal, chamei, juntamente com outras vozes que terminaram ecoando, contra o claustro imundo e revoltante que era a Casa de Correção. Inadequada sob todos os aspectos, contrariando os mais elementares princípios consagrados pela moderna penalogia, e sempre superlotada – chegou a ter quase 1.500 presos, quando sua capacidade real era para 300 – foi preciso um grande incêndio com um motim sem precedentes, que me coube documentar à época, para chegar-se à conclusão acaciana de que a velha cadeia deveria ser demolida para começar da estaca zero.
   “A penitenciária estadual, localizada no Partenon, pode ter falhas gritantes ou deficiências que devem ser eliminadas, mas jamais chegará a ser o que foi a Casa de Correção. Há problemas de estrutura de funcionamento, de vigilância e de métodos de recuperação que estão sendo encarados em seu devido tempo, mas, creio eu, jamais se encontrará naquele presídio as cenas e as ocorrências tão comuns e freqüentes na famigerada Casa de Correção.
   “Vibrei quando, em 1955, o então governador do Estado presidiu a cerimônia que assinalou a demolição simbólica do vergonhoso presídio. Era o primeiro passo decisivo para riscá-lo definitivamente do mapa da cidade. Era o princípio do fim das celas permanentemente inundadas, pois se localizavam abaixo do nível do Guaíba. Os chamados “republicano” e “democrata”, que num período não muito recuado da nossa história política serviram para castigar os “rebeldes”, iriam desaparecer, juntamente com as amoralidades, os assassinatos com requintes de barbarismo, as negociatas entre presos e funcionários, o tráfico de tóxicos e de álcool, enfim, as bestialidades entre seres que cada vez mais se degradavam num processo crescente de sordidez humana, típico do submundo que era a Casa de Correção.
   “A despeito de tudo isso, surgiram opiniões em favor da manutenção de algo que lembrasse o cárcere e as muralhas que o cercavam. Serviria – argumentavam – como motivação histórica ou turística.
   “Mas eu não estava só. O venerando e bondoso padre Pio, por longos e tenebrosos anos o capelão do extinto presídio, também admitia uma única saída: a destruição total, o arrasamento da Casa de Correção. As razões, como vemos, dispensam maiores comentários.
    “Conservar a imagem da Casa de Correção – respeitadas as opiniões em contrário – seria o mesmo que guardar as imagens de atrocidades que fazem a humanidade recuar no tempo e no espaço. Seria a negação, a antítese do próprio homem”.
  
   Bem antes da publicação deste artigo, em janeiro de 1955, ou seja, dois meses depois do incêndio, a Revista do Globo dedicou várias páginas à Casa de Correção e à sua longa e sinistra trajetória. Assinada pelo jornalista Tabajara Tajes, relata alguns dos muitos acontecimentos ocorridos nas celas e nos porões de “uma das cadeias mais antigas do mundo”.
   “Tem o casarão, na sua existência de um século, histórias de dor, de sangue e de tristezas, capazes de impressionar quantos ainda se comovam com a sorte dos condenados pela Justiça. Rios de sangue correram nos seus subterrâneos. Suas salas de tortura, em tempo não muito afastado, esconderam cenas tétricas, de homens judiados com requinte selvagem. Presos políticos tiveram unhas arrancadas, membros picados a pontas de cigarro. Caras humanas foram deformadas a socos e pontapés”.

   O repórter prossegue, descrevendo alguns desses episódios, como os da cela 16, e os locais chamados de “democrata” e “republicano”: “A cela 16, há poucos anos, abrigava a escória do presídio. Ao ser deposto um governador, o chefe de polícia mandou trancafiar ali um parente do mesmo, delegado de uma cidade do interior. Um malfeitor, que fora mandado prender por essa autoridade, cumpria naquela cela a sua pena. E na sua primeira noite de presídio, quando o silêncio invadira o casarão, vultos fugitivos arrastaram-se até ao beliche onde dormia o novo hóspede do cubículo. Mãos fortes taparam-lhe a boca com um pano. Durante longas horas serviu de pasto aos instintos bestiais do condenado que jurara vingança. No dia seguinte, em prantos, jogou-se aos pés do guarda carcerário, pedindo-lhe pelo amor dos filhos que não o deixasse mais ali. Que o matasse. Não lhe haviam valido os cabelos brancos e nem a personalidade forte”.  (...)
   “No “republicano”, buraco feito de cela, escavado abaixo do nível do Guaíba, foi trancafiado um preso que matara um companheiro de cela. Sua reclusão foi adotada mais em razão da própria segurança do que mesmo de castigo. O preso morto era donzela de vários presidiários. No trajeto, por um desentendimento qualquer, o condenado esbofeteou um guarda. E, no dia seguinte, sem que nem presos e nem vigilantes vissem nada, o infeliz amanheceu virado num autêntico paliteiro. Oitenta e seis punhaladas marcavam a vingança daquelas feras humanas. Nunca se explicou como detentos puderam abrir celas, portas de corredor e várias grades intermediárias para terminarem estourando o forte cadeado do “republicano”.
   (...) “Noutra cela, Guaiaca, presidiário de bom comportamento, e até com indícios de debilidade mental, foi morto aos pouquinhos num torniquete feito de lençóis. Numa ponta, um pau extraído de um dos beliches e na outra um tamanco. Presos amotinados, que o haviam apanhado como refém, foram torcendo, torcendo, até estrangulá-lo. No cubículo ao lado o imundo comércio de presos menores determinou o assassinato de “Sete...”, que levava a alcunha pelo número de presos que violentou numa só noite”.
   (...) “Na Enfermaria, onde quase uma centena de tuberculosos escarram os pulmões, um pretinho apareceu enforcado nas grades da porta. Aparentemente cometera suicídio. Necropsia posterior apurou o estupro bestial que sofrera, provavelmente na hora da agonia. Na famigerada Sétima Enfermaria, ao lado do “Reizinho”, sem dúvida o maior arrombador de cofres do Brasil, minado pela tísica, vivia o “Sarará do Galo”, vingando-se da reclusão com escarros na cara dos guardas e de quantos dele se aproximassem”.
   (...) “Escola de crimes, do interior da cadeia saíam gatunos aperfeiçoados na arte de roubar e de matar. Cidadão decente que uma briga inevitável levasse às suas celas, de lá saía acabrunhado, sem honra e sem dignidade, descrente dos homens, descrente da Justiça”.
   (...) “Depois que administrar presídio se tornou cargo de afilhados políticos, a situação piorou ainda mais na Casa de Correção. (...) Com os dirigentes sucediam-se as portarias. Golpes de pena destruíam o que os outros haviam construído. A política carcerária caiu para níveis baixíssimos. Havia presos gozando se regalias inexplicáveis”.
   (...) “O tráfico da erva maldita ganhou alento dentro da prisão. A erva do diabo circulava com facilidade e os atritos sucediam-se entre os presos alucinados pela “diamba”. O jogo também campeava e quase toda semana esfaqueavam-se os presidiários. Álcool não era contido nem pelos muros, nem pelas grades e nem pelas revistas que passavam nos visitantes. Porres memoráveis eram tomados entre desordens, pancadas e golpes de arma branca. O álcool da enfermaria era desviado e vendido aos viciados. Os preços eram alucinantes, coisas assim como 300 cruzeiros o vidro de álcool e 500 o de cachaça. Não havia moral na seleção das visitas. O baixo meretrício, nos dias em que o presídio era franqueado aos de fora, passeava a sua garrulice envolta em auras de perfume barato no pátio empedrado da cadeia. Cenas espantosas de cupidez e de falta de respeito entrepunham-se ao quadro triste da mãe comovida que beijava o filho vestido de uniforme azul”.
CONSTRUÍDO PELOS ESCRAVOS - Na realidade o problema prisional gaúcho era crônico e vinha desde o século XIX, e a Casa de Correção tão somente simbolizava os horrores e as iniquidades de tal sistema.
   Quando a primeira parte da sua construção foi concluída, em 1855, era chamada de Cadeia Civil e abrigou inicialmente cerca de 200 presos. Construída pelos braços de escravos, suas paredes, formadas pela junção de grandes pedras, chegavam a ter mais de um metro de espessura.  A localização à beira do Guaíba se explicava pelo fácil acesso à água, pela questão da higiene – os dejetos seriam jogados no rio – pelo solo rochoso para assentar firmemente as suas fundações e também pelas características geográficas do local, uma “quina” da cidade e que então passou a ser chamada de Ponta da Cadeia.
   Em 1897, nos primórdios da República, segundo os historiadores, ganhou o nome oficial de Casa de Correção. A partir daí, de ano a ano, a sua população carcerária só foi aumentando, incluindo presos políticos dos vários movimentos de revolta que caracterizaram o Rio Grande.
    A Casa de Correção teve sua demolição concluída oficialmente no dia 11 de maio de 1967, uma quinta-feira. Uma equipe de funcionários da prefeitura (Célio Marques Fernandes era o prefeito de Porto Alegre), sob a coordenação do engenheiro João Antônio Dib, dava fim a uma era de horrores que, no entanto, se repetiria com o não menos infame Presídio Estadual da Chácara das Bananeiras (bairro Partenon), o Presídio central, inaugurado em 1963 e bem mais distante dos olhos da imprensa.    


MAIO DE 1967, O FIM DE UMA ERA: O PRÉDIO DO GRANDE HOTEL PEGA FOGO
    Talvez não tenha havido construção mais intimamente ligada à história política dos gaúchos e ao “grand monde” da capital do que o Grande Hotel, na rua dos Andradas, esquina com a Caldas Júnior, a antiga rua Payssandu, local onde hoje é o Shopping Rua da Praia.

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    Fundado com este nome em 1908, foi, até os anos cinquenta, considerado a mais tradicional, prestigiosa e sofisticada casa hoteleira de Porto Alegre. Em seus apartamentos se hospedaram poderosos políticos brasileiros, diplomatas, influentes empresários e personalidades do mundo das artes e dos esportes. O marechal Hermes da Fonseca, o senador Pinheiro Machado, Assis Brasil, Flores da Cunha, Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor, Raul Pila, Salgado Filho, o general norte-americano Mark Clark, o Marechal Cândido Rondon. Foi nas dependências do Grande Hotel (a sede informal de todos os partidos políticos) que se estabeleceram as premissas para a pacificação do Rio Grande do Sul em 1923 e foi também lá que se arquitetou o plano para a revolução de 1930 que levou Getúlio ao Catete e sepultou a República Velha. Em seus salões aconteciam os banquetes mais elegantes, as festas mais concorridas, jogatinas profissionais, flertes, brigas, luas-de-mel e encontros amorosos. Muitas famílias ricas e estudantes abastados ali moravam de forma permanente. Símbolo da Belle Epóque porto-alegrense, das suas janelas e sacadas assistia-se o “footing” de uma Rua da Praia ainda glamourosa, com seus restaurantes, cafés, cinemas, lojas finas e homens e mulheres elegantemente trajados.
    Em meados de 1956 – naquela que foi considerada uma das maiores transações imobiliárias de Porto Alegre – o prédio foi vendido ao Grêmio Beneficente dos Oficiais do Exército, GBOEX, e rebatizado com o nome de Edifício General Mallet, militar brasileiro nascido na França, patrono da arma de artilharia.
   O Grande Hotel funcionou até o início de 1957, quando foi entregue aos novos proprietários, que o readaptaram para fins comerciais. Até essa época a construção, com três alas e sete andares, contava com 180 salas e capacidade para receber até 250 hóspedes individuais, que pagavam caro para desfrutar de finíssimas louças e talheres importados e comer e beber do bom e do melhor.
   As obras do edifício, a cargo do construtor Francisco Tomatis e fiscalizada pelo engenheiro Viterbo de Carvalho, iniciaram em 1916 e terminaram dois anos depois, em uma Porto Alegre que não chegara ainda a 200 mil habitantes, concretizando o sonho do imigrante francês João Pedro Bourdette e seu genro Cristino Cuervo. Os dois empresários, no entanto, não viveram o suficiente para ver a venda do seu patrimônio. Em 1956, os três filhos de Cristino Cuervo é que dirigiam o negócio.
   No final da tarde daquele sábado de 1967, quando a Porto Alegre de 800 mil habitantes dançava ao som da Jovem Guarda e dois dias após a violenta repressão policial a um protesto de estudantes contra o regime militar (eles foram espancados até mesmo dentro da Catedral Metropolitana), nesse dia 13 de maio, data da abolição da escravatura no Brasil, véspera do Dia das Mães, um incêndio de grandes proporções iniciou no quinto andar do edifício Mallet. As chamas se propagaram com tal força que muitos clientes do tradicional Salão Cruzeiro fugiram com metade da barba por fazer e o cabelo só em parte cortado. Eram 18h30min, caía a noite e os bombeiros demoraram a chegar – quando isso aconteceu a água dos raros hidrantes mostrou-se com pouca força e foi necessário buscá-la no rio Guaíba.
    Dada a intensidade das chamas e dos jatos das mangueiras, temia-se que todo o velho prédio viesse abaixo. Também as fagulhas que se espalharam geraram o temor de novos focos. Felizmente nenhuma construção vizinha foi atingida e as grossas paredes de tijolos mantiveram-se de pé. Às 23h30min o incêndio já estava praticamente dominado.
MUITOS PREJUÍZOS E DESEMPREGADOS – No coração da cidade, com sua bela e histórica fachada, o Mallet era um importante centro comercial da capital gaúcha. Grande número de profissionais liberais, entidades de classe e representações comerciais operavam em suas salas.
   No último pavimento estava o Círculo Militar de Porto Alegre e no andar térreo localizava-se a nova farmácia do GBOEx, o Salão Cruzeiro, a Livraria Jackson, o escritório dos municípios gaúchos e a agência Radional de notícias.
   Com o sinistro de maio criou-se também um problema social e trabalhista. Dezenas de homens e mulheres perderam seus empregos e rendas, milhares de papéis, contratos e documentos importantes foram destruídos e vultosos prejuízos de equipamentos e máquinas não puderam ser cobertos pelo seguro – o do prédio como um todo era igualmente irrisório.
   Os funcionários do tradicional Salão Cruzeiro, por exemplo, trabalhavam como diaristas e passaram os dias seguintes procurando colocação em outras barbearias.  Por sua vez os empregados de pequenas firmas poucas esperanças tinham de uma possível indenização, já que seus patrões também haviam perdido tudo.  
    Não só humildes empregados como instituições e nomes conhecidos da vida de Porto Alegre, inquilinos do prédio incendiado, viveram dias angustiosos naquele outono de 1967. A relação fornecida pelo próprio GBOEx incluía o advogado José Henrique Mariante (o delegado que acudiu durante o incêndio da Casa de Correção, doze anos antes) o também advogado, jornalista e vereador Alberto André, o político João Brusa Neto, o jornalista e colunista esportivo Cid Pinheiro Cabral, o ex centroavante do Grêmio Rubens Mostardeiro Torelly. Também tinham endereço no Mallet a diretoria regional dos Correios e Telégrafos, a Editora Mérito, a Agência Marítima Interamericana, a Companhia Rádio Internacional do Brasil, o Banco Ítalo-Belga, a União Gaúcha dos Estudantes Secundários, o Centro de Confraternização Jaguarense, a Associação dos Licenciados do Rio Grande do Sul, o Centro Itaquiense, a Federação Gaúcha de Futebol de Salão, Dioni York Bado, Livraria Ibal, Centro dos Oficiais Administrativos do Estado, Territorial Vale do Araguaia, entre outros.

    Especialmente prejudicados ficaram os segurados do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados em Serviços Públicos, IAPFESP, um dos principais órgãos de assistência social brasileiro e cujos fichários haviam sido totalmente consumidos pelo fogo. Com eles desapareceram a história clínica de milhares de pacientes, além de equipamentos de radiologia, fisioterapia, odontologia, raio X. Felizmente os bombeiros haviam conseguido isolar a tempo os laboratórios onde estavam depositadas grandes quantidades de ácidos e produtos inflamáveis – atingidos pelo fogo, a explosão seria monumental e de consequências imprevisíveis. 

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