Há 40 anos Porto Alegre viveu o mais dramático dos dias - o incêndio do edifício Renner, no centro da cidade, episódio que matou quatro dezenas de pessoas e deixou quase uma centena de feridos. Era 27 de abril de 1976 e a capital gaúcha, atordoada, galvanizou suas totais atenções para o que acontecia entre as ruas Otávio Rocha e doutor Flores. Lá se localizava um dos mais tradicionais magazines sulinos, um orgulho empresarial fundado no início do século 20. Publicamos agora, sequencialmente, o relato desse fato que foi um divisor na história de Porto Alegre, contextualizando e reportando uma época que vive na memória dos mais antigos: os peculiares anos setenta, quando a preocupação com a prevenção ao fogo era mínima em todo o país. O longo trabalho de pesquisa revive jornalisticamente o que foram, de fato, aqueles horas de angústia, surpresa e dor, com cenas que se repetiram muitos anos depois, desta vez em Santa Maria, em proporções ainda maiores.
Os populares, embaixo, pedem para que as vítimas, encurraladas, não pulem |
PARTE 1 – O ESTRANHO ANO DE
1976
No dia 10 de abril de
1976, sábado, o Correio do Povo publicou a seguinte notícia em sua página de
ocorrências policiais.
“Mais de 1.500 prédios sem segurança contra incêndios em São
Paulo”
“Depois dos incêndios do
Andraus e do Joelma, a Prefeitura desta capital criou uma lei visando a
segurança de prédios. Entretanto, segundo um levantamento realizado pelo Grupo
Especial de Peritagem da Prefeitura Municipal, existem ainda na cidade mais de
1.500 prédios sem as mínimas condições de segurança contra incêndios. Falando
sobre o problema, o prefeito Olavo Setúbal acusou os síndicos desses edifícios,
afirmando que se algum acidente grave acontecer quem vai para a cadeia serão os
síndicos, que juridicamente são os responsáveis pelo problema. O prefeito Olavo
Setúbal falou sobre a disposição de interditar todos os prédios de São Paulo
que não obedeceram a nova legislação de prevenção contra incêndios. Declarou
ainda que não mais tolerará a omissão dos síndicos, pois muitos deles, mesmo
intimados pelo GEP, não deram a menor satisfação. Sobre a situação irregular
dos prédios, alguns proprietários apresentaram laudos na Prefeitura e, depois
que receberam o protocolo dos processos, não cumpriram as determinações da lei
de Prevenção a Incêndios”.
Na mesma edição, em
editorial, o Correio retomava o assunto, lembrando que Porto Alegre – bem pior
que São Paulo - não havia desenvolvido ainda a necessária consciência da
prevenção. O texto seria republicado 17 dias depois, com justos motivos.
“Ainda à mercê do fogo”
“Ainda não se concretizou a
aplicação de uma política efetiva para a prevenção de incêndios em Porto
Alegre. A maior parte dos edifícios continua sem o que se poderia considerar
medidas mínimas de proteção contra o fogo. Há poucos dias houve alarma num
prédio pertencente ao Estado onde funciona uma repartição pública com numerosos
funcionários. Pode-se perceber que, no caso de um incêndio de grandes
proporções, a possibilidade de evacuar o prédio sem vítimas seria bastante
reduzida.
“Mesmo com tantos exemplos, alguns ocorridos
em outras capitais do País, outros aqui mesmo, Porto Alegre ainda não conseguiu
desenvolver uma consciência dos perigos e resultados catastróficos dos
incêndios. Nossos prédios continuam crescendo em tamanho e sem possuírem, na
maioria, na quase totalidade, vamos reconhecer, as condições necessárias de
segurança contra incêndios. Continua predominando uma mentalidade que se baseia
no conceito otimista de que “esse tipo de tragédia só pode realmente acontecer
em outros lugares” – conceito otimista esse que infelizmente tem sido
desmentido.
(...) “As exigências de
mangueiras e extintores de fogo nos edifícios devem ser averiguadas de tempo em
tempo. E mais do que tudo, deve haver um trabalho de conscientização para que o
povo aprenda a defender-se nos casos de incêndio. Nada adianta ter mangueiras e
extintores se não se sabe como usá-los. Numa cidade que cresce, como esta
nossa, os perigos decorrentes de incêndios devem ser prevenidos, antes que
tenhamos pela frente mais uma catástrofe de proporções.”
Havia décadas a falta de prevenção
contra o fogo era tema recorrente do diário da Rua da Praia, um dos mais
sólidos da imprensa brasileira, veículo líder da Companhia Jornalística Caldas
Júnior, editora da Folha da Manhã e Folha da Tarde e proprietária da Rádio
Guaíba.
Não que os demais não
batessem na mesma tecla, porém o Correio mostrava-se bem mais enfático e
informado a respeito, não poupando críticas à inércia das autoridades e à
estranha passividade dos porto-alegrenses frente ao problema. O assunto era uma
espécie de cruzada do respeitado standard, que já havia feito dezenas de
editoriais a respeito, mas, em termos práticos, isto, como se via, pouco
ajudara.
Foi assim também a 10 de fevereiro, mês que
sempre trazia lembranças do que acontecera aos edifícios paulistanos Andraus,
em 1972, e Joelma, dois anos depois.
O CP (“Prevenção Ainda Inexistente”) lembrava a comoção coletiva quando da
morte de cinco jovens no sinistro das Lojas Americanas, em 1973, das promessas
das autoridades e da insuficiência de atitudes práticas desde então, muito
embora o novo Código de Prevenção de Incêndios estivesse em debate na Câmara
Municipal e, uma vez aprovado, significasse algum avanço nesta área. Ao mesmo
tempo o jornal observava:
(...) O uso de extintores em todos os
prédios, a adoção de portas corta-fogo nos edifícios públicos e o sistema de
passarelas também em todas as edificações e com caráter obrigatório constituem
pontos importantes do projeto. Mas não é a viabilidade ou a oportunidade de
tais medidas que deve fixar nossa atenção sobre o problema nelas envolvido, e
sim, um fato de suma gravidade. É não ter sido estabelecido até agora, em uma
cidade de um milhão de habitantes como a nossa, um sistema efetivo que evite os
sinistros por fogo.”
Sabia-se, porém, que o
projeto arrastava-se com displicente morosidade (envolvia normas técnicas que
resultariam em gastos condominiais e de construção) e, tudo indicava, demandaria
mais algum tempo para ser concluído, aprovado e sancionado e, principalmente,
aplicado.
“De positivo mesmo só existe uma coisa – a probabilidade de uma nova
tragédia, porque a anterior de nada serviu. Triste, mas verdadeiro”, concluiu
o CP.
No dia 14 de abril,
quarta-feira, o jornal entrevistou o autor do Manual de Prevenção e Proteção de
Incêndios, publicação adotada por todas as escolas para formação de bombeiros
do País. De passagem por Porto Alegre
como um dos palestrantes do Terceiro Encontro Nacional da Construção, ENCO,
megaevento bienal reunindo todo o universo do setor, o coronel Orlando Secco, veterano
comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, lembrou que o progresso
dos anos setenta, com a crescente utilização de materiais plásticos e
inflamáveis, multiplicava o risco de tais sinistros.
“Antigamente a
armazenagem era feita caixa sobre caixa, material sobre material, até onde
alcançava o braço do homem. Hoje, com as empilhadeiras e a implantação de
prateleiras à altura de 40 ou 50 metros, com canais de ventilação nos sentidos
horizontal e vertical, temos verdadeiras armações de fogueiras”.
Conforme Secco,
aprendendo na carne as lições do Andraus e do Joelma (com um saldo conjunto de
mais de 200 mortos e centenas de feridos), a capital paulista despertara para a
necessidade da real prevenção de tais tragédias. Assim, a partir da adoção do
novo Código de Edificações e a formação de um Grupo Especial de Peritagem, em
1974, mais de dois mil proprietários ou responsáveis por edifícios foram
obrigados a regularizar sua situação. Restavam ainda outros 1.500 passíveis de
serem interditados e multados, tendo ainda nomes e endereços divulgados pelos
jornais.
Felizmente, o rigor das
autoridades paulistanas recebia o apoio da população que aplaudira, inclusive,
a interdição do edifício Martinelli, prédio que, décadas atrás, havia sido o mais
alto da América do Sul e símbolo do progresso de São Paulo. Todos recebiam agora
um ultimato, devendo apresentar à comissão permanente do Código de Obras um
laudo de segurança firmado por dois peritos devidamente credenciados. Passados
os prazos fixados e não atendidas as exigências, os técnicos passavam a
considerar tais locais como “ameaça à integridade física de seus ocupantes, dos
vizinhos e do público em geral”, o que ensejava a interdição – e isto previa a
impossibilidade de vender ou alugar os imóveis.
Naquele momento, de
acordo com o coronel, tanto os bombeiros de São Paulo como as firmas
especializadas no combate a incêndios já não estavam dando conta de atender aos
pedidos do público e das escolas para orientação, treinamento e utilização dos
equipamentos preventivos. “Além disso, vai se constituindo numa constante a
assistência para indústrias e fábricas que adaptam suas instalações para a
colocação de instrumentos modernos. Mas não é só isso, precisamos de um povo
treinado para enfrentar tais situações”, enfatizou o bombeiro.
*
Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, 27 de abril de 1976, 13h45min, uma terça-feira com “temperatura em
elevação, ventos soprando de leste a norte, fracos”.
Dia comum e de poucas
efemérides, consagrado a Santa Zita, padroeira católica das empregadas
domésticas, data de nascimento do inventor do telégrafo, Samuel Morse, e da inauguração
do estádio municipal do Pacaembu, em São Paulo.
Numericamente, o centésimo
décimo sétimo dia de 1976, faltando outros 248 para acabar o ano. Para os esotéricos, ano do dragão, bicho
poderoso e magnânimo, considerado auspicioso para os negócios, todavia temido
pela conjunção de fortunas e desastres. E 76 seria justamente o ano do dragão-fogo,
o mais competitivo de todo o horóscopo chinês. (China vermelha e fechada de um Mao Tsé Tung agonizante e que na
madrugada de 28 de julho seria sacudida por um terrível terremoto – talvez o
mais mortífero da era moderna - matando oficialmente 242 mil pessoas na cidade
de Tangshan, embora, para muitos, o número pudesse ser multiplicado por três).
Publicada sem maiores
destaques no alto da página cultural do jornal Zero Hora daquela terça-feira, uma
nota comentava o incidente preocupante que havia acontecido dias antes no show
da cantora argentina Amelita Baltar, 35 anos, em turnê pelo Brasil.
“O episódio da fumaça surgida sábado à noite
no teatro Leopoldina, durante a apresentação de Amelita Baltar, começa agora a
ficar mais claro. Houve um curto-circuito, que chegou a ser visto por quem
estava sentado nas primeiras filas. Para o fogo pegar nas cortinas não faltaria
muito. A esta altura, cabe ao Corpo de Bombeiros fazer uma vistoria nas
instalações do Leopoldina, medida que vai beneficiar, inclusive, a direção do
próprio teatro. Porto Alegre sem o Leopoldina é um fato inimaginável.”
Praça Otávio Rocha,
número 134, esquina com Rua Dr. Flores, centro.
Alguns rolos de fumaça
começam a sair do interior das Lojas Renner. Em seguida fortes chamas
rapidamente envolvem o edifício. Três horas mais tarde e a sede de uma das mais
tradicionais redes de magazines do Sul do País transformava-se em cimento calcinado
e fumegante.
Dezenas de vítimas e
desaparecidos, quase oitenta feridos, desabamentos, explosões, pânico,
histeria, hipocrisia, caos urbano, linhas telefônicas congestionadas,
desencontros, confusão, choros, acusações recíprocas, cinismo e velhas
cobranças – este o saldo da tragédia que parou Porto Alegre naquele outono dos
anos setenta, passados menos de dez dias do feriadão de Páscoa.
Calcula-se que cerca de
200 mil pessoas, cerca de 20% da população da Capital, entre moradores e
trabalhadores do centro, transeuntes, amigos e parentes das vítimas, curiosos,
mórbidos natos, desocupados, batedores de carteiras, bombeiros, policiais civis
e militares, médicos, enfermeiros, voluntários, soldados do Exército e dúzias
de alvoroçados repórteres e cinegrafistas acompanharam ou participaram de um
pesadelo que lembrava o ocorrido com o edifício Joelma, em São Paulo, dois anos
antes, quando, oficialmente, 188 pessoas perderam a vida em circunstâncias
semelhantes.
Por um bom tempo o
incêndio do Joelma - e o sucesso do filme-catástrofe Inferno na Torre, superprodução
assistida por milhões de brasileiros, em cartaz em Porto Alegre durante meses -
alimentou um justificado sentimento de insegurança e “sinistrose” nos
habitantes dos grandes centros urbanos.
A revelação, a olhos
vistos, de que a maior e mais rica cidade do País não tinha condições de fazer
frente ao perigo das chamas e, pior, que isto representava a regra geral e que
praticamente nada mudara, rendeu inflamadas matérias na imprensa, gerou
verbosos discursos políticos, modificou algumas leis específicas, sem, contudo,
resultar em uma unificada e eficaz política na área de segurança contra o fogo
para as principais cidades brasileiras.
Em meados de 1976 seria a
vez de Porto Alegre ter o seu Joelma e de demonstrar mais uma vez o quanto a
incúria, o descaso e talvez alguma dose de fatalidade, podem, combinados,
repetir um enredo que, desta vez, só se modificou em detalhes e cifras de óbitos
e feridos.
Foi, disparado, a maior
tragédia repentina que se abateu sobre a cidade e certamente, por sua alta
voltagem emocional, aquela que mais marcou seus então um milhão de habitantes.
UM TÍPICO DIA DE ABRIL
Nada, é óbvio, indicava que aquela
terça-feira nem quente e nem fria, um típico dia de abril, com termômetros que
oscilaram entre 20 e 26 graus, fosse se transformar em um filme de horror para centenas
de pessoas e desorganizar completamente a vida dos porto-alegrenses.
Os jornais que chegavam às bancas traziam
manchetes sobre a viagem que o presidente Ernesto Geisel fazia à Europa (Valery
Giscard D’Estaing, presidente da França, enchia o Brasil de elogios: segundo
ele, desde o final da Segunda Guerra, emergíramos como “potência mundial”), os
problemas cardíacos do senador Tarso Dutra, a guerra civil de Angola e o
auxílio militar cubano, as eleições em Portugal (a Revolução dos Cravos
completara dois anos no dia 25 de abril) com a vitória dos socialistas de Mário
Soares, o avanço dos comunistas na Itália, o difícil caminho para estabelecer a
democracia na Espanha sem Francisco Franco (morto no final de 1975), o conflito
racial e a reação ao “apartheid” na África do Sul e na Rodésia, a onda de
violência política na Argentina (onde, em março, ocorrera o golpe militar que
destituíra Isabelita Perón), o Oriente Médio (a Síria invadira o Líbano, em um
banho de sangue, e Beirute estava sendo destruída pelos bombardeios), os
atentados do IRA na Irlanda e na Inglaterra, os preparativos para as
comemorações do Bicentenário da Independência Norte-americana, o acordo nuclear
entre o Brasil e a Alemanha, Emerson Fittipaldi e o seu novo carro, as próximas
Olimpíadas de Montreal, a seleção brasileira de futebol montada por Osvaldo
Brandão – seleção que os gaúchos poderiam, a partir daquela quarta-feira, com o
jogo entre Brasil e Uruguai pela Copa América, assistir “ao vivo e inteiramente
a cores” pelo canal 12.
No capítulo das tragédias internacionais um
Boeing 727 da American Airlines incendiara nas Ilhas Virgens, nas Caraíbas,
deixando cerca de 60 mortos e outros tantos feridos. Ao descer, o piloto fez
uma manobra desastrosa e colidiu a aeronave contra um posto de gasolina às
margens da pista.
Também na segunda-feira, 26 de abril, na conturbada
e ingovernável Itália, ao cabo de um concorrido julgamento, o jovem Pino
Pelosi, de 17 anos, foi condenado pelo assassinato do cineasta Pier Paolo
Pasolini, 52 anos. Segundo a polícia,
Pino, ocasional garoto de programa, teria matado brutalmente Pasolini, no porto
de Óstia, na madrugada de 2 de novembro de 1975, dia de Finados. De forma
semelhante o julgamento de Patrícia Hearst, neta do magnata da imprensa
norte-americana, William Randolph Hearst, o “Cidadão Kane”, sequestrada e transfigurada
em guerrilheira do confuso Exército Simbionês de Libertação Nacional, frequentava
as páginas dos jornais, que, semanas antes, haviam explorado com insistência a
morte, a biografia e as manias do genial bilionário Howard Hughes.
Já as notícias criminais versavam sobre
Dudu, o milionário da loteria esportiva que agora se via em complicações
financeiras e as rocambolescas fugas e prisões do ex-policial, bandido e
integrante do Esquadrão da Morte carioca, Mariel Mariscot, 35 anos. A tragédia
de São Gonçalo, duas semanas antes, na qual 20 fiéis da igreja Deus é Amor
morreram pisoteados em meio a uma histeria coletiva, ainda repercutia e
espantava pelas reações de frieza do pastor. Segundo este - que acreditava na
absolvição pela justiça divina - muitas pessoas estavam “possuídas pelo
demônio” e eram as culpadas das próprias mortes.
Sem
tumultos e sem maiores culpas, a dolce vita do gran monde da capital gaúcha
tinha lá suas novidades que poderiam ser conferidas na página do festejado
colunista social Paulo Ricardo Gasparotto, de Zero Hora. Naquela terça-feira,
27, os leitores que desembolsassem dois cruzeiros pelo jornal em banca saberiam
que o final de semana do high society fora memorável no restaurante e casa de
shows Encouraçado Butikin (Avenida Independência), onde os casais Zeca Bohrer,
Felicinho Santos e Tânia Carvalho confraternizaram alegremente. “Eram seis da
manhã e a animação continuava a todo vapor, digo, a todo Encouraçado”,
descreveu Gasparotto.
Na mesma coluna ficamos sabendo ainda que a
senhora Lúcia (“Lulu”) Curia telefonara de Paris logo ao retornar de Saint
Tropez, onde esteve tomando o primeiro sol do verão europeu, e que o domingo
também havia sido ensolarado em Porto Alegre, lotando a pérgola do Coutry Club,
notando-se em especial as belas presenças de Vera Corte Real Garcia e Pitty
Kessler, “esta com sensacionais botas no estilo de montaria”. Antes disto, na
entrada da noite de sexta-feira, no “pavilhão” de sua elegante morada, o casal
Yara e Fritz Johannpeter ofereceu drinques para os casais Pedro Leitão da Cunha
e demais membros da direção nacional do Banco Brascan em sua movimentada
passagem por “Portinho”.
A despeito de tantas festivas novidades, o
colunista encerrou a sua crônica mundana daquele dia com uma desolada
observação: “Ultimamente as reuniões em Portinho estão totalmente sem assunto.
Ou excesso de preocupação com um motivo só do nosso “people”, ou falta de
imaginação...”
No velho continente, em elegantes salões da
Cidade Luz, recepcionado pelo embaixador Antonio Delfim Neto, (que faria 48
anos no dia primeiro de maio), e por algumas manifestações de protesto de exilados
brasileiros e militantes da esquerda francesa, o general-presidente Ernesto Geisel,
68 anos, gaúcho de Estrela, buscava inserir mais fortemente o Brasil no cenário
político mundial, ao passo em que anunciava mais investimentos para o País,
entre os quais os voltados às descobertas de petróleo na bacia de Campos, os
“contratos de risco”, e a instalação do terceiro polo petroquímico no Rio
Grande do Sul.
Com bilhões de dólares em jogo e a certeza de
milhares de novos empregos, o Polo – disputado por outros Estados, mas já
garantido para o Rio Grande - uma vez viabilizado, marcaria um salto exponencial
na economia regional. Em contrapartida preocupava a todos a possibilidade do
agravamento do desequilíbrio ambiental, com a emissão de poluentes que,
fatalmente, atingiriam a Grande Porto Alegre e mesmo o litoral.
EM PARIS, A INAUGURAÇÃO DA DISCAGEM DIRETA
INTERNACIONAL
Rio Grande exportador, com cerca de sete
milhões e meio de habitantes vivendo em 232 municípios e que, naquele ano de
eleições, já havia recebido oficialmente a visita de Geisel por duas vezes:
abrindo a terceira Festa Nacional da Soja, no município de Santa Rosa, no
início de abril, e, antes, em janeiro, visitando o Rodeio Internacional de
Vacaria. Geisel considerava o pleito de 15 de novembro – quando a população
escolheria prefeitos e vereadores – como uma espécie de plebiscito do seu
governo e nele empenhou-se pessoalmente, pedindo votos em todos os estados.
No nevrálgico e tão criticado setor das
telecomunicações, aproveitando a deixa publicitária parisiense, um telefonema
do ministro Euclides Quandt de Oliveira para o presidente Geisel, no palácio de
Versalhes, inaugurava, oficialmente, a discagem direta internacional, o DDI,
entre o Brasil e a Europa, conforme já existia com os países da América do
Norte.
Dois meses antes, em Porto Alegre, ao
meio-dia de 20 de fevereiro, sexta-feira, o governador Sinval Guazzelli, 46
anos, oficializou no Estado a nova tecnologia da Embratel, desta vez para o
Canadá: do seu gabinete, no palácio Piratini, cercado de fotógrafos, repórteres
e cinegrafistas, ligou para Ottawa e conversou com o embaixador brasileiro
naquele país, Geraldo de Carvalho Silos, ocasião em que o convidou a participar
do seminário de investimentos do Estado que aconteceria em abril.
Já na telefonia doméstica a expectativa de
todos centrava-se na discagem direta à distância, o DDD. O sistema, em fase de
implantação, prometia uma nova era para o setor, única maneira de modernizar as
defasadas comunicações de um país com menos de quatro milhões de linhas telefônicas
instaladas, em percentual abaixo até mesmo das demais nações sul-americanas.
Matéria do Correio do Povo |
Telefones
difíceis e caros: em Cruz Alta, onde, em abril, a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações,
CRT, ofertava 400 novos aparelhos, uma linha residencial custava 6.528
cruzeiros à vista (mais de dez salários mínimos), podendo ser paga em até 24
meses. A comercial saía por 3.320 cruzeiros à vista (ou em 12 pagamentos
mensais), enquanto o tronco de PABX custava 12.120 cruzeiros. O tempo médio
para se receber um aparelho era de 36 meses, mas poderia ser mais: em janeiro
de 76 um grupo de empresários de Viamão que havia comprado 400 aparelhos da
CRT, sob a promessa de que seriam instalados em no máximo 12 meses, apelava desesperadamente
para as autoridades. Apesar do pagamento feito à vista, havia quatro anos que
eles aguardavam a instalação. “Se isso acontecesse com uma firma particular, há
muito tempo os diretores da CRT já estariam presos”, desabafou um comerciante.
Caro
e raro, o telefone era considerado um bem patrimonial, assim como carro ou
terreno, e sua venda ou aluguel por meio de anúncios de jornais tornara-se um
negócio lucrativo e disputado – uma linha residencial em Porto Alegre,
anunciada nos classificados dos jornais, dificilmente sairia por menos de 25
mil cruzeiros. Por vezes vigaristas aplicavam o chamado “golpe do telefone”,
tomando dinheiro antecipado das pessoas sob a promessa de que conseguiriam
efetuar a ligação em breve espaço de tempo.
Em
todo o Brasil a qualidade técnica do sistema, por sua vez, era inversamente
proporcional aos valores pagos. Exemplo: no dia 27 daquele fevereiro de 1976 os
jornais noticiavam o isolamento de Santa Catarina do restante do mundo. Durante mais de 24 horas o Estado – que, em
julho de 1975, havia entrado oficialmente na “Era DDD” (Florianópolis tinha até
então menos de sete mil aparelhos) – permaneceu virtualmente mudo e surdo, sem
qualquer comunicação entre as suas principais cidades e até mesmo sem telex: “O contato com importantes cidades de
Santa Catarina, onde o DDD está em funcionamento, tornaram-se impossíveis,
mesmo que o assinante solicitasse o auxílio da telefonista. Idêntica situação
em relação aos pedidos para ligações interestaduais ou internacionais”, relatou a sucursal da Caldas Júnior
em Florianópolis. A origem do problema estaria em Blumenau, onde um trator que
executava obras de rua rompeu um cabo subterrâneo.
Em
Joinville, enquanto a prometida nova central telefônica da TELESC não se
tornava realidade, as ligações continuavam difícultosas, “primeiro por falta de
linhas interurbanas e falta de som”, conforme anotou o correspondente da CJCJ:
“Todo o problema começa quando o usuário retira o telefone do gancho e
falta o som para discar. Depois de vários minutos de espera a ligação é
completada, mas na maioria das vezes não no número desejado. Para conseguir
novamente uma ligação a pessoa é obrigada a aguardar mais alguns minutos, até
que, quando finalmente consegue, não há sinal de resposta. Como há 14 mil
telefones sobre apenas sete mil linhas, isso ocorre com todos os telefones de
Joinville. Além disso, se o telefone for deixado fora do gancho durante
minutos, sem o número ser discado, a TELESC o desliga e somente torna a ligar
no dia seguinte, “como castigo”. (CP, 2 de abril de 1976)
No
Rio Grande do Sul, até mesmo em centros maiores como Caxias e Pelotas,
relatava-se também uma “situação calamitosa”. Em abril de 76, as lideranças de
Caxias do Sul – que contava com 3.372 telefones fixos, dos quais 2.112 eram
comerciais - reclamavam da demora de se conseguir uma ligação e da constante
interferência nas linhas.
Pelotas
vivia situação ainda pior: o DDD para Porto Alegre raramente funcionava – o
mesmo já não acontecia no sentido inverso. Era necessário, no mínimo,
triplicar-se o número de canais entre as duas cidades e modernizar-se todo o
sistema, reconhecia Jaime de Marco, diretor de operações da CRT. Ele pedia
paciência e explicava que a ampliação se processava lentamente, com várias
centrais novas funcionando ao lado de outras mais antigas.
Em
Uruguaiana o panorama não era mais animador: uma ligação para Porto Alegre
poderia demorar “de 12 minutos até uma hora”, reconheceu o gerente local da
Companhia, aconselhando a todos para que, preferencialmente, “usassem o
telefone de madrugada, quando é bem mais fácil conseguir linha”. Mas nem isso
foi possível a 10 de janeiro, quando um raio atingiu a torre de transmissão do
município, destruindo o seu gerador. Da tarde de sábado até o final de
segunda-feira todos os telefones e o serviço de telex de Uruguaiana deixaram de
funcionar.
Já
em Encantado a culpa não era dos humores do clima e sim da ação dos vândalos.
Ou, como escreveu o correspondente da Caldas Júnior no dia 14 de janeiro:
“Fatos estranhos estão acontecendo com as redes de telefones que ligam a sede
do município com os distritos de Doutor Ricardo e Relvado, através das quais
Encantado consegue contatos com as cidades vizinhas de Anta Gorda, Ilópolis e
Putinga. Há cerca de um ano essas linhas vêm sendo sistematicamente cortadas
por elementos até agora não identificados e que estão sendo taxados de
vândalos, pois raras vezes os fios de cobre cortados com alicate foram levados
do local”.
O
vandalismo também haveria de ser apontado, em setembro, como causa da pane no
município de Vera Cruz, a 170 quilômetros de Porto Alegre. Irritado, o prefeito
Guido Hoff solicitou à polícia que encontrasse o autor do tiro que atingiu o
cabo telefônico ligando a cidade à central em Santa Cruz do Sul, deixando todo
o sistema mudo por mais de uma semana. Os técnicos da CRT levaram o mesmo
espaço de tempo para localizar o problema, vistoriando exaustivamente todas as
linhas, metro por metro.
Em
Santa Maria, o presidente da Associação Comercial, Cirilo Bebber, apontava as
ligações para as pequenas localidades como as mais problemáticas: “Às vezes
temos que esperar quase 12 horas por isso”. Também em Cachoeira do Sul, centro
produtor de arroz, os negócios vinham sendo prejudicados pelo pouco número de
canais instalados – eram apenas onze, quando já deveriam ser 36. O gerente local
da CRT, Alberto Lauter, tinha esperanças de que a Embratel liberasse os novos
troncos para Porto Alegre, uma velha promessa. Com o recente acréscimo de mais
500 aparelhos ofertados a cidade somava 1.439 telefones, “funcionando em precárias
condições”, admitiu o gerente.
Em Encruzilhada
do Sul o prefeito Antonio Carlos Moreira pedia ao governador apenas duas coisas
– asfaltamento da estrada para Pantano Grande e melhorias no sistema
telefônico. Segundo ele, as ligações para Porto Alegre levavam em média 12
horas para serem completadas – quando chovia os habitantes do município passavam
dias sem poder usar o telefone.
No
Vale do Taquari, o prefeito de Lajeado, Alípio Hufner, dizia esperar que a
escolha da sua cidade como sede do governo estadual, prevista para agosto (o
governador Guazzelli estabelecera um sistema de “governo itinerante”,
despachando alternadamente em diferentes municípios) servisse para acelerar a
implantação do sistema DDD para Porto Alegre, Santa Cruz e Estrela, algo que já
deveria estar resolvido não fosse a falta de um cabo. Mesmo assim, era ainda uma
solução parcial e híbrida: por questões técnicas, as ligações desses municípios
para Lajeado continuariam a depender da central telefônica.
No
litoral norte, no balneário de Arroio do Sal, subdistrito de Torres, a
população - “que ultrapassa a uma centena de habitantes” - pleiteava do governo
o funcionamento, também no inverno, do seu único telefone que operava pelo sistema
micro-ondas somente nos meses de veraneio.
Mais sorte teve Carazinho, que, em janeiro, ganhara mais três canais
diretos para Porto Alegre – agora eles eram nove, festejou o gerente da CRT,
Leopoldo Lima: “Ficou fácil. É só pedir a ligação. Se a telefonista não manda
esperar na linha, dentro de uns cinco minutos a ligação estará completada”. São
Leopoldo, na Região Metropolitana, dizia confiar nas promessas oficiais de que,
no ano de 1977, teria mais mil linhas automáticas instaladas, as quais se
somariam as mil já existentes.
Também o município de Bom Jesus, com seus mais de sete mil habitantes,
entrava em uma fase de modernidade ao ganhar uma nova rede telefônica e 300
novos aparelhos coordenados por uma central de sistema PABX. Nada mau para uma
cidade que contava apenas com três telefones até o final de 1975 – um na
Prefeitura e outros dois em agências bancárias. Mesmo com a multiplicação de
linhas, o prefeito Luis Fonseca considerava o número insuficiente para tantos
pedidos.
Por
sua vez, os 10 mil moradores Nova Prata – a 180 quilômetros de Porto Alegre,
cidade em acelerado crescimento industrial e comercial – conviviam com
“telefones de museu”. Não era exagero: a rede havia sido instalada em 1924,
quando a localidade se emancipou. Meio século depois existia ali apenas 43 antiquados
aparelhos, muitos deles avariados ou mudos. Segundo o presidente da comissão de
empresários formada para reivindicar uma solução para o problema, Belmiro
Dionízio Lazzarotto, a agência local da Caixa Econômica Federal, inaugurada
havia pouco mais de um ano, era a única do Brasil que não tinha telefone. O
mesmo acontecia com o Presídio da cidade e “quase todos os médicos que vieram
para cá a menos de 50 anos”.
Pior
ainda era a situação vivida pelos habitantes de Viamão, cidade-dormitório a 24
quilômetros do centro de Porto Alegre: desde o final de 1975 que nenhum
telefone funcionava no município, nem mesmo para uma simples ligação com a
Capital. Ou seja, Viamão não tinha ligação telefônica com Porto Alegre e
quaisquer notícias e recados locais eram trazidos pelos motoristas em passagem.
“A telefonia daqui parece ter a idade do próprio município”, afirmou um
viamonense, em carta endereçada aos jornais.
Em
Três Passos, ao final de 1976, o prefeito Egon Lautert lamentava: “Atualmente,
para se conseguir uma ligação com a capital, só com hora marcada, e mesmo assim
tem que esperar na fila. Mesmo uma ligação para Ijuí, através do DDD, não está
fácil e nos últimos dois meses há uma série de problemas com a CRT local, o que
torna difícil conseguir ligações”.
Quem teve de aguardar meses para contar com o DDD
foram os municípios de Rio Grande e Bagé. No dia 5 de novembro – em plena
campanha política para as eleições daquele ano – o governador gaúcho ligou para
o vice-presidente da República, o general Adalberto Pereira dos Santos e com o
também general Golbery do Couto e Silva, riograndino, chefe da Casa Civil da
Presidência. Acompanhado da esposa e atuante primeira-dama Ecléa Guazzelli levou
aos dois municípios uma comitiva de autoridades arenistas que desfilaram em
carro aberto. Em Bagé, porém, só conseguiu falar com o vice-presidente
Adalberto na segunda ligação feita para Brasília: na primeira tentativa ele
discou errado o prefixo e a chamada caiu na casa de uma surpresa dona-de-casa
de Porto Alegre.
Talvez
por desconfiança ou pouca intimidade com o aparelho os porto-alegrenses
surpreendiam pelo pouco uso que estavam fazendo dos três números de urgência –
190, 192 e 193 – colocados recentemente à disposição do público pela CRT. A
média diária de chamadas resumia-se a apenas 22 para a Polícia, 12 para os
bombeiros e quatro para o Pronto Socorro. No caso do corpo de bombeiros, a
maioria das ligações se prendia a princípios de incêndio originados de
explosões de botijões de gás, “o que nos dá a ideia do aumento de incidência
desse tipo de sinistro em Porto Alegre”, afirmou o diretor de operações da
companhia, isto alguns meses depois do acontecido na Renner.
INTER RUMO AO BI, PELÉ NO COSMOS, ÉDER JOFRE
NO GIGANTINHO
Em abril, o campeonato gaúcho também seguia
a sua linha. No domingo, 25, no Olímpico lotado por mais de 30 mil torcedores,
o Grêmio treinado por Paulo Lumumba vencera o Atlético de Carazinho por 2 a 0,
com gols de Zequinha e Iúra, partida esta que marcou a estreia do lateral
Eurico na equipe tricolor.
No
estádio Centenário, em Caxias do Sul, o Internacional de Rubens Minelli derrotou
o Caxias por 1 a 0, gol de Batista. Vestindo a camiseta grená do time caxiense -
que também disputaria o campeonato brasileiro daquele ano - estava um tosco zagueiro
chamado Luiz Felipe Scolari, ou simplesmente Luiz Felipe, de 27 anos, futuro
técnico e campeão mundial de seleções 26 anos depois.
O Gigantinho era palco dos maiores eventos: Éder Jofre, um dos maiores boxeadores de todos os tempos, lutou neste local e depois presentou o então secretário de Turismo Másrio Ramos com suas luvas. |
O Gauchão era liderado pelo Inter, que naquele
ano seria octacampeão estadual e bicampeão brasileiro de futebol. Já, na copa
Libertadores da América, tradicionalmente dominada por clubes castelhanos, o
Cruzeiro de Belo Horizonte, vice-campeão brasileiro do ano anterior, seguia
firme rumo ao título – havia, na estreia da competição, no Mineirão, derrotado
o Inter em um primeiro e eletrizante jogo que acabou em 5 a 4 para os treinados
por Zezé Moreira (Raul, Nelinho, Morais, Osíris e Vanderlei; Piazza, Zé Carlos
e Eduardo (Isidoro), Jairzinho, Palhinha e Joãozinho). No outro jogo, no Beira-Rio,
a raposa, oportunista e eficiente, fez 2 a 0 e sepultou de vez as esperanças continentais
coloradas, vingando a derrota sofrida na final de 1975 do campeonato
brasileiro, oficialmente chamado de Copa do Brasil. Mas era do vermelho e
branco gaúcho o melhor jogador da América do ano que se passara – pela segunda
vez consecutiva o zagueiro Elias Figueroa, 29 anos, recebeu a maioria dos votos
de jornalistas de 17 países, em respeitado concurso promovido pelo jornal El
Mundo, de Caracas. O ídolo chileno, o mais bem pago futebolista brasileiro em 75,
teve o dobro da votação do segundo colocado, Norberto Alonso, do River Plate.
Quem não precisava de votação alguma e
também ganhava muito dinheiro era o “rei” Pelé, 35 anos, jogador que lotava
estádios nas principais cidades norte-americanos, onde atuava pelo New York
Cosmos e atraía multidões que antes nunca haviam assistido a um jogo de
“soccer”. A transferência de Pelé para o futebol norte-americano pelo
“multimilionário” contrato de 4,7 milhões de dólares era um dos fatos esportivos
do ano em todo o mundo, assim como as lutas de Muhammad Ali, 34 anos, em final
de carreira, os saltos e os recordes de João do Pulo e os esforços de Éder
Jofre, 39 anos, de voltar a disputar títulos nos ringues de boxe – no final de
fevereiro ele lutou no Gigantinho, em Porto Alegre, contra o ex-campeão
italiano dos pesos penas, Enzo Farinelli.
Emerson Fittipaldi, bicampeão mundial, não
ia bem na Fórmula 1 com o seu Copersúcar, mas um jovem talento das pistas
entusiasmava os entusiastas do automobilismo – Nelson Piquet, 23 anos, liderava
com folga o campeonato brasileiro de Fórmula Volkswagen 1.600, o Super-Vê e já
era considerado o mais promissor piloto da atualidade.
Sinal dos tempos: enquanto isso, nos
gramados, o jogador Caçapava, de 21 anos, volante campeão brasileiro pelo
Internacional, surpreendia seus companheiros ao chegar para o treino a bordo de
um “incrementadíssimo fusca”, com pneus tala-larga, toca-fitas e até rádio FM,
conforme descreveu o jornalista João Carlos Belmonte em sua coluna. Antes, ele
preferia táxi, carona e ônibus, mas agora havia renovado o contrato com o clube
e já podia se permitir a tais luxos. Aliás, se quisesse escolher outro modelo
de carro, consultando os anúncios classificados da imprensa, Caçapava poderia
também optar por um Maverick, um Opala, Corcel, Variant, Mustang, Galaxie,
Dodge, Gordini ou Brasília, os carros da época.
CERCAMENTO DA REDENÇÃO, ASSALTOS A TAXISTAS
Na Câmara Municipal e nas suas aparições na
Televisão Gaúcha o comunicador e vereador Paulo Santana, 38 anos, da Aliança
Renovadora Nacional, Arena, defendia o cercamento do Parque Farroupilha, a
Redenção, palco de um crescente número de assaltos e crimes de morte.
Escuro, ainda sem sistema de iluminação, com
vegetação disseminada e espessa, o local era, à noite, um conhecido e antigo reduto
de drogados, homossexuais, michês e marginais. O debate a respeito – incluindo muitas
manifestações contrárias – incluía-se na ordem do dia.
De fato, Porto
Alegre crescia e alarmava-se com a onda de violência dos últimos anos, com o
grande número de pungas, assaltos, sequestros-relâmpagos e latrocínios que
aconteciam na região metropolitana (sem, contudo, a crueldade dos tempos
posteriores). A sequência de ataques a
motoristas de táxi, alguns deles assassinados, impôs medidas específicas por
parte da Secretaria de Segurança Pública, tais como a abordagem e a revista nos
passageiros.
De primeiro de
janeiro a 16 de março nada menos que 47 taxistas haviam sido assaltados na
cidade, sendo que setenta por cento dos autores de tais delitos eram menores de
idade. A proposta do vereador Revoredo Ribeiro (MDB) de se criar no município o
serviço de tele-rádio-táxi (o usuário disca para uma central, que entra em
contato com o motorista) foi vista como positiva nesse sentido, já que o
taxista se obrigaria a comunicar onde estava e assim poderia manter contato
constante com os operadores da empresa central.
Despoliciada e violenta, a Porto Alegre de 76 precisava de mais dois mil brigadianos nas ruas. CP |
Soturno e mal policiado, o centro da cidade impunha
medo ao cair da noite, quando se transformava em “terra de ninguém”. Em abril,
o Correio do Povo mais uma vez abordou o tema em um dos seus editoriais: “Porto Alegre encontra-se praticamente
despoliciada. A população percorre as ruas, amedrontada com a crescente onda de
assaltos. Pessoas de idade são recomendadas a não saírem às ruas em qualquer
horário, tanto tem sido os assaltos em que as vítimas preferidas são pessoas
idosas (...). Os “pivetes” percorrem impunes o centro da cidade”.
Já no final de
agosto de 1975, no artigo “Resposta ao Crime”, o historiador e cronista Sérgio
da Costa Franco escreveu: “Os roubos
praticados a qualquer hora do dia ou da noite, as extorsões mediante sequestro,
as violências de toda ordem, noticiadas ou não pela imprensa, geraram um clima
de medo que jamais conhecêramos. Já existem pessoas que evitam circular nas
ruas à noite. Outras se trancaram em casa, com requintes de cautela. Muitos
voltaram ao uso das armas. E todos vivem mais ou menos obcecados pelo perigo
dos assaltos”.
Temor que se estendia por toda a cidade e
boa parte do Estado. As ruas centrais, o campus da Universidade Federal (o da
Agronomia ainda estava para ser construído), a elevada da Conceição e o
aeroporto Salgado Filho, eram áreas especialmente visadas pelos infratores, quase
sempre agindo em bandos e fugindo impunes. A rua Sarmento Leite, entre a praça
D. Sebastião e a avenida Osvaldo Aranha, se transformara, depois do pôr do sol,
em uma das zonas recordistas em ações praticadas por “pivetes” e “trombadinhas”
– alguns deles marmanjos com vinte anos de idade. Pior, nos últimos meses de
1976, a cidade apresentaria uma média de um homicídio por dia.
As lojas da avenida Salgado Filho igualmente
sofriam agora com os arrombamentos noturnos. Segundo a Folha da Tarde, a
Salgado transformara-se “em um dos campos de operações em que o arrogante e
desenfreado marginalismo porto-alegrense atua com maior frequência e
desenvoltura”.
Quem sentiu tudo isso antecipadamente foi um
grupo de argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos, peruanos e brasileiros de
18 estados que vieram a Porto Alegre participar de uma convenção do Rotary Club
no último final de semana de novembro de 1975. Seis deles foram assaltados em
pleno centro, alguns agredidos a coronhadas e o mais azarado levou um tiro de
revólver. Um distraído casal do Espírito Santo perdeu em segundos nove mil
cruzeiros na praça da Alfândega.
Assustados com a violência da capital
gaúcha, vários rotarianos que planejavam passar mais alguns dias na cidade arrumaram
suas malas e voltaram às pressas aos seus locais de origem. Meses depois, o
argentino David Numermann, de 52 anos, hóspede do hotel Savoy, sofreu um
prejuízo ainda mais expressivo ao caminhar pela Borges de Medeiros, esquina com
a rua Riachuelo: um grupo de pivetes arrancou a bolsa de suas mãos e disparou
em meio à multidão, levando não só os documentos do turista como três mil
cruzeiros (cerca de quatro salários mínimos), 10 mil dólares em notas de cem e
mais alguns objetos pessoais.
Cansado de presenciar tantas ocorrências, um
morador da região central da cidade descreveu ao Correio do Leitor o que via
diariamente: (“Os Pivetes”): “Os pequenos
marginais – e alguns bem desenvolvidos, mas “menores de idade” – desfilam
acintosamente e atacam no mínimo uma ou duas vezes por dia. Inclusive são
perfeitamente reconhecidos pelos comerciantes e moradores da zona. Segundo se
sabe, de outubro do ano passado para cá (março) já foram registrados mais de 80
casos. Existem pessoas que já foram assaltadas até cinco vezes. Alguns dos
marginais, às vezes, são apanhados e levados à Delegacia de Menores. Alguns
dias após regressam triunfantes e, inclusive, debochando ao reencontrar suas
vítimas”.
Os comerciantes da estação rodoviária, sem
exceção, também reclamavam dos
constantes furtos e roubos praticados por menores – muitas deles estavam
fechando as suas lojas. “É inacreditável a quantidade de menores delinquentes e
adultos desocupados que frequentam a rodoviária, que já é quase um albergue”,
reclamou o administrador dos condôminos.
Nem mesmo o jogador de futebol, o jovem
craque Paulo Roberto Falcão, de 22 anos, escapava da criminalidade que se
estendia por toda a região metropolitana: na madrugada de sábado, 3 de abril,
na cidade de Canoas, ele foi assaltado e sequestrado por uma dupla de homens
armados que o abandonou depois em Cachoeirinha. Falcão perdeu dinheiro,
relógio, os documentos e também o seu automóvel Chevette.
Outro caso envolvendo pessoas conhecidas
aconteceu na rua Duque de Caxias: quando comprava jornal em uma banca, o
deputado estadual Jairo Brum foi agredido e ferido por três homens e teve sua
carteira arrancada, o mesmo acontecendo dias depois com um prefeito do
interior, assaltado e espancado por assaltantes em frente ao Tribunal de
Justiça. Uma pessoa que desceu do carro para tentar socorrê-lo quase foi
massacrada pelos bandidos e ainda teve o desprazer de ter seu automóvel multado
por um PM que surgiu logo depois.
Ao ser roubado pela terceira vez no mesmo
local – o final da linha Jardim Botânico – um leitor que se identificou apenas
como “um assaltado” (Caso de Polícia, Correio do Leitor, janeiro de 1975),
criticou amargamente a ausência de policiamento a pé na zona central. Dominado violentamente
por dois homens desarmados que dele levaram dinheiro e pertences - eram três
horas da tarde de um domingo - disse ter percorrido diversas ruas atrás de um
policial, “mas a nenhum encontrei”.
Na Assembleia Legislativa os deputados de
oposição pediam providências e acusavam as autoridades da segurança de falta de
atitudes, enquanto os governistas ensaiavam uma constrangida defesa. “Hoje
ninguém pode sair de casa, viajar ou ir até o colégio sem que seja assaltado”,
bradou o emedebista Valdir Lopes, apenas mais uma das vozes que faziam eco ao
fenômeno que assolava quase todo o país. No Rio de Janeiro, por sua vez, uma onda
de sequestros desafiava e colocava em xeque a polícia fluminense, que ainda não
conseguira esclarecer o rumoroso caso do menino Carlos Ramires, o Carlinhos,
sequestrado em 1973. No estado gaúcho a cidade de Passo Fundo tomava medidas
para reverter a incômoda fama de “Chicago dos pampas”.
Convidado a palestrar na sede da Federação
das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, sobre o crescimento generalizado
da criminalidade urbana, o secretário da Segurança Pública, coronel José Paiva
Portinho, preferiu lembrar que o problema era mundial e que o código civil brasileiro
estava defasado, sem contar as causas sociais, como o crescente êxodo rural e a
explosão populacional.
Também o perfil dos criminosos estava
mudando, com um grande aumento de assaltos praticados por indivíduos drogados,
“o que não se verificava em anos anteriores”. Ele apontou ainda os baixos
salários pagos aos policiais, a fartura de armas clandestinas e a “romantização”
dos criminosos por parte dos meios de comunicação como fatores de estímulo ao
crime. “E não podemos esquecer que existem hoje 1.400 presidiários foragidos no
Estado”, lembrou o Secretário, reconhecendo a problemática das seguidas fugas e
geral precariedade do sistema penitenciário gaúcho.
Mesmo
assim, “uma média de dois marginais por dia estão sendo autuados em flagrante
de vadiagem e recolhidos ao presídio central”, informou, por sua vez, o
delegado Mário Cláudio Schneider, titular da delegacia de Furtos e Roubos da
capital. Segundo ele, tal tipo de flagrante era feito 30 dias depois de a
pessoa ter assinado um documento em que alegava estar desempregada. “Passados
os 30 dias, se o elemento não consegue ocupação, é flagrado e pode ser
condenado até a um ano de cadeia”. Já o comandante geral da Brigada Militar
(que empregava parte do seu efetivo nos serviços de trânsito), tenente-coronel
Jesus Linares Guimarães, mesmo enaltecendo os esforços da sua corporação,
apontava a necessidade de mais dois mil homens para se garantir um eficiente
policiamento ostensivo das ruas da capital. O efetivo total da Brigada era então
de 17 mil homens e muitas pessoas pediam a volta da guarda civil, mudança nas
leis e até mesmo a aplicação da pena de morte para enfrentar o problema.
Em outubro, durante oitavo Encontro
Nacional de Delegados de Polícia que aconteceu em Belo Horizonte, o vice delegado
geral de São Paulo (onde, segundo ele, somente na capital registrava-se uma
média de 70 assaltos a cada dia), lembrou que o aumento da criminalidade tinha
muito a ver com a proliferação e o uso das drogas. José de Souza Ferreira defendia
uma solução radical para o problema: “Os traficantes deveriam ser fuzilados em
praça pública, tal como ocorreu com os comunistas na Tailândia”.
No início do ano de 1975 o Correio do Povo observava:
“Porto Alegre é uma cidade sem
policiamento ostensivo regular. Por isso, assaltantes e marginais operam
livremente no centro e subúrbios, atacando pessoas e levando bens. Menores de
várias idades ocupam pontos do centro, com preferência pela rua dos Andradas e
os abrigos, enquanto prostitutas andam na praça Parobé, volta do Mercado e
proximidades. Os camelôs fazem o que querem e esmoladores perturbam as filas de
ônibus e táxis, aborrecendo e também roubando(...). “Abrir carteira de dinheiro
nos abrigos pode dar assalto a qualquer momento. É perigoso transitar à noite
por qualquer via pública do centro. Há vias públicas impraticáveis após as 20
horas. (...) Não há policiamento e nem retirada de menores de circulação, como
tem sido dito pelas autoridades. Se eles são retirados, voltam pouco depois”.
A metade dos anos setenta viu crescer de forma alarmante a criminalidade na Capital: o centro era "terra de ninguém". |
Em maio
de 1976, em editorial “Os donos do centro”, a Folha da Tarde observava uma
novidade: os bandidos, os donos do centro, não contentes em roubar, também
estavam movendo “permanente campanha de intimidação, ameaçando com violência e
outras represálias todo aquele que se disponha ou tenha ousado denunciá-los”.
Antes, em 4 de março, usando o espaço do Correio do Leitor,
um capixaba de Vitória, que costumava vir seguidamente a Porto Alegre,
surpreendeu-se com o que agora via. Depois de ter testemunhado seis roubos no
centro e visto poucos policiais nas esquinas, Herço (sic) Bastos afirmou: “A partir daí passei a observar que a cidade
está repleta de malandros, desocupados, gente mal encarada e que visam
exatamente ao turista que, provavelmente, não mais voltará(...). Desta vez
Porto Alegre me pareceu um Porto Triste, onde se anda em sobressalto, com as
senhoras agarradas às bolsas, que muitas vezes são arrancadas ou cortadas com
giletes. Como se pode falar em turismo neste País quando exatamente a grande
Porto Alegre se comporta assim? É claro que isso está acontecendo em São Paulo,
Rio e Salvador, mas Porto Alegre me assustou tanto que eu tive de andar com um
canivete no bolso, por me achar tão inseguro”.
Afirmando que,
para ele, “a segurança do cidadão é a segurança da própria Pátria”, outro
leitor, dias depois, na mesma coluna, perguntava às autoridades: “Queria perguntar por que os guerrilheiros
foram destroçados em dois tempos e os bandidos parecem ser sempre mais
triunfantes? Por que os bandoleiros entram e saem com tanta facilidade da
cadeia? Por que os legisladores não atualizam essas leis ainda de Cr$ 5,00 de
fiança e não partem para a defesa das populações ameaçadas?”
Nesse “Porto Triste” a polícia fazia espalhafatosas operações
de revista e detenção. O parque Moinhos de Vento – certamente uma das zonas
mais problemáticas – era o teatro preferido de abordagens de traficantes e
“toxicômanos”, às vezes com mais de uma centena de suspeitos conduzidos às
delegacias nas traseiras das caminhonetas Veraneio, os camburões da época. O
mesmo ocorria com o parque da Redenção, na zona central da cidade.
PORTO ALEGRE, A SÉTIMA CIDADE BRASILEIRA,
INCHAVA COM O ÊXODO DO INTERIOR
Segundo projeções do IBGE, esta Porto Alegre
somava uma população de 1.043.964 habitantes em primeiro de julho de 1975, a
sétima maior cidade brasileira e a quinta maior região metropolitana do País (1
milhão e 836 mil habitantes distribuídos por 14 municípios), perdendo apenas para
São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Recife.
A Grande Porto Alegre representava 27% de
toda a população gaúcha. Com o acelerado êxodo rural em curso previa-se que, em
1990, 42% de todos os habitantes do Rio Grande do Sul estariam nas imediações
da Capital, residindo em sua maioria nos chamados cinturões de pobreza, conforme
expressão da época. Dados do Departamento Municipal de Habitação indicavam que
existiam 110 mil pessoas morando em “malocas” no município em 1975 e que a cada
ano chegavam mais mil famílias faveladas.
A situação era ainda pior nas então cidades
satélites da região metropolitana, muitas delas sem luz elétrica, sem
recolhimento de lixo, sem abastecimento de água e sem calçamento das ruas.
No início de abril de 1976 a Folha da Manhã
publicou reportagem relatando as dificuldades enfrentadas pelos moradores das
vilas de Viamão. Na Santa Cecília, onde residiam mais de 100 famílias, os
moradores que tinham carro aproveitavam os finais de semana para buscar água em
tonéis a fim de abastecer a casa nos outros dias, situação repetida em dezenas
de vilas. Muitos contratavam os serviços de carroceiros, que cobravam por frete
(buscavam em poços distantes) e já não davam conta de tantos pedidos.
Apesar da péssima infraestrutura, da
relativa crise econômica e do aumento de 35% no custo de vida registrado na Capital
e que se estendia a outras cidades, vivia-se um regime de quase pleno emprego no
Rio Grande e em quase todo o País. Segundo o setor de identificação da
Delegacia Regional do Trabalho, durante o ano de 1975 foram expedidas 132.473
carteiras profissionais somente em Porto Alegre. Novos edifícios surgiam –
dados da Secretaria Municipal de Obras e Viação informavam que 24 prédios foram
construídos em 1975 na zona central, a campeã em índices de crescimento,
seguida de Petrópolis, Menino Deus e bairro Rio Branco.
Apesar da crise mundial, o Brasil cresceria 4% naquele ano de 1976. O Rio Grande havia crescido 10% em 1975. |
Antevendo o futuro e seus problemas, o prefeito
Guilherme Socias Villela, de apenas 39 anos, em seu primeiro ano de governo, anunciava
uma série de medidas para evitar que a capital se tornasse “inviável” nos
próximos vinte anos, o que incluía levar adiante o projeto Renascença,
financiado pelo Banco Nacional da Habitação, BNH, bem como humanizar e ordenar
a zona central, revitalizando especialmente o trecho da Rua da Praia que seguia
rumo ao Gasômetro, área deteriorada ao longo do tempo. Ele também propunha
fechar parte do centro ao trânsito de veículos e proibir a instalação de
agências bancárias na rua dos Andradas.
Outro projeto seu, o Pró-Gente, destinava-se
à infraestrutura das vilas de Porto Alegre, muitas delas sem água canalizada e
iluminação pública. No centro, as chamadas malocas que existiam quase às
margens do Guaíba, próximas à Ponta da Cadeia (onde estava a “velha usina
abandonada” do Gasômetro, que alguns, contrários à sua comentada demolição,
propunham recuperar para transformá-la em “usina de criatividade artística”),
iam sendo removidas pela municipalidade, parte do projeto rodoviário da Primeira
Perimetral. Também o que restara da Ilhota – a mais antiga favela da capital,
“o fascínio de todos os prefeitos que ocuparam o Paço desde as cheias de 1941”,
segundo o jornalista e político Alberto André – estava sendo pavimentado e seus
moradores transferidos para os novos loteamentos da Vila Nova Restinga, bairro
popular que, ao seu término, abrigaria “uma cidade de mais de 20 mil
habitantes”. A rigor, a Restinga era considerada a grande experiência pública na
busca de uma solução para a carência habitacional.
CP: os moradores da Ilhota, no centro, ganhavam agora um novo endereço: a Restinga. |
Na área dos transportes coletivos a Cidade
Sorriso ganhara recentemente um importante reforço: as novas linhas
transversais, ou T, da empresa Carris, interligando os quatro cantos da Capital,
sem passar pelo centro. Também o serviço de lotações estava finalmente sendo
oficializado e regulamentado. Villela espelhava-se naquilo que o prefeito e urbanista
Jaime Lerner, 38 anos, fizera em Curitiba, modelo para novas experiências
urbanas. Porém as obras viárias mais importantes naquele momento eram maiores e
mais vistosas: o aterro do Guaíba na Praia de Belas, permitindo o surgimento da
avenida Beira-Rio e o asfaltamento de trechos da avenida Bento Gonçalves (onde
estava se construindo a rótula na esquina da Salvador França e Aparício Borges,
parte do projeto da Terceira Perimetral) e da Cristiano Fisher.
Também estavam sendo construídos o centro administrativo
do Estado, para abrigar todas as secretarias de governo, e a nova ponte sobre o
riacho Dilúvio, na rua Silva Só, a chamada segunda ponte da Ipiranga,
desafogando o tráfego norte-sul.
Cidade em transformação: viaduto Obirici, em obras, em 1975. CP |
Esta cidade em remodelação retratava uma das
preocupações mundiais dos anos setenta, a chamada década da urbanização em todo
o mundo, sobretudo no chamado terceiro: o gigantismo e a desumanização das
metrópoles, a explosão demográfica, a violência, a criminalidade, as novas
máquinas e a revolução tecnológica, o reinado do asfalto e do cimento, a
poluição ambiental, visual e sonora, a necessidade de áreas verdes e de lazer, o
excesso de automóveis, a solidão e as neuroses das pessoas isoladas em prédios
impessoais e feios.
Uri Gheller: o israelense fazia um sucesso extraordinário naqueles anos 70. |
Porto Alegre sentia-se incluída no problema,
sobretudo depois da administração de Telmo Thompson Flores e sua interminável sequência
de grandes obras que alteraram radicalmente a paisagem urbana da capital –
viadutos, elevadas, prédio públicos e, sobretudo, o alto muro de concreto ao
longo do cais do porto, a “cortina da Mauá”, que separava o Guaíba do restante
da cidade e cuja visão “depressiva” ainda chocava muitos porto-alegrenses. (Paradoxalmente,
Thompson Flores também afirmara, quando assumiu a prefeitura, ser a humanização
da cidade a meta central do seu governo).
Na realidade a capital gaúcha olhava-se no
espelho e, contraditoriamente, sob vários aspectos, se achava decadente, feia, suja,
abandonada e até doente – mas queria urgentemente remoçar.
Em junho de 1975, menos de dois meses depois
da posse de Villela, o Correio do Povo observava (“Cidade em Fase Crítica”): “Porto Alegre vive um período crítico, embora
engrandecida por obras viárias de vulto e que eram indispensáveis. A cidade
está, na opinião da maioria do povo, feia, suja e mal adaptada aos reclamos de
uma população crescente”.
Dias depois o diário voltou a comentar o
assunto (“Uma cidade em transformação”), enfatizando que vivia-se o momento
inadiável de se virar o jogo, e nisto estavam depositadas as esperanças no novo
prefeito: “Porto Alegre, sob certos
aspectos, continua aguardando uma grande reformulação. A cidade permanece,
principalmente na sua zona central, maltratada, descuidada, suja e com má
iluminação. O serviço de limpeza pública não consegue vencer a falta de
consciência por parte do povo na manutenção das ruas e avenidas limpas. (...)
Muitos afirmam que Porto Alegre não possui mais condições de ser recuperada,
que seu crescimento atingiu aquele nível considerado “sem retorno”.
A Capital vivia um momento histórico: passava a ser uma grande cidade, e "humanizar" era a palavra da moda. |
Boa parte da culpa pela sujeira das ruas e locais públicos
poderia ser atribuída aos próprios porto-alegrenses, assegurava o CP no início
de 75 (“A antiga cidade limpa”): “Nosso
povo ainda parece julgar, apesar de alguns indícios de melhora, que as ruas,
praças e avenidas não pertencem a ninguém e, como tal, podem ser usadas de
qualquer forma. Jogar papéis, cigarros ou outros objetos continua um hábito
comum nas ruas de Porto Alegre”.
Fosse como fosse, no final do ano de 76, o
jornal observaria sinais auspiciosos: “Está
começando a se criar uma nova consciência comunitária em Porto Alegre, aliás há
muito tempo esperada e necessária. Tornou-se frequente ouvir daqueles que não
visitavam Porto Alegre nos últimos anos a surpresa diante da decadência da
capital gaúcha, principalmente nas áreas do centro”.
Por esse tempo a cidade discutia a si
própria e a “morte da rua da Praia” frequentava as conversas dos cafés e bares.
“Sociólogos, escritores, jornalistas, professores, enfim, toda uma gama de
pessoas que se interessam pela vida desta cidade está pedindo que se faça algo
para preservar a tradicional artéria urbana”, escreveu o mesmo Correio no final
de março.
Saudoso do footing, do chocolate com creme,
do chopinho com fritas e do papo inesgotável junto ao meio-fio da calçada, o
jornalista e cronista Antônio Carlos Ribeiro, em sua coluna dominical Ribalta
das Ruas, duvidava da prometida “remodelação” da Rua da Praia e dos calçadões que
surgiam com seus camelôs e hippies:
“Esta
Rua dos Andradas que tentam nos impingir, hoje, nada tem a ver com a Rua da
Praia dos nossos flertes coloridos. Por isso alertai-vos distraídos e
distanciados cosmonautas: a amada de todos não é mais deste mundo. Em seu
lugar, como um bonde encalhado, este pobre arremedo, misto de travesti e de
espantalho – o feio, chato e sujo calçadão sem alma e sem poesia”.
Intitulando-se um urbano irreparável,
nascido em Porto Alegre (“e nunca me arrependi”), o escritor, jornalista e
redator publicitário Luís Fernando Veríssimo, 39 anos, via, sim, o surgimento
de uma nova Porto Alegre em contraposição a outra, “e a nova Porto Alegre, se é
completamente diferente da outra, não é necessariamente inferior”. Para ele o fim da era antiga tinha relação com
a desativação dos bondes (março de 1970): “Não
sei quando começou a mudança, mas certamente o fim da última linha de bonde
marcou o fim da era antiga. Os velhos bondes servem como símbolo do nosso
passado recente. Eram lentos e pouco confortáveis mas tinha a mesma
regularidade e constância dos nossos hábitos. Atrapalhavam o trânsito, mas
naquele tempo o trânsito ainda não era a angústia maior do cidadão. E com suas
linhas bem definidas – e o que pode ser mais definido do que um traçado de
trilhos? – davam ao complexo urbano uma ideia de organização, de coisa acabado
e estável. Uma ilusão, claro, pois se nenhuma cidade economicamente ativa do
mundo pode se considerar acabada, uma cidade brasileira no início da era do automóvel
no País, muito menos”.
MORRE-SE MAIS NO TRÂNSITO DO QUE DE MENINGITE,
DIZ JAIR SOARES
Apesar da crise econômica mundial, da
inflação crescente, da alta do preço do petróleo e do decorrente encarecimento
dos combustíveis, aquele final de março e início do mês de abril encerravam definitivamente
um verão em que os porto-alegrenses debandaram rumo às praias de mar e em
direção dos balneários de Santa Catarina, incluindo a quase selvagem Garopaba e
a sua Praia do Rosa. Isto era facilitado pela moderna free-way, a autoestrada Porto
Alegre-Osório, com seus quase 100 quilômetros de extensão e que ainda não
completara três anos de vida.
Tal como hoje, a contabilidade dos mortos e
feridos comprovava o “massacre das estradas”, a “chacina do trânsito”, não
obstante as estatísticas do ano de 1975, coletadas por todas as Ciretrans (Circunscrição
Regional de Trânsito) do Estado, apontassem, em relação a 1974, uma queda de
23% no número de mortes (O ano anterior, 73, fora ainda pior: 295 pessoas foram
vítimas fatais de acidentes de trânsito somente na capital).
Mesmo assim, segundo o Detran, em 1975
haviam morrido 263 pessoas em Porto Alegre (com sua frota de cerca de 200 mil
veículos), sendo o mês de junho o mais fatídico: 522 acidentes e 31 mortes. O
sábado, em 75, foi o dia da semana que mais matou, com 20,3% dos acidentes
fatais, enquanto nos quatro primeiros meses de 76 esta posição foi ocupada pela
sexta-feira.
A avenida Protásio Alves tornou-se a campeã durante
os doze meses de 1975 – 716 ocorrências, com 13 vítimas fatais (em 1973
registrou-se o recorde: exatamente 30 pessoas morreram na mesma via). Em
segundo lugar vinha a avenida Assis Brasil, com 711 acidentes e 28 mortes – o
que a tornava a mais mortífera das grandes vias. Já a Bento Gonçalves registrou
20 vítimas fatais, a Ipiranga 14 mortes e a Farrapos outras seis.
Na véspera do Natal de 1975 – com a corrida
às compras, o coração da capital se transformou em uma caótica colmeia humana e
motorizada – em menos de dez horas as autoridades do trânsito já haviam
contabilizado 75 acidentes nas ruas do centro, com duas pessoas mortas e 120
veículos avariados. “Quem puder evitar
entrar no centro da cidade durante todo o dia estará comprando, no mínimo, mais
alguns anos de vida”, advertiu o jornal Zero Hora.
No início de novembro de 75, durante a
Primeira Semana Médica do Hospital de Pronto Socorro, o diretor da instituição,
Ubirajara Mota, apresentou estatísticas ainda mais alarmantes: conforme ele,
uma média de 20 vítimas de acidentes de trânsito em Porto Alegre eram atendidas
diariamente no HPS, e destas duas morriam. Também em novembro o secretário estadual
da Saúde, Jair Soares, reportou-se ao ano anterior de 1974, quando, lembrou,
“os acidentes de trânsito fizeram mais vítimas do que a meningite”. Por ocasião
do Primeiro Encontro Sobre Trauma, acontecido na Associação Médica do Rio
Grande do Sul, AMRIGS, Soares informou que essa era a quinta causa de mortes no
Estado – em 74, de cada 13 pessoas que faleceram no território gaúcho, uma teve
morte devido a isto.
Já em dezembro de 1974 o Correio do Povo comprovava:
“Mata-se no trânsito com uma impunidade
que, além de ferir, está humilhando o povo”, para em seguida lamentar o que
se via diariamente na capital dos gaúchos: “O
trânsito de Porto Alegre é um espetáculo anárquico, triste e perigoso. Jogam-se
os carros nas ruas e avenidas sem muita preocupação com os demais. O pedestre
parece que se tornou simplesmente um obstáculo que deve ser afastado a qualquer
preço, e os veículos usados para condução das massas, quando não se encontram
em condições precárias, são dirigidos com um mínimo de cuidado e o máximo de
velocidade possível”.
Em outubro de 1976 o diretor do HPS informou
que, dentre todas as ocorrências registradas na instituição, tais acidentes
continuavam liderando as estatísticas, com uma média de 45 casos a cada dia,
gerando uma enorme despesa para os cofres públicos.
Conforme o centro de operações da Brigada
Militar e a Delegacia de Acidentes, o dia mais acidentado do ano na Capital
tinha sido o 3 de setembro, uma sexta-feira chuvosa, com mais de 60 ocorrências
registradas, a maioria colisões e atropelamentos. Dos envolvidos, 15 pessoas foram
acabar no Hospital de Pronto Socorro, algumas em estado grave.
Por exemplo: na esquina da avenida Ipiranga
com a Salvador França (que ainda não tinha ligação com a Protásio Alves) uma
caminhonete Veraneio conduzida por um homem de 42 anos chocou-se contra um
Gordini dirigido pelo cidadão chamado Jairo Celeste da Costa, que teve apenas
ferimentos leves. Porém os outros dois ocupantes do carro – um rapaz e uma
mulher de quarenta anos – sofreram lesões graves e precisaram de cirurgias. Na noite
da mesma sexta-feira, na BR-116, em Guaíba, um ônibus que viajava de Porto
Alegre para Butiá colidiu com uma jamanta de Santa Catarina e uma camionete
Brasília de São Lourenço do Sul. Quatro passageiros do ônibus morreram e outros
30 saíram feridos.
Nas ruas e avenidas de Porto Alegre a
situação não era menos perigosa no que tange ao transporte público: de março a
agosto de 1976 ocorreram 2.622 acidentes com ônibus urbanos, o que dava uma
média de 14 casos diários. O mau estado da frota e a estressante e excessiva
jornada de trabalho dos motoristas (alguns dirigindo por 14 horas contínuas) explicavam
grande parte do fenômeno.
O Estado detinha outro recorde negativo –
segundo o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, DNER, a estrada federal
com maior número de acidentes em todo o Brasil era a BR-116, trecho entre Porto
Alegre e Novo Hamburgo. A rodovia – a segunda em volume de tráfego, superada
apenas pela Via Dutra – tinha registrado a metade dos 2.436 acidentes
contabilizados entre janeiro e maio de 1976, com 83 mortos. A maioria dos
acidentes de trânsito derivava do excesso de velocidade e da imprudência dos
motoristas.
Trânsito
este que, afora rodovias e vias urbanas, incluía ainda inseguras ferrovias e antiquados
trens de passageiros e de cargas, os “Minuanos” (e também os recentes e mais
modernos trens húngaros), como o que seguiu de Quaraí para Alegrete na tarde de
19 de abril, segunda-feira: ao dobrar uma curva, perto da estação Severino
Ribeiro, a 60 km do centro de Alegrete, a composição descarrilou, matando cinco
passageiros e ferindo outros 46 dos mais de cem que estavam a bordo.
Informações preliminares indicavam que os
pinos de segurança dos vagões haviam se desprendido, muito embora diversas
pessoas denunciassem a velocidade excessiva desenvolvida pelo maquinista. A
composição, de sete vagões, fazia tal viagem três vezes por semana
transportando sobretudo sacoleiros que seguiam para a cidade uruguaia de
Artigas.
Oito meses depois desse fato, quase ao
término do ano e na mesma região, outro acidente envolvendo um trem deixou
quatro passageiros mortos e dezenas de feridos, um dos quais perdeu um braço e
uma perna. Na terça-feira, 28 de dezembro, o expresso misto de carga e
passageiros que seguia de Porto Alegre para Uruguaiana chocou-se contra um
caminhão em um cruzamento, a apenas seis quilômetros da cidade de Alegrete.
Segundo testemunhas, por volta das 12h45min, o caminhão, carregado com 100
borregos (carneiros de até um ano de idade), cortou a frente da composição da
Rede Ferroviária Federal.
Na quarta-feira, 14 de abril, uma ferrovia
ainda em construção, a 491, no distrito de Dois Lajeados, município de Guaporé,
a cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre, local de paisagens belíssimas,
cobrou em existências humanas o preço do desenvolvimentismo a todo custo dos
anos setenta: cinco operários perderam a vida ao despencarem de um andaime, a
quase 80 metros do solo. Dois outros que
trabalhavam no mesmo viaduto (sob a responsabilidade do Primeiro Batalhão
Ferroviário do Exército), conseguiram se segurar milagrosamente em um dos cabos
da ponte.
Segundo os policiais civis de Guaporé, já
chegavam a 13 as mortes naquele trecho da chamada Ferrovia da Produção - apenas
uma gota em um oceano de um acidente do trabalho que ocorriam a cada três
minutos em território gaúcho, nos cálculos do Ministério do Trabalho - Caxias do
Sul liderava o ranking estadual, com uma média de 50 novos registros diários.
O GOVERNO TABELA O PREÇO DO CHOPE, OS
VERANISTAS RECLAMAM DOS HIPPIES
Em Tramandaí, já então a capital das praias,
a preocupação era menos trágica: os veranistas – boa parcela vinda de pequenos
municípios interioranos - reclamavam da confusão urbana, dos esgotos a céu
aberto, dos preços escorchantes dos aluguéis e das bebidas (a SUNAB,
Superintendência Nacional de Abastecimento, resolveu intervir e tabelar a
tulipa de chope em 4,00 reais), da má educação dos jovens, da proliferação de
mochileiros, dos hippies nas calçadas e do atordoante barulho que não deixava
ninguém dormir.
Também pediam enérgicas providências contra
aqueles que não cumpriam a lei do silêncio e contra os “magrinhos” (jovem
moderno e descolado) que faziam “cavalo-de-pau”, rachas e exibicionismos
automobilísticos nas ruas e avenidas do balneário. Já os corretores de imóveis afirmavam
que aquele verão deixava muito a desejar em relação ao do ano anterior, quando
havia mais fartura de dinheiro.
“Está sobrando casa em Tramandaí”, informou
um corretor, lamentando a proliferação das barracas. Com a crise do petróleo, a
carestia e os preços altos muitos visitantes “farofeiros” de final de semana
preferiam acampar em campings ou mesmo em terrenos baldios.
Mas aquele verão de 76 era também o quente
verão dos afogamentos causados pela imprudência. Longe da vigilância dos
salva-vidas da Operação Golfinho, os gaúchos do interior que não haviam tomado
o rumo do litoral morriam às dezenas.
Levantamento junto às sucursais da Companhia
Jornalística Caldas Júnior, indicavam que do final do mês de dezembro até o
final da primeira quinzena de janeiro 54 pessoas morreram afogadas nas águas
dos rios, açudes e arroios do Rio Grande do Sul, índice muito superior ao de
igual período do ano anterior. Em 1975, até o final de fevereiro, 96 pessoas
tinham perecido desta forma em 32 municípios do Estado, número que certamente
seria agora superado – para se ter uma ideia, em um único final de semana nove
pessoas perderam a vida durante pescarias ou piqueniques dominicais. Santa
Maria registrava 14 casos, a maioria na barragem do rio Vacacaí e no Passo do
Verde, “definitivamente marcados como dois dos lugares mais perigosos do
Estado”.
Menos perigosas, mas poluídas em quase toda
a sua extensão, as praias do Guaíba continuavam a atrair nos dias quentes e nos
finais de semana o mesmo público de sempre: famílias de baixa renda, muitas vindas
da região metropolitana, as quais – com seus churrascos ao ar livre e suas
cervejas em caixas de isopor - lotavam os balneários de Ipanema, Guarujá,
Serraria e Pedra Redonda. Mesmo desaconselhando a prática do banho, o
secretário da Saúde, Jair Soares, garantiu que, em dois anos, não havia sido
encontrado nenhum vírus perigoso na água, não restando alternativa às
autoridades senão colocar placas de advertência e sinalização.
CALÇAS
BOCA-DE-SINO, HERMES AQUINO, ALMÔNDEGAS, CHEVETTE, HI-FI
Em
termos de comportamento vivia-se uma época de gosto estético também perigoso e
discutível, especialmente na área da moda, com as exóticas calças boca-de-sino
e de veludo, as estranhas pantalonas, as jaquetas “apache”, os cabelos black-power.
Mister Lee: quem não lembra dele? |
Época pré-diluviana dos aparelhos três-em-um
(toca-discos, toca-fitas e rádio), dos hi-fi Telefunken estereofônicos, das
fitas cassete, do som Gradiente, da Casa Victor, do Transasom, do surgimento
das FMs, da loteria esportiva, dos carros envenenados com pneus tala-larga, do
Maverick, do Opala, do Corcel, do Chevette e do Passat, do Belchior cantando Apenas
um Rapaz Latino Americano, do Morris Albert e seu “Feelings”, da Elis com o
show Falso Brilhante, dos Doces Bárbaros, do Gilberto Gil preso em
Florianópolis, dos jogos de xadrez do Mequinho, das praias do Rosa e do Tigre, das
máquinas de escrever elétricas IBM, da Florinda Bolkan, do Edson Mandarino, da
Grapette, dos ônibus sem banheiro, do Mobral, das aulas de Moral de Cívica, do
OSPB, da “denúncia vazia”, das revistas Homem e Placar, da calculadora Sharp,
dos brinquedos Atma, da Kodak Instamatic, da Minolta e da Polaroid, da TV
Colorado “totalmente transistorizada”, do cooper na praia, do tênis do Thomas
Koch, da Copa Arizona, da camisa U.S.Top, do Hermes Aquino cantando Nuvem
Passageira, de Jane e Erondi e seu “Não Se Vá”, do Mister Lee, do Concorde, do
escândalo da Lockheed, da “grande sacada”, da camisa Tergal, dos eslaques, das
discotecas e do grupo Abba, dos Carpenters, do Elton John, do Correspondente
Renner, do Dinosul, dos animais maltratados e das brigas animais da Dona
Palmira, do Gérson fazendo propaganda dos cigarros Vila Rica e “levando
vantagem em tudo”, das previsões astrológicas de Zora Yonara e Omar Cardoso, do
Wando cantando “Moça”, da Rádio Itaí, dos “contratos de risco”, dos
petrodólares, do depósito compulsório, dos chás de cogumelo e dos mochileiros
de beira de estrada, da escalada da violência, do Idi Amim Dada em Uganda, do
resgate de Entebbe, do mistério do Triângulo das Bermudas, dos ataques das abelhas
africanas, da OPEP, do Copersucar do Emerson Fittipaldi, do Pace, da Varig-Cruzeiro
“voando juntas”, do Uri Geller entortando talheres na tevê, do Globo de Ouro,
das reuniões-dançantes nas garagens das casas. Ainda se falava “bicho”, “broto”,
“cocotinha”, “magrinho”, “transado”, “motoca”, “cabeça feita” e “cuca legal”.
O Pervitin, uma anfetamina euforizante trazida
da Argentina era, fazia tempo, a droga da “onda”, e a maconha, como sempre, a
mais usual. Porto Alegre, porém, a
rigor, tinha apenas um conhecido traficante a frequentar as páginas dos jornais
– Eduardo Santos Correia, o Anão do Morro da Cruz, na zona leste da cidade, não
obstante a vila Cruzeiro do Sul despontasse como o local mais temido da capital.
Uma Porto Alegre onde, segundo estatísticas
cartoriais, de cada cinco casamentos pelo menos um acabava em desquite. O
divórcio ainda não existia legalmente no Brasil (o senador Nelson Carneiro
trabalhava ativamente para isso), embora as mulheres estivessem cada vez mais
presentes em tudo e já pudessem trabalhar em serviços antes inimagináveis, executando,
por exemplo, serviços de varrição de rua e limpeza de orelhões, algo a merecer
“pitorescas” reportagens da imprensa.
Mulheres que, naquele ano de 1976, ainda
estavam legalmente impedidas de trabalhos noturnos: segundo antigas determinações
da Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, no período das 22 às cinco horas da
manhã o trabalho feminino estava proibido em todo o Brasil, discrepância esta
que levou, em janeiro, um grupo de industriais mineiros a entregar um memorando
ao ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, apelando pela revisão definitiva da ultrapassada
lei federal. Eles alegavam que faltava mão de obra masculina nas fábricas de
Minas, o que deveria se agravar ainda mais com a entrada em funcionamento da
montadora de veículos Fiat, no final do ano.
Em resposta, técnicos do ministério adiantaram que “está muito perto de
ser alcançada a permissão para o trabalho noturno feminino”.
Por convenção da ONU 1975 foi declarado o
Ano Internacional da Mulher e o “belo sexo” – em total evidência na mídia
(termo este ainda pouco usual) - parecia mesmo ansioso para deixar de lado os históricos
grilhões da discriminação e da dependência masculina. Estatísticas da Fundação
Gaúcha do Trabalho revelaram que, das 30.020 pessoas treinadas em cursos
profissionalizantes no Estado em 75 nada menos do que 19.935 eram mulheres. O
secretário do Trabalho e Ação Social, Carlos Alberto Chiarelli, comentou a
respeito: “A mulher gaúcha está tomando plena consciência das suas
potencialidades”.
A Folha da Manhã noticia a abertura de comportamento: mulher em serviço que era exclusivo dos homens. |
De certa maneira isto pode ser retratado no
dia 11 de agosto, dia do Advogado. Naquela quarta-feira, em cerimônia no Palácio
Piratini, foram nomeadas as quatro primeiras promotoras de justiça concursadas
do Rio Grande do Sul: Ligia da Costa Barros, de 25 anos, solteira; Iolanda de
Oliveira Samuel, 30 anos, solteira; Eunice Teresinha Ribeiro, 27 anos; e Marly
Raphael Mallmann, casada com um professor de Matemática. Antes delas apenas uma
mulher, não concursada, havia desempenhado tal função no Ministério Público
gaúcho.
Com longa história pregressa (acentuada e
maturada no início dos anos setenta), o processo de emancipação da mulher,
bandeira do movimento feminista iniciado principalmente nos Estados Unidos, o
“Women’s Lib”, era um fenômeno mundial irreversível. No dia 30 de dezembro de
1975, por exemplo, os jornais ingleses noticiavam que “começou hoje uma nova
era em matéria de direitos da mulher”, quando entraram em vigor leis que
proibiam a discriminação sexual no trabalho, no lar e nos empregos”. Chamadas de
Ata de Discriminação Sexual e Ata de Pagamento Igualitário, foram considerados
os principais avanços em questões de direitos da mulher desde o estabelecimento
do voto feminino no país, em 1918. Entre
outras coisas, penalizavam as ofertas de empregos somente para homens, os bares
exclusivamente masculinos e tornavam ilegal a exigência de um fiador masculino
na concessão do crediário para as mulheres. A partir dali elas poderiam exigir
o mesmo salário que os homens e todos os direitos que estes gozavam – a lei
criava também uma comissão para vigiar a aplicação das novas medidas.
Nos Estados Unidos os direitos iguais já
não despertavam tanta polêmica e resistência e, aos poucos, muitos dos Estados
que não o ratificaram anteriormente estavam aprovando emendas locais com o
objetivo de reduzir a discriminação sexual. Por estas e outras a enérgica ativista
Betty Friedan, de 54 anos, considerou um insulto o que aconteceu na Conferência
Mundial do Ano Internacional da Mulher promovido pela Organização das Nações
Unidas, ONU, em junho de 1975, na cidade do México: “Designar um homem (o
ministro da Justiça do México) como presidente da Primeira Conferência
Internacional da Mulher é realmente um insulto às mulheres”, atacou, criticando
ainda a manipulação das mulheres ali presentes pelos seus governos e grandes
empresas: “As delegações aqui estão representando os seus governos, e não as
mulheres”.
Doze anos antes, em 1963, Betty – até então
uma simples esposa e dona-de-casa - publicou seu livro A Mística Feminina, um best-seller,
quase a bíblia do feminismo moderno e que a projetou mundialmente. Naquele
mesmo ano falecia no Rio Grande do Norte a primeira mulher eleita para um cargo
público na América Latina – ao menos assim teria dito o New York Times. Em
1927, quando as mulheres ainda nem votavam, a potiguar Alzira Soriano, de 32
anos, foi eleita prefeita do minúsculo município de Lajes, a 125 km da Capital.
Curiosidade: de 27 para 72, e trocando a
direção de um município para o volante de um ônibus de passageiros, chega-se ao
ano de 1972. Passados quase meio século da posse da primeira prefeita, a jovem Maria
de Lourdes Conceição, 27 anos, se tornaria a primeira mulher a dirigir
profissionalmente um ônibus de passageiros no Brasil. No dia 13 de março,
segunda-feira, em veículo da Companhia Municipal de Transportes Coletivos,
CMTC, para espanto de muitos passageiros, ela fez a viagem da linha
Brooklin-Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo. Casada, dois filhos, ex-caminhoneira,
saiu do trabalho diretamente para dar entrevistas às televisões, que destacaram
“mais esta importante conquista feminina”.
Ela teve mais sorte do que muitas moças que
haviam se formado em química pela Escola Técnica Federal da Bahia, as quais não
estavam conseguindo emprego nas empresas do Polo de Camaçari e muito menos eram
aceitas pela Petrobrás sob a alegação de “incompatibilidade biológica feminina
com o tipo de trabalho exigido”. Embora oficialmente negasse a discriminação, o
diretor da bolsa de trabalho da Universidade Federal da Bahia, Raimundo Caires,
reconhecia haver “uma dificuldade maior na colocação”. Conforme explicou, a
função na Petrobrás exigia quinze dias seguidos de permanência em uma
plataforma marítima e “seria muito desagradável para uma moça ter de trabalhar
esse tempo todo sozinha, cercada por mais de 30 homens, o que poderia lhe
trazer transtornos”.
São Paulo, novembro de 1975: o detetive
Kojak, o careca charmoso, espécie de “machão mais sensível” - vivido na telinha
pelo ator Telly Savalas, 51 anos – declarou aos jornalistas, que lhe
perguntaram a respeito dos direitos da mulher: “Eu dou às mulheres cem por
cento do que elas querem e não admito a igualdade de direitos que elas desejam”.
Acompanhados de belas dançarinas, Savalas
chegara ao Brasil para uma série de shows caça-níqueis que se aproveitavam do
continuado sucesso do seriado na televisão brasileira. “As mulheres, com seus
movimentos feministas, não sabem o que querem. No fim o que desejam mesmo é o
amor do amor, seja branco, negro, careca ou cabeludo”.
Kojak não estava só: particularmente
incomodadas pelas perguntas atinentes ao tema formuladas pelos jornalistas, até
mesmo diversas participantes do concurso Miss Universo 1975, que acontecia em
El Salvador, demonstravam sua irritação. A representante da Colômbia chegou a
dizer que “algumas militantes do movimento de libertação feminina são
libertinas”. Mais radical, a Miss Inglaterra atacou: “Não creio em libertação
feminina e as mulheres que acreditam nesse movimento não devem ver televisão,
nem ler notícias a respeito ou intrometer-se neste concurso”.
Distante das misses, na área cultural
brasileira, o dia 14 de outubro de 1976 – como disseram os jornais - entrava na
História: por votação unânime e que durou apenas 13 minutos, as mulheres já
poderiam ser admitidas na Academia Brasileira de Letras, quebrando um tabu de
quase oitenta anos. O presidente da Casa, Austregésilo de Athayde, sentenciou,
solene: “Este é um momento histórico, e temos consciência disso”. Na verdade, a
ABL apenas reproduzia o que aconteceram na academia francesa de letras: no ano
anterior, pela primeira vez em toda sua história, a instituição indicava uma
mulher para integrar os seus quadros – a escritora, cineasta, historiadora e
militante feminista Louise Weiss, de 82 anos.
Desta vez ela – que havia sido derrotada em outra ocasião – venceu a
eleição e assumiu a vaga.
MAL DE
CHAGAS, TUBERCULOSE, DESIDRATAÇÃO, MENINGITE, CÓLERA...
Na
área da saúde pública brasileira, no final de 1975, os temores da chegada do
vibrião do cólera, já presente em outros países, e também da inusitada gripe suína,
deixaram em alerta as autoridades – no caso desta última pouco havia o que
fazer devido à impossibilidade de se encomendar vacinas a tempo aos
laboratórios norte-americanos e europeus. Felizmente o pior não se confirmou.
CP |
No Rio Grande do Sul o verão costumava ser a
época da proliferação dos mosquitos (em Gramado, Canela e Nova Petrópolis haviam
se transformado em uma verdadeira praga, afetando até mesmo o turismo) e quando
centenas de crianças pequenas morriam de desidratação e de doenças contagiosas
e infecciosas. Mais para o sul do Estado, a doença de Chagas era um sério
problema de saúde pública: no município de Canguçu quase a metade da população
rural possuía a doença inoculada pelo barbeiro. Em Santana da Boa Vista, no sudeste
gaúcho, do total de pessoas examinadas por uma equipe de saúde de Pelotas, 44%
se revelaram portadoras do mal. Também Piratini, Pedro Osório, Lavras do Sul e
Herval sofriam do mesmo problema.
De longe, porém, o caso sazonal mais
preocupante de saúde pública no Estado (e no Brasil) era a desidratação
infantil, a “fábrica de anjos” que, em 90% dos casos, matava filhos recém-nascidos
de famílias de baixa renda. Apesar das
campanhas governamentais a situação não melhorara nos últimos anos.
Pudera: os esvaziados e caniculares meses de
verão em Porto Alegre repetiam o velho drama habitual: hospitais superlotados e
falta de leitos para internação. Nos primeiros 17 dias de janeiro, segundo
dados da secretaria estadual da Saúde, foram registradas mais de oito mil
hospitalizações por causa da desidratação, das quais 1.090 em Porto Alegre – com
16 óbitos confirmados. Em Novo Hamburgo dezenove crianças morreram desta causa
de dezembro de 1975 a janeiro de 1976, enquanto outras 238 foram internadas nos
hospitais da cidade. Tais números representavam um acréscimo em relação à igual
período dos anos passados – em 75 foram 13 mortes. Já em Bagé quatro crianças
foram a óbito de primeiro a 31 de janeiro de 1976 e outras cem precisaram de urgente
hospitalização.
Doença altamente contagiosa, a paralisia
infantil, ou poliomielite, terror de muitas famílias, também recrudescera de
maneira surpreendente na zona sul do Estado. A terceira Delegacia Regional da
Saúde, com sede em Pelotas, comunicou a ocorrência de sete novos casos em
apenas 45 dias, número bem superior ao mesmo período de 1975 - cinco destes aconteceram
na cidade de Rio Grande. Porém, agora, quase no início de maio, com a
proximidade do inverno e do frio, surgira outro temor: a meningite
meningocócica, cuja campanha de vacinação aconteceria em julho.
Como fazia mensalmente, no início de maio a secretaria da
Saúde do Rio Grande do Sul confirmou 82 casos, dos quais 25 na Grande Porto
Alegre, uma queda geral em relação ao ano anterior, quando 319 casos foram
detectados no Estado, de janeiro a maio.
Doença muitas vezes fatal, a meningite tornou-se
uma séria epidemia no Brasil nos anos de 72 a 74, sobretudo em São Paulo, época
em que o regime militar tentou reduzir a sua importância e censurar notícias a
respeito. No Rio Grande do Sul, de primeiro de janeiro a 3 de outubro de 1974
foram registrados 1121 casos que resultaram em 90 mortes. No ano de 1975,
finalmente, o governo federal adotou providências para debelar esse mal graças
à vacinação sistemática.
Por aqueles dias, a fim de tranquilizar a
população a respeito de tantos perigos, o coordenador da Unidade de Assistência
Médica Integrada da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, o
médico sanitarista e escritor Moacyr Scliar (“o mais lido entre os jovens
valores rio-grandenses”), de 39 anos, veio a público e garantiu não haver nenhuma
epidemia de catapora ou de gripe, mas alertou a população para que se
precavesse contra as doenças do inverno, entre elas o sarampo e a rubéola. “Com
a chegada do inverno, a doença que mais se acentua é a difteria, ou crupe, que
ataca a garganta e a laringe e pode matar a pessoa por asfixia”, informou
Scliar.
Primeiro ar condicionado para a maternidade da Santa Casa, em 1975: a modernidade ganhou até espaço na imprensa. CP |
Outra doença grave que havia voltado com
toda a força, a tuberculose, atingia sete mil gaúchos a cada ano e atestava o
quanto o Estado ainda estava longe de atingir bons indicadores na área da saúde,
muito embora o País como um todo não apresentasse um panorama mais animador:
segundo dados do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), 1% da
população brasileira, no ano de 1975, estava internada ou segregada, vítima de
tal bacilo, com 50 mil novos casos a cada ano.
Na Bahia, no mesmo período, o índice de mortalidade devido a este
problema era alarmante – 47 óbitos em cada 100 mil habitantes, superior ao
registrado nos Estados Unidos na década de 30, quando não havia medicamentos
eficazes e muito menos a vacina BCG. No Rio Grande do Sul a tuberculose era a
terceira causa de mortes entre a população.
OS VAMPIROS AGEM NO INTERIOR GAÚCHO E ROUBAM
O SANGUE DAS CRIANÇAS
Considerado algo fantasioso, espécie de lenda rural contada
pelos pais para impressionar e disciplinar seus filhos pequenos, o roubo de sangue
por sinistras quadrilhas de “vampiros” realmente acontecia naqueles anos
setenta – e, possivelmente, bem antes disso.
Ao contrário do que muitos ainda pensam, o tráfico de sangue humano era uma realidade e aterrorizava as famílias. |
Explicava-se: até então mesmo a comercialização
regular de sangue, a “doação mediante pagamento”, poderia ser feita livremente,
uma vez que não havia regulamentação oficial a respeito. Tal comércio só encontraria proibição a
partir do surgimento dos primeiros casos de Aids no início da década de oitenta,
embora já se soubesse ser o procedimento responsável pela propagação de muitas
doenças, entre as quais a de Chagas.
O número insuficiente de doadores e a
necessidade crescente de mais estoques para salvar vidas que necessitavam de
transfusão imediata (o caso dos acidentes de automóvel, por exemplo) serviam
como justificativas para a leniência oficial. Entrementes, as autoridades da
saúde pública promoviam chamativas campanhas de conscientização e de apelo em
favor da doação desinteressada, com destaque para a Semana do Doador Voluntário
de Sangue. Mas a seiva humana valia um bom dinheiro e grande parte dela,
captada de forma clandestina ou criminosa, saía do Brasil e da América Latina,
rumo aos ricos países da Europa e América do Norte.
Pessoas doentes, drogadas ou alcoolizadas,
desempregados em dificuldades financeiras, sobretudo nas grandes cidades,
vendiam voluntariamente seu sangue para conseguir algum dinheiro. No verão de 1976,
segundo a imprensa carioca, comprava-se meio litro deste por 15 cruzeiros, repassado
por 125 a hospitais e laboratórios, chegando a 700 para os pacientes mais
necessitados. Não é difícil se imaginar o valor obtido em países europeus, a
ponta final.
Em abril de 1976, o Correio do Povo
noticiava em sua página policial um caso emblemático de tal situação e que
envolvia um casal de jovens vindos do interior, os quais sobreviviam em Porto
Alegre graças a tal expediente.
“Vendia sangue para comprar alimentos
“Jorge Silva Lima, de 19 anos, e Marlene Silva da Silva, de 15 anos, que
o acompanhou quando ele deixou Bagé há uma semana, foram detidos e encaminhados
à décima terceira delegacia de polícia. Jorge é acusado de raptar a menor. Na
distrital, ele disse que não tinha onde dormir e para poder comprar alimentos
para a companheira vendia sangue a laboratórios da capital. A polícia constatou
que Jorge é tuberculoso e vai providenciar sua hospitalização. Quanto a
Marlene, ela será encaminhada para Bagé, onde residem seus pais”.
Em junho de 1975 o diretor do banco de sangue
do Hospital das Clínicas de São Paulo afirmou: “Milhões de litros de sangue e
plasma são vendidos mensalmente, através de uma rede de tráfico que se inicia
na América Latina e se destina a países europeus, com lucros fabulosos para
muita gente, principalmente para os intermediários que mantêm corretores em
Miami”.
Semanas antes, com grande repercussão, a
maior autoridade mundial no assunto dentro da Organização Mundial da Saúde,
Hendrik Krijnen, havia apontado o Brasil como um dos principais fornecedores de
sangue no mercado negro mundial, conquanto o Ministério da Saúde brasileiro
dissesse “não ter conhecimento de tal atividade ilícita” – na verdade algo que
todos, de sul a norte, sabiam existir.
Portanto, não era de se estranhar que
também no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina o periódico surgimento dos mercadores
de sangue se transformasse em notícias na imprensa, muito embora, ao que tudo
indica, estranhamente, nenhum de tais vampiros humanos tenha sido apanhado ou
preso pela polícia.
No verão de 1976, por exemplo, os jornais
noticiaram vários desses episódios no interior gaúcho e catarinense, todos geralmente
envolvendo um homem e uma mulher, os quais atraíam as crianças com a oferta de doces
e presentes. Seduzidas, elas eram agarradas à força, narcotizadas e depois
abandonadas à beira da estrada.
No dia 21 de março, na região de Blumenau, em
Santa Catarina, a polícia foi alertada sobre a ação de dois homens e uma mulher
que vinham atacando crianças de oito a dez anos de idade no Salto Weissbach,
zona colonial do município. Segundo relatos, a mulher percorria a região a
bordo de um automóvel Fusca, aliciando os pequenos com a oferta de presentes e
os conduzindo em seguida a uma Kombi onde estava montado um verdadeiro
ambulatório. A quadrilha preferia agir pela manhã, quando os alunos se dirigiam
ao colégio. Os policiais acreditavam que o sangue fosse vendido a hospitais da própria
região, habituais compradores do produto.
Provavelmente fosse a mesma quadrilha que agia
no Rio Grande do Sul e que também seria notícia nas semanas seguintes. Em maio,
em Cachoeira do Sul, em uma localidade interiorana emblematicamente chamada de
Passo da Seringa, um Volkswagen vermelho-claro em cujas portas se liam os
dizeres “Banco de Sangue para Crianças”, espalhava o medo entre a população. O
casal – ele descrito como de barba longa – abordava as crianças e negociava
doces por sangue. Diante das negativas, o homem as agarrava e procurava
espetar-lhes “um aparelho parecido com uma pistola” no braço. A menina Fabiane
de Fátima Santos, de 11 anos, conseguiu escapar gritando várias vezes e
chamando a atenção de outras pessoas. Os traficantes fugiram de carro, em
disparada, mas a menina pode ver várias caixas de isopor na parte traseira do
carro. A maioria das vítimas, filhas de famílias pobres, residia na beira do
rio Jacuí, a 11 quilômetros da cidade.
O CHEIRO DE OVO PODRE DA BORREGAARD E A
INÉRCIA DAS AUTORIDADES
Menos perigoso que os mercadores de sangue,
mas quase tão asfixiante quanto a crupe, era o cheiro de ovo podre da Riocell, ex
Borregaard, uma fábrica de papel-celulose, localizada na cidade de Guaíba, no
outro lado do rio que ninguém ainda chamava de lago.
Não é preciso grande esforço de memória
para lembrar a Indústria de Celulose Borregaard e o que ela representou para a Capital
gaúcha nos anos setenta: “Sem o pressentir, solidificou um dos mais combativos
movimentos de resistência ecológica que o Brasil já conheceu e inaugurou um
inédito processo de revisão de métodos produtivos”, sintetizou, anos mais
tarde, a jornalista Lilian Dreyer, autora de uma biografia do ambientalista
José Lutzenberger.
Quando a empresa inaugurou solenemente sua
fábrica no dia 16 de março de 1972 – uma quinta-feira precedida de intensas
chuvas em Porto Alegre – muitos já sabiam que aquela grande e poderosa indústria,
uma das maiores do mundo no seu ramo, vinda da fria e longínqua terra dos vikings,
não chegara aos pagos sulinos exatamente para gerar progresso, empregos e
impostos, como propagavam os out-doors e grandes anúncios estampados na
imprensa gaúcha. Operando “experimentalmente” havia mais de um mês, seu mau
cheiro já era conhecido da população da região metropolitana, conquanto outras
indústrias de celulose instaladas em Guaíba também contribuíssem para a
poluição do estuário.
A inauguração oficial da maior fábrica de
celulose da América do Sul, “totalmente voltada à exportação”, foi o grande
acontecimento empresarial daquele ano no Estado, reunindo todo o núcleo do poder
civil, eclesiástico e militar, a nata do empresariado, quatro embaixadores escandinavos
e mais dois ministros de primeiro escalão vindos diretamente de Brasília.
No dia anterior o modesto aeroporto Salgado
Filho viu aterrissar pela primeira vez em suas pistas um avião DC-8 da SAS
(Scandinavian Airlines System), trazendo personalidades estrangeiras para as
festividades de inauguração do complexo industrial de Guaíba – dentre elas o
presidente mundial da empresa, Rein Henriksen. Por sua vez, em jato presidencial,
desembarcavam na capital gaúcha os ministros Marcus Vinicius Pratini de Morais,
da Indústria e Comércio, e João Paulo dos Reis Veloso, do Planejamento. À noite
um grupo de 500 convidados participou de um concorrido banquete no elegante clube
porto-alegrense Leopoldina Juvenil.
De certo modo participante da festa, o
velho matutino da Caldas Júnior dedicou seu editorial de 17 de março,
sexta-feira, ao que chamou “O Acontecimento Borregaard”, algo que trazia a
“chancela de mestres noruegueses”, com sua “arte de harmonizar o econômico com
o social” e que, no entender do jornal, haveria de marcar uma época (e de fato
marcou).
“Nenhum
despropósito se note na epígrafe. Realmente trata-se de um acontecimento que se
destaca dentre os sucessos de uma semana, um mês, um ano, uma fase inteira da
vida do Estado. De um acontecimento em verdade marcante. Que marca uma época. (...)
Uma indústria com largas e fecundas perspectivas de desenvolvimento entre nós.
E que inclusive dará um impulso de florestamento ao Rio Grande do Sul pela
demanda que vai provocar de matéria-prima. E que traz a chancela de mestres
noruegueses, o que vale por uma garantia de sucesso. Que melhor concurso para a
arrancada desenvolvimentista sul-rio-grandense?”
A despeito de tal ufanismo, o jornal fez
questão de deixar claro de que se manteria alerta e cobraria atitudes no
tocante a “um temor e uma preocupação” - a ação poluente da nova indústria de
Guaíba, “que até os porto-alegrenses já estão sentindo no nariz”. Em seguida, no
mesmo editorial, descreveu algo quase non-sense pelo teor das respostas do
entrevistado, quase um cínico deboche e que certamente antecipava toda uma
linha de comportamento da empresa nórdica.
“Sensível ao fato, o diretor-superintendente da Borregaard do Brasil,
Sr. Guttorm Ihme, não se escusou de procurar esclarecer o assunto, em
entrevista coletiva que concedeu à imprensa, anteontem, no Plaza Hotel.
“-
Efetivamente – disse – Três problemas de poluição surgiram: ruído, ar e água.
Mas de uma certa maneira, foram solucionados pela empresa.
“O
senhor Guttorm Ihme esclareceu que a poluição das águas do Guaíba foi
solucionada com o lançamento dos detritos através de uma rede de esgotos, que
despejam a água dois quilômetros fora da costa.
“A
seu turno, a poluição do ar foi solucionada com o emprego de filtros
eletrostáticos, que retiram boa parte do mau cheiro que se espalha pela cidade.
E finalizou:
“– O
ruído vai diminuir quando as máquinas entrarem em pleno funcionamento. Além do
mais, os produtos lançados na água e no ar são inofensivos, porque o
branqueamento e o produto final da celulose são feitos na Noruega”.
Zero Hora seguia a mesma linha, um misto de
entusiasmo bairrista perpassado pelo temor dos possíveis danos ambientais
causados pela nova indústria. Resumindo, algo tipo “me engana que eu gosto”.
“Nova
Indústria – Inaugura-se hoje, em Guaíba, a fábrica da Indústria de Celulose
Borregaard (...). A Borregaard é um dos marcos do novo Rio Grande do Sul que se
prepara para ser a segunda potência industrial do país. Dá novas oportunidades
de promoção a milhares de pessoas, cria novas riquezas que se multiplicarão no
correr dos anos, beneficiando extensas áreas do Estado. É verdade, também, que
se fala muito no perigo que a nova fábrica possa representar para o
meio-ambiente. No entanto, segundo declarações dos responsáveis pela sua
implantação, as consequências do despejo de resíduos industriais no estuário do
Guaíba deverão ser bastante atenuadas: um emissor subaquático levará os
resíduos ao fundo do canal, numa distância de dois quilômetros da unidade
fabril. Vale lembrar, com respeito ao problema, que equipamentos e instalações
para proteção do meio ambiente representam vinte por cento do investimento
total realizado pela Indústria de Celulose Borregaard”.
Desfrutando
de toda sorte de incentivos fiscais, a Borregaard viera, sim, para exportar, e
exportar representava fazer saldo positivo para a balança econômica (“exportar
é o que importa”). Exatamente o que queria o governo, explicou o ministro
Pratini de Morais, 33 anos, em seu discurso de elogio a “uma das mais modernas
fábricas do mundo” e que iria faturar mais de 20 milhões de dólares anuais (o
dólar de então valia bem mais do que nos dias de hoje). A revista Veja, de
circulação nacional, por sua vez, foi bem mais equilibrada e menos otimista em
matéria publicada na mesma semana.
“Só para exportar”
“O
Brasil é autossuficiente em celulose, mas nem por isso a inauguração da maior
fábrica de celulose do país, na semana passada, em Guaíba, cidadezinha a 35 km
de Porto Alegre, deixou de ser uma grande festa. Ela começou com a afinada
execução do hino nacional da Noruega pela banda da Brigada Militar gaúcha,
comovendo os dirigentes do grupo norueguês Borregaard, acionista do
empreendimento, e terminou com um inevitável churrasco que consumiu 500 quilos
de carne e 50 barris de chope, para satisfação da pequena multidão de
autoridades, empresários e jornalistas gaúchos.
“A
autossuficiência brasileira não é, na realidade, um problema: toda a produção
da Borregaard gaúcha (190.000 toneladas anuais) é exportada – a fábrica já
funciona desde o fim de 1971 – para a matriz norueguesa, que faz o
processamento final, transformando a massa acinzentada em papéis finos e fibras
sintéticas, como o raiom.
“Problema mesmo existe, para a Borregaard norueguesa, cujo presidente,
Rein Henriksen, citou em seu discurso de inauguração “as difíceis condições do
mercado mundial no momento”. Mais otimista, o ministro Marcus Vinícius Pratini
de Morais, da Indústria e do Comércio, preferiu elogiar a avançada tecnologia escandinava,
“a melhor do mundo”.
“Poluição
– Este avanço explica como a fábrica de Guaíba, um gigante automatizado,
emprega apenas quatrocentos operários, enquanto outros 1.600 são necessários
para retirar o equivalente a duzentos caminhões diários de madeira das
florestas de eucalipto da Borregaard em áreas vizinhas. Foram investidos 76
milhões de dólares na construção da fábrica e seu capital realizado, de 186
milhões de cruzeiros, está assim dividido: 43% pertencem ao BNDE, 32% à Borregaard,
22% a bancos escandinavos e 3% ao Estado do Rio Grande do Sul.
“Dirigida por um engenheiro civil norueguês, Guttorm Ihme, desde 1953 no
Brasil, e um advogado brasileiro especializado em finanças, Hélio Dias de Moura
(coordenador do Conselho de Desenvolvimento Financeiro e Tecnológico de São
Paulo), a fábrica foi montada em catorze meses e encontrou uma eficiente
solução para o problema do transporte. O navio que leva a celulose para a
Noruega volta carregado com ácido sulfúrico para a Fertisul, fabricante de
adubos da cidade de Rio Grande, e as barcaças e os caminhões que levam a
celulose até o porto de Rio Grande voltam carregados com os adubos da Fertisul.
Como exporta toda a produção, leva a vantagem de não pagar nenhum imposto
direto.
“Satisfeita por esse lado, a Borregaard só
parece preocupada em minimizar, através de uma campanha de publicidade, as
repercussões de seus efeitos poluidores: o ruído ensurdecedor de seus três
picadores de madeira, a tinta negra que despeja no rio Guaíba e um insuportável
cheiro, semelhante ao de ovo podre, que se espalha pelas redondezas da fábrica
e vai incomodar os 850.000 habitantes de Porto Alegre, na margem oposta do rio”.
Em breve o grande e sonhado investimento que
significaria uma nova era na economia gaúcha tornou-se um pesadelo real para
mais de um milhão de pessoas. Por suas constantes emanações “fétidas e
pútridas”, a empresa, nacionalizada em 1975, quando foi adquirida pelo Montepio
da Família Militar e mudou seu nome para Riocell (Rio Grande Companhia de
Celulose do Sul), transformou-se em inimiga número 1 dos porto-alegrenses,
motivando protestos, passeatas, iradas críticas populares, candentes discursos
políticos e repetidas matérias na imprensa local. Imprensa a qual, em peso, se
voltou contra o inatingível “monstro norueguês” que apodrecia ares e águas e
zombava de todos.
No início de março de 1975 um estudo
ambiental feito por um técnico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
concluiu que a Borregaard lançava nas águas do Guaíba detritos correspondentes
ao total despejado por uma cidade de 600 mil habitantes que não faça tratamento
de esgotos.
O laudo havia sido solicitado pelo juiz de
direito de Guaíba como parte do processo que um grupo de pessoas do município
movia contra a indústria – desta feita, o especialista da Universidade Federal
era o “perito desempatador” nomeado, uma vez que os dois laudos anteriores, o primeiro
preparado por um técnico ambiental e outro apresentado pela empresa, diferiam
radicalmente em números e conclusões. O terceiro perito, desta feita, concluiu
que a cada dia a Borregaard despejava 36 toneladas de compostos orgânicos e 15
toneladas de inorgânicos. Isso representava 600 metros cúbicos de rejeitos não
tratados por hora, boa parte deles de compostos de enxofre, alterando o próprio
PH das águas.
Até mesmo uma comissão parlamentar de inquérito,
a CPI da Borregaard, havia sido instaurada pela Assembleia Legislativa do
Estado, gerando uma série de conclusões e sugestões, nenhuma delas levada a
sério ou de longe atendida pela empresa.
Pedia-se, portanto, a desapropriação da área
onde a fábrica estava instalada, como propunha o deputado estadual Lino Zardo,
do MDB. Ele defendia tirar dali a Riocell e doar a área para a Renault francesa,
que propalava intenções de estabelecer uma montadora de veículos no sul do
Brasil.
Ainda com o nome antigo, a fábrica já havia
sido fechada no final de 1973 e início de 74, por determinação do pressionado governo
estadual, cujos técnicos entenderam que as propostas de modificações
apresentadas pela direção da multinacional não atendiam aos mínimos requisitos técnicos.
Ainda que temporário, o fechamento da multinacional norueguesa foi comemorado
não somente pela população da capital como mereceu o apoio entusiástico de quem
mais sofria com o problema da poluição das águas – os pescadores que enfrentavam
dificuldades ainda maiores no seu duro cotidiano profissional.
No dia 17 de dezembro de 1973 Zero Hora
noticiou: “Os pescadores gaúchos ficaram tão contentes com o fechamento da
Borregaard que resolveram mandar um ofício ao Governo do Estado e à Secretaria
da Saúde apoiando o fechamento da fábrica de Guaíba”. A iniciativa partiu do
presidente da Colônia Z-5, Modesto Machado Alves, e foi unanimemente apoiada
pelos participantes do VI Congresso das Colônias de Pescadores do Estado.
Prosseguia o jornal: “Os pescadores
reunidos no Congresso confirmam que a Borregaard acaba de matar os peixes que
ainda restavam no estuário do Guaíba e começava a liquidar os da parte norte da
Lagoa dos Patos. Os mais prejudicados pelos 600 metros cúbicos de resíduos industriais
lançados por hora pela Borregaard eram os da Colônia Z-5 e Z-4. Outra grande
preocupação dos mais de 20 mil pescadores artesanais gaúchos era o
envenenamento dos rios e lagoas pelos pesticidas usados nas lavouras de arroz
às suas margens”.
Em outubro de 1974 o deputado estadual
Moisés Velasquez (MDB) usou uma frase de efeito para definir a situação: “Os
vikings tomaram de assalto o Rio Grande do Sul”. Para ele a Borregaard estava
acabando com a fauna e poluindo o Guaíba, a Lagoa dos Patos e o mar, “e se
constitui em uma fonte de sugamento de divisas do Brasil”.
“Se fosse um treiler de cachorro-quente ou
um pequeno restaurante, já teria sido fechada. Mas a Borregaard pode continuar
poluindo porque é poderosa”, acusou Moisés, lembrando que o governador se
declarara impotente para fechá-la, “muito embora nem alvará de funcionamento a
empresa tenha”. Em Brasília, o deputado federal e ex-prefeito de Porto Alegre,
Célio Marques Fernandes (Arena), fez um enfático discurso lembrando que “Porto
Alegre está triste” e que o pôr-do-sol no Guaíba “já não é mais aquele
espetáculo lindo e belo” por causa do “odor terrível”, do “horrível cheiro” que
vem “atormentando durante o dia e a noite os moradores” da capital gaúcha.
Por sua vez o deputado Augusto Trein (Arena),
presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a fábrica “viking”,
disse saber que a empresa estava então utilizando o produto químico “soda
barrilha” no seu processo industrial, uma tentativa de disfarçar o mau cheiro e
que, no entanto, poluía ainda mais as águas do Guaíba.
Nessa época o município catarinense de Lages
manifestou interesse em sediar a empresa, mas a forte oposição das cidades
vizinhas barrou de imediato a ideia: eles alegaram que outra indústria similar na
região já havia transformado as águas do rio Canoas, outrora límpidas e
piscosas, em “autêntica vertente de venenos” – e não estavam nem um pouco dispostos
a repetir a experiência.
Aqui, o “martírio olfativo” e as atitudes
cínicas e até ultrajantes da direção da fábrica (afinal, já existia tecnologia
disponível para dar solução ao problema, e ela era aplicada no seu país de
origem), bem como o posicionamento omisso das autoridades, eram considerados
uma verdadeira afronta ao povo gaúcho.
Tudo isso se refletia semanalmente nas
páginas dos jornais. No dia 5 de fevereiro de 1975, em carta ao Correio do Povo,
a cidadã porto-alegrense Márcia Gressler se dizia pessimista e “abalada por
toda essa insensatez”. Lembrando que o rio da sua infância era agora “um rio
moribundo cujas águas podem ser consideradas venenosas”, lamentava: de nada
servira a mobilização da opinião pública e o repúdio da população: “E o
trabalho da CPI deu em nada, pois o controle da Borregaard já foi ou será
brevemente transferido. Dessa forma o controle acionário em poder de
empresários brasileiros será motivo de ufanismo para pseudopatriotas cujo
orgulho verde-amarelo se resume numa cifra maior ou menor do PNB e uma cegueira
total para as belezas naturais do país, as quais vêm sendo dizimadas a troco de
dinheiro”.
Já em 1976, sempre tentando ganhar tempo, a
“nova” Riocell havia anunciado investimentos de três milhões de dólares para a
compra de filtros e aparelhos antipoluentes que ao menos diminuiriam o mau cheiro
provindo de suas chaminés – mas não era isso, óbvio, o que se sentia de fato,
como se vê nesta nota do Correio do Povo de 18 de maio.
Mau Cheiro Volta a Atacar a Cidade
“A
noite de domingo último foi marcada pela volta do velho e por demais conhecido mau
cheiro da Borregaard, hoje Riocell. Boa parte da cidade foi literalmente
invadida pelos odores fétidos da fábrica, principalmente o bairro Menino Deus.
Com efeito, as emanações pútridas por algum período não se fizeram sentir, o
que levou muita gente a pensar que finalmente estava resolvida tão humilhante
situação. Mas qual o que. O mau cheiro voltou novamente com todo o seu antigo
vigor e se antes não estava empestando a cidade é porque as aparelhagens que os
produzem são desligadas rapidamente logo que o vento sopra para o lado de Porto
Alegre. Isso, aliás, já é uma consideração mas não resolve o problema
definitivamente, como ainda se espera. Neste domingo o porto-alegrense teve
violado o seu direito de respirar porque os ventos foram repentinos, liquidando
o esquema da fábrica e o mau cheiro voltou implacável”.
As “emanações pestilentas” da “malsinada indústria” se
repetiram a 7 de julho, quando um grande número de pessoas ligou para as redações
dos jornais e das rádios queixando-se do fedor que as despertou durante a
madrugada – a fábrica valia-se comumente de tal ardil. “A Riocell (ex-Borregaard) voltou a agredir o porto-alegrense, na
madrugada de ontem, com suas emanações pestilentas”, noticiou o veículo
líder da Caldas Júnior na sua edição de quinta-feira, 8. “Em
diversos bairros da cidade o mau cheiro foi sentido de forma violenta, segundo
diversas pessoas que telefonaram para a redação do Correio do Povo. Como de
costume, os odores fétidos despertaram muitas pessoas, acometidas de cefaleia e
náuseas”.
Em pleno milagre econômico brasileiro, a inauguração da Borregaard prometia uma "nova era" para o Rio Grande do Sul. O que se viu depois foi um longo e pestilento pesadelo. |
Dois dias depois, na sexta-feira, o jornal
fustigou novamente – “Riocell voltou a massacrar a população”, noticiando que,
por volta das 22h30min da noite anterior, trazidas pelo vento, as “emanações
pestilentas” começaram a atingir várias áreas da Capital, causando uma onda de
telefonemas indignados para a redação: “Todos querem saber até quando o governo
vai permitir tamanho desrespeito à população?”
No final de agosto, durante a Terceira Expointer
de Esteio, o fedor surpreendeu os milhares de turistas e produtores que tinham
vindo à Capital gaúcha para participar do maior evento da agropecuária
brasileira. “Tornou-se difícil para a gerência dos hotéis explicar aos hóspedes,
principalmente os que vieram de outros países, que o terrível mau cheiro que
estavam sentindo já se tornou quase rotina em Porto Alegre e que este é “o ônus
do progresso”. As explicações não chegaram a ser bem entendidas pelos
visitantes perplexos que perguntavam porque o Governo permite tal atentado
contra a saúde dos contribuintes. Isto, cortesmente, ninguém respondeu...”
(CP, 24 de agosto)
Mas seria justamente em uma cerimônia cívica
marcante para a população – o início da Semana da Pátria - que o “odor
nauseabundo” retornou com força dobrada, constrangendo até mesmo os altos
escalões militares (afinal, a Riocell era presidida pelo general Breno Borges
Fortes, ex-comandante do Terceiro Exército e do Estado Maior em Brasília) e
motivando mais uma nota irada do Correio do Povo.
“Voltou
a Riocell, ex-Borregaard, a agredir o olfato da população com aquele
nauseabundo odor que é sua marca registrada. Mas para que se diga que a
nacionalização da empresa, apregoada aos quatros ventos como um feito olímpico,
não lhe trouxe nenhum crescimento, ela expandiu seu malcheiroso espectro no
tempo e no espaço: fedeu por 48 horas, o dobro do que costumava antes, e
ultrapassou seus limites anteriores, infectando até o município de Viamão.
(...)
“É
triste assinalar-se que esta situação se prolonga há tanto tempo e se
prolongará até Deus sabe lá quando. Porém mais triste e mais revoltante ainda é
constatar que anteontem, no Parque Farroupilha, quando o Rio Grande do Sul
inteiro, através de suas mais altas autoridades civis e militares e de grande
número de populares, reverenciava a Pátria, a Riocell se apresentasse com sua
malcheirosa presença, perturbando os que se concentravam num momento de
dignificante elevação cívica”.
No dia 21 de setembro, uma terça-feira que
se sucedia às comemorações da data farroupilha, a população viveu “mais uma
triste noite”, conforme descreveram os jornais. Por culpa da “malfadada
indústria”, os moradores da zona sul e do centro tiveram de suportar o terrível
fedor, enquanto o Correio do Povo mais uma vez perguntava: “Até quando continuará esse desrespeito aos contribuintes? Até quando a
saúde de uma população inteira será prejudicada por uma empresa? Até quando
essa fábrica de celulose continuará poluindo o ar e envenenando a fauna do
Guaíba e da Lagoa dos Patos?”
Vindo de Brasília especialmente para tratar
do problema, chegou a Porto Alegre, dia 8 de outubro, o secretário especial
para o Meio Ambiente, Paulo Nogueira Neto. Como das vezes anteriores, foi mais
uma autoridade a proferir discursos vagos, sem anunciar qualquer medida prática
além da promessa de que “estamos estudando uma série de benefícios fiscais para
a criação de uma linha de crédito para tais empresas instalarem equipamentos
antipoluidores”. Semanas antes o secretário Jair Soares declarara, com a costumeira
e dúbia firmeza retórica, que havia se reunido com o general Borges Fortes e
que exigira da empresa a entrada em uso dos equipamentos contra a poluição, já
adquiridos e instalados.
Meses
depois, já no início de dezembro, subindo ainda mais o tom, o diário de Breno
Caldas publicava nova nota de 16 linhas, “O insólito ataque que dia-a-dia se
repete”, no qual comunicava a última ofensa olfativa vinda da “prepotente
fábrica-de-fedor”. Afinal, nada havia mudado: o cheiro podre, novamente
espalhado no ar, decididamente humilhava e indignava os cidadãos de “ilimitada
paciência” da capital gaúcha.
“Cidade de um milhão de habitantes, capital de um dos mais pujantes
Estados da Federação, Porto Alegre é todavia uma terra desprotegida, com ares
contaminados. Do outro lado do rio, especialmente, trabalha sem cessar uma
insensível e prepotente fábrica-de-fedor, que empesta a atmosfera e mina a
capacidade orgânica e mental do porto-alegrense. A medida que o tempo passa,
cresce a revolta diante da continuada provação. Mas nada é feito no sentido de
eliminar ou de minimizar o problema, que, mais que um problema, é um acinte e
uma aberração.
“Ontem ELA atacou com redobrada intensidade. Porto Alegre é, sem dúvida,
uma cidade infeliz de ilimitada paciência”.
Na Câmara Municipal, o vereador Aloísio
Filho, do MDB, subiu à tribuna para, em tom de desabafo, dizer que Porto Alegre
não era mais a Cidade Sorriso e sim “uma pobre cidade fedorenta” que precisava
“extirpar seu cancro”:
“Hoje, Porto Alegre, além de ter perdido o
nome Cidade Sorriso, tornou-se insegura e fedorenta. Trocaram o nome da
Borregaard, agora é Riocell. Falaram em botar filtros. Mas o que fazem as
autoridades que envenenam a população da cidade? Não bastam filtros. É
necessária a extirpação daquele cancro que envenena a todos. Nunca Porto Alegre
sofreu tanto como agora. A antiga Borregaard, e não adianta mudar o nome, é a
mesma Borregaard que nasceu do descumprimento de pareceres técnicos que não
permitiriam a sua instalação. Eu, que moro na zona norte, na outra extremidade
da cidade, não suporto, não consigo suportar o mau cheiro. Serei obrigado a
mudar-me para o mato, fora de Porto Alegre” – protestou o emedebista.
A “Questão Borregaard” era algo tão desesperador que um
leitor do Correio do Povo sugeriu ao Governo a bizarra canalização do fedor
para uma distância “de 40 ou 50 quilômetros”. Sem se identificar, P.B escreveu:
“Segundo o depoimento de um dos diretores da
ex-Borregaard, a mesma jamais será fechada e o odor nunca terminará, pois não
existe tecnologia no mundo para tal. Será que o Governo não poderia obrigar (ou
até mesmo executar, visando ao bem comum) a Riocell a canalizar por 40 ou 50 km
uma saída de odor, transferindo-se assim a chaminé, o cheiro, para bem longe?
Exemplo de canalização, é óbvio que não de “odor”, temos na Petrobrás, de
Tramandaí a Canoas. Parece-me melhor solução do que a chaminé de 200 metros, proposta
por autoridade federal”.
Considerando também “que os processos tecnológicos não
foram suficientes” para dar fim ao problema, outro cidadão porto-alegrense –
que se identificou como o “professor Nelson I. Matzenbacher” - ofereceu uma
sugestão “ecológica e simples”, em carta publicada no dia primeiro de outubro.
“Em
Guaíba o mau cheiro continua. Aqui, na capital, o mau cheiro vai reaparecer
assim que soprar o vento do setor sudoeste ou quando ocorrer uma inversão de
temperatura nesta área. (...) Sugerimos pois, como solução final, o plantio de
árvores de rápido crescimento nos arredores da ex-Borregaard, em qualquer
espaço disponível. Recomendamos o plantio de Eucalyptus glóbulos Labill, que
apresenta rápido crescimento e atinge a altura considerável de 30 a 40 metros,
com grande vantagem para a apicultura. (...) O plantio de árvores à margem do
aterro, em Porto Alegre, também deve ser adotado, a fim de formar-se uma
cortina protetora antipoluente de funcionamento inteiramente gratuito”.
Todavia, algumas boas notícias surgiam na luta pela
preservação ambiental no Estado. Em Canela, no mês de fevereiro de 76, a cascata
do Caracol, uma das principais atrações turísticas da Serra e que, apesar
disso, durante quase 40 anos sofrera com a poluição e o fedor causados por uma
fábrica de celulose que funcionava nas suas imediações, tinha agora plenas condições
de recuperar a qualidade das suas águas.
Pressionada por moradores e autoridades, a
empresa modificou seu processo industrial e deixou de utilizar a fedorenta “lixívia
negra”, passando assim a produzir somente papel e não mais a celulose. Com isso
havia esperança da volta dos peixes e da fauna original da região e o término
do mau cheiro que incomodava até os turistas de final de semana.
Em São Luiz Gonzaga quase oitenta reses pereceram intoxicadas na propriedade do produtor Floriano Gonçalves dos Santos: a mesma máquina que ele havia utilizado para aplicar o veneno na lavoura de soja foi depois usada para aplicar carrapaticida nos animais.
SITUAÇÃO QUE NÃO GOVERNA E OPOSIÇÃO QUE PEDE DESCULPAS
Falando nisso, fazia tempo que o clima político brasileiro também não cheirava nada bem: os militares estavam no poder havia doze anos e a abertura “lenta, segura e gradual”, a distensão política prometida por Geisel era por demais lenta e gradual – e cheia de recuos, ameaças e riscos. No aniversário da então chamada “Revolução”, o presidente-general disse, secamente, que esta “não admitia contestação”. O recado à oposição era claro: afrouxava-se um pouco as rédeas, mas estas – bem entendido - continuavam curtas.
No dia 7 de abril, quarta-feira, em Brasília, o diretório nacional do MDB divulgou uma nota à nação na qual criticava as recentes cassações e a continuidade sem fim do estado de arbítrio. Além do presidente nacional do partido, Ulysses Guimarães, discursou somente o gaúcho Pedro Simon: “O MDB concita o Governo a não mais retardar a concretização do compromisso de honra da Revolução para com o povo – há 12 anos uma promessa sempre adiada – de reintegrá-lo nos parâmetros de um estado de Direito, brasileiro, moderno e realizador”. Simon pedia o fim do ato institucional número cinco, “fonte permanente das crises que nos angustiam, destruindo a ordem jurídica e instituindo o governo dos homens e não das leis”.
Redemocratização, anistia e fim do AI-5 eram as grandes bandeiras desta melancólica e impotente oposição – a qual só restava negociar pequenos e inseguros avanços. Ou como disse o deputado emedebista Magnus Guimarães, 35 anos, um dos “autênticos” do MDB: “A Arena, mesmo sendo Governo, não está no Governo, e o MDB, sendo oposição, não consegue o poder mesmo depois de ter vencido as eleições, e ainda se preocupa em pedir desculpas ao governo pela sua vitória”.
De qualquer forma aquele início de 1976 marcava – com as mortes do jornalista e militante comunista Vladimir Herzog, no final de 75, a de Manoel Fiel Filho, no início de 76, e a cassação dos mandatos de vários parlamentares – uma nova fase de tensão no panorama político, situação que se agravaria ainda mais até o final do ano, com atentados terroristas praticados por grupos de extrema direita ligados ao aparelho repressivo estatal, inconformados com o possível surgimento de algumas tênues luzes democráticas.
No Estado gaúcho, onde, naquele mês de abril, já se vivia clima de campanha política, o deputado Pedro Simon (considerado então imbatível nas urnas, inclusive para uma possível eleição direta para governadores) pedia uma investigação rigorosa sobre “panfletos subversivos” atribuídos ao seu partido e apreendidos pela Polícia Federal em Santa Rosa, no noroeste gaúcho.
Desconfiando de uma trama armada para prejudicar a oposição, os emedebistas locais acreditavam que tudo não passasse de pretexto para incriminá-los e assim transformar o município em “área de segurança nacional” – o que acabaria com as eleições diretas para prefeito. Simon também afirmou que ele e outros parlamentares se sentiram “constrangidos e humilhados” com a presença ostensiva e provocativa de um cabo do Exército, armado e fardado, no salão nobre da prefeitura de Ijuí, onde, dias antes, acontecera um encontro regional de líderes oposicionistas.
A proibição da apresentação do Balé Bolshoi na TV Globo foi um dos momentos mais ridículos da ditadura militar. |
No segundo semestre, bombas - muitas delas artesanais - seriam colocadas em muitos diferentes locais: na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, no Rio, na sede do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento, CEBRAP, em São Paulo, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na Associação Brasileira de Imprensa, na casa do empresário Roberto Marinho, na Editora Civilização Brasileira, na sede do jornal Opinião, no Rio, em bancas de revista, em jornais, agências bancárias, empresas, repartições públicas e até no prédio da Auditoria Militar, em Porto Alegre.
O atentado a Opinião (onde, entre outros, escrevia o sociólogo Fernando Henrique Cardoso) aconteceu às 3h50min da madrugada de 15 de novembro, dia das eleições municipais daquele ano, uma segunda-feira, em um sobrado da rua Abade Ramos, Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Com a detonação – cujo estrondo foi ouvido a quilômetros - uma parede foi destruída, duas portas de ferro acabaram retorcidas e todas as vidraças das redondezas se partiram. A bomba havia sido colocada do lado de fora do prédio e deveria ser obra de profissionais, garantiu a perícia técnica.
Assumida pela Aliança Anticomunista Brasileira, a ação visava especialmente o proprietário do jornal, o jornalista Fernando Gasparian, 46 anos, a quem os terroristas de direita juraram de morte, conforme manifesto deixado no local: “A Aliança Anticomunista Brasileira decidiu que não é mais possível deixar sem resposta as ações criminosas a soldo de Moscou que este grupo de traidores vem realizando a longo tempo em proveito da comunização do Brasil, através do jornaleco Opinião e outras publicações. Esta é a nossa mensagem de advertência. Da próxima vez ajustaremos contas pessoais com esses excrementos humanos. A hora da verdade está chegando. Fernando Gasparian, e seus asseclas, esteja certo de que pagará com a própria vida a traição à Pátria que está cometendo. Morte à canalha comunista. Viva o Brasil”. Gasparian (também dono da editora Paz e Terra) pediu a punição dos responsáveis e disse que “não queremos que o Brasil chegue à situação em que se encontra a Argentina”.
No final de setembro a tensão dominava o Rio de Janeiro devido a uma onda de boatos e telefonemas informando sobre possíveis novos atentados por parte da Aliança Anticomunista: muitos locais da cidade eram esvaziados às pressas e em alguns viveu-se situações de quase pânico. Por duas vezes o expediente no Ministério da Educação e Cultura foi encerrado mais cedo por causa de boatos de atentado. Não bastasse isso, dezenas de presos políticos, em São Paulo e no Rio, estavam sendo ameaçados de morte em suas celas, incluindo mulheres grávidas.
Em Florianópolis, onde acontecera a Operação Barriga Verde movida pelos órgãos de repressão contra militantes do Partido Comunista de Santa Catarina e do Paraná, os detentos políticos haviam feito greve de fome para pedir o respeito mínimo aos seus direitos – eles estavam bebendo água e nada mais. Na Penitenciária do Estado o advogado Roberto João Motta tentara suicidar-se no início de abril cortando as veias do pulso com uma lâmina de barbear – era a terceira vez que isso acontecia e só a rápida intervenção dos agentes penitenciários conseguiu evitar que desta vez ele obtivesse sucesso.
Preso no ano anterior, acusado de ser comunista, Roberto, segundo aqueles que o visitaram, apresentava saúde debilitada, estado que se agravara pois sofria de crônica claustrofobia. Com ele estavam presos outros 40 integrantes do partido, soltos somente em setembro. Também no final deste mês, em Nova Iguaçu, baixada fluminense, o bispo Adriano Hipólito seria sequestrado, espancado e obrigado a beber cachaça. Ele foi deixado nu à margem de uma estrada.
Enquanto isso autoridades da área militar se revezavam em “pronunciamentos” de advertência que logo ganhavam as páginas dos jornais. Em Curitiba, no final de setembro de 1975, o general Samuel Augusto Alves de Correa, comandante da Quinta Região Militar, afirmara aos seus subordinados que “as minorias subversivas são tenazmente atuantes, fanáticas e intelectualizadas”. Ele lembrou que mais de cem pessoas haviam sido presas naquele ano em Santa Catarina e no Paraná, acusadas de tentar reorganizar o PCB. Um pouco antes, em um ciclo de debates da Ação Democrática Renovadora, em Brasília, o coronel Carlos Oliveira discorreu para mais de 300 pessoas sobre “as técnicas de lavagem cerebral dos comunistas”, especialmente os russos, considerando que o sexo e as drogas são usados por estes para controlar a mente humana e atingir os seus fins, a degradação moral, no que chamou de “psicopolítica”:
“A degradação moral é iniciada com a difamação e desmoralização das autoridades constituídas e do Governo, para minar as resistências do povo e da nação. E o sexo é um instrumento conveniente de degradação, servindo admiravelmente para a desmoralização das autoridades, como vem ocorrendo em diversas partes do mundo, um recurso para perverter e alienar do indivíduo e transformá-las em escravos servis”.
Apesar de abrandada no governo Geisel (podia-se noticiar mais livremente que ela existia), a censura era uma espada afiada roçando o pescoço de todos, até mesmo da poderosa Rede Globo, que, em meados de 1975, resolveu suspender inteiramente a sua novela Roque Santeiro, tantos os cortes de cenas e exigências dos censores que surgiam a todo momento. O mesmo aconteceu com Despedida de Casado, cujo veto foi justificado pelos seguintes fatores: presença de amor livre, mostras de dissolução da família e ódio de filho por pai.
Nem mesmo Gláuber Rocha, cineasta inovador, mas que escrevera estranhos artigos de elogio ao presidente Geisel, teve poupado seu filme Terra em Transe (1967), o qual deveria ser exibido durante a Semana do Calouro promovida pelo diretório central da Universidade Federal de Santa Catarina, em agosto, em Florianópolis, para comemorar o ingresso de novos alunos nos cursos da instituição.
O Departamento de Censura Federal não expedira o certificado de liberação, embora não tenha efetivamente proibido o filme. Também um recital de poesias da chilena Angélica Cadaeta estava ameaçado de não acontecer: a Polícia Federal informou que aguardava do DCE a indicação de um tradutor para assim poder analisar o texto.
Sequer Jorge Amado, o maior nome da literatura brasileira, escapava da tesoura: partes de um capítulo do seu novo livro Tieta do Agreste, a Pastora de Cabras, a ser publicado nas páginas da revista mensal Status, foram considerados inadequados e vetados – era a primeira vez que tal fato acontecia em quarenta anos de vida literária do escritor baiano – nem mesmo no Estado Novo ele vivera tal experiência. Pior ainda era a situação do paranaense Dalton Trevisan: um conto seu, também a sair pela Status, fora inteiramente proibido pelos censores.
No rádio a vigilância não se mostrava menor. A 27 de março de 1976 o Dentel, Departamento Nacional de Telecomunicações, decidiu punir com multa de cinco mil cruzeiros a Rádio Panamericana, de São Paulo, por haver transmitido uma entrevista com o cantor Juca Chaves, 37 anos, “que foge à finalidade educativa da emissora”. Juca teria “tocado em assuntos que ferem a moral e os bons costumes”. No início de setembro o mesmo Departamento divulgou nota informando que aplicaria a portaria do ministério das Telecomunicações de maio de 1974, agora publicada do Diário Oficial e que proibia o uso de gírias em emissoras de rádio e televisão. Gírias, no caso, definidas como “expressões destoantes do vernáculo e da linguagem correta”. A emissora que não se justificasse poderia ter suas transmissões suspensas.
Em determinação oficial publicada na imprensa a Censura alertava: todo programa que contenha audição musical, ao vivo ou não, deveria antes ser a ela apresentado, via formulário da sociedade arrecadadora dos direitos autorais, a fim de conceder o certificado de liberação.
Em setembro o Dentel voltou a lembrar que “o uso de qualquer tipo de radiocomunicação sem o devido conhecimento e autorização do Departamento configura-se como delito”. Quem, de imediato, pagou a conta foi um humilde funcionário da empresa Fripescal, de Recife, condenado a um ano de prisão por ter usado aparelho de rádio para comunicar-se com barcos de pesca que estavam em alto-mar. Em sua defesa, Ananias Baruchi Neto alegou que não sabia que tal simples procedimento constituía crime.
Igualmente perseguidas, Adelaide Carraro e Cassandra Rios, escritoras de livros considerados pornográficos, reclamavam dos imensos prejuízos financeiros que sofriam, tanto que elas, recordistas em vendas, não estavam mais conseguindo viver dos direitos autorais provenientes das suas obras. Cassandra Rios – dos seus 34 livros, 31 estavam proibidos pelos censores – anunciava que iria morar fora do Brasil, enquanto a sua colega Adelaide Carraro, em entrevista às agências de notícias, argumentava: “A população deste País não é inteiramente sem opinião a ponto de se deixar guiar por Adelaide Carraro. Cada um tem a sua opinião”.
Elas também apontavam a total ausência de critérios por parte da censura, que muitas vezes liberava a obra para proibi-la semanas depois, como havia sido o caso de Os Padres Também Amam e De Prostituta à Primeira Dama, de Cassandra Rios.
Antes, para coroar o ano de 1975, no dia 26 de dezembro, sexta-feira, o ministro Falcão comunicava a todos que, “por atentar contra a Segurança Nacional”, proibira a circulação, distribuição e venda em todo o território nacional do livro Solano Lopes, o Napoleão do Prata, de autoria dos historiadores italianos Manlio Cancogni e Ivan Boris e editado pela Civilização Brasileira. A obra apresentava Lopes – derrotado pelo exército brasileiro no século 19 - como “um patriota paraguaio, contrário ao imperialismo britânico então dominante”. Antes, no dia 20, o ministro da Justiça havia baixado portaria, “proibindo a circulação, distribuição e venda em todo o território nacional”, bem como ordenado a apreensão de todos os exemplares do número extra do jornal “Ex”. A editora sofreria ainda inquérito criminal para apurar “possíveis delitos contra a Segurança Nacional”.
No início de maio de 1976, Pedro Simon usou a tribuna da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para denunciar o acontecido com o semanário Movimento, editado em São Paulo, e que não circularia como de outras vezes. Motivo: 93% dos textos, 84% das fotos, 46% dos desenhos e 83% dos gráficos da edição de número 45 tinham sido vetados pela censura, inviabilizando sua publicação. “Não há precedentes, inclusive dados oficiais foram censurados”, protestou o deputado, lembrando que não fora dada nenhuma explicação por parte das autoridades de Brasília a não ser um comentário informal do chefe da censura de que “não é possível reunir toda essa matéria só para dizer que a mulher é oprimida”.
Preparada ao longo de quatro meses, a edição censurada de Movimento era totalmente dedicada à situação da mulher brasileira, com a descrição das suas condições de trabalho, depoimentos de representantes de diferentes áreas, discussões sobre a possibilidade de melhorias da situação feminina e as restrições e preconceitos que ainda existiam.
Também, naquele momento, entre tantos outros, estavam sendo apreendidos todos os exemplares de Mulher Pecado, escrito por alguém chamado Márcia Fagundes Varella, e Astúcia Sexual, de um tal “Dr. G. Pop”. Até o início de novembro de 1975, conforme estatísticas da própria Censura Federal, dos 117 livros proibidos naquele ano, 90 assim o foram por contrariar a moral e os bons costumes. Tais medidas não impediam que, em alguns casos, tais obras continuassem a circular e ser vendidas clandestinamente, como era o caso do romance Zero, de Inácio de Loyolla Brandão, de 39 anos.
As proibições atingiam também o escritor e teatrólogo Plínio Marcos, 40 anos, com sua peça “Abajur Lilás”, o compositor Juca Chaves e ainda o grupo MPB-4, cujo espetáculo musical República de Uganda, no Rio, foi interrompido pela polícia em janeiro, depois de cinco meses de exibição e quando já havia sido visto por mais de 25 mil pessoas, causando grandes prejuízos a todos. A Censura não explicou os motivos do veto e ainda proibiu os artistas de darem explicações públicas sobre o fato – até mesmo os cartazes de divulgação foram recolhidos. Entre os nomes censurados daquele ano também estavam o colunista social Ibrahim Sued e a cantora Maria Alcina, cujo vestuário mínimo e o comportamento extravagante no palco (em um show ela comeu uma rosa) irritavam as autoridades.
Em agosto de 76 o livro Aracelli, Meu Amor, do jornalista José Louzeiro, baseado na história real (e nunca oficialmente esclarecida) da bárbara morte de uma menina de nove anos na cidade de Vitória em 1973 e que envolvia figuras importantes da sociedade capixaba, também foi proibido, o mesmo acontecendo com Sexus, um clássico literário do romancista norte-americano Henry Miller, considerado “atentatório à moral e moral e aos bons costumes”.
Mas certamente o caso mais emblemático – pelo patético da situação – envolveu o balé Bolshoi, no final de março, de 1976. Comprado pela emissora de Roberto Marinho à BBC inglesa – que o revendeu a outros 111 países – o espetáculo Romeu e Julieta, produzido pelo famoso balé, seria exibido depois do Fantástico, o Show da Vida, no domingo, 28, às 22 horas. Todavia o programa foi cancelado um dia antes, conquanto tal proibição não tenha sido oficial – os contatos teriam sido telefônicos entre Armando Falcão e Roberto Marinho, evitando-se qualquer menção à palavra censura. O Itamarati tampouco se manifestou oficialmente, lembrando apenas que as relações entre o Brasil e a União Soviética eram boas, “mas se restringiam pragmaticamente no campo comercial” - a URSS era então o quinto país comprador de produtos brasileiros. Porém, para o chanceler Azeredo da Silveira, a apresentação televisiva do Bolshoi – que já estivera ao vivo no Brasil em 1974 – daria margem a “proselitismos ideológicos, ainda que indiretos”.
O ridículo autoritário parecia mesmo não ter limites e beiraria o total absurdo no final de 76, conforme publicou a Agência Estado a 19 de dezembro:
“Marreca Botou ovo com Inscrição Subversiva”
“São Paulo – Um ovo de marreca provocou hoje grande confusão em Rio Grande da Serra, o menor município do ABC, porque tinha os seguintes dizeres gravados: “Ano propício – perturbe”. Ao notar o fato, o proprietário da marreca, José Romoaldo Borges, comunicou-se com a delegacia de polícia local, onde o soldado Trindade recebeu ordem de encaminhar o ovo, a marreca e o proprietário para o décimo batalhão de polícia militar, sediado em Santo André.
“Na casa de José Romoaldo era intenso o movimento de vizinhos que pediam para ver o ovo, procurando confirmar o “fenômeno”. Ao mesmo tempo policiais comentavam que a frase denota caráter subversivo, “motivo pelo qual o décimo batalhão solicitou à delegacia local que não fornecesse maiores informações sobre o caso”.
“Segundo José Romoaldo, que possui cinco marrecas em seu pequeno quintal, “esta é a primeira vez que isto acontece” e foi sua filha de sete anos quem descobriu as palavras escritas no ovo da marreca cinza. “Tentamos de todas as formas apagar a frase mas não foi possível”, afirmou José Romoaldo, depois de utilizar detergente, Bombril e água.
“Porém o fato de as letras serem idênticas ao tipo utilizado em jornal faz crer aos policiais que o ovo tenha sido botado sobre um jornal molhado, o que teria facilitado a impressão das palavras, “que coincidentemente fazem sentido”. Tais comentários eram feitos ao mesmo tempo em que o proprietário da marreca garantia não ter colocado qualquer jornal no quintal da sua casa e principalmente onde as marrecas botam ovos”.
Também sob a alegação de conter dizeres atentatórios à segurança nacional, o quadro Penhor de Igualdade, uma das obras premiadas no quarto Salão Global de Inverno de Belo Horizonte, promoção da Rede Globo de Televisão, foi apreendido pela Polícia Federal no dia 21 de outubro.
Artistas renomados como Ruben Gershman, Mário Cravo, Carybé, Frederico Morais e o autor da obra, o pintor Lincoln Volpini, de 24 anos, foram intimados a depor e negaram a interpretação oficial dada ao quadro, que tinha, ao alto da tela, um pedaço de madeira e, na parte inferior, a foto de um menino sentado sobre a raiz de uma árvore, aparecendo aí, em primeiro plano, uma corda. No entender de um agente policial, o pedaço de madeira representava a bandeira nacional e a corda seria um arame farpado. Não bastasse isso tudo, depois de um meticuloso exame de lupa, descobriu-se ainda a escondida frase “Viva a Guerrilha do Pará – 73”.
Mais sorte tiveram os proprietários da loja Miranda Roupas, de Niterói, cujo inquérito policial em que eram acusados de crime contra a segurança nacional acabou arquivado por determinação da primeira Auditoria da Marinha no Rio de Janeiro. O representante do Ministério Público Militar entendeu não haver conotação política e sim comercial no episódio das chamadas “camisas subversivas”, expostas na vitrine da loja com os dizeres “A gente não tem um pingo de liberdade”.
Em julho, por ocasião do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o jornal Movimento – sempre muito visado - informou que não mais publicaria a Declaração de Independência, de 1776, em razão dos inúmeros cortes ordenados pela censura. A edição especial do dia 4 tinha sido, aliás, uma das mais censuradas dos últimos tempos: 32 matérias foram vetadas pelo ministério da Justiça.
Em setembro o semanário O Pasquim, do Rio, com grande circulação nacional, teve uma edição inteira apreendida pela Polícia Federal “por publicar charge desrespeitosa às cores da bandeira nacional”.
Mostrando, porém, que nem sempre tudo estava perdido, o juiz Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, titular da primeira Vara de Justiça Federal no Estado de São Paulo, tornou-se notícia em março de 76 ao proferir sentença, em primeira instância, condenando a União a pagar indenização de perdas e danos ao jornal O Estado de São Paulo (que no início do ano se via livre da censura prévia) e Jornal da Tarde, conforme ação movida pela empresa da família Mesquita, editora dos dois diários.
O magistrado acatou os argumentos do Estadão, impedido de publicar notícias sobre a demissão do ministro Cirne Lima (o porto-alegrense Luís Fernando Cirne Lima foi ministro da Agricultura no governo do general Emílio Garrastazu Médici, de 1969 a 73) nos dias 10 e 11 de maio de 1973, negando assim procedência à tese do governo de que tal censura não poderia ser apreciada pela Justiça, uma vez que se fizera com base no ato institucional número 5.
Em decisão tecnicista, o juiz Magalhães apoiou-se na tese de que não havia um decreto ou ato do Presidente da República decretando a censura geral à imprensa no País ou, específica, aos jornais O Estado e Jornal da Tarde. Portanto, ou se censurava a todos, indistintamente, ou a nenhum – “porque a censura não poderia e nem pode, data vênia, ser exercida com discriminação”.
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. Inexistindo o ato regular do Presidente da República determinando a censura, o censor não pode agir de moto-próprio, devendo estar escudado na lei, a não ser que adentrássemos no campo imenso do arbítrio e da prepotência, o que é inadmissível”, escreveu o magistrado paulista em sua longa sentença. Corajosamente, fora dado o recado.
Ainda em setembro de 1976 o psiquiatra Washington Loyello também ganhou uma ação judicial contra a Faculdade de Medicina e Cirurgia (integrante da Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro). Em decisão surpreendente, o juiz Evandro Gueiroz, da Justiça Federal, concedeu liminar ao mandado de segurança impetrado pelo médico contra a instituição, a qual, para inscrição em seu concurso de docentes, exigia a apresentação do “atestado de ideologia” – documento fornecido pelo Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, e invariavelmente negado aos opositores do regime.
O advogado Paulo Goldrajch alegou que o seu cliente tinha título de eleitor e isso bastava - como este estava em dia, consequentemente a pessoa estava no gozo de todos os seus direitos de cidadão. A decisão judicial criou expectativas, pois também a Universidade Federal Fluminense, UFF, exigia o mesmo atestado de ideologia.
No final de dezembro, em entrevista coletiva à imprensa, espécie de balanço final dos trabalhos do ano, o diretor da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal, Rogério Nunes, contestou aqueles que julgavam a censura no Brasil muito rigorosa e inadequada – entre os quais a quase totalidade dos jornalistas presentes. Para o censor, ao contrário, “a censura no Brasil é muito liberal e é grande o número de reclamações que recebemos por sermos liberais demais”. Indagado a respeito do fato do intelectual brasileiro odiar a censura, Nunes sorriu e disse: “Há muitos doentes que também odeiam os médicos”. Sobre os autores de novelas, especificamente, insistiu na necessidade de que fizessem “novelas mais curtas, que nós pudéssemos analisar mais rapidamente”, e concluiu: “A censura não age em função do trabalho deles, eles é que têm de trabalhar em função da censura”. No final daquele ano, dos 210 livros apresentados ao setor, 74 foram vetados.
Quem não estava querendo trabalhar sob tais condições eram os estudantes do quarto ano do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria. Inconformados com a censura prévia a um encarte de quatro páginas por eles elaborado e que circulava quinzenalmente no jornal A Razão, leram um manifesto de repúdio durante programa da Rádio Santamariense, no início de abril. No documento, denunciavam o veto a várias matérias e diziam não poder admitir “a censura bloqueando a nossa capacidade jornalística”. Ameaçados de represálias pelo coordenador do curso – que aventara futuros “problemas na formatura” – todos tiveram que dar longas e detalhadas explicações à Polícia Federal.
Com a vigência do decreto 477, o AI-5 das universidades, proibida a política e discussões nas casas de ensino (consideradas tão somente locais de estudo) podia-se sempre esperar pelo pior – e este invariavelmente acontecia. No final do ano letivo de 1975 quatro alunos do Instituto de Teologia da PUC foram suspensos da universidade por um período de 30 dias. Silvino Heck, Hermes Miolla, Paulo Vidor e Nínive Florisbal Figueiró haviam publicado, no jornalzinho do diretório acadêmico, críticas ao sistema de ensino e ao diretor da instituição, além de uma charge considerada desrespeitosa a bispos e militares. A suspensão dos quatro (três eram seminaristas) custou caro, já que desta forma estavam também proibidos de fazer os exames finais. O DCE da PUC e os seminaristas do Seminário de Viamão saíram em defesa do grupo.
HERZOG E MANOEL FIEL SE ‘SUICIDAM’ NAS CELAS DA REPRESSÃO
Naquele início de abril de 1976, atestando a volatilidade da abertura, os deputados gaúchos Amaury Müller e Nadir Rossetti foram destituídos de seus mandados, com a perda dos direitos políticos por dez anos, em razão de “graves ofensas ao regime vigente”, conforme afirmou o ministro Falcão.
No domingo, 19 de março, com a proximidade dos 12 anos do movimento de 1964, os dois haviam proferido veementes discursos no município de Palmeira das Missões, nos quais, também, se fazia homenagem ao visceral inimigo dos militares golpistas, o proscrito ex-governador Leonel Brizola.
Na terça-feira, o Correio do Povo destacou a manifestação e transcreveu suas partes mais incisivas: “No Brasil não somos governados pela vontade do povo e sim pela força das armas. Estamos num regime de golpe, não de revolução, dominados pela aristocracia fardada. Chegou a hora de se pôr fim à ditadura”, disse Amaury Muller. Criticando a revolução – “regime duro para o povo, mas aberto para o poder econômico” – garantiu que “a queda do regime é coisa certa, se não for por podre, pela corrupção”.
Setenta e duas horas depois seria também cassado o deputado federal fluminense Lysâneas Maciel, 49 anos, outro dos “autênticos” e que igualmente estava presente na concentração em Palmeira das Missões.
Oficialmente, Lysâneas – voz firme a denunciar publicamente torturas, desaparecimentos, prisões e arbitrariedades - foi punido por ter proferido, na sessão do dia 30 de março, em Brasília, palavras de duro inconformismo político: “O mais doloroso e grave, senhores deputados, não são as cassações. É que com elas estamos nos acostumando. Estamos nos acostumando com a falta de liberdade, com a censura de baixo nível que impede até exibições de balé. Estamos nos acostumando com o desaparecimento de brasileiros, com sua tortura, com sua morte presumida”.
A propósito: desta vez, acuado pela repercussão na imprensa internacional e por expressivas manifestações dos setores mais esclarecidos e corajosos da sociedade, sobretudo a igreja católica de D. Evaristo Arns, o governo brasileiro respondia laconicamente e a contragosto sobre a brutal morte do jornalista Vladimir Herzog, a 25 de outubro último, em São Paulo. Morte esta que as autoridades insistiam em chamar de suicídio por enforcamento, seguida, menos de três meses depois, em circunstâncias quase idênticas, pelo trucidamento do operário José Manoel Fiel Filho.
A morte de Manoel Fiel Filho (Correio do Povo) mostrava a crueldade da repressão. |
CP |
Preso por agentes do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centros de Operações de Defesa Interna), Manoel, de 49 anos, pai de três filhos e metalúrgico da empresa Metal Arte, em São Paulo, foi “encontrado” morto poucas horas após a sua detenção. Os dois casos ocorridos em curto espaço de tempo resultaram no afastamento do comandante do Segundo Exército, general Ednardo D’Ávila Melo.
No dia 14 de abril foi a vez da conhecida estilista Zuleica Angel Jones, a Zuzu Angel, 54 anos, mãe de Stuart, militante de esquerda, sofrer um acidente automobilístico na estrada da Gávea, no Rio de Janeiro. Às três horas da manhã, no túnel Dois Irmãos, o seu Karmann Ghia, possivelmente sabotado nos freios, derrapou e caiu na ribanceira. Zuzu – que havia criado a primeira coleção de “moda política” da história, em Nova Iorque, onde vestia atrizes como Kim Novak, Joan Crawford e a bailarina Margot Fonteyn - fustigava o governo ao denunciar torturas e pedir insistentemente a punição dos responsáveis pelo assassinato de Stuart, filho seu com um cidadão norte-americano, obrigado a respirar gases expelidos pelo cano de descarga de um jipe militar enquanto era bestialmente arrastado pela Base Aérea do Galeão.
O enterro de Zuzu foi acompanhado por um grande número de artistas e políticos. Naquele mesmo ano, em circunstâncias também duvidosas, morreriam os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, em agosto, e João Goulart, em novembro.
Aliás, o ano não começara nada bem no aspecto político institucional: já no dia 5 de janeiro, segunda-feira, em seu primeiro despacho com o ministro da Justiça, Geisel assinara decreto cassando os mandatos e suspendendo os direitos políticos por dez anos do deputado federal Alberto Marcelo Gato e do deputado estadual Nelson Fabiano Sobrinho, ambos do MDB paulista e que depois foram acusados oficialmente de ligações com o Partido Comunista Brasileiro na cidade de Santos. Na hora do anúncio à imprensa, Falcão, célebre por sua frase-bordão “nada a declarar” (e depois pela lei Falcão de restrições ao debate eleitoral daquele ano), como sempre, foi lacônico e impassível na explicação dos motivos: “Os motivos se podem traduzir numa frase: o ato foi baseado no interesse da Revolução de 64. É só”.
Com isso, em sete anos de vigência, o AI-5 já havia cassado 104 deputados federais, 160 estaduais e mais seis senadores da República, sem contar as baixas no judiciário e no funcionalismo público, entre outros.
PMDB PENSA ATÉ MESMO NA SUA AUTODISSOLUÇÃO. ULYSSES É CONTRA.
De fato, o clima, naquele primeiro semestre de 1976, era de radicalização política governista, especialmente com a chegada de abril e dos doze anos do golpe, chamada de Revolução.
No primeiro dia do mês a Justiça Militar decretou a prisão do jornalista Rodolfo Konder, um dos acusados de reorganizar o Partido Comunista. Já o correspondente da France Press em Lima, no Peru, Paulo Canabrava Filho, entrou com um mandado de segurança no Tribunal Federal de Recursos no mês de setembro e no qual pedia a revalidação oficial do seu passaporte - sem isto era oficialmente um apátrida e não poderia exercer seu trabalho de correspondente internacional, viajar a outro país e muito menos voltar para o Brasil (embora tivesse sido inocentado em processo aqui movido contra ele). Outros dois colegas jornalistas em igual situação anunciavam que fariam o mesmo.
O ambiente, de fato, era desanimador. Sentindo-se inúteis diante do poder armado, duramente atingidos pelas cassações de seus mandatos e seus direitos, alguns políticos da oposição pediam até mesmo a autodissolução do MDB, ao que o seu presidente Ulysses Guimarães se manifestava contra, posição reforçada por Pedro Simon, presidente do diretório regional gaúcho.
O contexto internacional tampouco ajudava a trazer ventos democráticos: praticamente não restava nenhuma nação sul-americana que não fosse governada por generais. América que integrava um mundo ideologicamente dividido entre países socialistas (ou comunistas) e países capitalistas e – apesar da “deténte” - ainda sob o temor de uma improvável guerra nuclear entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética.
De longe o país sul-americano mais convulsionado era a vizinha Argentina. No Natal de 1975, ainda antes do golpe (previsto com meses de antecedência), cerca de duzentos guerrilheiros de uma organização trotskista atacaram um quartel do Exército, a 20 quilômetros de Buenos Aires. Finalmente repelidos, depois de forte fuzilaria, mais de cem deles foram mortos a tiros e os demais aprisionados – incluindo moças e rapazes de menos de 20 anos. Simultaneamente outros grupos da luta armada faziam ações semelhantes em diferentes pontos da Província, metralhando postos da polícia, bloqueando estradas e incendiando veículos.
Em janeiro de 76, em plena temporada de veraneio, o elegante balneário de Punta del Este foi sacudido pela explosão de quatro bombas atribuídas a um grupo esquerdista argentino - os Tupamaros uruguaios já haviam sido praticamente desbaratados pelas forças de segurança daquele país. Em telefonemas às emissoras de rádios e redações de jornais de Montevidéu membros de um autodenominado grupo chamado Operação Aurora proclamaram que “as mãos do povo atacaram os inimigos do povo em seu centro de vício e corrupção”. Mas, apesar da confusão e do susto, ninguém foi seriamente ferido nas explosões.
No final de julho de 1976, desde a deposição de Isabelita Perón em março, já passavam de 550 os mortos nos confrontos e atentados diários na Argentina. Temia-se, inclusive, uma generalizada guerra civil.
1975: a radicalização política na Argentina durava anos e se agravaria com o golpe militar de março de 1976. |
Mesmo assim dados divulgados pelo Banco Mundial atestavam que a renda per capita dos hermanos era a mais alta da América Latina e correspondia a quase o dobro da renda dos brasileiros, sem contar que as potentes emissoras de rádio platinas dominavam as madrugadas nos Estados do Sul, causando “prejuízos incalculáveis”. Nesse sentido, representantes gaúchos da Associação Brasileira de Rádio e Televisão, ABERT, e do Dentel, denunciavam argentinos e uruguaios por não respeitarem as regras internacionais do setor, invadindo a frequência brasileira e aumentando a bel-prazer os quilovates da de suas transmissões. A interferência era especialmente danosa nas ondas médias, na qual os argentinos se mostravam mais teimosos.
DESERTIFICAÇÃO, CAÇA PREDATÓRIA, VENENOS NAS LAVOURAS E NOS RIOS
Não menos acirrados, temas como o desmatamento, a caça predatória, a desertificação (atingidas pela erosão, vastas áreas de Alegrete, São Francisco de Assis e Bagé estavam se transformando em verdadeiros desertos), a qualidade das águas, a comercialização de detergentes e, sobretudo, o uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos, colocavam em pauta, naquele momento, as lutas ambientais e a forte consciência ecológica que floresciam naqueles anos setenta, aqui retratadas por figuras como as de José Lutzenberger, Flávio Lewgoy, Augusto Carneiro e Caio Lustosa e nomes da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a AGAPAN.
Sem janelas para a asfixiada luta política, a causa ambiental – na qual o Rio grande ocupava a dianteira nacional - servia também como causa e bandeira abraçada por pessoas de diferentes matizes ideológicos e encampada, nominalmente, muitas vezes, pelos próprios governos. O governo Guazzelli havia, inclusive, criado o Plano Estadual de Proteção ao Meio Ambiente.
Os agrotóxicos e os detergentes não biodegradáveis estavam na alça de mira: cânceres, deformações genéticas e até sérias perturbações mentais que não raro conduziam ao suicídio eram atribuídos aos efeitos deletérios dos poderosos defensivos químicos. Jornais e revistas de diferentes linhas editoriais publicavam repetidas reportagens a respeito do “envenenamento” do solo e dos rios gaúchos.
No início de abril a Sociedade de Agronomia do Rio Grande do Sul, “preocupada com as mortes de pessoas, animais domésticos e peixes”, anunciou que estava criando um grupo de trabalho para estudar as causas e os efeitos do uso indisciplinado dos defensivos agrícola em lavouras e hortas. Já o secretário da Saúde do Estado, Jair Soares, preferia mover campanha contra os detergentes não-biodegradáveis, chamados de “espumas da morte”, totalmente banidos dos países do Primeiro Mundo.
Naquele momento, nos Estados Unidos, os ambientalistas voltavam-se especialmente para o perigo representado pelas garrafas de plástico que estavam substituindo aos milhões os tradicionais vasilhames de vidro, novidade que colocava em lados opostos defensores do meio ambiente, industriais de refrigerantes e cervejas e o próprio governo americano. Os primeiros sustentavam que agentes químicos venenosos poderiam soltar-se e misturar-se ao seu conteúdo ou seriam liberados durante a incineração ou reciclagem. Mas a Coca-Cola, a mais visada, retrucava: o plástico viera para ficar, reduzia custos e iria revolucionar o mercado de embalagens para bebidas. Naquele momento também a Pepsi realizava testes de mercado e em breve deveria aderir à novidade – que ainda não chegara ao Brasil.
Porém a luta ecológica ganhara corpo em todo o mundo. A anunciada criação da área ecológica do Taim, (a pioneira, no banhado do Taim, onde jacarés e capivaras vinham sendo brutalmente exterminados por caçadores) a do delta do Jacuí e a do Parque Estadual de Itapuã (por pressão dos setores ambientalistas se iniciou um trabalho de fiscalização para dar fim à destruição causada por pedreiras), além da transformação da ilha da Pólvora e das Pombas em reservas biológicas, representavam algumas importantes vitórias ambientais em território gaúcho.
A consciência de que a caça indiscriminada estava exterminando a fauna gaúcha de modo nunca antes visto sensibilizou até mesmo os “gringos” da Serra, descendentes de imigrantes italianos que por décadas dizimaram os animais nativos. Em Galópolis, no início de 1976, quinze proprietários rurais se uniram para proibir qualquer espécie de caça em suas terras, algo que, aos poucos, transformou-se em um movimento de defesa ambiental e conscientização ecológica.
A iniciativa partiu de um advogado chamado Agenor Basso que, depois de vinte anos longe da sua terra natal, descobriu, ao voltar, que as lebres, veados, macacos, capivaras e pássaros da sua infância não mais existiam. A fauna humana, com o hábito culinário da “passarinhada”, reconhecia ele, era a culpada desse estado de coisas. “Como não aparecem nem mais sabiás ou tico-ticos, qualquer passarinho serve, até beija-flor estão matando para as passarinhadas com polenta”, lamentou o advogado.
Durante todo aquele verão as páginas dos jornais estavam repletas de reportagens e opiniões sobre o desparecimento de muitas espécies da fauna sulina. Outras matérias relatavam casos de pessoas cuja saúde fora destruída pelos pesticidas.
No início de janeiro, em Rosário do Sul, noticiava-se que um trabalhador rural chamado Deroti Teixeira (sem qualquer proteção, trabalhou espalhando pesticidas de fosforados) morrera poucas horas depois de buscar atendimento no posto de saúde local. Em fevereiro, o agricultor ijuiense Ernesto Fernandes, de 39 anos, também morreu ao dar entrada no Hospital de Caridade do município, vítima de intoxicação aguda causada pela inalação de gases venenosos. Ernesto também havia passado o dia pulverizando lavouras.
No início de março o hospital de Santa Bárbara do Sul, a 345 km da capital, informava sobre o atendimento a sete vítimas de intoxicação por defensivos agrícolas, alguns em estado grave. Já em junho de 1975 o prefeito José Antônio Dumoncel havia alertado - a maior causa do extermínio da fauna local, algo já visível e flagrante, era a aplicação de inseticidas nas lavouras, especialmente na época do combate à lagarta da soja (janeiro, fevereiro e março), quando um grande número de perdizes e peixes apareciam mortos no rastro dos aviões pulverizadores e das máquinas agrícolas: “A perdiz gosta de se abrigar na lavoura de soja e depois de cada aplicação de inseticida é só percorrer as plantações para verificar a quantidade de perdizes mortas.”
Para a autoridade municipal, se não fossem tomadas medidas urgentes por parte dos governos do Estado e da União haveria um forte desequilíbrio ecológico na região.
Fenômeno semelhante acontecia em Pelotas naquele verão de 1976, com o registro de um agricultor e um mecânico às portas da morte. O agricultor, de 24 anos, intoxicou-se ao pulverizar uma plantação de soja na granja onde trabalhava. Já o mecânico, de 22 anos, baixou no Pronto-Socorro depois de limpar o motor do avião agrícola do patrão.
No mesmo período, em Giruá, o forte e irritante cheiro dos inseticidas aplicados nas lavouras que circundavam a cidade alarmou seus habitantes, os quais pediram providências à prefeitura e à cooperativa local. As autoridades, em resposta, decidiram orientar os produtores a trocarem o veneno em pó, carregado livremente pelo vento, pelo seu equivalente líquido, considerado mais seguro. Mesmo assim um grande número de pessoas acabou no hospital – somente em uma sexta-feira sete adultos procuraram cuidados médicos devido ao problema, quatro dos quais permaneceram internadas.
A questão ambiental dominava os debates na imprensa amordaçada dos anos setenta. Foi nessa época que surgiu a Agapan e a luta ecológica, da qual o RGS foi efetivamente o pioneiro. |
A ação irresponsável ou criminosa das pessoas que manipulavam tais pesticidas era flagrante. No final de março integrantes da Sociedade Botânica de Passo Fundo denunciavam a mortandade de toneladas de peixes da barragem de Ernestina, da hidrelétrica do mesmo nome, no rio Jacuí – problema tão sério que até as atividades de lazer no local foram proibidas. Segundo os ambientalistas, os agricultores lavavam suas máquinas nas águas da barragem, enquanto, do alto, pilotos dos aviões agrícolas despejavam as sobras do veneno no lago, entre os quais o DDT, o BHC e o Aldrin, todos à base de cloro.
A situação do Jacuí (que representa 85% do volume de águas do Guaíba) mostrava-se mais preocupante nas proximidades da Capital, em São Jerônimo, onde a contaminação por resíduos tóxicos atingia níveis alarmantes e muito mais altos do que os aceitos como toleráveis pela Organização Mundial da Saúde, a ponto de autoridades e alguns técnicos, naquele momento, o considerarem “o mais poluído do mundo” – um evidente exagero.
Como nos demais casos, a poluição tóxica provinha basicamente da aplicação desmedida de pesticidas, inseticidas, fungicidas e detergentes não biodegradáveis, todos – à exceção do último – usados com o objetivo de se conseguir maior produtividade das lavouras de arroz, soja e trigo situadas à sua volta.
No final de 1975 funcionários das secretarias estaduais da Saúde e da Agricultura iniciaram uma campanha para conscientizar produtores e moradores ribeirinhos a respeito dos efeitos daninhos de tal prática. Por sua vez o secretário Jair Soares veio a público alertar sobre o perigo real de se frequentar os balneários de São Jerônimo e Triunfo, algo que poderia resultar em casos de enterite, hepatite e outras doenças contraídas em contato com a água poluída.
FEBRE AFTOSA, PESTE SUÍNA E ATAQUES DE CACHORROS LOUCOS
Como se não bastassem os pesticidas químicos, o Rio Grande do Sul sofria também com os casos de febre aftosa que atingiam o seu rebanho bovino – a epizootia praticamente duplicara em relação ao ano anterior em quase todo o Brasil.
Apesar da ampla vacinação, o ano de 1976 fechou com mais de dois mil focos da doença registrados no Estado, colocando em risco a realização da terceira Exposição Internacional de Animais, a Expointer de Esteio, além de ocasionar o fechamento da fronteira com Santa Catarina, Estado que também sofria com o problema.
Em julho, na cidade de Cachoeira do Sul, duas crianças foram internadas com ferimentos na boca e na língua que as impediam de se alimentar: os médicos constataram que elas haviam contraído o vírus da aftosa depois de ingerir leite contaminado. A brucelose, outra patologia animal, igualmente preocupava e exigia vacinação massiva.
Já no dia 2 de abril a Folha da Tarde noticiava que a aftosa se alastrava por Alegrete, onde as feiras e os remates bovinos estavam proibidos, incluindo a Feira da Novilha. A inspetoria veterinária local informou que já chegavam a 28 os focos confirmados apenas nos últimos quinze dias. Também em Rosário do Sul, Cacequi, Uruguaiana e São Gabriel a doença grassava. “Felizmente nesta época do ano o gado está muito resistente”, explicou um fazendeiro.
No início de junho novos focos traziam preocupação aos produtores da região do Alto Taquari, embora todos eles considerassem os números reduzidos face aos registrados nos anos anteriores. Antes da vacinação a incidência no rebanho chegava a 70%, explicou o médico chefe da delegacia veterinária de Estrela, Perci de Quadros. “Agora, com a vacinação, não chega a 5% do rebanho”. Segundo ele, durante o mês de maio, nas 4.600 propriedades rurais de Estrela, foram constatados apenas nove focos, mais 11 em Cruzeiro do Sul e outros seis em Lajeado. Havia duas semanas, em Arroio do Meio, um único foco causara a morte de mais de 30 porcos.
Mesmo assim, estranhamente, os produtores e os frigoríficos garantiam que a comercialização da carne gaúcha continuava em níveis normais naquela primeira metade de 76. Porém, em sua mensagem à Assembleia Legislativa, no dia primeiro de março, por ocasião do reinício dos trabalhos daquela casa, o governador Guazzelli – mesmo dizendo-se satisfeito com o desempenho econômico do Estado no ano que findara – informava que as exportações da carne gaúcha vinham caindo desde 1973 e, nos dez primeiros meses de 1975, caíram 38% em relação à igual período de 74.
O ano de 76 encerraria com outra má notícia: a peste suína, que se acreditava sob controle no Estado, havia voltado com redobrada intensidade na região de Três Passos, Crissiumal e Tenente Portela. No início de dezembro mais de 1200 porcos haviam morrido naqueles municípios e um grande frigorífico regional teve sua produção suspensa por ordem do Ministério da Agricultura.
O prefeito de Três Passos, Egon Lautert, confirmou, preocupado: “Recebi vários telefonemas do interior e todos afirmam que a situação é mais grave do que pensávamos que fosse. Animais vacinados e que não poderiam mais ser afetados pela doença continuam a morrer”.
Havia suspeitas de que o vírus causador da peste não fosse o comumente conhecido no Rio Grande do Sul e sim uma espécie diferente que afetava o rebanho suíno da Argentina, de onde muitas matrizes suínas eram contrabandeadas, considerando que inexistia fiscalização nas duas fronteiras.
Em setembro, no município de Alecrim, 60% da criação havia morrido por causa da peste, ou febre, com a perda de mais de 16 mil animais em menos de 15 dias. Os porcos, não vacinados, espumavam pela boca e exalavam um cheiro forte e desagradável antes de morrer.
Os técnicos e veterinários da Secretaria de Agricultura alertavam: o preocupante ressurgimento da peste, que havia sido epidêmica no Estado na década de quarenta, se devia à falta de cuidados dos próprios criadores, considerando que a vacinação não era obrigatória e, sendo assim, muitos produtores simplesmente não a aplicavam.
Ainda não chegara o mês de agosto – mês dos cachorros loucos e mês do desgosto, no provérbio popular – e outro milenar fantasma animal mostrava seus dentes: a raiva canina, ou hidrofobia, transmitida aos seres humanos através das mordidas dos animais infectados que vagavam por campos e ruas. Quando seus sintomas já se manifestam no ser humano infectado, a doença não tem cura e leva fatalmente à morte.
Apesar da campanha de vacinação antirrábica, mais de cem pessoas tinham sido mordidas (ao menos tiveram contato) por cães hidrófobos em 1975 somente no município de Ijuí, segundo dados do centro de saúde local – o que dava uma média de oito casos a cada mês. Harlei Merten, gerente da Cooperativa Agropecuária Ijuí, lembrou que mais de quatro mil cães chegaram a ser vacinados de uma só vez na cidade. Em março, alarmada, foi a oportunidade da população ijuiense procurar a vacina destinada à imunização humana – vacina esta que, conforme os médicos, tinha contraindicações e não poderia ser aplicada indiscriminadamente.
Em Erechim, segundo a inspetoria veterinária, a campanha também acontecia anualmente em agosto (cada dono de cão pagava cinco cruzeiros pela vacina), mas cerca de 2.500 cachorros não tinham recebido a inoculação “porque seus proprietários não entenderam a medida preventiva”.
Em janeiro de 1976, no bairro do Laranjal, em Pelotas, o grande número de cães vadios aterrorizava os veranistas daquela praia da Lagoa dos Patos – dois animais que apresentavam os sintomas haviam sido mortos em um único final de semana e inúmeros outros foram perseguidos.
Mais adiante, na cidade portuária de Rio Grande, um surto de raiva canina vinha ocorrendo desde o mês de setembro de 1975, com mais de cem pessoas acometidas - as quais se submeteram a tratamento e vacinação. Mais de três mil animais já haviam sido vacinados. E na região da fronteira, em São Luiz Gonzaga, no início de março, as autoridades municipais contabilizavam 12 casos registrados, o que ensejava uma medida radical e discutível por parte do prefeito Alceu da Silva Braga: o anunciado extermínio de mais de mil cães vadios da periferia da cidade.
Em julho, em Alegrete, o médico chefe do centro de saúde, Rui Barbosa da Silveira, mostrou-se preocupado com o grande número de pessoas mordidas por cães raivosos de janeiro a junho, das quais 47 haviam procurado cuidados. Todas elas tiveram de ficar uma semana internadas, além de medicadas com 16 doses da vacina antirrábica. A maioria dos animais que morderam as pessoas tiveram suas cabeças cortadas e enviadas para exames na Universidade Federal de Santa Maria – lá se confirmou que todos estavam mesmo doentes. Mas nenhum caso fatal em humanos foi registrado.
Todavia, já naquele primeiro trimestre do ano aconteceram dois óbitos noticiados pelos jornais da Capital: a da jovem ijuiense Ângela Maria Toral da Silva, de 16 anos, em fevereiro, e a do menino Flávio Luis Sanches Froes, de cinco anos, na cidade de Rio Grande, no mês de março.
A morte de Ângela Maria chegava a ser criminosa: ela morreu dentro da ambulância, na tarde de sexta-feira, 13 de fevereiro, na frente do Instituto de Pesquisas Biológicas, em Porto Alegre, para onde fora trazida. Desde a sua chegada, às 9h30min, até o seu falecimento, às 14h30min, Ângela havia passado por um posto de saúde do INPS (na galeria Malcon) e três hospitais (Santa Casa, Conceição e finalmente o instituto), em um jogo de empurra-empurra que desesperou seus pais e revoltou até mesmo o motorista da ambulância, Odon de Mello Dorneles. Em todos esses locais ela foi tão somente medicada. Ângela Maria havia sido mordida no início de outubro.
Um mês depois, também em uma sexta-feira, 12 de março, o menino Flávio Luís, de cinco anos, faleceu no hospital Madre Batista da Santa Casa, em Rio Grande, onde se encontrava internado havia três dias. Vinte e cinco dias antes ele fora mordido por um animal raivoso. Mesmo recebendo logo a vacina antirrábica, no dia 8 o garoto manifestou sinais da doença. Flávio era filho de uma doméstica de 30 anos.
No final de outubro iniciou-se oficialmente em todo o Estado a campanha de combate à raiva, com vacinação de casa em casa, começando pela região metropolitana. Dados da secretaria da Saúde revelavam a ocorrência de 24 casos de raiva humana no Rio Grande do Sul de 1970 a 75 – a doença era considerada endêmica e um real problema de saúde pública, tal como a dengue, anos depois, sendo registradas nesse período 7.178 pessoas atacadas por cães raivosos somente em Porto Alegre. Além disso, era uma doença cara, já que exigia assistência a milhares de pessoas expostas ao risco de morte.
Transmitida pela saliva do cão, basta a lambida em algum ferimento na pele para inocular o vírus. O quadro de evolução passa pelos sintomas de ansiedade, dor de cabeça, febre, mal estar e paralisia parcial ou total dos músculos, sendo que o espasmo do músculo de deglutição provoca no doente o medo da água (daí o nome hidrofobia). Nesta fase há delírios e convulsões, resultando na paralisação dos músculos do sistema respiratório e a consequente morte.
Em seus folhetos de divulgação (que eram distribuídos pelos funcionários da CEEE e deixados nas caixas de luz), explicava-se os sintomas presentes no cão: “O cão raivoso fica triste, anda com dificuldade e não reage como antes aos chamados do dono. Modifica o latido, que passa a uma espécie de uivo rouco. Frequentemente fica agressivo e ataca os outros animais com os quais convivia bem. Pode fugir de casa ou se esconder em lugares escuros. A paralisia maxilar inferior é outra característica da doença – o animal não come e nem bebe porque não consegue movimentar a boca sem dor forte”. O folheto aconselhava ainda que o bicho não deveria ser morto pela pessoa e sim aprisionado e observado durante algum tempo, para se verificar se está mesmo raivoso, e, em caso de confirmação, iniciar o tratamento.
UM MUNDO POLUÍDO, AUTOMATIZADO, ROBOTIZADO...
Voltando a Porto Alegre, ao lazer e às amenidades culturais: nos cines Cacique, Ritz e Coral, naquela última semana de abril, estreavam Zorro, uma refilmagem com Alain Delon no papel principal. E, no Presidente, W. – A Marca do Terror, a história de uma mulher que é vítima de vários acidentes estranhos, sempre precedidos pela aparição da letra W.
Já no Cine Avenida, na esquina da João Pessoa com a avenida Venâncio Aires, em “eastmancolor”, estreava Toda Uma Vida, do diretor francês Claude Lelouch, a história de duas famílias judias ao longo de três gerações. No Cinema 1, Sala Vogue (avenida Independência, 904), o clássico O Grande Ditador, de Charles Chaplin, continuava em cartaz.
Sem shopings centers, sem o Brique da Redenção e sem o Parque Marinha do Brasil, a Porto Alegre daqueles meados dos anos setenta somava oito cinemas na sua zona central. Todavia o número de frequentadores caíra nos últimos tempos em virtude do aumento da violência urbana, da concorrência da televisão colorida (e, diziam os donos de cinema, da obrigatoriedade de se exibir uma determinada cota de desinteressantes filmes nacionais a cada mês).
Por fatores ainda não bem explicados, a tendência de queda parecia estar se revertendo: segundo apurou um grupo de estudos criado pelo prefeito Villela para apurar a situação, no primeiro semestre de 76 registrou-se em acréscimo de 13% no número de espectadores de cinemas em Porto Alegre. Cinemas que, diga-se, ainda não enfrentavam a concorrência do vídeo cassete, que surgia experimentalmente nos Estados Unidos, com o lançamento do Betamak pela Sony ao nada convidativo custo de dois mil dólares.
Vivendo uma espécie de encruzilhada, uma gangorra entre o passado e o futuro, o tradicional e a modernidade, a capital gaúcha registrava e lamentava o desaparecimento dos cines Colombo e Rio Branco, “frutos do progressismo”, conforme escreveu o historiador Leandro Telles, lembrando também o fechamento do tradicional Café Rian – símbolo, a seu ver, do “assassinato de Porto Alegre”: “Lá se vai o último reduto da Porto Alegre tradicional no calçadão da Rua da Praia, sacrificado ao poder econômico. Talvez a cidade só compreenda o que significava o Rian quando dele existir só a lembrança. Num mundo automatizado, poluído, robotizado, num mundo dos “sem tempo”, o Rian significava o derradeiro refúgio, o último protesto contra uma forma de vida que rouba ao homem o convívio com o semelhante, a tradição dos bate-papos informais, origem não só das fofocas mas de decisões importantes para a vida particular e pública”.
Rua da Praia e da Feira do Livro, onde ainda se via Mário Quintana passeando com ar pensativo. Prestes a completar 70 anos de idade (o que aconteceria em 30 de julho), o poeta maior dos gaúchos em breve seria alvo de uma série de homenagens, agradecimentos e tributos da sociedade do Rio Grande do Sul.
Sociedade que, já de modo oficial, restringia cada vez mais um dos maiores prazeres do poeta – fumar. No Estado, as secretarias da Saúde e da Educação, com o apoio da Associação Médica, haviam lançado campanha alertando para os males decorrentes do tabaco e utilizando como garoto-propaganda o jogador Elias Figueroa.
Apesar do lobby econômico e da forte publicidade na mídia, paradoxalmente quase sempre associando o fumo com os esportes e a vida ao ar livre, os fumantes se viam gradualmente acuados em muitos países. Um deputado federal de Brasília propunha até mesmo o radicalismo de se proibir o uso do cigarro em viagens aéreas e nas de ônibus intermunicipais e interestaduais. Na Itália, em agosto, entraria em vigor a nova lei que proibia fumar em cinemas, teatros e locais públicos – para surpresa de muitos, os italianos estavam gostando e até acatando a medida. Os donos de cinemas, por seu lado, se mostraram especialmente satisfeitos, pois, além de não se registrar a temida queda no número de frequentadores, acabaram também economizando boas liras: se antes, a cada dois anos, precisavam trocar poltronas, tapetes e até as telas de exibição (encardidas pela fumaça), agora viam pais satisfeitos trazendo seus filhos pequenos para as sessões.
A prefeitura de Porto Alegre – que proibia o fumo nos coletivos de linha – estava igualmente sendo cobrada neste aspecto, uma vez que o cigarro era, a bem dizer, tolerado no interior dos seletivos urbanos, não raro gerando bate-bocas e incidentes desagradáveis. Pessoas inconformadas escreviam e telefonavam para rádios e jornais, manifestando sua revolta por uma brandura que seguia na contramão dos tempos. Defendendo-se, a direção da empresa Carris enviou nota aos jornais, lembrando que a não proibição vinha de uma lei anterior e que, afinal, “a liberalidade se restringe apenas ao cigarro industrializado, não sendo permitido charuto, cachimbo ou cigarro de palha”.
Inconformado com o “cheiro nauseabundo da fumaça que provoca mal-estar e dores-de-cabeça”, inclusive nos táxis da cidade, o leitor “A. Pinto” desabafou na coluna do leitor do Correio: “Inúmeras vezes entrei em táxis com a esposa e filhas e o motorista fumando ostensivamente, continuou soltando baforadas de fumaça, sem o mínimo respeito, e até com o risco de acidentes em vista de guiar com uma só mão. Em ônibus interioranos e mesmo aqui na Capital é comum tal desrespeito”.
Enquanto isso, nos Estados Unidos (onde, havia anos, a publicidade do fumo estava proibida), divulgava-se estatísticas que apontavam a produção mundial de cigarros como a menor em 14 anos, algo explicado pelas crescentes campanhas de esclarecimento e a pesada tributação incidente em muitos países.
TEATRO DE ARENA, MUSI-PUC, RÁDIO CONTINENTAL, ALMÔNDEGAS
Na Capital, na área de teatro, na Cidade Baixa, conforme se via na programação dos jornais, A Macaca Esquecida, peça infanto-juvenil encenada pelo grupo A Hora do Anjo e escrita pelo jornalista Caco Barcelos, prosseguia suas apresentações no teatro de Câmara da rua da República, somente aos finais de semana. No mesmo teatro, às 21 horas, estreava a comédia de costumes Rodolfo Valentino, com direção de Luiz Paulo Vasconcelos.
Do outro lado, na cidade de Guaíba, baseado no texto de João Simões Lopes Neto e com músicas de Carlinhos Hartlieb, o grupo Seraphin apresentava a Salamanca do Jarau. O ator paulista José de Abreu, 31 anos, havia anos radicado no Estado, integrava o elenco.
Na sexta-feira, 30 de abril, no teatro de Arena, nos altos do viaduto Otávio Rocha, seria a vez da estréia de Trágico Encontro, com Ivone Hoffmann e Marlise Saueressig, direção de Jairo de Andrade, gaúcho cujo nome esteve em evidência por todo o mês de fevereiro, quando a peça Mockinpott, dirigida pelo espanhol José Luiz Gomez, foi proibida pela censura federal, depois de meses de aplaudida exibição em diferentes partes do Brasil (em Porto Alegre o próprio governador Guazzelli viera assisti-la). Apresentada no teatro Paiol, em São Paulo, escrita pelo alemão Peter Weiss, autor de “Marat-Sade”, “Mockinpott”, a história de um homem comum que é detido pela polícia, havia sido laureada com importantíssimos prêmios nacionais.
Programação de teatro na cidade, no dia 27 de abril: o São Pedro continuava fechado para reformas. |
Inconformado com a proibição, Andrade acionou amigos na imprensa e mobilizou a classe artística, incluindo Elis Regina e Ruth Escobar, conseguindo afinal que a censura liberasse a peça, ainda assim com fiscalização permanente e diária de agentes da Polícia Federal. Os censores alegavam que “com gestos e expressões” os artistas haviam mudado o sentido do texto por eles liberado.
Na mesma semana de abril, de quarta a domingo, o curioso relacionamento entre patrão e empregado em uma antiga mansão era contado na peça de Ronald Radde, no Clube de Cultura da rua Ramiro Barcelos, com Jurandir Alliatti e Sérgio Ilha.
Revelando novos e surpreendentes talentos, a música gaúcha urbana também um vivia um bom momento: liderados pelos irmãos pelotenses Kleiton e Kledir Ramil, e embalados por uma recente aparição no Fantástico, o Show da Vida, o grupo Almôndegas (“conjunto que faz música de temática urbana e projeção folclórica”), formado por Kledir, Kleiton, Quico, João Baptista e Gilnei, percorria as principais cidades gaúchas em uma série de apresentações. Uma de suas músicas (Canção da Meia-Noite) fora incluída na trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo, que estrearia na próxima segunda-feira, 3 de maio, às dez da noite. Em julho de 1975, em meio ao crescente sucesso, o grupo havia se apresentado no Gigantinho em companhia dos mineiros Sá e Guarabira e de um surpreendente cantor chamado Morris Albert, “um brasileiro que, cantando em inglês, consegue enganar até os norte-americanos”.
Um tanto isolada das demais capitais, a Porto Alegre das caras novas de 1976 ouvia a rádio Continental e aplaudia o pessoal do Musi-Puc, festival de música organizado pelo centro acadêmico São Tomás de Aquino (filosofia e ciências humanas), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC. O evento acontecia no salão de atos da Reitoria (a edição de 76 foi realizada no auditório da Assembleia Legislativa), sem qualquer apoio oficial.
Rede Globo: a novela Saramandaia, que marcaria época, estava para estreia no início de maio. |
Movimento artístico e musical revelador de um emergente Rio Grande urbano, a edição de 1975, a quarta, foi particularmente importante nesse sentido. Nesses dias, talvez sem saber claramente do seu papel em tal processo histórico-musical, Mister Lee – ou Júlio Fürst, 26 anos, radialista, músico e animador cultural – convidava todos para mais uma edição do seu Vivendo a Vida de Lee, o terceiro concerto a acontecer no Teatro Leopoldina e que reuniria na sexta-feira e no sábado doze nomes do Novo Movimento, entre eles Fernando Ribeiro, Hermes Aquino, Bobo da Corte e Mantra.
Os shows sucederiam as apresentações da cantora e tangueira argentina Amelita Baltar, em despedida das terras gaúchas. A principal casa de espetáculos da cidade, o teatro São Pedro, estava fechada para restauração e só seria reaberta ao público em agosto de 1984. No Gigantinho acontecia diariamente o espetáculo Os Cavalos de Viena, enquanto o Planetário – com seus três anos de existência – promovia os educativos A Mensagem das Estrelas e Nós e os Outros Mundos.
Mais longe, no Rio, o músico Raul Seixas, de 30 anos, adepto da “sociedade alternativa”, trancava-se em estúdio para gravar um compacto simples (duas músicas) que incluía em nova canção chamada Eu Nasci Há Dois Mil Anos Atrás. E no dia 19 de abril, segunda-feira, em Porto Alegre, o pianista Bill Evans, “um patriarca do jazz”, apresentava-se no teatro Leopoldina, promoção da secretaria de Educação e Cultura do Estado. A 16 de setembro, em única apresentação a ser realizada no salão de atos da Universidade Federal, Stan Getz e Trio esgotavam antecipadamente os ingressos à venda na farmácia Panvel do “calçadão”.
Tal como hoje, a capital gaúcha era destino certo para grandes nomes internacional que chegavam em turnê ao Brasil. Até mesmo o fenômeno mundial Uri Gheller veio a Porto Alegre no início de agosto para faturar alguns bons trocados com suas exibições de suposto paranormal capaz de entortar talheres, consertar relógios e reproduzir desenhos apenas com a força da mente.
Para alguns apenas um talentoso e midiático ilusionista, o israelense, de 28 anos, hospedou-se do hotel Plaza San Rafael, deu as tradicionais entrevistas em que se manifestava comovido com o “carinho do povo brasileiro” e fez uma série de caras apresentações no Leopoldina e outra maior, no ginásio Gigantinho.
Na área de livros, segundo a tradicional lista da revista Veja (o semanário ainda estava sob censura prévia e, desde dezembro, não tinha mais Mino Carta como o seu editor), Gota d’Água (uma peça de teatro), de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes, mantinha-se há quinze semanas no topo da lista dos livros mais vendidos do Brasil, seguido de Rubem Fonseca com Feliz Ano Novo (liberado pela censura em 1975 e novamente proibido um ano depois).
Já o filho de Érico Veríssimo (escritor falecido em novembro de 1975 e cujo segundo volume de Solo de Clarineta acabara de ser lançado pela Editora Globo), Luís Fernando Veríssimo, vinha em quinto lugar, com A Grande Mulher Nua, coletânea de crônicas publicadas na imprensa. Dos estrangeiros o mais procurado era uma novela policial já bem conhecida de todos: Cai o Pano, de Agatha Christie, falecida em janeiro último. Grande sucesso cinematográfico daquele verão, dirigido pelo jovem (29 anos) Steven Spielberg, Tubarão, o livro, de Peter Benchley, ocupava o segundo lugar, vindo em terceiro Arthur Hailey, com O Dinheiro.
No dia 24 de abril, sábado, porém, o mundo literário gaúcho comentava a morte do escritor Gladstone Osório Marsico. Natural de Erechim, o autor do festejado, ácido e satírico romance Cogumelos de Outono (1972) e Cágada, suicidou-se em Porto Alegre, aos 49 anos. Ele sofria de esquizofrenia e jogou-se do sétimo andar de um edifício.
A SAFRA DE SOJA BATE RECORDE E O RIO GRANDE CRESCE A 10%
Para os trabalhadores gaúchos e brasileiros, porém, a grande novidade a ser anunciada não era cultural e sim econômica e dizia respeito ao reajuste anual do salário mínimo – o primeiro de maio cairia no próximo sábado e aguardava-se o pronunciamento do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto. O custo de vida e a inflação (29,4% em 1975) estavam decididamente em alta e tudo indicava tempos difíceis.
Após uma longa espera o governo concedeu aumento de 44%, fazendo com que o mínimo (então regional) passasse a ser de 712 cruzeiros no Rio Grande do Sul, Estado que no final de 75 atingiu a renda per capita de 700 dólares.
Para 1976 o mesmo ministro previa um razoável crescimento do Produto Interno Bruto, lembrando que, em 1975 o desempenho da economia brasileira (4% de crescimento) não fora “nem desesperador nem brilhante”, embora decididamente houvesse acabado o tempo do milagre econômico (em 1973 o PIB brasileiro aumentou em mais de 11%). Mesmo assim o país – atingido pela crise mundial, que seria a maior desde o final da Segunda Grande Guerra - crescera acima das outras nações latino-americanas, que ficaram no 3,3% em 1975.
Crescimento este influenciado pelas mãos do governo, fortemente estatizante e intervencionista na economia, o que desagradava setores do capitalismo nacional. Empresários paulistas, os mais inconformados, falavam até mesmo na vigência de um “capitalismo estatal” no Brasil. Em recente documento endereçado ao Presidente da República pela Associação Comercial de São Paulo, sugeria-se medidas práticas “visando a conter o ritmo de crescimento da participação do setor público na economia”.
Em julho de 1975, o presidente em exercício da Associação Comercial de Porto Alegre, Antônio Carlos Berta, em discurso durante o jantar comemorativa do Dia do Comerciante, alertou para o estatismo (nesse aspecto ele via semelhanças entre o Brasil e a União Soviética) na economia e a grande desigualdade social brasileira, que não tinha sido combatida nos últimos anos.
No início de agosto de 1976 a revista inglesa The Economist, em um longo artigo sobre o Brasil, aqui repercutido, afirmou que, na última década, a economia brasileira havia crescido “quase da mesma forma como os brasileiros dirigem seus carros: ou seja, com extrema velocidade, sem respeitar ninguém na estrada, expondo-se facilmente a acidentes e não parando para ver se seus passageiros ficaram para trás. No ano passado, com uma sonora freada, o carro entrou num engarrafamento de trânsito e teve de avançar vagarosamente”.
“No momento”, prosseguia The Economist, “bastaria dizer que o Brasil deverá fazer uma importante mudança na política econômica, afastando-se de um crescimento vertical a qualquer custo e voltando-se possivelmente para algumas medidas de substituição de importações”.
“A crise do petróleo e a recessão mundial parecem ter forçado os generais, bem sucedidos em sua política anterior, a rever suas ideias. Para os brasileiros isto é um bem”.
Economicamente, porém, o Rio Grande do Sul, com uma taxa de desemprego de 3,1%, não tinha muitos motivos para reclamar: trigo, a mais importante cultura de inverno, tinha ido mal, sim, mas a boa safra de arroz e a excelente colheita da soja faziam sorrir largamente os produtores, e isso se refletia na vida das pequenas cidades e no consequente aumento do consumo. Em Ijuí, na zona da produção, a empresa responsável pela construção do novo armazém da Cooperativa Regional Tritícola Serrana, Cotrijuí, queixava-se da falta de trabalhadores, os quais precisava buscar em outros municípios, já que havia muita procura por mão de obra de qualquer nível em toda a região.
Em 1975 a economia gaúcha crescera 10%, algo significativo comparativamente à média de 5,6% nos últimos 25 anos. A exportação de soja duplicara em relação ao ano de 1974 (o RS era o maior produtor brasileiro) e um novo mercado externo, o Oriente Médio, se abria para os produtores de frangos. Ainda assim a soja, o arroz, o trigo e o milho, somados, responderam por 78% da economia agrícola regional em 1975.
A crescente mecanização das lavouras aumentava os ganhos de produtividade dos agricultores, sendo que o Estado – em cujas terras operavam 25% de toda a maquinaria agrícola brasileira - perdia nisto apenas para São Paulo. Até o início de agosto de 1976 o Rio Grande já tinha vendido para o exterior quase 800 milhões de dólares somente em soja.
As exportações de calçados também cresceram no período de janeiro a julho de 1976, com quase 80 por cento a mais de faturamento real. No setor naval, o Estaleiro Só, em Porto Alegre, estava fabricando e entregando dez navios encomendados por armadores gregos e dinamarqueses, destinados à navegação de cabotagem. Um negócio de 75 milhões de dólares.
Falando em navegação, aquele mês de abril talvez tenha sido o último em que o Correio do Povo publicou a sua tradicional coluna sobre o movimento de navios no porto da Capital, cuja importância, já então, era apenas um pálido reflexo dos anos dourados dos cais Mauá e Navegantes, nas décadas de 40 e 50, com intensa navegação de passageiros e de cargas. De qualquer forma, na quarta-feira, 14 de abril, estavam atracados nas docas porto-alegrenses os seguintes navios: “Raphael”, de bandeira inglesa, descarregando 370 toneladas de carga em geral procedente da Europa e carregando 1.300 toneladas de madeira; o “Cidade São Luiz”, brasileiro, descarregando 29 mil toneladas de cimento em saco procedentes do Recife e carregando 1.600 toneladas para a mesma cidade; “Alcajar”, de origem singalesa, descarregando 4.500 toneladas de fertilizantes da Europa; o “Serra Verde”, brasileiro, carregando 740 toneladas de carga em geral, também com destino ao Velho Continente; o “Lloyde Hamburg”, brasileiro, descarregando 150 toneladas de carga em geral procedente da Europa e retornando para lá com 1.400 toneladas; e o “General W. Zainov”, búlgaro, que levaria cinco mil toneladas de farelo. Para os próximos dias eram esperados os navios estrangeiros “Cosmonaut”, “Wiernetor”, “Crowk” e “Bow Gran”.
OS F-5 “TIGGERS” DA BASE AÉREA DE CANOAS ESTAVAM PARA CHEGAR
Pesquisa da Fundação de Economia e Estatística descobrira que 56,8% dos gaúchos moravam em cidades (a maioria de minúsculo porte) e que quase 400 mil haviam deixado o Estado entre 1960 e 1970, período em que Rio Grande perdera atrativos para outras regiões brasileiras. Todavia, o nível de escolaridade dos trabalhadores empregados gaúchos era ainda sofrível – 64,76% tinham somente cinco anos de estudo.
Na área militar estadual, sempre em evidência – mas desta vez em algo estritamente profissional – a barulhenta novidade envolvia a os aviões supersônicos comprados aos Estados Unidos, 12 dos quais ficariam na Base Aérea de Canoas. Uma pista estava sendo reforçada para receber parte da esquadrilha dos barulhentos F-5, os poderosos Tiggers destruidores de vidraças – mas eles só chegariam em novembro.
Ali perto, para alívio dos pobres passageiros dos voos comerciais, anunciava-se para junho a implantação definitiva de um sistema de ar condicionado para o saguão e metade do aeroporto Salgado Filho, “atendendo a uma tendência mundial”. E já se projetava a construção de outro aeroporto, bem maior e mais moderno, para suprir as necessidades dos anos 80, possivelmente no município de Guaíba.
Mas era o futurista Concorde, a “maravilha supersônica” a serviço da Air France, um dos maiores xodós daquele ano. No dia 21 de janeiro, quarta-feira, o avião mais moderno e veloz do mundo, de imponentes linhas aerodinâmicas, inaugurava a rota comercial Paris-Rio-Paris, com escala em Dakar, Senegal. Apesar de encurtar a viagem convencional em quatro horas (ele voava tão alto que das suas janelas se podia observar a curvatura da Terra), o avião se atrasou em 35 minutos em relação à chegada prevista no Galeão. Entre os seus passageiros estava o costureiro Valentino.
Em abril de 1976 a programação das emissoras locais de tevê – Gaúcha, canal 12, Difusora, canal 10, Piratini, canal 5, e Educativa, canal 7 (ainda embrionária) – podia ser consultada nas páginas dos seis diários que circulavam então na Capital: Correio do Povo, Folha da Manhã, Folha da Tarde (que completava 40 anos de circulação naquela terça-feira, marcando uma série de comemorações e reencontro de velhos colegas), Zero Hora, Diário de Notícias e Jornal do Comércio.
As rádios FM era uma grande novidade tecnológica daquela metade dos anos setenta. |
Imprensa que, desta vez, com relutância, se transformara, na própria notícia. Desde o dia 11, domingo, um assunto dominava os cafés e as esquinas de Porto Alegre: o assassinato da jovem Maria José Alberton Silva, de 24 anos, estudante universitária e funcionária pública, atingida por um tiro de espingarda calibre 12. Ela trabalhava como assistente social na secretaria estadual do Trabalho e tinha sido secretária particular do seu irmão, Roberto Geraldo Coelho da Silva, titular daquela pasta no governo de Euclides Triches. O fato ocorreu na madrugada de sábado para domingo, na Sinke, uma tranquila rua do bairro Santa Teresa.
No início daquela madrugada ela e o médico Paulo Eduardo Freitas, de 26 anos, namoravam no interior de um carro estacionado defronte à residência de um dos homens mais conhecidos do Rio Grande do Sul – Flávio Alcaraz Gomes, de 48 anos. O jornalista (que afirmava estar sofrendo ameaças nas últimas semanas) teria ordenado ao casal sair do local. Não atendido, disparou contra o veículo.
Baleada na cabeça e levada às pressas ao Hospital de Pronto Socorro, Maria morreu horas depois. Flávio, diretor da Rádio Guaíba, primo do “big boss” da imprensa no Estado, Breno Alcaraz Caldas, apresentou-se à polícia e alegou disparo acidental – apesar de não ter corrido o prazo de 24 horas que o livraria do flagrante, ele foi liberado em seguida. A partir daí, em espécie de tácito acordo, os demais grandes jornais da cidade dedicaram ao assunto somente discretos informes, o último dos quais publicado naquela terça-feira pela Folha da Manhã – o matutino noticiava os depoimentos prestados no dia anterior pelo casal Darcy e Rita Segger. Foram eles que jantaram com Alcaraz e sua esposa, no Hotel Plaza, pouco antes do ocorrido na madrugada de domingo. Flávio contratou os serviços do advogado Eloar Guazzelli, primo do governador do Estado e conhecido por sua atuação em defesa dos presos políticos.
No final de 1975 o jornalista havia lançado o livro Um Repórter na China, resultado de sua viagem ao país comunista de 900 milhões de habitantes e que, aos poucos, começara a se abrir à curiosidade do Ocidente. O “próximo livro de cabeceira de Mao”, como dizia o slogan publicitário, editado pela Garatuja, estava à venda “em todas as boas livrarias da cidade”.
Na grade televisiva, combinando ainda muitos programas em preto e branco com outros a cores, sabia-se que às 14 horas daquele dia 27, na tevê Difusora, Canal 10, hoje Bandeirantes, teríamos o filme Caminhos Incertos (colorido), seguido do desenho Jackson Five, enquanto a Gaúcha exibiria, no mesmo horário, Os Monkees Estão Soltos e, às 16 horas, Tarde Cor Especial, com Corrida Maluca.
A programação de TV no dia do incêndio. |
A Difusora abriu sua programação daquela terça-feira às 10h23 da manhã. Às 11 horas apresentou Aventuras de Rin-Tin-Tin, seguido do carro-chefe Portovisão, com Clóvis Duarte, Fernando Vieira, Tatata Pimentel, José Antonio Daudt, Renato Pereira, Cláudio Brito, Lauro Quadros, Larry Pinto de Faria, Sérgio Jockymann, Tânia Carvalho, José Fogaça e Pedro Américo Leal. Até o encerramento, por volta das duas da madrugada, exibiria ainda Os Jetsons, Batman, Perdidos no Espaço, Jeannie é um Gênio, Câmera 10 e Varig, a Dona da Noite.
Já o canal 12, filiado à Rede Globo, tinha em sua grade de programação (que naquele dia iniciava às 10h33min) o infantil e elogiado Vila Sésamo, seguido de O Mundo dos Animais, Jornal do Almoço, Sessão das Duas, Tarde Cor Especial, Sessão Aventura e Faixa Nobre (às 17h30min, com o filme O Planeta dos Macacos). Tal como hoje, antes e depois do Jornal Nacional (19h45min), sobravam novelas: Vejo a Lua no Céu (18 horas), Anjo Mau (19 horas, em preto-e-branco), Pecado Capital às 20h15min, e, às dez da noite, O Grito (que, na segunda-feira seguinte daria lugar a Saramandaia, com Dina Sfat, Sonia Braga, Wilza Carla, Juca de Oliveira e Milton Moraes).
Segunda-feira, aliás, às 21 horas, tradicionalmente consagrada ao humorista Jô Soares e seu Planeta dos Homens, enquanto Chico Anysio, 45 anos completos naquele dia 12 de abril, reinava às quintas-feiras com seu Chico City. Colado às novelas vinha o seriado Kojak, com o careca Telly Savalas no papel de detetive – havia um bom tempo ele fazia sucesso com sua calva, seu charme, seu chapéu e o seu pirulito.
Novidade aguardada por muitos no mundo televisivo ainda não acontecera de fato: a nova emissora de televisão do apresentador Silvio Santos, a TVS. Silvio ganhara a concessão governamental do canal 11, de São Paulo, em outubro, e pretendia criar uma rede nacional para divulgar e vender o seu Baú da Felicidade.
Enquanto isso, no plano internacional, o governo racista e isolado da África do Sul havia finalmente concordado em implantar tal tecnologia no País – a primeira transmissão aconteceu no dia 5 de janeiro de 1976. Considerada uma influência corruptora e temendo que fomentasse a indesejada integração racial, as autoridades brancas por muitos anos proibiram a televisão naquele país. Por via das dúvidas, um aparelho de tevê, na terra do prisioneiro Nelson Mandela, custava então cerca de mil dólares, mais ou menos o dobro do que custaria no Brasil.
Em uma época tecnologicamente confusa em que os dois sistemas – preto e branco e a cores – conviviam na grade de programação das emissoras, as lojas brasileiras também vendiam os dois diferentes modelos, com seus botões de “horizontal”, “vertical” e “brilho”. Na Casa Klift, por exemplo, as promoções daquela Páscoa de 1976 anunciavam aparelhos a cores (Admiral Solar Color de 13 polegadas) por 4.990 cruzeiros à vista ou 24 vezes de 364,99, Telefunken Pal Color de 26 polegadas (8.930 cruzeiros à vista ou em “suaves prestações” de 653,72), enquanto o de 22 polegadas da marca Colorado sairia por 5.890 cruzeiros. Já um Telefunken preto-e-branco de 24 polegadas custava, à vista, 2.240 cruzeiros.
PECADO CAPITAL E O INCÊNDIO QUE DESTRUIU OS ESTÚDIOS DA REDE GLOBO
Desde novembro de 1975, logo depois do Jornal Nacional, os brasileiros acompanhavam as peripécias do taxista Carlão em Pecado Capital. Primeira novela da televisão brasileira a cores no horário das oito da noite, escrita por Janete Clair e dirigida por Daniel Filho, com Francisco Cuoco, Betty Faria e Lima Duarte nos papéis principais, Pecado Capital foi um grande sucesso televisivo e destacou-se também pela trilha sonora, com Paulinho da Viola e Wando. O final, todavia, se mostraria surpreendente: Carlão – atolado em um turbilhão de cobiça e dinheiro – é assassinado e a mocinha, sua amada, casa-se com Lima Duarte.
A exibição do último capítulo, na noite de 4 de junho de 1976, sexta-feira, dia do pagamento dos funcionários da Rede Globo de Televisão, seria marcada por um fato que abalou os estúdios no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
No meio da manhã fumaças irromperam pelo centro nervoso da emissora, na sala onde são colocadas as imagens no ar, o segundo dos dez andares do edifício. O fogo se espalhou rapidamente pelas instalações do ar condicionado e nas horas seguintes foi destruindo caríssimos equipamentos recém-importados e – de forma irrecuperável - centenas de rolos de fitas, dentre elas os 35 primeiros Fantástico, todas as primeiras edições do Jornal Nacional e quase todas as novelas e programas humorísticos e de variedades da emissora.
O que não queimou foi inutilizado pelos jatos de água dos bombeiros. Calcula-se que somente nessa ocasião mais de mil rolos de fita tenham perecido, um prejuízo incalculável para a memória da televisão brasileira. Esse sinistro superou de longe os outros dois anteriores, em 1969 e 1972.
Mesmo assim a Globo não interrompeu a sua programação normal, que passou a ser transmitida de São Paulo. Cerca de 200 bombeiros combateram o sinistro, que teve muitas pessoas intoxicadas pela fumaça, algumas delas querendo saltar das janelas, mas nenhuma vítima fatal. Vinte e dois homens e mulheres foram atendidos no hospital Miguel Couto.
Um dos filmes mais noticiados e aguardados dos últimos meses, Um Estranho no Ninho, de Milos Forman, com Jack Nicholson, 39 anos, no papel principal, ainda não estreara nas salas de cinema de Porto Alegre, embora já tivesse sido escolhido pela Academia de Hollywood, em março, como o grande vencedor do Oscar de Melhor Filme de 1975.
Bem mais caseira e acanhada, sem Oscar, sem tapete vermelho e sem nenhum glamour, a produção nacional de pornochanchadas atraía em todo o Brasil um público fiel aos cinemas populares. Em Porto Alegre os mais frequentados eram o Carlos Gomes, no centro, e o Castelo, na Azenha. Também popular - mas sem cenas de sexo - o filme A Quadrilha do Perna Dura, produção de Pereira Dias, com Teixeirinha, 49 anos, e Mary Terezinha, 28 anos, havia estreado nos cinemas gaúchos em março e prometia o mesmo sucesso de tantas outras fitas do Rei do Disco.
A despeito de polêmicas e antipatias ideológicas e estéticas que o cercavam desde que gravara em 1961 o seu espetacular sucesso musical Coração de Luto – a história do filho que lembra sua vida a partir da morte da mãe, torrada pelo fogo em um súbito incêndio em sua casinha rural – Victor Mateus Teixeira transformou-se em um ídolo popular, protagonizando diversos filmes de enredo simplório que lotavam os cinemas dos três Estados do Sul ou onde houvesse influência gaúcha. Na rádio Farroupilha, com Mary Terezinha, apresentava o programa matinal Teixeirinha Amanhece Cantando.
Teixeirinha que, é claro, não esteve no IV Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, realizado em pleno verão, de 20 a 24 de janeiro, o evento mais badalado da grande tela nacional, o Oscar tupiniquim, e que desta vez homenageou o ator Grande Otelo e os diretores Alberto Cavalcanti, Ruy Santos e Roberto Farias. Quem no entanto roubou a cena, “pela plástica e juventude”, foi a dupla Pedro Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”, e a jovem modelo Rose Di Primo, de 20 anos.
Com ar blasé, os dois passaram quase todo o tempo juntos, à beira da piscina do Hotel Serra Azul, muito embora fizesse um friozinho na serra e o sol raramente surgisse. Segundo os jornalistas, a modelo e atriz de Eu Transo Ela Transa, Banana Mecânica e Uma Virgem na Praça, a aloirada menina das motos das praias do Rio de Janeiro, encarnava com perfeição “o padrão da beleza moderna”.
Quem também se fez notar pela beleza e profissionalismo foi a jornalista (e atriz e modelo) Márcia Mendes, que viera a Gramado para gravar matéria a ser exibida no Fantástico. Márcia, capa de muitas revistas, então casada com o galã Marcos Paulo, morreu vítima de câncer três anos depois, aos 34 anos.
Ao término desta quarta edição do Festival, O Predileto, de Roberto Palmari, levou a maioria das premiações: os troféus Kikito de melhor filme, melhor ator (Jofre Soares), melhor fotografia e melhor roteiro. A gaúcha Lilian Lemmertz, de Lição de Amor, de Eduardo Escorel (melhor diretor), foi escolhida a melhor atriz, enquanto Arnaldo Jabor, 35 anos, levou o prêmio especial do júri por O Casamento, baseado na obra de Nelson Rodrigues e estrelado por Adriana Prieto, atriz morta em acidente de automóvel no final de 1974.
No último dia do festival, sábado, o ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, gaúcho de São Francisco de Paula, reuniu-se com representantes da classe artística (entre eles José Lewgoy) para novamente discutir a regulamentação da profissão de ator, algo que, no seu entender, aconteceria em meados do ano – na realidade, isto só ocorreu em 1978.
Com 28 anos de idade e treze na corporação, o cabo Alcides Gonçalves era um dos que passavam pelo local na hora do início do fogo. Mesmo com problemas nos pés (estava em licença médica) e sem nada a protegê-lo das chamas, correu para dentro do edifício e tentou salvar os que lá se encontravam.
A ARAPUCA E A VONTADE LOUCA DE VIVER
Naquele dia 27 de abril de 1976 o jornal Folha da Tarde
trazia um imenso anúncio, quase de página inteira, divulgando a nova coleção de
roupas da Renner, a Vivre, com a foto de um casal de namorados e o slogan: Vivre.
Basta uma louca vontade de viver, e pronto:
“Em qualquer lugar. A qualquer momento. Vivre é a própria vida, traduzida em
gestos livres e roupas espontâneas. Tudo muito à vontade para que você possa
fazer o que quiser sem nunca perder a naturalidade, o jeito simples de ser
elegante. Vivre, um novo estilo de vestir, para a gente viver melhor”.
Mas, naquele momento, a rigor, não bastaria tão
somente uma louca vontade de viver e pronto: a partir das 14 horas daquela
terça-feira os gaúchos voltavam atenções para o drama de sobrevivência que se
desenrolava na esquina da rua Doutor Flores com a Otávio Rocha, vias centrais da
Capital.
Ali, ainda sem os canteiros e o atual calçadão,
erguia-se um edifício construído no início dos anos trinta, um grande magazine de
oito pavimentos ofertando extensa linha de produtos que ia de roupas infantis a
eletrodomésticos.
No sétimo andar estava o Terrasse Renner, restaurante
e casa de chá e de onde se podia descortinar a bela paisagem do estuário do
Guaíba e suas ilhas. Junto ao edifício Renner, em construções geminadas,
funcionavam o Armazém Rio-Grandense, a Lojas Imcosul e uma agência da Caixa
Econômica Federal. Em volta, muitas e altas construções – o local era, e é, uma
das áreas de maior concentração predial e comercial do centro da cidade.
Naquele momento entre 500 e 600 pessoas se
encontravam no interior do edifício, a maioria clientes, além de casais e executivos
que ainda almoçavam no Terrasse. Por sorte, metade dos cerca de trezentos
funcionários da casa trabalhavam em um sistema de horário alternado e muitos
haviam largado o primeiro turno do expediente às 13 horas, para o almoço, só
devendo retornar às três da tarde.
*
No primeiro andar, o funcionário Luís
Carlos Bandeira atendia a clientes na seção de eletrodomésticos. Tudo se
sucedeu com uma rapidez desconcertante, relatou mais tarde:
“De
repente chegou um colega e falou que a loja estava incendiando, que era pra
descer todo mundo. Eu e outros seis colegas não descemos, queríamos apagar o
fogo, pois eu tinha a certeza de que o incêndio tinha começado ali mesmo, no
depósito de tintas. Procurei extintores, mas foi tarde. Havia muita fumaça e a
gente percebeu que não adiantava mais nada. Então decidimos salvar clientes e
colegas. Subimos três vezes até o terceiro andar, nas duas primeiras vezes foi
fácil, mas no último já tinha muita fumaça e estava quente. Cada vez a gente
trouxe para baixo três ou quatro pessoas. A gente precisava ajudar porque o
pessoal estava meio perdido, tinha até gente subindo as escadas ao invés de
descer”.
Na última tentativa Luís encontrou, agarrada
às cortinas, uma jovem completamente histérica que parecia querer fugir pela
parede. Ele precisou aplicar-lhe um tapa no rosto para que recobrasse a razão. Pegando-a
com os dois braços, pode afinal carregá-la sem resistência.
Outra que escapou do inferno, Maria Helena, de
24 anos, fazia compras no quarto pavimento da loja quando foi avisada do fogo.
Barrada pela cortina de fumaça, não conseguiu descer e rumou instintivamente
para o terraço.
“Todo mundo foi pra cima e um homem me
ajudou a subir. Eu disse a ele que estava me sentindo mal e que ia desmaiar.
Ele falou: se tu desmaias, tu não sai daqui”.
No terraço, sem entender se era uma forma de
se proteger da fumaça ou se haviam desmaiado, Maria viu pessoas deitadas no
chão. Em seguida retirou o lenço que prendia seus cabelos e amarrou-o à boca.
“Esperei uns dez minutos e durante todo o tempo tropecei numa porção de gente
que estava caída. Tinha uma senhora que queria se jogar, e eu gritava para ela
não pular que a escada vinha chegando”. Mal sabia ela que, não muitas horas depois,
vivenciaria situação semelhante em outro endereço.
Em pânico, atropelando-se e pisoteando-se
umas às outras, todos corriam para o alto, atitude que custaria vidas e
transformaria o trabalho dos bombeiros um penoso confronto contra uma implacável
e aprisionante estrutura de cimento e de ferro.
Mais tarde se saberia: havia, sim, saídas em
cada andar, ligando o edifício ao prédio ao lado e também outra, de emergência,
no alto. Mas é bem provável que todas estivessem trancadas àquela hora e, mesmo
que não estivessem, poucos funcionários conheciam tal recurso salvador: afinal,
ninguém havia sido orientado sobre como proceder em caso de incêndio e sequer
sabiam o básico: usar os extintores de fogo.
O jornal Folha da Manhã publicou, na sua edição
de quinta-feira, 29, em “Fatos Que Marcaram a Tragédia”, o relato do zelador da
galeria A Nação, na rua Doutor Flores - teria ele, em atitude individual, se
antecipado à toda a operação de salvamento. Marco Antônio Schimdt afirmou que,
ouvindo os gritos desesperados vindos do restaurante, pegou uma escada velha e
posicionou-a na baliza do prédio anexo da Renner, cuja parede lateral mais
tarde desabaria por inteiro. Conseguiu, com isso, resgatar três pessoas pela
sacada.
Já o estafeta do Corpo de Bombeiros,
Eufrásio Conde, mal fechava a porta do veículo estacionado na Doutor Flores e
que utilizava para entregar correspondências da corporação, quando olhou para
cima e viu uma fumaça escura tomando conta do edifício.
“O fogo recém tinha começado, eram 13h45min
e eu corri para entrar no prédio. Naquela hora já havia muita gente se
amontoando aqui por perto, no meio da rua, nas calçadas, todos olhando,
querendo ver. Subi no edifício da loja, cheguei até o segundo andar, depois não
deu mais, o fogo já tinha invadido completamente os outros andares. Na minha
volta, muita fumaça e gente correndo”.
Aos repórteres da Folha da Manhã Eufrásio contou
ter manuseado alguns extintores de incêndio que encontrou mais à mão, porém foi
inútil – o fogo prosseguia ainda com mais vigor, enquanto as pessoas corriam em
pânico: “No meio da fumaça toda, aquele calor, acho que ninguém pensava
direito. Corriam de um lado para outro. Vi que muitos subiam para o terraço,
acho que alguém mandou eles para lá. Quando eu saí ainda dava para descer pelas
escadas e ganhar a rua. Mas aquilo eu não esqueço mais”.
Soube-se mais tarde que um soldado da
Brigada Militar se encontrava no quarto andar no momento em que as chamas
irromperam e poderia, quem sabe, com dois ou três extintores, ter dominado a
situação. Porém, por mais que procurasse, o policial não encontrou nenhum destes
equipamentos. Ademais, na confusão que se seguiu, não havia ninguém que pudesse
informar da localização de coisa alguma. Ele então tratou de salvar a própria
pele, descendo as escadas e ganhando a rua.
Assim o Correio do Povo descreveu aqueles
momentos.
“Veio o estouro desencadeado pelo medo, e na
correria dos que procuravam escapar do inferno já prenunciado, pessoas caíram
ao chão, feriram-se, tiveram suas roupas rasgadas. Eva Maria Braga Cançândino,
atendida no Pronto Socorro com algumas escoriações, estava na sobreloja e
declarou que não chegou a ver nem fumaça e nem fogo. De repente sentiu-se
empurrada, recebeu pancadas de todos os lados e acabou desmaiando. Quando
recobrou os sentidos estava no HPS”.
Matéria da revista Veja. Com a sucursal próxima ao local, teve dois fotógrafos trabalhando: J.B. Scalco e Ricardo Chaves. |
Todavia,
para as três dezenas de pessoas que almoçavam no Terrasse Renner, a percepção
de que algo extraordinário estava acontecendo demoraria mais alguns minutos.
Eram 14h10min quando o garçom Kurt Margott notou gritos e uma inusitada
movimentação nos andares abaixo. Ao descer para o pavimento inferior, viu
nuvens de fumaça obscurecendo a estreita escada de ligação entre os pavimentos.
Imediatamente ele voltou para o restaurante, onde o pânico já se instalara.
Assim
como Kurt, Paulo, um confeiteiro de 59 anos, revestiu-se de sua coragem máxima
e não se deixou levar pelo desespero.
Paulo
e Kurt, entre outros, ganhariam a condição de “homens fortes” da tragédia,
acalmando os mais histéricos e orientando-os nos procedimentos de
sobrevivência. De posse dos extintores – que, ao contrário da maioria, sabia
utilizar corretamente – Kurt tentou de pronto combater as chamas. Ao constatar
a inutilidade do ato ordenou que todos molhassem as próprias roupas e
colocassem panos umedecidos junto à boca e nariz para evitar o efeito tóxico da
fumaça e atenuar o crescente calor. “Calma, vamos esperar o socorro dos
bombeiros, que já estão chegando!”
Inteligentemente,
eles jogaram água da caixa dágua no piso e esperaram pelo salvamento.
Uma hora depois, já salvo e sem maiores ferimentos, o garçom contou aos
repórteres: “Se eu não mantivesse a calma para orientar os funcionários que
estavam nos últimos pavimentos, mais da metade teria se jogado para o chão.
Todos estavam desesperados. Eu molhei as roupas do corpo e o avental, fazendo o
mesmo com a roupa dos outros. Ensinei que deveriam manter um pano molhado
próximo ao rosto”.
Sidnei Marques da Silva, 40 anos, cozinheira do restaurante, irmã de
Everaldo, campeão mundial de futebol na Copa do México, em 1970, não manteve
essa calma e tornou-se a primeira vítima fatal da tragédia que mal iniciava –
desesperada, saltou no espaço com seu uniforme branco, caiu por quase trinta
metros, bateu em uma proteção de marquise e desabou no chão da praça Otávio
Rocha, em meio aos gritos da multidão. Ela não morreu de imediato e sim a
caminho do hospital. Minutos depois foi a vez de um funcionário da Renner, vestindo
calça lilás e blusa vermelha, mais tarde identificado como Paulo Roberto Apolo,
de 19 anos, voar para a morte. Outras pessoas ameaçavam fazer o mesmo.
Eram então 14h10min. Se ficassem onde estavam, protegendo-se com panos
molhados, tanto Paulo Roberto como Sidnei, que estava grávida de três meses e
havia um ano e meio trabalhava no Terrasse, certamente seriam salvos pelos bombeiros.
Coincidentemente,
a cozinheira morreu no mesmo dia em que seu irmão, sua cunhada e uma filha
destes, de apenas três anos, perderam a vida em um acidente de carro, 27 de
outubro de 1974, exatamente um ano e meio antes.
Também
por um dessas estranhezas do Destino que parecem acompanhar os grandes dramas outro
irmão seu, o enfermeiro e ex massagista do Grêmio Football Porto-alegrense, Ariovaldo
Marques da Silva, 34 anos, chegava ao local naquele exato momento e acabou
presenciando tudo. Ele ainda abraçou a irmã com vida a caminho do hospital.
“Só Deus sabe a certeza amarga que tive de que era minha irmã, ao ver
apenas os pés para fora da marquise e a ponta da pantalona”, relatou ele, à
noite, fumando muito e cercado de parentes e amigos em uma das capelas do
Cemitério Ecumênico João XXIII, onde Sidnei foi sepultada.
Ariovaldo
contou que tinha ido ao centro se encontrar com outro irmão seu, quando soube
do incêndio e lembrou-se que Sidnei trabalhava no local. Ressaltando as
coincidências, os jornais destacaram a trágica sina da família Marques da Silva,
perseguida por fatalidades dessa natureza.
Às
22h30min de 27 de outubro de 1974, domingo, o ex-lateral esquerdo do Grêmio e
tricampeão mundial de futebol pela seleção brasileira na Copa de 1970, no
México, Everaldo Marques da Silva, colidiu seu
automóvel Dodge-Dart contra a traseira de uma carreta Mercedes-Benz, com placas
de Santa Maria, carregada com 24 toneladas de arroz.
Muito
popular em todo o Estado, homenageado e paparicado depois da Copa (negro em um
clube e em um Estado considerados racistas, foi o único representante gaúcho no
selecionado titular), Everaldo havia encerrado a carreira nos gramados e fazia
então campanha eleitoral para eleger-se deputado estadual nas eleições de 15 de
novembro de 1974 pela Aliança Renovadora Nacional, Arena, partido governista.
Conduzido ainda com vida ao Hospital de Pronto
Socorro de Porto Alegre, faleceu a caminho – com ele morreram sua esposa, Cleci
Helena, e sua filha Deise, de apenas três anos. Cleci teve morte instantânea –
foi arremessada para fora do carro. No dia 3 de maio, também um domingo, morreu
a irmã de Everaldo, Romilda, totalizando quatro vítimas fatais. O acidente
aconteceu em uma grande reta, na altura do quilometro 43 da BR-290 (Porto
Alegre-Uruguaiana), município de Cachoeira do Sul. Tripulado por sete pessoas – Everaldo, Cleci
e Deise e a filha mais velha, de seis anos, Denise, a irmã do jogador, Romilda,
o tio Jardelino e a cunhada Maria Madalena Pereira da Silva, o carro havia sido
presente de uma concessionária de Porto Alegre pelo tri conquistado no México.
Apesar de todos, no calor do momento,
culparem o caminhoneiro Vergilio Broglio (que disse ser “um gremista doente”),
de 48 anos, motorista do Mercedes-Benz, residente em Santa Maria e que seguia
em direção a Porto Alegre, constatou-se que Everaldo, cansado e na pressa de
chegar logo a Porto Alegre, dirigia em alta velocidade (cerca de 160 km por
hora, segundo apurou a perícia). Já o caminhoneiro não calculou corretamente a
manobra de saída do restaurante e posto de gasolina, retornando bruscamente à
rodovia – ele também não prestou socorro às vítimas e, segundo testemunhas,
tentou fugir do local, sendo interceptado por outro carro que o perseguiu. A
rodovia, à época, apresentava pistas em bom estado e era bem iluminada.
O campeão mundial tinha ido a Cachoeira
participar de um jogo dos veteranos do Grêmio contra a equipe do ginásio local
dos Irmãos Maristas. Os veteranos venceram por 6 a 3 e Everaldo teve uma
participação discreta, mas, sem dúvida, foi o responsável pelo bom público
pagante. Ele chegou com a família em seu Dodge amarelo (os demais jogadores vieram
de ônibus fretado), distribuiu santinhos da sua campanha, deu autógrafos, posou
para fotos e, no início da noite, participou de uma confraternização. Na saída, Loivo – jogador do Grêmio que o
apoiava no corpo-a-corpo político - gritou-lhe do interior do seu Chevette:
“Nos encontramos em Minas do Butiá pra tomar uma champanha!”.
Apesar de já não estar mais relacionado
entre os titulares do Grêmio, Everaldo ainda mantinha contrato de trabalho com
o clube (ganhava 15 mil cruzeiros mensais). Havia, inclusive, acertado com os
dirigentes a realização de um jogo de despedida, igualmente comemorativo dos
seus 15 anos de casa, marcado para julho do próximo ano. No sábado – lembraram
depois seus colegas e amigos – o atleta ainda esteve no Olímpico, participando
de trabalhos físicos e treinamentos leves.
Surgido no Grêmio ainda criança, ele assinou
seu primeiro contrato com o tricolor em janeiro de 1961, na categoria infantil
- era alto, magro e canhoto no chute. Everaldo foi campeão estadual em 66,
seguindo-se os títulos de 67 e 68 (o hepta tricolor). De junho de 1965 a
outubro de 1966, esteve emprestado ao Juventude de Caxias do Sul. Foi convocado para a seleção de 1970 sem
nenhuma garantia de ser titular, o que acabou de fato acontecendo graças,
sobretudo, à sua aplicação tática e ao seu jogo simples, discreto e eficiente. Na
definição do seu ex-técnico Carlos Froner, “era um jogador que crescia de
acordo com a importância da partida”. Era também considerado um atleta viril,
mas leal em suas disputas, o que lhe valeu o prêmio disciplinar Belfort Duarte
da Confederação Brasileira de Desportos.
Naquele domingo à tarde, no Olímpico, o time
da casa, treinador por Sérgio Moacir, havia vencido a equipe do Caxias por 1 a
0, gol de Dionísio. O ataque gremista, formado por Luís Freire, Iúra, Tarciso e
Bolívar, teve grandes dificuldades para superar a retranca grená.
Em meio à grande comoção, Everaldo foi
enterrado no cemitério João XXIII, junto com a mulher e a filha – coincidência
ou não, o local havia sido campo do Esporte Clube Cruzeiro, tradicional
agremiação de Porto Alegre. Mais tarde, em homenagem ao jogador, o Grêmio
inseriu uma estrela dourada em sua bandeira oficial.
MORTES
DE SIDNEI E PAULO ROBERTO MARCAM “O TERROR IMPLANTADO”
A
morte da irmã de Everaldo e funcionária do Terrasse, jogando-se do alto, ainda
antes dos bombeiros iniciarem os esforços de salvamento, deu a exata dimensão
do que estava se passando no edifício Renner.
Para o repórter da Folha da Manhã, com exatidão, aquele momento marcava,
literalmente, “o terror implantado”:
“Quase que ao mesmo tempo chegaram os carros
dos bombeiros. Muitos gritavam e corriam, sendo evacuados por poucos policiais.
O fogo, já forte, tomava conta de todo o prédio e uma parede interna caiu,
produzindo um ruído que aumentava o barulho reinante. Um rapaz que lembrara-se
que sua namorada havia feito compras pela manhã, na loja, comentava em voz
alta: “Muito pior que o Inferno na Torre!”
O desespero de uma das vítimas, cercada pelo fogo e pela fumaça, em foto da imprensa. |
O casal, vindo do interior, fizera compras na Renner. Agora lutavam para sobreviver. |
A espera e a difícil decisão |
Alguns
dos primeiros carros de bombeiros procediam da rua Fernando Machado, ali
próximo, onde uma casa de cômodos também estava pegando fogo. Em seguida
aportaram os efetivos dos outros quartéis, seguidos das ambulâncias. A fumaça
subia em grossos espirais e o fogo lambia e rachava as paredes dos oito
andares. Em minutos compareceram ao local três caminhões equipados com escada
Magirus, dois caminhões-pipas, duas guarnições da Brigada Militar, uma viatura
da Polícia Militar e uma camioneta da Polícia Civil.
Desta última desceu um senhor que logo se identificou. “Sou inspetor de
polícia, vim aqui para ajudar”. Estava chorando e imediatamente revelou o
motivo: “Meu filho é gerente de vendas. Trabalha no terceiro andar”. Tratava-se,
o pai, de Armênio Seara, 61 anos, lotado no departamento de Diversões Públicas
da Polícia Civil. Mesmo visivelmente abalado, ele ajudou os PMs a organizar os
cordões de isolamento. O local e as cercanias eram, aquelas alturas, um
compreensível pandemônio de eletrizada massa humana.
“As escadas aproximam-se pela terceira vez
do prédio. A maior alcança o último andar e com o auxílio de uma machadinha o
bombeiro quebra os cacos de vidro que lhe obstruem o ingresso. Entra e logo
depois volta, conduzindo vagarosamente o primeiro a ser salvo naquele andar.
Minutos antes a segunda pessoa atirava-se, vindo a cair no meio da evacuada
Doutor Flores. Uma ambulância imediatamente retirou uma maca e foi buscar o
corpo retorcido, que ainda assim, sem vida, foi levado ao Pronto Socorro
Municipal”.
“Um povo comprimido entre os cordões de
isolamento, policiais e bombeiros correndo desesperadamente e mantendo uma
precária ordem, quase 30 fotógrafos e jornalistas assistem num dos raros
momentos de silêncio entre as duas e quatro horas de ontem, a descida do triste
cortejo de funcionários intercalados e amparados por bombeiros”.
“Eles vêm largando roupas do alto que mais
parecem corpos. Vários inteiramente queimados e com a boca preta devido à
intoxicação motivada pela fumaça. Chegam ao chão e imediatamente recebem um
saco de leite para beber. Um bombeiro explica, em altos brados, ao mesmo tempo
em que bebe outro – o leite, nestas horas, é o único remédio contra a
intoxicação”. (Folha da Tarde.)
Embaixo,
a multidão tentava acalmar os que estavam no Terrasse, gritando em coro: “Não
pulem! Não pulem!” Quem quase pulou foi Ilasir Barreto
Gonçalves, de 21 anos, caixa do restaurante havia dois anos e moradora da Vila
Esmeralda, em Viamão, na Grande Porto Alegre, para quem tudo parecia um súbito
pesadelo.
“Tudo aconteceu com uma rapidez incrível.
Primeiro veio o cheiro da fumaça e os funcionários e os frequentadores fizeram
alguns comentários, sem grandes preocupações. Os funcionários chegaram a
lembrar o que aconteceu há alguns meses, quando um circuito no ar condicionado
provocou um cheiro parecido, mas que desapareceu logo. Mas desta vez em dois
minutos já tinha muita fumaça. Aí todo mundo começou a correr e a gritar. Uns
querendo descer, outro querendo subir. O seu Jonas (ecônomo e arrendatário do
Terrasse) tentava acalmar as pessoas. Eu gritava “socorro”, chamando pelo seu
Jonas e pela dona Teresinha. Corri para a janela, olhei para baixo e pensei em
me jogar. Mas fiquei com medo da altura e voltei. Procurei a porta, mas a
fumaça tava me sufocando cada vez mais. Aí eu voltei pra janela. Nesse momento
eu vi uma escada grande, de ferro, que vinha subindo na minha direção. A escada
não chegava nunca, parece que passou toda uma vida. Rezei muito, em voz bem
alta, até que eu consegui pegar na ponta da escada. Nessa altura eu já estava
quase desmaiando. Depois não lembro de mais nada. Acho que desmaiei. Não sei
quem me tirou daquele inferno. Me levaram para um hospital e eu nem sei qual é.
Quando me recuperei já estava em casa”.
Cléia Nunes Silva, outra sobrevivente, trabalhava
na parte baixa da loja e conseguiu sair a tempo pela porta da frente da loja.
Ela confirmou que todos, no desespero, só pensavam em subir para o terraço: “- Todos
queriam subir. Não havia saída dos andares, que são fechados, e só era possível
se salvar pelo térreo ou pelo terraço”.
Já Claudiomiro Cardoso dos Santos, 20 anos,
vendedor do setor de camping, no terceiro andar, estava atendendo a um cliente
quando começou a perceber um cheiro diferente. Dez minutos depois ouvir um
forte estrondo, que imaginou ter vindo do setor de tintas, mais abaixo.
“– Foi tudo tão rápido que eu nem sei
direito” – relatou horas depois, no HPS, onde foi um dos primeiros a ser
atendidos. Estava com os olhos vermelhos, os cabelos chamuscados e a roupa toda
rasgada: “- A gente tratou de avisar todo mundo e de correr. Não se podia usar
o elevador, que ele estava que era puro fogo. Nem mesmo a escada de emergência
dava, com toda aquela fumaceira não se enxergava nada pela frente. Só tinha uma
maneira de escapar, era pular para o prédio ao lado, que também é da Loja. Caí
no telhado, me cortei nas pernas e fiquei muito nervoso”.
Para o garçom Gentil da Silveira Porto, 37
anos, oito deles trabalhando no Terrasse, escapar ileso foi uma questão de
segundos. Graças, sobretudo, à sua presença de espírito.
Contou ele: logo depois de ouvir gritos de
“fogo!”, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foram os conselhos que
lera em um livro: em caso de incêndio não pegar elevador ou subir para o
terraço.
Seu raciocínio foi providencial - Gentil
desatou a correr pelas escadas, “sem ver nada pela frente”. Ao alcançar o
terceiro andar, deparou-se com uma cortina de fumaça que se espraiava pelos
pavimentos abaixo sem, contudo, invadir a sobreloja, onde muita gente gritava loucamente
e corria às tontas. “Se tivesse demorado um pouquinho mais ou tentasse salvar
alguém eu não conseguiria sobreviver”.
Outra pessoa, não identificada, que
conseguiu descer pela escada relatou aos repórteres, na saída: “Passei por várias
seções da loja e vi pelo menos os corpos de umas doze pessoas estendidos no
chão. Não se mexiam, não diziam nada. Coisa horrível, meu Deus. No meio de
tanta fumaça eu às vezes tropeçava nos corpos”.
De fato, quem teve ao lado alguém com
sangue-frio que o contivesse nessa hora pode escapar do pior. Vilma Coutinho
Costa, uma senhora que almoçava no Terrasse Renner em companhia do marido, Ary,
deve a sua vida ao companheiro – ela mesma reconhecia.
No dia anterior Vilma chegara de Jaguarão
para fazer exames médicos na Capital. O casal hospedou-se no City Hotel, a
poucas quadras da Renner. Depois de feitas as compras na loja os dois decidiram
almoçar ali mesmo - foi quando o fogo iniciou.
Confrontada com a fumaça e o calor,
desesperada com o inferno que se originara nos andares abaixo, ela chegou a
ensaiar o salto para a morte, colocando um pé na amurada e projetando meio corpo
para fora. Nesse instante foi segura por Ary.
A cena foi vista por todos: com muito
esforço, agarrando-a pelo pescoço, ele evitou a queda da esposa durante uma meia
hora que lhe pareceu interminável. Salvos pela escada, estava, entre os
primeiros a descer. Ary, chorando, com sangramentos na cabeça e os cabelos chamuscados,
contou:
“Nós estávamos almoçando quando todos
começaram a sentir cheiro de fumaça. Corremos para a escada de emergência, mas
não dava mais. Ela estava cheia de fumaça. Era melhor ficar, pois se
tentássemos descer certamente morreríamos sufocados. Mas a fumaça foi
aumentando e o calor também. Aí começou o desespero. Era correria para todos os
lados. Não sei como eu caí e quase quebrei minha cabeça. Mas isso não foi nada.
O pior foi a crise de nervos que deu na minha mulher, ela não aguentava mais,
tossia muito e me convidou para se atirar do prédio. Como eu disse para ela que
era melhor esperar que a qualquer hora a escada dos bombeiros chegaria até nós,
ela correu para a janela e só deu tempo de eu agarrar metade do seu corpo. Sabe
lá o que é ficar quase meia hora agarrando ela, com a metade do corpo
balançando para fora? Eu estava a ponto de largá-la. Não tinha mais forças para
agarrar. Minhas mãos estavam doentes e eu senti que aos poucos ela estava
escorregando. Até que a escada apareceu e nós dois descemos. Se os bombeiros
levassem mais um minuto para colocar a escada perto de nós, eu ia largá-la”.
A exemplo de tantas outras pessoas, dona Vilma
também recuperou sua bolsa, entregue pelos bombeiros no dia seguinte. Havia ali
uma boa quantia em dinheiro (7.500 cruzeiros) e mais um anel de brilhantes
avaliado em cinco mil cruzeiros.
Foto CP |
Do lado de fora do edifício, atarantada,
sem nada poder fazer, quase em choque, Maria Regina dos Santos, 25 anos, era a
imagem da angústia. Ela tentava a qualquer custo saber de uma irmã sua, a
caçula, que trabalhava na Renner – não estaria naquela ambulância que saiu,
moço?, indagava, empurrando outras pessoas, chorando, pedindo para passar.
“- O nome dela é Beatriz dos Santos, de 20
anos, trabalha aqui na Loja, o senhor não conhece, moço? Não viu ela sendo
carregada, ferida, para dentro de alguma ambulância? Por favor, diz que viu,
que ela está bem e que vai voltar para casa hoje no fim da tarde, como sempre”.
Maria Regina tinha sabido do incêndio em um
quarto de hospital, onde visitava sua mãe, que sofria do coração e estava
internada para tratamento: “Conversava com ela e nunca ia imaginar o que aquele
homem queria quando me chamou para um canto e me falou no ouvido: As Lojas
Renner estão pegando fogo, não é lá que trabalha tua irmã?”
A chegada dos bombeiros, das ambulâncias e
de um batalhão de fotógrafos e repórteres logo seria seguida por soldados do
Exército e por dois helicópteros da base aérea de Canoas.
Toda a região central de Porto Alegre estava
paralisada pela tragédia. A massa humana, cada vez maior, foi contida por
cordões de isolamento instalados nas esquinas da rua Voluntários da Pátria com
a Doutor Flores e Vigário José Inácio, e também na Otávio Rocha com a Marechal
Floriano e a Senhor dos Passos; na Andradas com a Doutor Flores e a Vigário
José Inácio. Todo o terminal de ônibus da Praça Rui Barbosa, com dezenas de
veículos, foi evacuado.
Por conta própria ou aconselhados pela
Brigada Militar, temendo assaltos e furtos, muitos comerciantes do centro
fecharam as portas, enquanto uma excitada turba de comerciários, escolares,
office-boys, funcionários públicos e curiosos que acorria ao cenário do
incêndio passou a disputar, quase a tapas, o melhor ângulo de visão. Dos
prédios mais próximos, por sua vez, algumas pessoas lançavam sacos de leite para
quem estava no terraço da Renner. Em breve, porém, tais locais estratégicos
seriam também ocupados pelos homens do Corpo de Bombeiros, que ali instalaram
mangueiras.
Atendendo ao pedido das autoridades médicas,
as emissoras de rádio transmitiam agora urgentes apelos para que a população
comparecesse aos hospitais a fim de doar sangue. Os que se dispunham a isso
eram embarcados às pressas em uma ambulância. Deu resultado: uns 300 metros
adiante, no Banco instalado no largo da Prefeitura, surgiram duas ordenadas
filas, cada qual com dezenas de potenciais doadores.
Entrementes, a sessão plenária da Assembleia
Legislativa que acontecia no Palácio Farroupilha, na praça da Matriz, foi
suspensa por “falta de condições psicológicas para o prosseguimento dos
trabalhos”, isso depois que o deputado Waldir Walter (do MDB) ocupou os
microfones para relatar o que tinha visto minutos antes. Naquele momento, porém,
ele, assim como muitos outros, ainda não se tinha a exata dimensão do fato –
mas intuía:“O caso é tão grave que o
Rio Grande do Sul compreenderá. Há dezenas de pessoas lá em cima do prédio, os
helicópteros não podem descer. E, na minha opinião, queira Deus que não haja
vítimas, mas é da maior gravidade o incêndio que está lavrando nas Lojas
Renner, eu vi de perto, testemunhei uma das grandes tragédias do nosso Estado”.
Na mesma direção, prontamente o presidente
João Carlos Gastal colocou a ambulância e o corpo médico da Assembleia à
disposição do hospital Cristo Redentor. Especializado em traumatologia e
queimados, o Cristo montou uma operação de emergência, podendo mobilizar de 60
a 120 leitos em apenas trinta minutos, conforme garantiu seu diretor, Leo
Copstein. Segundo o médico, naquele momento estavam à disposição dez anestesistas,
dez cirurgiões plásticos e mais quinze traumatologistas, além de um banco de sangue
bem suprido e uma farmácia extra, sem contar a possibilidade da convocação de
mais funcionários.
Bem perto dali, no hospital Nossa Senhora da
Conceição, um dos maiores da cidade e pertencente ao mesmo grupo, o diretor-presidente,
Wilton Bastos Barroso, também se colocava a postos, auxiliado por cinco
cirurgiões plásticos e cinco clínicos gerais. Igualmente solidários, alguns hospitais
particulares, como o Lazarotto, formaram equipes emergenciais de socorro. Já a
Companhia Rio-Grandense de Laticínios e Correlatos, Corlac, enviou dois
caminhões carregados de saquinhos de leite para distribuir aos intoxicados pela
fumaça (nessa época acreditava-se, equivocadamente, no poder regenerador do
leite) enquanto ambulâncias de clínicas particulares acorriam ao centro a fim
de auxiliar na remoção dos feridos.
BANQUETES E SOLENIDADES SÃO CANCELADOS OU
TRANSFERIDOS
Como é comum em tais circunstâncias, a
cidade, surpresa e traumatizada, desorganizou-se quase completamente em muitos
setores ou cancelou eventos festivos e alegres. Obviamente o jantar programado
para aquela noite na Associação Leopoldina Juvenil, foi cancelado.
Reunindo mais de 1.400 empresários
brasileiros e estrangeiros, a solenidade coroaria o badalado Primeiro Seminário
Internacional de Investimentos no Rio Grande do Sul, um megaevento econômico cujo
tema central era o Terceiro Polo Petroquímico.
O Seminário havia superado em duas vezes e
meia o previsto em número de participantes. Sisudos e engravatados senhores, a
maioria alemães, japoneses, franceses, ingleses, norte-americanos, italianos e
argentinos, representando quase setecentas empresas, misturavam-se naquele
momento a gigantes do empresariado nacional para sondar as possibilidades de
investir e lucrar não só com o Polo como também atraídos pelas excelentes
perspectivas do agronegócio no Rio Grande do Sul. Presentes, entre convidados e
debatedores, estavam os ministros Alysson Paulinelli, da Agricultura, Mário Henrique
Simonsen, da Fazenda, Paulo Tarso Flecha de Lima, representante do departamento
comercial do ministério das Relações Exteriores, além dos presidentes do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico, BNDES, Banco Central e do Banco do
Brasil. O general Araken de Oliveira, presidente da Petrobrás, foi um dos
palestrantes.
Por
força das circunstâncias, o grande encontro empresarial esvaziou-se quase
completamente – a maioria dos participantes, sem clima para negócios, passou a
acompanhar o grande incêndio pelo rádio. Muitos deles regressaram para a
aparente segurança de seus hotéis.
Na quarta-feira, o Sindicato dos Lojistas de
Porto Alegre anunciou o cancelamento das comemorações da semana sindical de
1976, transferindo os atos de inauguração do seu setor de serviço médico e também
a excursão aquática noturna pelas águas do Guaíba que aconteceriam na sexta-feira.
No mesmo dia o secretário municipal da Produção, Indústria e Comércio, Arthur
Zanella, alterou completamente a pauta de discussões do tradicional almoço
semanal com os diretores da Federação das Associações Comerciais de Porto
Alegre. Ao invés de explanar sobre o planejamento da área central da Capital –
em rápida transformação – Zanella deteve-se exclusivamente no tema do sinistro
da Renner, destacando o projeto de lei, ainda não aprovado pela Câmara
Municipal (cuja sessão, suspensa, era basicamente dedicada às homenagens aos
quarenta anos da Folha da Tarde), que obrigava os construtores e moradores à
instalação de extintores e esquemas de combate ao fogo nos prédios de Porto
Alegre.
O incêndio da Renner também se tornou
marcante para os participantes da reunião da Associação dos Jornais do
Interior, ADJORI, cuja abertura aconteceu justamente naquela terça-feira, no
Palácio do Comércio. Congregando quase 100 jornais do interior gaúcho, a
entidade, com 14 anos de existência, realizava o seu centésimo congresso.
Quem também viera do interior para
audiências agendadas na capital era o prefeito da cidade de Rio Grande, Rubens
Emil Correa – aqui ele presenciou a tragédia com suas “cenas dantescas”, e se
disse admirado perante o heroísmo dos soldados do fogo. Emil lembrou que a sua
cidade, uma das mais importantes do Estado, tinha apenas um caminhão-tanque em
funcionamento precário para cerca de 50 prédios com mais de quatro andares. Coincidentemente
ele levava em sua pasta um pedido às autoridades em favor do imediato
reaparelhamento do Corpo de Bombeiros de seu município.
Talvez pela presença de alguns convidados vindos dos Estados Unidos
(entre eles um jornalista do Washington Post), outro seminário, intitulado A
Situação Atual e as Tendências dos Meios de Comunicação Social, foi confirmado
para aquela quarta-feira, uma promoção do Sindicato dos Jornalistas de Porto
Alegre e Associação Rio-Grandense de Imprensa e que prosseguiu até sexta-feira
no prédio da Faculdade dos Meios de Comunicação Social da PUC, Famecos.
DOADOR DE SANGUE FOI ASSALTADO E ASSASSINADO
NO PARQUE DA REDENÇÃO
O gesto humanitário de um doador de sangue acabou resultando na sua morte: assassinado na Redenção, à luz do dia. |
Com 28 anos de idade e treze na corporação, o cabo Alcides Gonçalves era um dos que passavam pelo local na hora do início do fogo. Mesmo com problemas nos pés (estava em licença médica) e sem nada a protegê-lo das chamas, correu para dentro do edifício e tentou salvar os que lá se encontravam.
Pouco tempo depois, heroico, com o rosto e
os braços cobertos de remédios contra as queimaduras, explicou singelamente a
sua atitude: “Numa hora dessas a gente não pensa em nada, não quer saber o que
vai acontecer. E, depois, bombeiro não pode ver bombeiro mal”.
Duas faces opostas do mesmo drama: ao tempo
em que dezenas de homens e mulheres faziam fila no posto do banco de sangue do
HPS no largo da Prefeitura, aproveitadores, punguistas e assaltantes agiam
quase impunemente na cidade fragilizada.
Ao ouvir os apelos no rádio, o auxiliar de
enfermagem (trabalhava no Instituto de Cardiologia) José Jorge Escalante, 32
anos, pai de quatro filhos pequenos, saiu de sua casa, na avenida Getúlio
Vargas, 379, pegando o ônibus da linha Menino Deus e descendo na André da Rocha,
seguindo depois, a pé, rumo ao Hospital de Pronto Socorro. Ao atravessar a
Redenção, próximo ao auditório Araújo Viana, foi interceptado por três homens e
uma mulher, aparentando idade entre 18 e 20 anos, todos brancos, “mas queimados
de sol”, conforme relatou depois uma testemunha.
Os bandidos ordenaram que Escalante
entregasse a bolsa que levava consigo – diante da negativa, ou algo assim, foi
esfaqueado no peito. Agarrado ao objeto, ele ainda arrastou-se até a avenida
Osvaldo Aranha. “Fui assaltado”, disse ao motorista que tentou socorrê-lo. Foi
inútil: o auxiliar de enfermagem morreu quarenta minutos depois, no próprio HPS
onde pretendia doar o seu sangue para salvar outras vidas.
Mais tarde, aos repórteres que compareceram
à delegacia de Homicídios, Sérgio, pintor de 27 anos, considerou a morte de seu
irmão mais velho “uma dessas coisas incríveis que acontecem na vida”, lembrando
que o auxiliar de enfermagem vivia aconselhando os outros a ter cuidado para
não serem assaltados. “Inclusive quando eu me mudei para Viamão, ele achou que
era muito perigoso e que eu devia evitar ir para casa de noite para não ser
assaltado. Justamente ele acabou sendo assassinado por ladrões”.
UM
VERDADEIRO PRESÍDIO DE GRADES DE FERRO, RELATOU O BOMBEIRO
O cabo Emilio Rocha Fontoura, com vinte anos
de profissão, da Estação Floresta (inaugurada havia seis meses), foi um dos
primeiros a entrar no edifício Renner. Ao chegar ao local com os demais colegas
o pânico grassava no segundo e terceiro andares do edifício.
“Cheguei lá e encontrei as pessoas querendo
ir para os andares de cima e não descer. Pedi que descessem comigo, mas elas se
recusavam. Então concordei em ir com elas até o último andar para poder resgatá-las
com as escadas. No penúltimo andar retirei mais de 17 pessoas. Ninguém
desmaiou, nem mesmo ficou intoxicado, pois eram retirados rapidamente”.
O cabo não poupou críticas à estrutura do
prédio: “As janelas com grades de ferro tornaram aquilo um verdadeiro presídio,
uma ratoeira, não havia jeito de uma pessoa sair daqueles pavimentos. Acredito
que um bom número de pessoas poderia ter sido salvo se não existissem aquelas
barras de ferro. Não vejo razão para elas”.
Revista Veja. Possivelmente foto de J.B. Scalco. |
Antes os bombeiros tiveram de arredar
caminho em meio à multidão de curiosos. Estacionados os carros, a primeira
escada Magirus, a maior, subiu lentamente, enquanto outras duas foram dispostas
na Doutor Flores. Em volta, a multidão acenava para as pessoas que estavam nos
últimos andares, tentando acalmá-las. Ambulâncias começavam a chegar de todos os
lados. Das janelas da loja incendiada pessoas sinalizavam com as mãos e lenços,
implorando socorro imediato. Parte delas jogava seus pertences do alto.
De súbito, a cabeça de um homem projeta-se
pelo interior das grades de uma janela. Sufocado pela fumaça, e na intenção de
alcançar a escada que se aproximava, ele havia quebrado os vidros para respirar
ar puro quando, provavelmente intoxicado, desmaiou sobre os cacos pontiagudos e
morreu devido aos cortes no pescoço. Exatamente nesse instante um bombeiro pulava
no parapeito para tirá-lo dali.
Sobreviventes do inferno, as primeiras
pessoas a serem resgatadas pelos soldados do fogo receberam os aplausos da
multidão. Transtornadas, tinham as bocas enegrecidas e tossiam e cuspiam muito.
Já plantado na calçada, o garçom Flávio da
Rocha Borges, o primeiro a ser salvo pelos bombeiros, bebeu alguns goles de
leite e informou que ainda havia mais de trinta pessoas no terraço, muitas
delas desmaiadas. Em seguida ele próprio desmaiou.
Enquanto isto, ainda preso no alto do prédio,
o confeiteiro Altair Giacometti tirou o casaco e iniciou uma arriscada descida,
segurando-se em uma calha, fuga acompanhada com suspense por todos. No meio do
caminho a calha entortou e Altair quase caiu. Mesmo assim, com admirável sangue
frio, conseguiu escorregar até o terraço e ali finalmente agarrou-se à escada
dos bombeiros, chegando são e salvo ao solo, onde recebeu o abraço de um
sobrinho seu – identificado como Milton Mânica – que, de um canto da praça
Otávio Rocha, desesperado com a cena, gritava, minutos antes, apontando para o
alto: “Aquele é meu tio! Aquele é meu tio!”
Uma escada Magirus, a maior – com capacidade
máxima para 40 metros e que parecia não conseguir elevar-se além do penúltimo
andar (a outra, aparentando problemas, não conseguia altear-se acima do quarto
pavimento) – chegava agora ao terraço, onde se destacavam as figuras de mais
pessoas à espera do salvamento.
Elas iam descendo em fila indiana, algumas
chorando, muitas tremendo ou em estado de choque. Quando chegavam ao solo eram
rapidamente embarcadas nas ambulâncias. Algumas precisaram de respiração
artificial.
O
incêndio já durava mais de uma hora. Quinze horas e trinta minutos. Aos poucos
a fachada do edifício passa a revelar o efeito devastador do fogo e das
altíssimas temperaturas reinantes. As rachaduras eram visíveis e mesmo os objetos
mais próximos às janelas iam caindo. Súbito, em um grande estrondo, desabou a
parede que guarnecia os oito andares, cobrindo a Doutor Flores com uma nuvem de
poeira que levaria minutos para dissipar-se. Uma repórter – que seguiria de
volta à redação - não conseguiu controlar os nervos e pôs-se a chorar
convulsivamente.
O tabloide Folha da Tarde retratou o clima
de quase histeria que então tomava conta das ruas do centro, tomadas por uma
multidão movida pelas mais diferentes reações e sentimentos:
“O centro, da Borges até a Pinto Bandeira,
ficou parado e casas comerciais esvaziaram. O povo tomou conta das ruas aos
empurrões, vozes angustiadas de um lado e policiais (civis e militares) do
outro, estes tentando conter a curiosidade do público. A cada estilhaçamento de
vidro ou objeto que caía do prédio, a multidão se retraía. Então sucediam-se
mais empurrões, pessoas chorando, algumas gritando, poucas se afastando. A
maioria permaneceu ali, com olhos voltados para o prédio em chamas, não
querendo perder um detalhe do incêndio da Renner. Duas pessoas já haviam se
jogado e isso poderia acontecer de novo.
“Na
Rua da Praia a confusão foi geral. Dos empurrões a multidão passou à briga, na
qual se integraram os policiais, enquanto na Otávio Rocha outros tentavam
alargar a área isolada. Os edifícios próximos, a praça e todos os
lugares que oferecessem uma visão melhor do incêndio foram ocupados. Até no
edifício da Ficrisa, que foi fechado, no décimo andar ainda ficou um homem
imprudente, que se arriscava olhar de perto o que ocorria embaixo”.
Contracapa da Folha da Manhã, jornal da Companhia Jornalística Caldas Júnior. |
HELICÓPTEROS DA BASE AÉREA ERAM INADEQUADOS
PARA O SALVAMENTO
A essas alturas a compacta e nervosa massa
humana teve que ser afastada à força, inclusive com ameaças de jatos de água, em
direção a Voluntários da Pátria, Vigário José Inácio, Andradas e Senhor dos
Passos. Dois helicópteros militares sobrevoavam agora o local. Com tal evolução
um forte deslocamento do ar espalhou a fumaça e atiçou ainda mais as chamas no
interior do prédio, o que irritou sobremodo os bombeiros.
Na verdade, a não ser por uma presumida
função psicológica – serviria, em tese, para demonstrar o curso das iniciativas
e, por conseguinte, acalmar as vítimas – nunca se entendeu de fato o que tais
máquinas faziam no local do incêndio, já que não havia heliporto e nem os
helicópteros enviados pela Força Aérea Brasileira mostraram-se apropriados para
tais ações de salvamento. Soube-se mais tarde que eles, com sorte, poderiam
resgatar somente duas pessoas por vez, e isto em condições favoráveis.
Dias depois, em entrevista que alguns classificaram
de “muito franca”, os dois pilotos – capitães Cleber Baís e Luis Nogueira Galetto
– reconheceram tal inadequação e informaram que somente outro tipo de aparelho,
existente apenas na base aérea de Santa Maria, a 290 quilômetros da Capital,
poderia executar com êxito a operação de retirada das pessoas do alto do
edifício. “Esses possuem um guincho e podem resgatar 15 pessoas de uma só vez,
mas a viagem de lá para cá demoraria uma hora e quarenta minutos”.
Defendendo-se das críticas (“não pudemos nos
aproximar devido ao calor reinante e a pouca visibilidade”) os dois militares
aproveitaram a ocasião para alfinetar: “- Antes de mais nada, os construtores e
as autoridades de Porto Alegre deveriam construir bem menos piscinas nos
terraços dos edifícios e mais heliportos, o que já seria um bom princípio em
matéria de participação de helicópteros”.
Na
verdade, apurou-se que, naquele abril de 1976, em tais circunstâncias, somente
o hospital Nossa Senhora da Conceição possuía heliporto. “O que nós vemos
muitos são telhados cheios de antenas de tevê, varais com roupas, caixas dágua
e telhados pontiagudos", lamentou um dos pilotos, sugerindo a criação de
uma lei que tornasse tais locais obrigatórios em prédios mais altos.
Outro problema operacional, simples, contudo
não menos sério, veio igualmente à tona: nem os pilotos da Força Aérea e nem os
homens do corpo de bombeiros conseguiriam, a um só instante, por mais que
quisessem, se comunicar à viva voz - a frequência de rádio de ambas as partes
era diferente.
Não bastasse a falta de roupas especiais e
de máscaras a protegê-los da fumaça e dos gases – algo que havia sido prometido
à corporação depois do que acontecera nas Lojas Americanas – os bombeiros,
igualmente, enfrentavam dificuldades adicionais em terra.
Chegando ao local, a pé, descobriram a
insuficiência dos poucos hidrantes - como das outras vezes a saída foi recorrer
à generosidade do Guaíba, onde as lanchas da Companhia de Socorro Naval da
Brigada passaram a abastecer os carros-pipas. Antes, contidos pelo cimento do muro
da Mauá, na altura do cais C-4, os soldados tiveram que pular sobre o imenso
paredão de concreto, levando às costas mangueiras e toda a parafernália de
combate ao fogo.
Às 15h15min, através de megafones, a Polícia
Militar apelou para que todos se retirassem. Homens da Polícia do Exército, sem
maiores delicadezas, afastavam os populares.
Como de praxe, a energia elétrica dos prédios
mais próximos fora desligada. O comandante geral da Brigada, coronel Jesus
Linares Guimarães, recém havia chegado ao local quando um soldado informou que
alguém acendera uma vela em um dos apartamentos do último andar do edifício
localizado na esquina da Vigário José Inácio, onde, no térreo, funcionava a
loja Escosteguy. Minutos depois, os PMs e o comerciante respiraram aliviados:
tratava-se unicamente da lanterna do zelador que fazia uma ronda de
verificação.
A este tempo os bombeiros estavam convictos
de que nada mais de efetivo restava então a fazer. O soldado Jandir Carvalho
lamentou: “Tentei tirar várias pessoas lá de dentro, mas elas não passavam
pelas janelas”.
Subitamente no interior do edifício explodiram botijões de gás. Um homem
desacordado continuava dependurado com uma perna e um braço para fora da
janela. Um bombeiro aproximou-se e lançou-lhe um jato de água. O homem se refez
imediatamente e o soldado foi aplaudido pela multidão.
O jornal Folha da Manhã retratou tal
momento: “Quinto andar. Não dava para
sair por nenhuma das janelas, eram muito pequenas e com grades. O fogo já
alcançava as escadas do quinto andar e as pessoas corriam desesperadas, em
pânico, tentando alcançar o terraço, único lugar onde poderiam fugir daquela
ratoeira.
Um
bombeiro, que subiu na escada Magirus para retirar as pessoas que ocupavam o
terraço, vindas de todos os andares do prédio, contou depois, desolado: “Da
escada deu pra ver o interior do restaurante, no terraço da loja. Entre as
cadeiras e mesas, vi perto de uns dez corpos pelo chão, ou mais. Não sei se
estavam mortos ou se procuravam se proteger, no desespero”.
A água era jogada pelos homens posicionados nos
andares superiores dos prédios vizinhos, todos agora evacuados. Quem estava no
terraço do edifício da Apesul (financeira), na avenida Alberto Bins, pode ver o
corpo carbonizado e indistinto de uma pessoa agarrada a uma janela do quinto
andar.
Quem falou com essa pessoa, pouco antes de morrer, foi o PM Eusébio:
“Era uma mulher, eu falei com ela, tentei agarrar para trazer para a escada
Magirus onde eu estava. Mas não deu. Eu senti o medo e o desespero nela. A
janela era estreita demais, ela conseguiu quebrar um vidro e passar um braço e
a cabeça. Atrás dela, dentro da loja, estava tudo escuro por causa da fumaça e
dava pra ver o fogo também. Não deu pra tirar ela dali”.
Mais tarde o major Clóvis Defensor dos Santos Oliveira, comandante do
Primeiro Grupamento de Incêndio, falou sobre tais cenas e o desespero incontrolável
de muitos e o valor de se manter a calma: “Enquanto meus soldados subiam pelas
escadas eu gritava e rezava lá embaixo, pedindo a Deus que as pessoas não se
jogassem. Nossa primeira preocupação foi salvar o pessoal. Todos tinham perdido
a calma, estavam apavorados. Lá embaixo eu gritava para que se acalmassem, pois
alguns pareciam querer se jogar. É muito difícil manter a calma numa hora
destas. Se tivesse esperado, a irmã do Everaldo teria sido salva”.
ENQUANTO ISSO, NO PRONTO-SOCORRO A MULTIDÃO
AMEAÇAVA COM INVASÃO
No prédio do Hospital de Pronto Socorro, na
avenida Osvaldo Aranha, a tarefa da direção tampouco era das mais fáceis:
tratava-se de improvisar da melhor forma possível um satisfatório esquema de
atendimento a dezenas de feridos que ali acorriam, a grande maioria intoxicados
pela fumaça (entre os socorridos no HPS e nos hospitais da cidade poucos
apresentavam queimaduras mais sérias).
Um apelo do diretor da instituição, Ubirajara
Mota, divulgado por todas as emissoras de rádio e de televisão da Capital, atraiu
rapidamente muitos médicos que não pertenciam aos quadros da casa. Unidades
móveis haviam sido deslocadas até as proximidades do edifício Renner, porém era
no HPS que os familiares das possíveis vítimas poderiam colher informações mais
seguras.
Obviamente a confusão era total dentro e
fora do prédio. Outro apelo do diretor para que os motoristas deixassem livres
as vias de acesso aos hospitais da cidade, especialmente a Osvaldo Aranha, a
Ramiro Barcelos e a João Pessoa, por onde passavam as ambulâncias e as
viaturas, foi devidamente atendido e evitou o caos absoluto.
Quase quarenta soldados da Primeira Companhia
de Guarda do Exército brasileiro organizaram um cordão de isolamento em torno
do Hospital, àquela altura ameaçado de invasão por parte dos familiares das
vítimas. Comandados pelo major Ivo Fernandes Kruger, os homens seguiram à risca
a difícil determinação, a despeito de cenas comoventes que surgiam a cada
minuto.
O policiamento nas diversas entradas do
Hospital e também nos corredores ficou por conta dos agentes da Polícia Civil e
integrantes da Guarda Municipal. Usando um Motorola (aparelho de rádio), o major
Kruger mantinha comunicação com o delegado Wuilde Pacheco (ex-repórter policial,
piloto de aviões e figura emblemática da polícia civil), então diretor da
Divisão de Vigilância e Capturas.
Listas com nomes foram rapidamente
elaboradas e postas à disposição das secretárias que trabalhavam na recepção. O
capitão da Brigada Militar, Servo Tellier e sua esposa, Alba, buscavam
informações do filho, Paulo. Sem conseguir identificá-lo entre os feridos, o
militar voltava para junto da mulher quando avistou os dois – mãe e filho –
abraçados do lado de fora, ela chorando e ele tentando acalmá-la.
Paulo explicou: com folga entre as 12 e as
14 horas, saíra a fim de matricular-se no exame supletivo. Quando voltou ao
local de trabalho deparou-se com o prédio ardendo em chamas. Preocupado com a
sorte de seus companheiros, correu para o HPS – e ali reencontrou a mãe. Quando
viu o desfecho feliz o capitão Tellier, com voz embargada, disse que agora era
a sua vez de colaborar, doando sangue. E prontamente voltou para o interior do
hospital.
Poucos mantinham esse autodomínio. José Wilson Rodrigues, cuja irmã trabalhava na
loja, não conseguiu sequer chegar ao balcão de informações: antes disso teve um
ataque convulsivo e caiu ao chão. Uma moradora das proximidades sofreu uma
crise nervosa e, ao chegar ao HPS, só conseguia repetir uma palavra: “Terremoto,
terremoto...” Terremoto era o nome de um recente filme-catástrofe estrelado,
entre outros, pelos veteranos Charlton Heston e Ava Gardner.
No final da tarde o Hospital informou que 68
pessoas, todas elas vítimas da tragédia, haviam sido atendidas por seus médicos
e enfermeiros. Nenhuma apresentava ferimentos graves e somente o bombeiro
Manoel dos Santos permanecia internado devido a um quadro de intoxicação
causado pela fumaça.
Da lista constavam os seguintes nomes –
muitos deles certamente grafados com erros e incorreções em função da falta de
documentos e também da pressa e do nervosismo de funcionários e repórteres.
Adão Castro – Alcides Gonçalves – Altair
Giacometti – Álvaro Pacheco da Silva – Ângela Beatriz da Silva – Ari Cassal
Costa – Carlos Alberto Lima – Dirce Mariano Machado – Celso Torres Alves –
Claudemir Cardoso de Sá – Carlos Fontoura Martins – Cláudio Linhares Barcellos
– Clenir Silva – Cleni Machado – Cloreci Silveira – Doris Siqueira – Edgar
Souza Vieira – Francisco Cunha Vanhare - Elenir Ribeiro Machado – Elenir Rolim
– Eunice Flores da Silva – Emilia Silva da Rocha – Eva Maria Braga Lopes –
Gercia Regina Maciel Calagagno – Francisco Solano – Gilda de Oliveira – Gilson
Stefanou – Glemir Almeida – Guiomar da Silva Ramos – Heloina dos Santos –
Haroldo Secco – Idalina Keller – Julia Oliveira Lima – Laura dos Santos –
Lindóia Neck Pedroso – Lorena Stein – Lucia helena – Lourdes Siqueira – Lucia
Helena Nunes – Luisa Gesswein – Luiz Maria Fagundes – Luiz Carlos Caldeira
Rodrigues – Luiz Kreiger – Maivés de Fátima da Silva – Mara Menezes – Maria de
Fátima – Maria Doiro – Maria Helena Pinto – Maria Luiz Penha – Manoel Nunes Ferreira
– Marli Abreu – Mauro Luiz Ferreira Jacomel – Neiva Spindola Alves – Nelson
Pacheco – Nilza Terezinha Lacerda – Rodolfo Augusto Kussler – Salete Padilha –
Sandra Correia da Silva – Stefani Zabradinik – Straoberger – Vera Maria
Carvalho Silveira – Vera Munhoz – Volnei Barão Formiga – Vera Terezinha dos
Santos – Porcina Gomes – Alberto Silveira Valério – Dorival Bento dos Santos –
Mario Custódio Alves – Alcides Figueiredo César – Valter Lopes – Bernadete –
Leila Gonçalves.
Os reiterados apelos para que surgissem
doadores de todos os tipos sanguíneos atraíram ao terceiro pavimento do HPS –
onde estava o Banco de Sangue – mais de 200 pessoas, lotando completamente o
limitado recinto.
O Exército colaborou ativamente. Por ordens
de seus superiores, cerca de 150 recrutas de diferentes unidades militares da capital
doaram o seu sangue para a formação dos estoques de transfusão, o que levou a
direção do hospital a pedir às emissoras de rádio e tevê que retransmitissem um
novo aviso à população: o HPS, agora totalmente suprido, não mais precisava de
sangue.
Às 18 horas o movimento no velho prédio da Osvaldo
Aranha diminuiu bastante e a Companhia de Guardas do major Kruger pode ser
substituída por brigadianos, que assumiram o policiamento externo e o controle
do trânsito.
Correio do Povo |
A
CIDADE PARALISADA: AS PESSOAS VOLTAM PARA CASA A PÉ OU DE CARONA
A estas alturas, por assim dizer, Porto
Alegre, em grande parte havia parado. Nenhum ônibus podia largar passageiros nos
terminais da praça XV e da praça Rui Barbosa.
Todas as guarnições da Brigada Militar, do
primeiro Batalhão, do nono, do décimo primeiro e até os soldados que faziam o
policiamento do Palácio Piratini, estavam no local.
A polícia isolou a Voluntários da Pátria até
a elevada da Conceição, a Pinto Bandeira, a Coronel Vicente, a Vigário José
Inácio, a Doutor Flores e a Salgado Filho, no sentido bairro-centro. Linhas de
ônibus foram desviadas e proibiu-se o estacionamento em muitos pontos. Sem luz
e telefone, todos os hóspedes do Rishon Hotel, no início da Doutor Flores,
foram transferidos às pressas. A avenida Júlio de Castilhos, uma das principais
artérias do centro, transformou-se em um imenso calçadão de pedestres.
Sensível à tragédia, a Orquestra Sinfônica
de Porto Alegre, OSPA (que festejara seus 25 anos no final de 1975), divulgava
uma nota à imprensa, comunicando o adiamento da apresentação do maestro Isaac
Karabitchevsky, 41 anos, e do pianista e solista Roberto Szidon (1941-2011), também
programado para aquela noite.
Por sua vez o prefeito Guilherme Socias Villela
compareceu ao Pronto Socorro e condenou, irritado, o que definiu como
“exploração da tragédia para fins políticos”: “Não posso admitir que
oportunista algum pretenda tirar proveito eleitoral disso”, atacou, sem dar
nome aos bois.
Villela referia-se, possivelmente, ao líder
da oposição, Brochado da Rocha, e ao também emedebista Carlos Serafim Pessoa de
Brum. O primeiro havia convocado a bancada oposicionista para uma precipitada
“tomada de posição quanto ao incêndio das Lojas Renner”, enquanto o segundo –
nos instantes em que a tragédia da Otávio Rocha se desenrolava - distribuía aos
jornalistas cópias de seu projeto-de-lei estabelecendo normas mais rígidas de
“habite-se” e prevendo a construção de heliportos nos edifícios mais altos de
Porto Alegre, projeto aprovado pelos vereadores, porém vetado pelo prefeito
anterior, Telmo Thompson Flores, sob a alegação de que isso iria encarecer a
construção de moradias em um país carente nesse setor.
De fato, pouco ou nada mudara desde o
incêndio das Lojas Americanas, há quase dois anos e meio. A imprensa aproveitou
para lembrar os grandes incêndios que marcaram a Capital: o da Imprensa Oficial,
em 1947; o do Tribunal de Justiça, no final de 1949; o do Palácio da Polícia,
no verão de 1950; o do colégio Júlio de Castilhos, no final de 1951; o da Casa
de Correção, em novembro de 1954; o do antigo Grande Hotel (edifício Mallet),
em maio de 1967; o do depósito de fogos Fulgor, em maio de 1971 (na verdade uma
grande explosão); e, mais recentemente, o do restaurante Dona Maria.
CENA EMBLEMÁTICA: MANEQUINS PEGAM FOGOS, COMO
TOCHAS HUMANAS
Às 15h30min um pedaço do edifício não
resiste ao furor das chamas e à devastação das explosões de botijões de gás.
Por volta das 17 horas, no lado da Doutor
Flores, entre a construção principal e a loja Imcosul, parte das paredes
externas – o equivalente a cinco andares – vem abaixo. Minutos depois ruiria a
parede entre o edifício principal e o Armazém Rio-Grandense. Vidraças, anúncios
e objetos próximos às janelas aos poucos também iam caindo. Caminhando em
direção a Voluntários da Pátria para ajudar na junção das mangueiras, um velho
bombeiro desabafa aos repórteres: “Não se pode fazer mais nada”.
A fumaça era agora mais intensa do que nunca
e, ao se dissipar, revelou a figura carbonizada de uma pessoa com o braço para
fora de uma das janelas. Pelos megafones os bombeiros pediram a evacuação dos
andares ocupados sobre a loja Comercial Louro.
Uma cena emblemática (e singularmente tétrica)
é colhida pelas lentes dos fotógrafos: os manequins, nas vitrinas, queimando
como tochas humanas, derretendo-se à vista do público.
Nesse momento um dos carros-tanques deixa o
local para atender outro incêndio, na rua Otávio Correa, 12, próximo à avenida
João Pessoa, no bairro Cidade Baixa. No seu apartamento do edifício Cury, a
senhora Albertina Giacomini assistia pela televisão as imagens da tragédia das
Lojas Renner quando uma garota bateu à sua porta dizendo que “tudo estava
queimando”.
“Eu sei, estou assistindo”, respondeu ela.
Somente alguns instantes depois é que
entenderia verdadeiramente o que estava se passando ao ver os seus vizinhos correndo
em pânico pelas escadas. Um princípio de incêndio lavrava ali mesmo, junto à
porta do apartamento do zelador. Os soldados descobriram de imediato a causa –
uma garrafa de querosene, em chamas no corredor.
Enquanto isso, nas proximidades do edifício
Renner, a multidão – acrescida por levas de novos curiosos – não queria perder
nenhum detalhe da tragédia que já completava quatro horas. Coube aos policiais
militares a cavalo afastar e conter os mais inconvenientes. Alguns punguistas,
sempre presentes em tais circunstâncias, foram presos e conduzidos algemados à
delegacia, entre eles um azarado que meteu as mãos justamente no bolso de um
policial civil.
O fogo continuava lavrando e, surpreendentemente,
parecia recobrar de intensidade. Por medida de segurança, máquinas e móveis
começaram a ser retirados do prédio ao lado do Armazém Rio-Grandense.
Com
efeito, já não havia mais nada a fazer. A ação dos bombeiros era agora
extremamente perigosa e muitos poderiam não retornar com vida do interior do
prédio. Os que de lá saíam, exaustos e enegrecidos, eram imediatamente
retirados do local a fim de que recobrassem as exauridas forças físicas e
psicológicas. Alguns deles demonstravam ar de tristeza e impotência.
Assim descreveu a reportagem da Folha da
Tarde o segundo momento do incêndio:
“Às
16 horas o fogo liquidava inteiramente com a loja Renner que funcionava anexa
ao grande prédio, na Otávio Rocha. Ali o fogo alcançou sua maior violência, com
enormes chamas consumindo tudo e provocando enormes rachaduras que viriam a
derrubar inteiramente o prédio, fazendo estremecer as ruínas do outro, o
grande. A água, que já voltara, através de uma ligação direta com o Guaíba, era
pouca para debelar o inferno. Ironicamente, as vitrines do Renner, até então
não atingidas, começam a ser varridas pelo fogo, dando um fantástico aspecto
aos manequins derretidos que se equilibram entre as chamas.
“Num
centro inteiramente paralisado, com multidões acotovelando-se nas várias ruas,
o fogo prosseguiu mais calmo a partir das cinco horas da tarde. As lojas
fecharam e dispensaram seus funcionários, pois começavam a ter medo do saque.
Sete horas, noite cerrada, e as linhas telefônicas da cidade estavam
inteiramente embaralhadas. Milhares de pessoas telefonavam para suas casas,
residências de parentes e amigos, querendo saber se tudo estava bem. A angústia
do desaparecimento passava a dominar o pânico”.
PESADELO E DESENCONTRO: FALAVA-SE EM MAIS DE CINQUENTA MORTOS
Caía a noite e a cidade iria adormecer com uma
incerteza em meio pesadelo real: o número ainda desconhecido de mortos
(falava-se, inclusive, em mais de cinquenta) e a dolorosa incerteza de saber,
afinal, quem estava ou não dentro do edifício.
Já no final da tarde, sem transporte
coletivo, centenas de pessoas que trabalhavam na área central da cidade
voltaram a pé ou de carona para casa. Os raros táxis disponíveis foram
disputados aos berros ou transformaram-se em lotações coletivas. Outros porto-alegrenses
preferiram fazer hora pelos cafés e bares até que o torvelinho amainasse. O
assunto era quase um só: o grande incêndio.
Na redação da Folha da Manhã, a 300 metros
dali, Janer Cristaldo, 29 anos (faleceu em 2014) – na época um dos cronistas
mais lidos da imprensa gaúcha – estava concluindo seu artigo para edição do dia
seguinte e no qual comentava o grande número de mortes causadas pelo trânsito
nas cidades e estradas do país (o automóvel, no seu entender, era a arma mortal
preferida dos brasileiros). Ao final, acrescentaria: “Enquanto escrevo estas
linhas, irrompeu um incêndio no centro da cidade. Pelo ruído dos bombeiros,
ambulâncias e helicópteros, deve ser um dos mais graves. Preparem-se os
porto-alegrenses para: a) debates apaixonados de políticos em véspera de
eleições; b) novos projetos para segurança dos edifícios; c) reuniões de
condomínio para estudar o problema; d) aumento do preço das cordas; e) reprise
de “Inferno na Torre”. Daqui a seis meses ninguém mais lembrará do assunto.
Ocorrerá então outro incêndio. E recomeçará mais uma vez o blá-blá-blá”.
Dezenove horas. Os repórteres correm para as
redações a fim de escrever às pressas suas matérias. Afinal, o sinistro seria
manchete em todos os telejornais brasileiros e também notícia em muitas partes
do mundo.
Enquanto isso, do topo dos prédios vizinhos,
bombeiros estafados continuavam lançando água sobre os focos restantes de fogo.
Em redor, ao longo de toda a área atingida, a escuridão reinava.
Como se não bastasse, o dia seguinte
reservava aos soldados do fogo a mais desagradável e inglória das tarefas – o
resgate dos corpos e a contagem das vítimas que não tiveram a sorte de escapar
daquela gaiola humana.
Na quarta-feira, 28, os diários de Porto
Alegre circularam com a grande manchete e muitas fotos em preto-e-branco (não
havia ainda colorido fotográfico na imprensa diária gaúcha): o grande incêndio,
o maior que a Capital já assistira em toda sua história no tocante a vítimas
fatais. Como acontece na cobertura das grandes tragédias, as edições
rapidamente se esgotavam nas bancas. Sem saber o número de vítimas, a cidade
não sabia o que esperar como resultado do inferno surgido na Doutor Flores.
Os trabalhos de rescaldo iniciaram pela
manhã. Desde as sete horas, como se fosse um mórbido piquenique urbano,
centenas de pessoas haviam afluído ao centro especialmente para “ver o
incêndio”. Desciam dos ônibus, dos táxis, de automóveis particulares, de motos
e bicicletas. Muitas procediam de bairros distantes e de forma alguma queriam perder
o segundo capítulo do espetáculo – a retirada dos corpos.
Os jornalistas também já estavam a postos:
todos tinham alguma história para contar e todos se mostravam irritados com o
tratamento nada amistoso dispensado pelos soldados da Brigada Militar. Em
grupos, os PMs – com caras de poucos amigos, bem ao estilo da ditadura,
cercavam os repórteres para verificar as credenciais, enquanto um cordão de
isolamento isolava o local.
A rigor, os bombeiros já não tinham mais
nada a fazer. Durante a noite os soldados prosseguiram lançando jatos de água e
preparavam-se agora para entrar no prédio, verificar a quantidade e a
localização das vítimas, bem como averiguar as condições para um resgate seguro
dos corpos.
Zero Hora descreveu assim aquela manhã: “Os bombeiros conversando, os brigadianos
complicando pela mínima coisa e o público aumentando”.
Um pouco antes do meio-dia a assistência foi
acrescida por uma leva de balconistas e funcionários de bancos e financeiras
localizados no centro. O major Clóvis Defensor dos Santos Oliveira, de binóculo
à mão, observava o prédio dos mais diferentes ângulos e fechava-se em copas,
respondendo aos repórteres com palavras breves e que pouco acrescentavam às
informações já obtidas.
Em “off”, contudo, alguns bombeiros deixavam
vazar suas queixas. Um dos heróis do dia anterior – um tenente um pouco mais
loquaz – observou: “Só se lembram dos bombeiros quando ocorre um caso como
este. Não se lembram de que não temos recursos para fazer o mínimo necessário.
E bombeiro ganha muito pouco. Como as pessoas esperam tudo de um homem que
ganha por volta de mil cruzeiros por mês, enquanto os que dependem do nosso
trabalho às vezes ganham milhões”. Naquele sábado o salário mínimo regional
seria majorado para 768,00 cruzeiros (um exemplar de jornal custava um
cruzeiro).
Outro herói da Renner, o estafeta Alcides,
aquele que estava passando pelo local, o primeiro a entrar no prédio para
tentar apagar as chamas, estava de volta, desta vez para solicitar ao
comandante seu internamento em um hospital. Precisava realmente, pois as
queimaduras ulceravam seu rosto.
Ainda pela manhã, um advogado e mais alguns
integrantes da diretoria das Lojas Renner chegaram para retirar documentos que
estavam no prédio número 148, em cima do Armazém Rio-Grandense, este parcialmente
atingido pelas chamas.
Saíram discretamente levando papéis, fichas
e pastas da folha de pagamento dos funcionários e sequer deram declarações à
imprensa, apenas confirmando que o prédio estava totalmente segurado, o
suficiente para cobrir as despesas de reconstrução e de reposição de estoques,
este último item orçado em mais de 100 milhões de cruzeiros.
No mesmo dia, em comunicado oficial, a
empresa lamentou a tragédia, agradeceu o “auxílio e a compreensão” de todos e
informou que a sua sede passaria a funcionar provisoriamente na filial do
bairro Passo da Areia, zona norte da cidade. Nenhuma das cinco filiais no
Estado – Passo da Areia, Centro Comercial da Azenha, Navegantes, e nas cidades
de Canoas e Pelotas - abriu suas portas naquela quarta-feira, retornando
contudo ao funcionamento normal já no dia seguinte.
NA PRIMEIRA INVESTIDA SÃO ENCONTRADOS 19
CORPOS
A primeira investida dos bombeiros aos
andares superiores aconteceu às 9h30min e durou apenas alguns minutos.
Nas ruas mais próximas e na Otávio Rocha
divisava-se toda sorte de objetos queimados e uma grande quantidade de
saquinhos de leite vazios. Adentrando, antes mesmo de removerem quaisquer
escombros os soldados contaram 19 corpos – se é que era possível contar. Do
interior do edifício, um monturo de tijolos queimados, ferros retorcidos e toda
espécie de objetos irreconhecíveis, ainda provinham constantes estouros.
Às 12h30min aconteceu uma demonstração de
ordem unida, logo imitada pelos PMs. Em seguida os bombeiros pegaram pás,
picaretas e enxadas, preparando-se para entrar no prédio. A remoção,
entretanto, só começaria mais tarde, quando quatro camionetas estacionaram em
frente, três delas entrando até onde foi possível.
Os restos das vítimas deveriam ser
acondicionadas dentro de sacos plásticos, mas estes se revelaram impróprios para
tanto e foram substituídos por lençóis de pano branco, mais resistentes e respeitosos.
Uma emissora de rádio sintonizada em alto volume foi estrepitosamente vaiada ao
informar que 25 corpos já estavam prontos para serem identificados no IML.
Retratando o trabalho dos bombeiros naquela
quarta-feira negra o Diário de Notícias (jornal que fecharia em 1979) anotou: depois
de adentrarem no edifício calcinado, “voltavam
com as faces traduzindo as cenas que depararam em sua escalada de
reconhecimento. Eram cenas indescritíveis, segundo o major Clóvis: homens e
mulheres abraçados, corpos contra as janelas, muitos degolados pelos vidros e
calcinados pelo fogo. No restaurante foram encontrados os corpos de três
crianças. No último andar o corpo de um homem que parecia estar encostado à
janela. Outros eram encontrados pelas escadas, à medida que os bombeiros
galgavam o prédio. E no ar o cheiro ocre (...)”
À tarde já eram 23 os corpos avistados, a
maioria nos dois últimos andares, de pessoas que provavelmente desmaiaram ou
morreram intoxicadas pela fumaça. Outras foram encontradas perto das janelas ou
na escada.
Em sua totalidade a operação Renner mobilizou
um enorme e diversificado efetivo, conforme dados apresentados pela Brigada
Militar à imprensa no final de quarta-feira. Denominada internamente de
operação número 2.564, abrangeu não somente os edifícios da Otávio Rocha e
Doutor Flores como outros dois pontos de atendimento que surgiram quase
simultaneamente naquela tarde de terça-feira – o do próprio magazine, mais os
focos situados na rua Fernando Machado (pensionato) e na Otávio Correa, esquina
com a João Pessoa. No total da operação praticamente todo o efetivo local foi
mobilizado, acrescido dos soldados do Exército, em um total aproximado de 600
homens. Quase todo o nono batalhão da BM esteve nesses três locais, bem como a
Primeira Companhia do Décimo Primeiro Batalhão, a Primeira Companhia do
Primeiro Batalhão e mais o Primeiro Pelotão do Quarto Regimento de Exército. Mais
de quarenta viaturas para transporte de feridos e as orientadoras das mudanças
no trânsito trabalharam nas imediações da Renner. Doze cavaleiros da Companhia
de Cavalaria, cerca de dez ambulâncias e quatro helicópteros foram igualmente
utilizados.
Em apenas um andar havia corpos no meio do
pavimento. Dos seis elevadores arrombados – onde, comentavam alguns, muitos
tinham se refugiado e perecido – nada restava e nada foi encontrado, afirmou o
major Clóvis:
“Fui acabar com uma dúvida que se tinha, os
elevadores. Eles estão realmente no térreo, com as portas abertas e nenhum
corpo dentro. Penetrei numa caverna, atrás desses elevadores, e também não
encontrei nada”.
Em meio a tantos destroços e fragmentos
enegrecidos não havia certeza absoluta a respeito do número exato de vítimas
fatais. Após assistir ao trabalho de rescaldo, um repórter da Zero Hora
concluiu que “nunca se saberá ao certo quantos morreram”, lembrando que, de um
corpo encontrado, restara tão somente a caixa craniana, “que se desmanchou na
mão de um bombeiro”. De outro sobrou apenas a caixa torácica e de um terceiro
uma tíbia, completamente carbonizada.
“Por isso o major Clóvis não sabe se se
tratavam de duas pessoas ou de três”, informou o jornal. “Pelo tamanho dos
ossos, provavelmente uma era criança. E nunca se acharão os restos que ficaram
sob os escombros da ala que se desmanchou na hora em que as máquinas começaram
a limpeza”.
À noite, o cardeal Dom Vicente Scherer, de
73 anos, arcebispo de Porto Alegre desde 1947, esteve em visita ao local.
O jornal Folha da Manhã retratou o que foi
aquele dia seguinte.
“Junto às cordas de isolamento os argumentos eram os mais diversos,
todos com a mesma intenção: chegar mais perto do prédio. “Preciso pagar o
imposto predial, posso passar? é lá no décimo andar”, diz o rapaz ao
brigadiano, que é irredutível: “O Sindicato está fechado”.
Um
público bem menor, constituído basicamente de estudantes, e também de pessoas
moradoras da grande Porto Alegre, veio “ver o que aconteceu” bem de perto para
depois contar às famílias e vizinhos.
“É o
tipo de gente que vai à tourada e torce pelo touro”, desabafou Ismael
Rodrigues, executivo que estava fazendo um lanche na galeria A Nação.
Velhas senhoras aproximam-se dos cordões de
isolamento, olham para cima, em direção ao prédio sinistrado e fazem caretas de
horror e espanto, como se o fato estivesse ainda acontecendo, enquanto uma
grande maioria é impassível e não sabe dizer, objetivamente, por que está ali.
Mão
na boca, cigarros acesos, braços cruzados, como se protegessem alguma coisa,
ali estão muitos estudantes, crianças e pessoas, mulheres em particular, que
foram fazer compras no centro e aproveitaram para dar “uma espiada” na cena.
Quando alguém consegue furar o cordão de isolamento, através de qualquer
argumento, as outras pessoas, as que continuarão atrás da corda, lançam-lhes um
olhar misto de simpatia e inveja, pois afinal tiveram a “sorte” de assistir as
coisas mais de perto.
Em
sua maioria, são jovens. Muitos ofice-boys, mães e desocupados ficam
satisfeitos pelo fato de fazer parte de tal espetáculo. Não é um público
constante, todavia. Pelo contrário, há uma espécie de “rodízio” que possibilita
a todos tomarem seu lugar junto à corda. (...)”
Populares assistiam a tudo em silêncio,
voltando o pescoço a cada translado. Um menino de uns 12 anos ultrapassou o
cordão de isolamento e, assediado por um policial carrancudo, exclamou: “Que
barato!” Agarrando-o pelo braço, o soldado respondeu: “É uma zorra mesmo, meu
amiguinho, mas o teu lugar não é aqui”.
Calçando “gigantescas e negras luvas”, os
bombeiros prosseguiam no trabalho de remoção, a pior parte do processo. Duas
vítimas, irreconhecíveis, estavam, por assim dizer, coladas: uma mulher que
abraça e protege uma criança.
No Instituto Médico Legal (com uma equipe de
15 médicos e quatro dentistas a postos) a tarefa de identificação era um penoso
exercício de paciência e lógica, trabalho “lento, mas o único possível”,
conforme reconheceu um dos legistas. Familiares, parentes, amigos e,
principalmente, dentistas que tratavam das vítimas foram convocados a estar
presentes.
Ao final do dia 14 corpos já haviam sido
identificados: Joaquim Brum Fernandes, 61 ou 62 anos, e a esposa Ieda Marisa
Furtado Fernandes, 44, residentes à rua Luciana de Abreu, bairro Moinhos de
Vento, em Porto Alegre. Os dois viviam de rendas e estavam almoçando no
restaurante Terrasse.
Joaquim foi identificado primeiramente pelo
seu irmão Hugo, que nele reconheceu um anel, o isqueiro, o relógio de pulso e
um pedaço da camisa. Por via das dúvidas, o dentista de Joaquim compareceu ao
IML com a ficha da sua arcada dentária.
José Wiest, 37 anos, foi o terceiro a ser
identificado pelos legistas, depois de Sidnei e Apolo. Com queimaduras leves
pelo corpo, foi reconhecido de imediato pelo cunhado. Assim como Sidnei, era
cozinheiro do restaurante havia cinco anos. Antes trabalhou na empresa aérea
Varig por quase uma década e também no hotel Plaza de Porto Alegre. Morreu
asfixiado pela fumaça, pendurado em uma das janelas, à procura de ar – cena
colhida por todos os fotógrafos. Ele era solteiro e morava com amigos na rua
Dona Margarida, zona norte da cidade.
Manoel Couto Carvalho, 81, e a esposa Olga
Pacheco Carvalho, 79, também estavam almoçando no Terrasse. Foram identificados
pela arcada dentária.
Teresinha Fonseca Precioso, 34 anos morava
em Bagé e tinha vindo sozinha a Porto Alegre, a passeio. O marido, Aloisio,
capitão do Exército, afirmou reconhecê-la por uma “melindrosa” com os nomes do
casal e pelo fato de portar um anel de brilhantes e um relógio de ouro.
Vera Lúcia Feijó Rodrigues, 25 anos, era funcionária
das Lojas Renner. Retardou-se no prédio, tentando salvar o dinheiro do caixa.
Foi encontrada na escada, com diversas bolsas de colegas ao seu redor. Residia
na Vila Medianeira, Viamão, com a mãe, Sueli, o pai, Milton, e uma amiga.
Jaci Vieira D‘Avila tinha 47 anos, trabalhava
como cabeleireira da loja e residia ali perto, na rua Doutor Flores. Natural de
Passo Fundo.
Doly Teresinha Ballestrin, 47 anos, também
funcionária, morava na sua Silveiro, bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
Edmeo Lobo, 48 anos, advogado, maçom, trabalhava
no consultório jurídico da Caixa Econômica Estadual havia 20 anos. Almoçava na
hora o incêndio.
Germano Jonas, 67 anos, gerente do
restaurante Terrasse Renner. Nascido em Frankfurt, Alemanha. Brasileiro
naturalizado.
Fátima Elaine Castro Pinheiro, 18 anos, funcionária
da loja, morava na rua Edgar Pires de Castro, zona sul de Porto Alegre.
Luis Carlos Machado, 42 anos, maitre do Terrasse havia mais de 10
anos, morreu porque se retardou muito, ajudando os clientes a se salvarem.
Quando tentou sair, já era tarde. Identificado por uma ponte móvel na arcada
dentária e por uma perfuração na perna direita.
NO INSTITUTO MÉDICO LEGAL, PRINCÍPIO DE
INVASÃO E MAIS CENAS DE DESESPERO
À tarde de quarta-feira, e durante todo o
dia seguinte, centenas de pessoas concentraram-se na entrada do Instituto
Médico Legal, no edifício Palácio da Polícia, esquina das avenidas Ipiranga e
João Pessoa, na tentativa de identificar parentes e amigos desaparecidos.
Para a perícia, um trabalho difícil e
engenhoso, já que muitos corpos estavam destroçados ou carbonizados e era
necessário juntar as partes, como em um macabro jogo de quebra-cabeças.
Na maioria dos casos a identificação só era
possível mediante o exame da arcada dentária. Obturações, serviços de prótese,
dentes ausentes ou algum tratamento específico eram minuciosamente analisados e
comparados com as fichas de consultório. Um perito explanou aos repórteres a
respeito da pertinência de tal trabalho, lembrando que o corpo carbonizado
normalmente diminui suas dimensões normais, já que perde todas as substâncias
líquidas. Porém a cavidade bucal, por ser a mais protegida, tende a preservar suas
características originais, levando-se em conta que os tecidos que envolvem a
arcada dentária, mesmo depois de queimados, impedem que a temperatura se eleve
em demasia, preservando assim o interior da boca.
Para evitar maiores tumultos o local foi
isolado por policiais. O major Clóvis admitiu a dificuldade do trabalho de
reconhecimento: “Será praticamente impossível determinar o número total de
mortos”.
Às 15h15min chegaram três carros fúnebres:
homens e mulheres, em desespero, disputavam cada fiapo de informação. Consolada
por um policial, Olinda Wiest, 41 anos, irmã de José Wiest, o cozinheiro,
repetia: “Como meu irmão foi morrer? Não consigo suportar tudo isso”.
Chorando muito, Jani Borges tentava
identificar o corpo de sua única filha mulher, de 23 anos, funcionária da loja
e que havia sido dada como desaparecida.
“Como é que ela vai ser identificada? Minha filha era perfeita, parecia
uma artista de cinema, tinha uma dentadura perfeita, nunca precisou de
dentista. Agora isto, que sempre foi motivo de alegria para nós, vai dificultar
o seu reconhecimento”, dizia ela.
O farmacêutico Norberto Silva procurava sua
esposa Luísa Maria Moreira da Silva, de 28 anos, balconista do terceiro andar.
Até às 18 horas, depois de preencher a ficha de identificação no centro de operações
da Brigada Militar, ainda não havia ainda conseguido qualquer informação.
Em igual estado, José Dili Cerqueira, 48
anos, buscava o filho José Francisco, de 26 anos, cozinheiro do restaurante
Terrasse. Ele, pai, tinha vindo de Pelotas e caminhava desorientado pela
capital: “Já procurei por aí tudo e nada”.
Igualmente atônita, Ibraema Fernandes de
Godói, funcionária da loja, solicitava notícias da amiga e colega Vera Lúcia
Feijó Rodrigues, que ela havia visto nos primórdios do incêndio. Vera logo
constaria na relação das vítimas.
“Quando desci do terceiro andar (seção
infantil) para o segundo, com a palma da mão tapando a boca e comprimindo o
nariz com os dedos, praticamente já era impossível a travessia, pois a fumaça
ardia nos olhos e estrangulava a garganta e não era possível ver nada mais do
que o terror e o desespero daqueles por quem eu passava”, contou ela, com a voz
embargada. “Ouvi o chefe da seção, o Marques, gritar para que todos saíssem,
mas apesar disso fui encontrar a Vera Lúcia sentada na escada interna, às
voltas com sua roupa e o uniforme, com quase todas as bolsas das colegas,
atrapalhada com o dinheiro que queria salvar para o chefe e que ela havia retirado
às pressas do caixa”.
De modo vívido, Ibraema lembrava o rosto de
sua colega, no buraco do vidro do segundo andar, gritando por socorro e
implorando para que a tirassem dali.
A mãe de Vera Lúcia, Sueli, teve uma crise
nervosa quanto tentava identificá-la e precisou de ambulância e cuidados
médicos de urgência – serviço que lhe custou o pagamento de 400 cruzeiros, uma
vez que o representante da Renner, presente ao IML, negou-se a fazê-lo: “Não
temos nada a ver com isso”, segundo testemunhou e anotou um repórter. Sem
dinheiro, Sueli apelou para os vizinhos, que fizeram uma providencial
“vaquinha”.
Outro que havia comparecido ao Instituto
Médico Legal era o cabeleireiro da Renner. Ele estava à procura de duas de suas
funcionárias. Contou Walter Jacques: “- A Jaci Vieira Ávila (48 anos,
desquitada) eu tenho certeza de que estava no sexto andar, porque quando saí,
às 13 horas, para almoçar, ela estava retornando do seu almoço. Minha dúvida é
se a Clair (da Silva Bolner, 22 anos, solteira) estava lá. Ela costumava voltar
às 14 horas e é possível que o fogo tivesse começado antes que ela entrasse. Tomara”.
As
duas trabalhavam havia anos com o cabeleireiro que costumava sair para o almoço
às 13 horas e só retornar às três da tarde.
Mais
intrigante era o caso vivido por João de Deus Carvalho, o qual veio do
município de Santiago à procura de seu filho Rui, de 19 anos, morador da rua
Lavras, no bairro Petrópolis. Ele tinha sabido do incêndio pelo noticiário da
televisão na noite de terça-feira. Passados dois dias em Porto Alegre, João de
Deus – um homem de 50 anos, funcionário do Departamento Autônomo de Estradas de
Rodagem, DAER - ainda mantinha esperanças de que o rapaz não estivesse no
edifício no horário do incêndio. Segundo alguns colegas, Rui trabalhava no
quinto andar quando o fogo começou. Outros disseram que não, que o rapaz tinha
saído um pouco antes. Em desespero, João chegou mesmo a afirmar tê-lo visto aquela
tarde, caminhando pela avenida Júlio de Castilhos.
“Juro que vi meu filho caminhando
transtornado por uma rua de Petrópolis. Ele não morreu no incêndio, outras
pessoas também viram ele na hora do incêndio, fora do prédio. Eu vinha para cá
(IML), hoje pela manhã, e na avenida Protásio Alves avistei meu filho. Ele tava
de calça branca, camisa branca listrada de azul. Pedi para o taxista voltar,
ele teve que fazer um retorno mais adiante. Quando voltamos, ele já não estava
mais lá”.
Confuso e desesperado, o homem não sabia
mais o que fazer. Para todos os efeitos a família já estava providenciando a
ficha dentária.
Cabisbaixa, olhos vermelhos, o rosto
inchado, Vera Lúcia Palmeira era a imagem do desconsolo. Pudera: perdeu quatro
parentes. Na tarde do incêndio Vera estava na Praça XV quando viu a fumaça e a
agitação das pessoas. Imediatamente correu até o edifício onde trabalhavam uma
tia e três primas suas. Uma delas, a balconista Sandra, tinha noivado não fazia
muito.
Convocada por fonograma, Maria Zoina viajara
370 quilômetros de ônibus da cidade de Pinheiro Machado, a Porto Alegre, a fim
de reconhecer sua amiga Santa Isabel Alves Tarouco, 34 anos, residente à rua
João Wallig, inclusa na relação das vítimas e cuja identificação tornava-se quase
impossível devido ao estado de carbonização do corpo. Aos repórteres, Maria
pedia o urgente comparecimento de um dentista, “o doutor Danúbio, lá da avenida
Farrapos”, que atendera Santa Isabel algumas vezes e possuía a sua ficha
dentária.
“Talvez
assim se consiga a identificação, mas está difícil” – lamentou.
Situação semelhante vivia Maria Helena
Alexandra, também vinda do interior para tentar identificar o corpo de Maria da
Graça Boff, de 21 anos. Depois da devida confirmação, ainda chocada, ele disse
aos repórteres ter visto no Instituto Médico Legal os corpos de uma mulher
abraçada ao de uma criança, os dois parcialmente carbonizados.
Já Edmeu Lobo, 48 anos, morador da rua
Jacinto Gomes, foi identificado por sua irmã, Ely, que conseguiu localizar sua
ficha protética, algo que não acontecia com Luiza Maria Moreira da Silva, 28
anos, funcionária da seção infantil, no terceiro andar. Sua irmã Terezinha veio
de São Leopoldo para tentar identificá-la, mas não soube dizer se ela frequentava
algum dentista.
Com intensa fartura de fontes, os repórteres
tinham muitas histórias à mão, algumas bem triviais, o caso de dona Ilza
Duarte, que não procurava ninguém em especial. Ela foi ao centro na terça-feira
para trocar uns sapatos que havia comprado quando avistou o incêndio. Em meio ao
corre-corre geral, se deparou com uma senhora que levava um filho pequeno ao
colo: à medida que assistia às cenas mais dramáticas, de modo sufocante, esta última
apertava mais e mais a criança contra o peito. Súbito, a própria mãe não
resistiu às emoções e desmaiou, sendo acudida por policiais que a conduziram
para a ambulância, deixando a criança aos cuidados de Ilza, mãe de cinco filhos,
agora transformada em babá de emergência.
“Foi terrível para mim e só me tranquilizei
ao entregar o pequeno de novo para mãe. Fiquei imaginando o que ela iria sentir
quando voltasse a si e não o encontrasse”, desabafou aos jornalistas.
O desencontro de informações era tanto que
duas pessoas cujos nomes apareceram nas listas de mortos divulgados em meio ao
burburinho do Instituto Médico Legal na realidade estavam bem vivas: o médico
José Mariano Vieira Haensel e Fernando de Araújo Carvalho.
O primeiro trabalhara no próprio instituto
como voluntário na identificação das vítimas e o segundo era neto do casal
Manoel Couto Carvalho, de 81 anos, e Olga Pacheco de Carvalho, 79 – estes sim,
vítimas do incêndio. Outras duas dadas como desaparecidas reapareceram pouco
depois: um rapaz que viajara para Caxias e o outro que retornou sexta-feira à
tarde para a casa dos pais.
Em
frente ao IML um novo personagem dava agora o ar de sua graça: o agente
funerário, facilmente identificável pela conversa animada, risos nem sempre
discretos, piadas e olhares ansiosos em direção aos clientes em potencial. Um grupo de oito ou nove deles, representando
as principais funerárias da cidade, tentava, um de cada vez, cabular a
freguesia e fechar ali mesmo seus negócios.
A técnica de aproximação do “papa-defuntos”
era quase sempre a mesma: a máscara facial contrita, gestos curtos e
respeitosos, achegava-se a algum familiar, aquele que tem cara de quem vai
pagar a conta – e aí fazia a proposta.
“O senhor está procurando algum amigo, algum
parente? Eu posso conseguir que o senhor entre no IML, eu conheço bem o pessoal
de lá. Ah, leve este cartãozinho aqui... Na volta fale comigo, tá?”
Quase sempre dava certo.
Por volta das 14h30min de quinta-feira, horário
em que muita gente se aglomerava junto aos cordões de isolamento, tais
“corretores” pareciam insuficientes para atender a crescente clientela. Pela
manhã boa parte deles empenhara-se em pescar clientes nas antessalas dos
hospitais, anotando nomes e endereços de quem havia falecido pela madrugada ou
estivesse em estado muito grave. Mas era em frente ao IML – onde a categoria
sempre gozou de boas relações – que os negócios realmente frutificavam.
Um dos estratagemas – o de sugerir “que, a
essas alturas, já estão faltando caixões” – influenciava os espíritos mais
ingênuos: “Pai, vai logo lá na funerária porque o homem disse que se a gente
não for depressa não consegue caixão”, disse uma senhora aflita ao marido. O
casal procurava um filho, dado como desaparecido e ainda não identificado pelos
legistas.
Ao sentir à aproximação de alguém estranho –
em especial os repórteres – os agentes funerários mudavam de atitude e assumiam
de imediato um ar arredio que podia se tornar hostil em poucos segundos. Desviavam
a conversa, emudeciam ou recusavam-se a dar nomes. Ou mesmo ameaçavam: “Se tu
botar qualquer coisa contra nós aí no teu jornal, tu vai te arrepender, viu?”
À tardinha partiam rapidamente em suas
inconfundíveis kombis sem nenhum letreiro de identificação.
“SEM EQUIPAMENTOS, NOSSO BOMBEIRO USA A
CORAGEM”, DIZ COMANDANTE
Até o final da quarta-feira 14 vítimas já
haviam sido identificadas. Na quinta-feira os bombeiros ainda prosseguiam no
perigoso trabalho de remoção e de procura de corpos: mais um foi encontrado
nesse dia.
O comércio próximo ao edifício já havia
fechado suas portas e os prédios da rede de lojas Imcosul e do Armazém Rio-grandense,
abrasados pelo calor, foram declarados impróprios e condenados. Um forte odor
de fumaça e de carne humana queimada que saía dos escombros atestava a
existência de vítimas – ou parte delas – ainda não localizadas.
Valendo-se da experiência os bombeiros estabeleceram
uma espécie de rota, mais ou menos segura, para chegar aos andares superiores:
um a cada vez, medindo cada passo, subiam pelo que restou da escada do prédio,
evitando a parte central e procurando se mover somente junto às paredes.
A um repórter que lhe perguntou se não
existiam equipamentos específicos que permitissem certa segurança para aquela
tarefa o major Clóvis argumentou – ou tergiversou: “Nosso bombeiro usa a
coragem. Existem, sim, equipamentos que nós não temos e de que precisamos. Mas
em situações como esta, qualquer equipamento só funciona com a complementação
da coragem”.
Os técnicos do Instituto de Criminalística
sequer haviam iniciado a perícia para determinar as causas do acidente e
versões divergentes já vinham à tona – problemas em um aparelho de ar
condicionado, um curto-circuito, etc. Em matéria publicada na Zero Hora de sexta-feira,
o diretor-presidente da Renner, Ricco Harbich, declarou aos repórteres ter
certeza de que o fogo iniciou realmente no depósito de tintas do terceiro
pavimento (primeiro andar, considerando o térreo e a sobreloja), mais
exatamente junto à escada de emergência.
Segundo ele, o pânico dos funcionários e
clientes foi uma tentativa desesperada de se conseguir outra saída, já que a
escadaria estava tomada pela fumaça. Harbich garantiu que as outras três escadas
do prédio davam livre passagem, visto que várias pessoas escaparam por ali:
“Mas outros não quiseram tentar, com medo de morrer queimados. Talvez se eles
colocassem um lenço, um pano qualquer sobre o rosto, e enfrentassem a fumaça,
pudessem ser salvos. Mas nas escadarias havia um grande volume de fumaça preta.
Com medo de que atrás da fumaça houvesse fogo, eles não tentaram”.
Parecia ser esta a certeza de Lúcia Ondina
Wiatrovski, 21 anos, funcionária do crediário, setor localizado no mesmo andar
da seção de tintas e que enfrentou e venceu a fumaça. Depois de ser entrevistada
pela imprensa, ela foi levada pelos policiais até a Secretaria de Segurança para
dar o seu depoimento oficial. Lúcia, natural do município de Dom Feliciano,
estava na relação inicial dos desaparecidos quando, na realidade, tinha ido
para a casa de um irmão seu, em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre.
Carlos Guido, perito criminal ali presente, aproveitou
para explicar didaticamente as linhas de raciocínio a serem seguidas com vistas
a determinar a origem de sinistros desse gênero: primeiro, seria feito o
vasculhamento de toda a área atingida e, em seguida, um exame de condensação de
fuligem e enegrecimento das paredes, procedimento capaz de denunciar a
incubação inicial do fogo. Nesse caso, acrescentou, é também de grande valia o
boletim dos técnicos do Corpo de Bombeiros. Eles observam onde há maior
incidência de chamas, a sua cor e a cor da fumaça emitida, estabelecendo assim
a natureza dos objetos queimados.
Outro item relevante é o exame da rede elétrica,
seja a de força e a de iluminação. No caso da Renner a rede elétrica havia sido
trocada havia cerca de dois anos e estava dentro dos padrões exigidos. Segundo
técnicos da CEEE, se houve algum curto-circuito interno, seria muito difícil
localizar a sua causa, uma vez que os transformadores que alimentavam aquela
zona do centro mostravam-se em perfeitas condições. Por outro lado, os
representantes da estatal fizeram questão de ressaltar que a responsabilidade
da companhia ia somente até a distribuição da energia (no centro da cidade,
feita de forma subterrânea), não interferindo na rede interna de cada usuário, o
que é da alçada da prefeitura, incluindo a fiscalização adequada. Eles citaram
casos usuais de prédios que aumentam os seus gastos de energia depois de um
determinado período, sem ao menos informar ou sequer consultar a companhia
sobre a sua viabilidade e possíveis riscos. No caso da Renner, era algo que não
acreditavam ter ocorrido.
Voltando à peritagem da fiação: revisada,
esta pode determinar o ponto exato onde ocorreu o curto-circuito – se é que de
fato ocorreu. Todo material considerado útil é recolhido aos laboratórios do
Instituto, para detidos exames. Obviamente, isso tudo não é uma tarefa fácil,
pois o fogo destrói elementos preciosos, sem falar nos danos causados pelo
próprio trabalho dos bombeiros.
São três as causas de incêndio, explicou
Carlos Guido. A comum: combustão espontânea, determinada pela ação de
bactérias, habitual em matas. A acidental: faíscas, eletricidade estática,
pontas de cigarro acesos, tocos de vela esquecidos, fósforos jogados
descuidadamente ao chão e também o clássico curto-circuito, comum em
construções. E a proposital: casos de piromania, vingança, para esconder crimes
ou obter vantagens ilícitas, cobrar seguros etc. De certa forma a causa
proposital é a mais fácil de ser esclarecida pelas perícias, já que
dificilmente existe o crime perfeito.
Na verdade – segundo revelou o diretor do
Instituto de Criminalística, perito-criminalista Pedro Santos da Silveira – o
trabalho dos técnicos do IC iniciou já naquela tarde de terça-feira, pouco
depois que soaram as sirenas das viaturas dos bombeiros no centro da
cidade. Intuindo a extraordinária dimensão
da tragédia, o diretor destacou de pronto uma equipe para a tarefa que se
avizinhava.
Orgulhoso das qualidades do IC, Pedro informou
que a equipe de odonto legistas do instituto gaúcho era única no Brasil, braço
de um minucioso e completo trabalho de levantamento e coleta de dados que
integrariam, de forma decisiva, o inquérito policial a cargo da Primeira
Delegacia de Polícia de Porto Alegre. Conforme o perito, o laudo técnico
deveria estar concluído entre três e quatro semanas, tempo em que a imprensa
seria abastecida de notícias e novidades pelo serviço de relações públicas da
Polícia Civil do Rio Grande do Sul e que desde o início centralizava – ou assim
tentava - todas as informações oficiais.
Na sexta-feira, último dia de abril, com
grande comparecimento de pessoas, uma das figuras mais conhecidas entre as
vítimas foi sepultada no cemitério da comunidade evangélica de Porto Alegre: o
gerente do Terrasse Renner, casa de chá e restaurante que funcionava no sétimo
andar, Germano Jonas, de 66 anos. Ele havia morrido junto com a mulher,
Teresinha, e a sogra, Rubina, de 82 anos. As duas, até aquele momento, ainda
não tinham sido identificadas pelos peritos do Instituto Médico Legal.
Um dos que estavam lá, o garçom Flávio da
Rocha Borges, mostrava-se inconformado. Flávio trabalhava com Jonas havia oito
anos e considerava-o um amigo: “Nunca encontrei pessoa mais amável que seu
Jonas. Todos que trabalhavam com ele o queriam muito bem. Era um homem tão
desprendido que, não fosse isso, ainda poderia estar vivo. Na hora do incêndio
subiu ao oitavo andar para salvar sua mulher e a sogra”.
No domingo, em sua coluna semanal Ribalta
das Ruas, o jornalista Antônio Carlos Ribeiro, 55 anos, dedicou a Germano a
crônica A Morte do Urso Branco:
“Uma
das vítimas, o ecônomo do Terrasse Renner, Germano Jonas. Morreu no posto em
que permanecia há 30 anos, desde que veio de Cruz Alta para Porto Alegre, campo
maior para a sua formação profissional iniciada na Europa. Gordo e jovial, o
jovem imigrante arrendou o salão térreo do edifício Rex, na rua Pinheiro
Machado, ao lado da Farmácia Peixoto, e montou uma sorveteria e bar ao melhor
estilo germânico: o Urso Branco. Foram os primeiros sorvetes de verdade que
minha geração conheceu. Jonas os fabricava com paciência e amor, enquanto
aprendia o idioma e se identificava com a cidade. Há tanto tempo, como eu,
afastado da velha Rainha da Serra, foi um cruz-altense (nascido em Frankfurt,
Alemanha) que morreu terça-feira. A despeito do seu garbo profissional e do
impecável smoking, era simples e terno, tímido e afável. Com o velho maitre
vai-se um pouco da gente também: infância, memória, saudade...”
SÍNDROME DO PÂNICO: A CIDADE VÊ UM INCÊNDIO EM QUALQUER PARTE
Ao passar dos dias, de variadas formas, a
cidade inteira ainda se mostrava absorvida e chocada pela tragédia. Nas
imediações do local os lojistas, ariscos e nervosos com a súbita notoriedade,
preferiam lamentar a interdição da área e a queda no movimento de clientes. Muitos
estabelecimentos comerciais situados no perímetro do incêndio, ainda estavam
com suas atividades paralisadas. O presidente da Associação Comercial de Porto Alegre,
Ênio Aveline da Rocha, pressionava as autoridades – especialmente o chefe da
Casa Civil - para que liberassem imediatamente a parte comercial isolada
Todavia o barulho infernal das máquinas
revirando os escombros, o mau cheiro emanado do interior do prédio (e que
persistiria ainda nas próximas semanas) o irritante zum-zum das pessoas, as
lembranças do sinistro, tudo isso ainda estava bem vivo e presente.
Passados quinze dias Maria Beatriz,
funcionária de uma loja da Otávio Rocha, já não aguentava mais: “É um martírio
ter de vir para o trabalho diariamente. Depois do incêndio não tive mais
sossego, chego até a sonhar que o que restou do prédio está vindo abaixo”.
Neusa, balconista do Café Haiti, nas proximidades, sofria com o barulho
ininterrupto: “O barulho das máquinas começa pela manhã e vai até o final do
dia. É tão forte que parece que vai arrebentar com os nervos da gente”.
Vivendo uma espécie de melancolia
pós-traumática, os balconistas aproveitavam a ociosidade reinante para atender
os jornalistas que fuçavam tudo e ouviam a todos, anotando às pressas
impressões e receios daquelas privilegiadas fontes.
Iara, 24 anos, funcionária de uma loja da
Otávio Rocha, folgara na terça-feira e tinha sido poupada do espetáculo –
quando soube, ficou traumatizada a ponto de não ter coragem de voltar para
casa. Seu marido estava viajando, e os dois, como disse, também moravam em uma “gaiola”.
“Eu estava pensando em comprar um
apartamento para mim. Queria um lugar para morar, mas agora mudei de ideia,
acho que vou comprar uma casa. Onde eu moro tem um extintor pequeno em cada
andar, mas ninguém sabe mexer neles”.
Faz uma pausa e acrescenta, como se falasse
do mundo lá fora: “É tudo um absurdo, eles não pensam nunca na gente, só em
vender, e quando acontece alguma tragédia ainda é que vão pensar. Porque antes
ninguém pensa”.
Na sua edição de sexta-feira o jornal Zero
Hora observou: “Em todas as lojas os funcionários se confessam terrivelmente
assustados. Como se somente agora percebessem a insegurança da cidade e que
tragédias assim podem acontecer em qualquer canto, a qualquer momento”.
Na Casa das Sedas, na Doutor Flores com a
Otávio Rocha – uma das primeiras lojas evacuadas – qualquer barulho
sobressaltava as funcionárias. Uma delas disse à reportagem que saiu correndo
desesperadamente quando tudo começou. Outra se lembrava das pessoas presas no
alto do prédio: “A gente via as coitadinhas abanando e não dava pra fazer nada.
Aqui, a gente ajudou muitas delas, temos até bolsas guardadas. A tristeza é não
ter podido tirar ninguém daquelas gaiolas”.
Na Lojas Marisa a funcionária Selma, de 28
anos, criticava a falta de condições de trabalho dos bombeiros: “Eles são muito
corajosos, fazem o que podem e o que não podem, mas é difícil ajudar dessa
forma. Eles demoraram a chegar. Nesse tempo que custaram a vir muitas mais
pessoas poderiam ter se atirado do alto. Daqui deu pra ver uma moça que quase
não saiu porque uma escada Magirus não conseguiu chegar. Depois tentaram com a
outra escada e deu. Essa também podia se assustar e se jogar antes do socorro.
E tem mais: todas aquelas pessoas no terraço não conseguiram ser alcançadas
pelas escadas”.
Sua colega Neli recordava as pessoas nas
janelas, fazendo sinais. “Não gosto nem de dizer nada porque foi o dia mais
triste que já vi. Não é justo. Eu chorei muito. Chorei aqui, chorei no carro,
chorei em casa”.
Ex-funcionária da loja sinistrada, onde trabalhou
na seção infantil, Marli Antunes, da Lojas Alfred, citava as janelas
basculantes “onde não cabe nem uma criança”. “Como é que podia ter umas
basculantes em vez de janelas?”, indagava, já em tom de resposta.
O
TÚNEL DA CONCEIÇÃO VIROU UMA NEURASTÊNICA GARAGEM COLETIVA
Nos dias seguintes ao incêndio o trânsito de
veículos na área central da cidade desorganizou-se completamente (demorou uma semana
para retomar à plena normalidade), a despeito do apelo das autoridades para que
os motoristas deixassem os carros em casa. Em vão.
O que se viu então foi uma quase loucura. A
avenida Farrapos congestionou na quinta-feira, a Mauá engarrafou e o túnel da Conceição,
inaugurado havia poucos anos, transformou-se em uma neurastênica garagem
coletiva. Por sua vez, na Júlio de Castilhos, na Independência, na Osvaldo
Aranha e na avenida Protásio Alves, formaram-se intermináveis fileiras de
carros. Os encarregados do trânsito, sem esconder a forte irritação com as
demonstrações do egoísmo dos porto-alegrenses, preferiam lembrar que “bastava
as pessoas tomarem consciência do que está acontecendo, do quase impossível que
está sendo feito”.
O resultado de tanta insensibilidade motorizada
não poderia ser outro: uma infernal sequência de batidas, confusões,
xingamentos e discussões entre os motoristas e acompanhantes, muitos deles os
tais fatídicos “turistas do incêndio”.
A propósito destes últimos, em sua edição de
sexta-feira, 30, sob o título Morbidez e Sadismo, o jornal Zero Hora, anotou em
sua coluna Informe Especial
:
“Até
ontem à noite uma multidão de curiosos continuava firme ao redor do prédio
semidestruído das Lojas Renner, enquanto continuavam os trabalhos de
localização e remoção das vítimas. Insensíveis aos apelos das autoridades e
mesmo ao perigo representado pela possibilidade de um desabamento, centenas de
pessoas ali continuavam, atrapalhando o trânsito e o deslocamento de gente que,
por força do trabalho, teria obrigações a cumprir naquela área. Move-as a
morbidez e o sadismo, os mesmos sentimentos baixos que fizeram com que muita
gente, aos gritos, mandasse saltar as pessoas que apareceram às janelas da
galeria Malcon, quando apareceu fumaça no prédio. E mais: diversas pessoas
estiveram no IML a pretexto de identificar supostos parentes e amigos, apenas
para olharem os restos mortais das vítimas. Triste, mas verdadeiro”.
Na primeira segunda-feira de maio, dia 3,
passados seis dias da tragédia, ZH voltou a documentar a continuidade do
fenômeno. “Só falta fazerem cartão postal disso aqui”, lamentou ao jornalista um
senhor que trabalhava nas proximidades:
“Durante
todo o dia, ontem, como tem acontecido desde terça-feira passada, centenas de
pessoas se aglomeraram perto dos quatro cordões de isolamento, nas imediações
do que foi a loja central do Grupo Renner. A maioria dos pais que têm nos
fins-de-semana o único tempo livre para sair com seus filhos, descobriu agora
um novo divertimento: levá-los para ver “o que ficou do incêndio”. Máquinas
fotográficas, pacotes de pipocas, bergamotas e tudo o mais que funcionar como
lanche rápido faz parte desse novo tipo de lazer. Por toda parte, esses pais e
mães se preocupam em explicar para seus filhos: “Vejam, foram seis pavimentos
que caíram. Sim, ainda tem gente aí. De lá foi que a mulher se jogou. Claro,
pode desabar com o vento”.
“E
perguntas de crianças é que não faltam, para assombro de Manoel, que diz nunca
ter visto nada igual. “Tem até turista – diz ele – pois escutaram um menino,
possivelmente argentino, perguntando: “Papá, donde se quedaram las personas?” O
papá argentino não escutou a observação de Manoel nem tampouco satisfez a
curiosidade do filho, preocupado que estava em conseguir para a mulher e para
ele próprio um posto de melhor observação. Mais adiante Ismênia Costa, de 69
anos, cliente há muitos anos das Lojas Renner, não entendia “como tanta riqueza
assim pode acabar em tragédia”. E, filosofando, ela própria se respondia: “A
vida é assim, e pra Deus quando as coisas têm que acontecer, acontecem. E não
adianta beleza, riqueza, nem nada”.
“Mas, se existe um prazer mórbido nas pessoas que, com frequência, vão
até a Otávio Rocha e Doutor Flores para ver o que restou do incêndio, está
havendo também, e com maior intensidade, uma conscientização sobre o que
representa uma cidade desprotegida. Por isso, ontem, olhando o que ficou, muitas
pessoas ainda se perguntam sobre como ficariam as famílias dos que morreram e
que tipo de segurança o Grupo Renner vai dar para seus empregados. Outras, com
mais firmeza ainda, comentavam: “A realidade é que virá outra loja, assim como
em outros incêndios, e tudo ficará como sempre foi”. O motorista do táxi 1896
foi mais além: “Quando a imprensa tá ganhando para fazer propaganda?” E
esclareceu: “Fosse gente pobre, eles estavam roubados e ninguém fazia nada de
matéria sobre eles”.
Na primeira notícia, citando a Galeria
Malcon, o jornal referia-se a um falso alarma de incêndio ocorrido no dia
seguinte ao sinistro, quando, no meio da tarde, alguns rolos de fumaça começaram
a sair pelas janelas de um dos andares superiores do grande edifício da rua da
Praia. Ao ouvir a palavra “fogo” uma multidão apavorada precipitou-se para fora,
enquanto outros se penduravam nas janelas, aos gritos.
Desta vez boa parte da assistência gritava
“pula! pula!”. Minutos depois, com a chegada dos bombeiros, o circo foi desmontado.
O incêndio na realidade resumia-se a um amontoado
de lixo em combustão.
Naquele mesmo dia, em São Paulo, onde o
episódio de Porto Alegre repercutira intensamente, uma doméstica pulou do
décimo primeiro andar de um prédio no bairro de Cambuci. Apavorada com a fumaça,
pensando que o edifício estivesse em chamas, Joana Alves dos Santos Monteiro,
de 23 anos, imolou-se estupidamente, pois nenhum morador corria qualquer risco de
morte. Outros nove incêndios em
diferentes pontos da capital paulista foram atendidos pelos bombeiros durante
aquela quarta-feira, 28, dia seguinte ao incêndio da Renner.
Em Barra do Piraí, no Estado do Rio de
Janeiro, uma loja de tecidos foi totalmente destruída pelo fogo que iniciou em
um prédio de três andares onde estavam armazenadas grandes quantidades de
madeira velha. Em seguida o fogo atingiu o Instituto Nacional de Previdência
Social, INPS, cujas instalações seriam oficialmente inauguradas no dia
seguinte.
Na tarde de quinta-feira, em Alvorada, na
região metropolitana de Porto Alegre, uma casa de três peças virou cinzas. Os
moradores – um casal e três filhos – tinham saído um pouco antes e ninguém
ficou ferido. Segundo um vizinho, a causa foi um escapamento de gás.
Também um pensionato feminino que funcionava
na rua Riachuelo, 1649, no centro, pegou fogo, obrigando mais de 50 mulheres a
fugirem às pressas em trajes de dormir. Entre elas estava Maria Helena – aquela
que havia escapado do incêndio da Renner e que disse não ter condições
psicológicas para enfrentar tal drama novamente. Sem dinheiro e sem ter para
onde ir, algumas moças passaram a noite no salão ao lado, cedido pelo Sindicato
dos Metalúrgicos. O fogo – presumiu-se – havia sido provocado por um ferro
elétrico esquecido em uma tomada. Por sorte ninguém se feriu gravemente.
O major Clóvis Defensor – com marcadas
olheiras e aparência de profundo cansaço – comandou pessoalmente a operação
que, não bastasse, revelou mais outra carência no extenso rosário de
deficiências da corporação: também não havia holofotes para o trabalho noturno.
A HISTÓRIA DE MARIA HELENA, A SOBREVIVENTE
SORTUDA E AZARADA
A história de Maria Helena – que, em menos
de três dias, sobrevivera a dois sinistros – era quase insólita e merecia
registro: afinal, ela não sabia se tinha muita sorte ou muito azar, ou as duas
coisas juntas. Fosse como fosse, o certo é que estava quase sempre nos locais
errados e nas horas erradas – mas sobrevivia.
Na edição de sábado Zero Hora dedicou quase
uma página inteira ao acontecido com esta jovem chamada Maria Helena Morais de
Oliveira, descrita como morena magra, 20 anos, funcionária do Hospital Fêmina e
que agora só dormia sob o efeito de tranquilizantes e também chorava muito. Aos
jornalistas ela relembrou o que tinha passado no edifício Renner, onde fora
fazer compras aquela tarde.
Maria estava no quarto andar quando um
funcionário gritou a respeito do fogo. Ela imediatamente quis descer, mas a
fumaça era muito intensa, fazendo com que todos fugissem para o alto do prédio.
No terraço, sentindo que iria desmaiar – e alertada por um homem que se isso
acontecesse ela certamente morreria – retirou o lenço que protegia seu cabelo e
colocou-o na face, à espera do socorro.
“Esperei uns dez minutos e durante todo esse
tempo tropecei numa porção de gente que estava caída. Tinha uma senhora que
queria se jogar e eu gritava para ela não pular que a escada vinha chegando. Tinha
lá umas 40 pessoas, acho que só saíram umas quatorze”.
Salva pelos bombeiros e medicada no H.PS,
foi para a casa de uma colega, onde jantou e finalmente dormiu. Na ocasião ela
comentou com a amiga que, se tivesse que passar por tudo aquilo de novo, preferiria
se jogar do alto a morrer queimada. Na quinta-feira, já de volta para o
pensionato da rua Riachuelo, à espera de um colega que chegaria por volta da
meia-noite, começou a sentir cheiro de fumaça, comentando isso com uma amiga.
“Para com isso, Maria Helena, que tu estás impressionada e vendo fogo onde não
existe”, respondeu esta.
Porém mais uma vez o fogo existia realmente
– “parecia que voltava todo aquele pânico” – e ela teve que fugir do pensionato
somente com a roupa do corpo. Sem pertences, sem dinheiro, traumatizada, Maria
lembrou que, anos antes, outro prédio onde residiu, na rua General Câmara,
também havia incendiado: ela só se salvou porque conseguiu passar para uma
construção ao lado usando uma escada colocada por um vizinho.
Um pouco antes do acontecido no pensionato
de Maria Helena, tendo por cenário o térreo do edifício de número 632 da avenida
Borges de Medeiros, ali bem perto, ocorreu um princípio de incêndio,
possivelmente causado por alguém que jogou um fósforo ou algum cigarro aceso no
poço de energia. No local funcionava uma loja de calçados e também o cinema
Lido, em sessão naquele horário. Os frequentadores nada perceberam e não houve
tumulto.
Na sexta-feira à tarde, na rua Itaboraí, 380,
bairro Jardim Botânico, populares avistaram fumaça saindo das janelas do sexto
pavimento de um prédio com cerca de 300 moradores. Dona Porfíria, a
proprietária, estava chegando em casa e surpreendeu-se com o alvoroço da
vizinhança. Informada de que a fumaça vinha do seu apartamento, exclamou: “ Meu
Deus, o pão está queimando!”
Ela estava fazendo pão no forno a gás e saiu
à rua, distraída. Houve confusão e correria pelos corredores. Os bombeiros
chegaram rapidamente e ordenaram a evacuação dos moradores. Subindo até o
oitavo andar com uma escada Magirus, logo descobriram que a fumaça provinha mesmo
do apartamento 601. Meio constrangido, um dos moradores justificou a
movimentação e o nervosismo geral: “Estamos apavorados com o incêndio das Lojas
Renner. Imagine se este aqui também pega fogo!”
Ainda na sexta-feira, um antigo prédio que
era usado como depósito pela firma de pescados Promar, na cidade de Rio Grande,
sul do Estado, foi destruído pelas chamas. No local estavam armazenadas 40 mil
caixas de madeira e uma grande quantidade de papel encerado que serviria na
embalagem dos peixes destinados à exportação. Os prejuízos chegavam a um milhão
de reais.
Na segunda-feira, 3 de maio, um
curto-circuito em uma máquina de costura assustou mais de 50 funcionárias e clientes
de uma loja de modas (Sibra Modas) na rua Marechal Floriano, 39, e provocou
frisson em todo o comércio circunvizinho. Dezenas de pessoas correram para a
rua, houve gritaria e crises nervosas entre as mulheres e grande parte da rua
foi fechada ao tráfego pela polícia. “Mais uma vez o pânico dominou o
porto-alegrense, que está envolvido por tal estado de espírito desde a tragédia
das Lojas Renner”, escreveu o Diário de Notícias.
Na terça-feira outro curto-circuito, desta
vez em uma agência do banco Bradesco da avenida Assis Brasil, causou
corre-corre e gritaria. Minutos antes, na vizinha Caixa Econômica Estadual,
alguém acionou o alarma geral, assustando mais de 30 funcionários e alguns
clientes – eles não sabiam se era assalto ou incêndio.
Naquele mesmo dia, 4 de maio, o sétimo da
tragédia, “com a presença das mais altas autoridades”, incluindo o governador e
o prefeito, celebrou-se a missa “in memoriam” dos “mortos no acidente” da
Renner pelo arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer. Oficiada na catedral
metropolitana, às 19 horas, a cerimônia religiosa foi aberta à população.
Também na terça-feira um depósito da firma
Azevedo Bento, na rua Santos Dumont, zona norte da capital, foi atingido pelas
chamas, com a destruição quase total dos estoques de cordas, ferragens, sal e gêneros
alimentícios. Os bombeiros tiveram dificuldades com um hidrante defeituoso e um
deles, sem equipamento de proteção, teve os olhos atingidos pela fumaça, sendo
encaminhado ao hospital da Brigada Militar.
Curiosamente, no momento em que o alarma
soou e os bombeiros foram chamados para atender o incêndio na rua Santos Dumont,
mais de vinte jornalistas acompanhavam a entrevista coletiva do governador
Sinval Guazzelli, no quartel-geral da corporação e que versava sobre as
providências para seu reerguimento. Eles estavam justamente assistindo a projeção
de um filme sobre o edifício Joelma cedido pelos bombeiros paulistanos.
Na quarta, 5, os bombeiros correram para a rua
Santana – o fogo estava se alastrando em um prédio de 18 apartamentos – e
encontraram lá um morador que havia dormido com o cigarro aceso: era o jovem
Hugo Cornélio, 20 anos, e que depois do almoço deitou na sua cama para ler
revistas e fumar. Ele acabou pegando no sono e só acordou às 16 horas, quando
as chamas já tomavam conta do seu apartamento no terceiro andar. Cambaleando e
já intoxicado pela fumaça, foi conduzido ao Pronto-Socorro. Quinze homens da Estação Central, tripulando
um carro-bomba e um carro-pipa de oito mil litros chegaram em poucos minutos e
controlaram a situação.
Na quinta-feira em um apartamento da rua
Leopoldo de Freitas, número 83, bairro Passo da Areia, uma mulher identificada
como Rosa entrou em pânico depois que uma “espiriteira” pegou fogo e atingiu
sua empregada, Gládis Maria, de 22 anos. A doméstica recém iniciava o seu dia de
trabalho - ao acender o fogareiro teve as vestes incendiadas e entrou em
desespero. A patroa, por sua vez, pensou no pior e correu até a sacada, de onde
se jogou, caindo no piso, dois andares abaixo. As duas foram encaminhadas ao
Pronto Socorro e ao hospital Lazarotto, ali perto – a doméstica com queimaduras
de primeiro e segundo graus e a patroa em estado ainda mais grave.
A existência de hidrantes próximos (e em
perfeito estado de funcionamento) facilitou o trabalho dos bombeiros que, no
entardecer de sábado, primeiro de maio, controlaram em pouco mais de 30 minutos
as chamas que destruíram parcialmente a madeireira Cruz de Malta, na avenida
Presidente Vargas, em Alvorada. O incêndio foi notado pelos vizinhos, os quais,
semanas antes, haviam alertado sobre o perigo representado por um fio que saía
de uma loja contígua e que provocava visíveis curtos-circuitos em dias de
chuva. Se o fato acontecesse três meses antes teria consequências muito mais
sérias, já que no local funcionava um depósito de gás. Segundo os bombeiros
(quem primeiro atendeu a ocorrência foi a estação do Passo da Areia) a empresa
já tinha sofrido sinistro semelhante sete anos atrás. Desta vez, porém, o proprietário
sofreu uma crise nervosa.
Na tarde de sexta-feira, 30 de abril, um
nome saíra oficialmente da lista de desaparecidos da tragédia das Lojas Renner,
que agora baixava para 17 pessoas. O funcionário Luiz Gabriel da Cruz apareceu
são e salvo: por sorte, dias antes da tragédia ele havia sido transferido para
a loja do centro comercial da Azenha, fato que seus colegas desconheciam –
inclusive muitos já o davam como morto e carbonizado.
Enquanto isso, como sempre, alguns
vigaristas muito vivos aproveitavam o momento para a prática de velhos golpes.
Na sexta-feira soldados da Brigada Militar
prenderam dois homens que se faziam passar por bombeiros. Eles visitavam o
comércio, vendendo anúncios para uma suposta revista especializada e pedindo
dinheiro para “restaurar” a corporação. Desconfiado, o proprietário de uma loja
de móveis do bairro Jardim Itu ligou para o quartel-central e foi informado de
que os bombeiros não possuíam nenhum órgão de divulgação e muitos menos
autorizavam alguém a recolher dinheiro em seu nome.
No centro, agentes da Polícia Civil deram
voz de prisão a dois sujeitos que ofereciam aos transeuntes imagens coloridas da
tragédia. Também a atitude de funcionários de uma conhecida loja de material
fotográfico foi interpretada como exploração comercial do fato – eles expuseram
na vitrine instantâneos do incêndio e chamaram a atenção do irritado delegado
de polícia que os prendeu.
Neste mesmo dia a direção da Companhia Estadual
de Energia Elétrica informou que já havia sido normalizado o fornecimento de
energia, desligado por mais de 70 horas. Vários estabelecimentos comerciais e
residenciais situados nas proximidades da zona atingida voltaram ao expediente
normal.
Coincidência extraordinária: Sidnei, a irmã de Everaldo, morreria no mesmo dia que ele, um ano e meio depois. |
TERMINAL GRANELEIRO DEIXA SETE FERIDOS EM RIO
GRANDE
Nas semanas seguintes o Rio Grande do Sul, o
Brasil e o mundo pareciam regidos pelo elemento fogo, ao menos nos noticiários
da imprensa, que – lembrando os episódios das Americanas e do Joelma - destacava
com lentes focais tudo que cheirasse a queimado. Enquanto isso mensagens de
pesar chegavam de todas as partes do Brasil e do mundo, endereçadas ao
governador do Estado e ao prefeito municipal, incluindo a enviada pelo
presidente Ernesto Geisel e também a do embaixador da República Federal da
Alemanha em Brasília, Horst Roeding.
Naquele momento, aliás, misteriosos
sinistros pareciam brotar do nada. Nas proximidades do quartel general do
Terceiro Exército, nas proximidades do Gasômetro, os moradores de um edifício
de onze andares entraram em pânico com um princípio de incêndio que surgiu no
quinto andar. Soldados de Departamento
Regional de Moto Nivelação e da Brigada Militar debelaram o fogo que já havia
destruído uma mesa e um armário de cozinha. Um andar acima, outro morador,
sentindo o cheiro da fumaça, feriu-se nas mãos ao quebrar o vidro de uma
janela.
Em
Caxias do Sul, a fábrica de acordeões da marca Universal pegou fogo, destruindo
rapidamente cerca de 30% do prédio de três andares e mobilizando mais de trinta
bombeiros. Mesmo agindo rapidamente, estes levaram cerca de três horas para
extinguir as chamas, possivelmente originadas de um curto-circuito na seção de
materiais elétricos.
Em Paso de Los Libres, na Argentina, uma
farmácia só livrou-se do pior graças ao auxílio dos vizinhos brasileiros da
cidade de Uruguaiana, do outro lado da ponte que liga os dois países. No centro
de Canoas, município da Região Metropolitana, a 17 de maio, bombeiros da base aérea
daquela cidade uniram-se aos colegas para apagar o fogo que consumiu o depósito
do supermercado Zottis – as labaredas iniciaram no estoque de papel higiênico e
duraram mais de duas horas.
Perto, em Sapucaia do Sul, um curtume
escapou por pouco da destruição total. Bem mais sério, o incêndio em uma das
balanças do terminal graneleiro da Cooperativa Tritíticola Ijuí, Cotrijuí, na
cidade de Rio Grande, resultou em sete operários feridos no início da tarde do
dia 12 de maio – quatro deles em estado grave, um dos quais teve de ser
removido de helicóptero para Porto Alegre. Segundo algumas testemunhas, a causa
mais provável seriam os “canecos” do elevador de carga que se atritaram com as
paredes metálicas da máquina, gerando faíscas – ou fogo por fricção. A presença
de grandes quantidades de farelo de trigo que estava sendo transferido para os
porões de um navio facilitou a propagação. Um elevador explodiu.
No início de junho a fábrica de colchões e
estofados Cosmospuma, em Porto Alegre, foi parcialmente destruída pelas chamas
que iniciaram às três horas da madrugada, na rua Aurélio Porto, bairro Partenon.
Segundo os bombeiros – que, com três guarnições, levaram vinte minutos para
controlar a situação – o fogo iniciou em tonéis com material inflamável.
A FÁBRICA DA PEPSI-COLA PEGA FOGO E OS
MORADORES FOGEM DAS CASAS
Talvez por influência psicológica dos filmes-catástrofe
Inferno na Torre (superprodução que estreara em Porto Alegre em novembro), O
Destino de Poseidon, Terremoto e Tubarão, os perigos do fogo, reais ou
imaginários, vinham intranquilizando o Estado.
Na noite de 16 de janeiro, sexta-feira, por
volta das 20 horas, o depósito da firma Cassim Lahude, na avenida Professor
Oscar Pereira, bairro Glória, foi totalmente destruído por um incêndio que
também atingiu uma casa de madeira e chegou a ameaçar o prédio de apartamentos vizinho
em cujo térreo funcionava uma agência do Banco do Estado do Rio Grande do Sul.
Oitenta mil pares de calçados foram queimados: todavia, não se tratava do velho
golpe do seguro – os bombeiros descobriram que este estava vencido.
Na mesma noite outro sinistro de proporções
bem maiores e preocupantes mobilizou praticamente todas as guarnições da capital
e trouxe sérios transtornos aos moradores do bairro Menino Deus, muitos dos
quais abandonaram às pressas suas casas: faltando quinze minutos para as onze horas
grandes labaredas surgiram na oficina de manutenção da empresa Refrigerantes
Sul-Riograndense, fabricante da Pepsi-Cola e que há mais de vinte anos
funcionava na avenida Praia de Belas, esquina com a Marcílio Dias, populosa e
valorizada zona residencial de Porto Alegre.
Segundo funcionários que trabalhavam na manutenção,
o fogo irrompeu próximo aos depósitos de gás carbônico e amoníaco. As labaredas
já estavam altas quando a Brigada Militar obrigou-se a isolar uma vasta área em
volta, temendo que as sucessivas explosões dos tubos de oxigênio e latões de
óleo ali armazenados fossem seguidas de outras – o que parcialmente aconteceu.
Um destes botijões voou a muitos metros de distância e caiu em uma das piscinas
da sede esportiva do Clube do Comércio, nos fundos. Após horas de trabalho, o
comandante de uma das guarnições queixou-se da falta de hidrantes e de água
(três mil litros eram consumidos a cada cinco minutos de incêndio). Já os assustados
moradores lembravam aos repórteres que, há tempos, todos eles pressionavam pela
saída da empresa daquele local.
Dois dias depois, nos primeiros minutos do
domingo, 18, o cargueiro Itagiba, do Loyde Brasileiro, seguia do porto de Rio
Grande rumo a Buenos Aires quando, na altura do farol de Sarita, próximo a
águas uruguaias, a casa de máquinas pegou fogo. O barco, com 168 metros de
comprimento, ficou à deriva, sem motores, sem geradores, sem sistema de rádio e
sem poder atender aos chamados das autoridades marítimas. O rebocador Triunfo,
da Marinha do Brasil, conseguiu trazê-lo do alto mar até a entrada da barra de
Rio Grande. Segundo o seu comandante, o capitão João Dilermando Gonçalves, o
Itagiba – que deveria depois seguir até a Austrália – levava uma carga mista
que incluía muitas toneladas de carne congelada. Não houve feridos mas o barco
precisou de fortes reparos em estaleiros brasileiros.
Na tarde
de segunda-feira, em Pelotas, os bombeiros não conseguiram salvar o Supervarejo
Fernandes, na estrada da Barbuda. Os dois caminhões da corporação tiveram de
buscar água em hidrantes da avenida Fernando Osório, a dois quilômetros de
distância. A estrondosa explosão de 15 botijões de gás do depósito assustou a
vizinhança e causou danos parciais em um prédio ao lado.
Ainda na segunda-feira, 19, incidente bem
mais sério ocorreu na favela do Caju, no Rio de Janeiro, deixando desabrigados
mais de três mil moradores e causando a morte de uma criança. O fogo se
propagou com grande rapidez, ajudado pela inexistência de hidrantes nas
proximidades, e a grande maioria dos moradores fugiu somente com a roupa do
corpo. Uma vela deixada acesa no interior de um dos casebres teria sido o
princípio de tudo.
De bem maior gravidade, e repercutindo
intensamente na imprensa, o acidente com um avião da Transbrasil Linhas Aéreas
na tarde de quinta-feira, 19, no aeroporto de Chapecó, cidade do oeste catarinense,
a 550 km da sua capital, começou com o provável estouro de um dos pneus, embora
a hipótese de incêndio nos motores não fosse descartada.
O modelo Bandeirantes saíra de Florianópolis
havia menos de duas horas, fazendo escalas em Joaçaba e Concórdia. Reabastecido
em Chapecó, seguiria para Erechim e Porto Alegre. Com a explosão, sete dos nove
ocupantes tiveram morte instantânea e os dois sobreviventes – incluindo um
cidadão boliviano – sofreram ferimentos graves, um dos quais morreu dias depois.
Segundo testemunhas, a aeronave subiu cerca de 30 metros e então despencou
sobre o solo.
A rapidez das chamas também foi apontada
como a responsável pela morte da menina Kátia, de um ano de idade, carbonizada
no interior de uma casinha de madeira na estrada Juca Batista, zona sul da capital
gaúcha. Os adultos saíram cedo para trabalhar, enquanto uma mulher permanecia
em casa cuidando dos 12 filhos dos dois casais. Ela saiu para apanhar lenha e,
ao retornar, encontrou o barraco talado pelo fogo – a criança de um ano foi
esquecida lá dentro pelos irmãos. O fato aconteceu na manhã de sexta-feira, 23.
No mesmo dia, na garagem Bachier, em
Uruguaiana, dois automóveis, uma camioneta e uma lancha foram destruídas
durante incêndio acontecido de madrugada. Na avenida Sete de Setembro, centro
de Cruz Alta, na noite de quinta-feira, 29, grande quantidade de madeira,
móveis e máquinas foram tragadas pelo fogo que atingiu uma fábrica de móveis.
Chamados 40 minutos depois, os bombeiros se limitaram ao isolamento da área.
Muito tranquilo, o proprietário da empresa explicou que havia, sim, seguro
total.
Enquanto isso, na madrugada de 26 de
janeiro, em uma grande favela da cidade do México, a explosão de dois botijões
de gás deixou três crianças mortas e mais de quatro mil pessoas desabrigadas.
Cerca de 250 barracos feitos com folhas de zinco e madeira foram totalmente
destruídos. Alguns moradores garantiram que a tragédia tinha sido proposital.
O SINISTRO DA WOLENS QUASE MATA VÁRIOS
BOMBEIROS
No final da tarde de sexta-feira, 30 de
janeiro de 1976, aconteceu o sinistro da Wolens, tradicional e elegante magazine
de moda e vestuário localizado no número 1000 da avenida Protásio Alves, em
Porto Alegre. Mais de 30 bombeiros, seis carros auto bombas e escadas Magirus
foram usados para apagar as chamas que destruíram o prédio de três pavimentos onde
funcionava a fábrica da empresa – felizmente não havia mais funcionários no
local.
Os bombeiros dispunham de pouca água e quantidade
insuficiente de máscaras contra gases. Mesmo protegendo-se com lenços molhados,
vários soldados foram hospitalizados e três deles escaparam da morte ao fugir do
desabamento de uma imensa laje. O problema só não foi maior porque se conseguiu
isolar um edifício residencial ao lado e também a lanchonete Trianon, muito
frequentada por taxistas.
O mês de fevereiro – escaldante em Porto
Alegre, porém congelante em países do hemisfério norte – começou com a notícia
das mortes de seis idosos de um hospital do bairro de Cícero, em Chicago,
Estados Unidos. O fogo iniciou no quarto dos nove andares do edifício.
Na mesma data, nas primeiras horas da
madrugada, na ilha de Manhattan, cidade de Nova Iorque, próximo ao rio Hudson, também
com intenso frio, dez pessoas, das quais sete eram crianças, não resistiram à
inalação de gás carbônico cuja combustão se originou em um apartamento inferior
do prédio de seis pavimentos, propagando-se rapidamente pelos canos da
calefação. Cinco vítimas foram encontradas acocoradas em uma das peças.
Dia 2, segunda-feira, na Inglaterra, uma mãe
preferiu morrer junto com os três filhos pequenos a salvar-se sozinha. Segundo
despacho da agência de notícias UPI, Winnie Downie, 24 anos, moradora da cidade
de Manchester, poderia facilmente ter saltado para o telhado da casa ao lado,
mas preferiu tentar o salvamento de uma filha de quatro anos, um filho de três
e outro recém-nascido.
No Estado da Pensilvânia, nos Estados
Unidos, onde fazia 20 graus abaixo de zero, também naquela segunda-feira,
quatro menores foram envolvidos pelas chamas: Sally, sete anos, Michelle, de
12, a babá Diane, de 16, e mais uma menina de 13 anos que estava de visita ao
apartamento. Nenhuma escapou.
Na sexta-feira, 6 de fevereiro, outra
tragédia familiar destruiu a família de Henri Russeau e de sua esposa de 34
anos. Segundo informou a agência de notícias United Press International, UPI, o
fogo envolveu rapidamente a residência do casal, na província canadense de
Ontário. Henri e sete dos seus nove filhos pequenos pereceram no local,
salvando-se apenas a mulher e dois rapazes de 18 e 15 anos.
Voltando à capital gaúcha, o amanhecer de
sábado, 7, não foi propriamente trágico e sim trabalhoso para os bombeiros e
policiais militares chamados a atender uma tentativa de suicídio no edifício
Aspecir, localizado na avenida Alberto Bins, esquina com a rua da Conceição.
Lá, por volta das seis horas da manhã, o zelador do prédio, de nome Raul, 25
anos, casado, pai de dois filhos, há quatro meses no emprego, entrou em violento
e incontrolável surto psicótico, cena que atraiu uma numerosa multidão e
paralisou totalmente o trânsito por quase quatro horas.
Ao alto, tal como um Tarzan urbano, armado
de barras de ferro, o homem começou a quebrar os canos de ligação do
reservatório de água. Ao constatar que estava sendo observado por dezenas de
curiosos, passou a atirar tijolos arrancados do prédio, ao mesmo tempo em que
ameaçava saltar para o asfalto. Soldados do Nono Batalhão da Brigada Militar
foram chamados e as cercanias da Otávio Rocha se transformaram em um grande
circo a céu aberto.
No final, o zelador suicida optou por
afogar-se nas profundezas da caixa dágua predial. Retirado dali por um bombeiro
“homem-rã”, na observação irônica de um repórter, dominado por dez policiais
que logo o amarraram, gritava “Eu sou o caminho, a verdade e a vida!”. Sua
esposa não resistiu às fortes emoções e desmaiou, enquanto o marido era
embarcado em uma ambulância e levado para o hospital psiquiátrico São Pedro.
Na Grande Porto Alegre, quarta-feira, dia 11,
às 12h30min, pouco depois que os operários saíram para almoçar, nem mesmo a
pronta atuação de três brigadas de incêndio das indústrias calçadistas impediu
a “redução a escombros fumegantes” de uma fábrica exportadora da cidade de
Campo Bom (Calçados Artis, rua São Paulo). Os bombeiros de Novo Hamburgo, a 14
quilômetros dali, chegaram em 20 minutos, mas nada puderam fazer. Presumiu-se
que a causa tenha sido um curto-circuito.
No mesmo dia e quase no mesmo horário, um
daqueles acidentes domésticos tão comuns nos lares brasileiros quase matou o
garoto Rudinei Oliveira, 16 anos, morador de uma construção de madeira da rua
Castro Alves, bairro Independência, na capital. O menor brincava com um litro
de álcool na cozinha junto à chama acesa do fogão a gás quando o combustível pegou
fogo. Rudinei recebeu graves queimaduras e foi transportado para o Hospital de
Pronto Socorro, ali próximo.
Há
exatamente um ano, naquele mês de fevereiro, o edifício mais alto de Nova
Iorque e um dos mais altos do mundo escapava de se transformar em um cenário
real do filme “Inferno na Torre”. Na noite de sexta-feira, 14, o décimo
primeiro andar dos 110 andares que constituíam a torre norte do Word Trade
Center, o gigantesco Centro Mundial de Comércio, as “Torres Gêmeas” da ilha de
Manhattan, pegou fogo. Avançando pelos fios elétricos e pelos canais de
ventilação, espalhando uma nuvem de fumaça preta até o vigésimo sexto, só foi
dominado horas depois. Devido ao calor e à forte fumaça, os bombeiros não
conseguiam, individualmente, permanecer mais que cinco minutos no local. Muitos
deles desmaiaram e 28 foram conduzidos aos hospitais da cidade. Ninguém morreu
e ninguém da direção do Word Trade, destruído por um atentado terrorista duas
décadas depois, quis falar a respeito.
Em Porto Alegre, no final da tarde de
segunda-feira, 16, em uma oficina de chapeação na rua Teixeira de Freitas, bastaram
20 minutos para que todo o local e mais seis automóveis fossem destruídos -
outros quatro saíram bastante danificados. Os irmãos Valdomiro, Elias, Domingos
e José, donos do negócio, explicaram que tudo começou quando um dos seus funcionários
usava a solda elétrica no reparo de um fusca. Uma faísca atingiu o tanque do
veículo e as chamas alcançaram Valdomiro que, ao fugir, espalhou-as por toda a
oficina. Conforme os vizinhos, os irmãos eram “gente boa, porém um tanto
irresponsáveis”. Não havia qualquer seguro e os prejuízos foram totais.
Na quarta-feira, 18 de fevereiro, o que
parece ter sido um curto-circuito na instalação elétrica destruiu completamente
o setor de estofaria da fábrica de carrocerias Marcopolo, às margens da BR-116,
em Caxias do Sul. Na pressa, mas sem feridos, uma camioneta da Brigada Militar
que atendia o chamado capotou sobre a rodovia. Outro soldado, intoxicado pelos
gases da combustão, precisou ser internado no hospital Pompéia.
Antes disto, no final da tarde de terça, uma
residência de madeira localizada na estrada que liga Caxias à localidade de São
Giácomo foi consumida pelas chamas em poucos minutos. O próprio dono, de nome
Armando, 40 anos, foi acusado por sua esposa de ser o autor do fato – para isso
teria usado um lampião.
Na manhã sexta-feira, 20, na cidade de
Carazinho, a 285 km de Porto Alegre, a explosão de um botijão de gás destruiu a
casa de Ari Assunção, na rua Assis Chateaubriand. Ele e os familiares tiveram
que fugir somente com as roupas do corpo.
Na segunda-feira, 23, na vila Santa Rosa,
zona norte de Porto Alegre, cinco famílias que moravam em três casinhas da rua
K tiveram prejuízos totais quando a residência de Nei Silva, 19 anos, pegou
fogo - ele preparava a comida e não notou o vazamento do gás de cozinha.
Ninguém ficou ferido, mas também nada restou das três moradias.
Também com poucas pessoas feridas, o
rompimento de um oleoduto da Petrobrás, na Grande São Paulo, provocou um grande
incêndio que se alastrou por cerca de dois quilômetros e forçou a interdição
parcial daquele trecho da via Anchieta, principal ligação rodoviária entre São Paulo
e Rio. O oleoduto conduzia nafta, derivado do petróleo usado como matéria-prima
na indústria petroquímica. O acidente
aconteceu na quinta-feira, 26 de fevereiro.
No dia seguinte, início dos festejos de
Carnaval em todo o Brasil (vencido, no Rio, por uma pequena e desconhecida
escola de samba da baixada fluminense, a Beija-Flor de Nilópolis, e em Porto
Alegre pela Praiana), dois homens morreram nas profundezas de uma mina de
carvão da Companhia Rio-Grandense de Mineração, CRM, no distrito de Minas do
Leão, município de Butiá, a 85 km de Porto Alegre. O incêndio surgiu às 6 horas
da manhã, a 125 metros de profundidade, em virtude dos gases. Segundo os
bombeiros os dois não pereceram queimados e sim asfixiados. Um deles estava
noivo e iria casar no final do ano.
No bairro Sarandi, zona norte da capital,
na madrugada de sábado, 28, os soldados agiram prontamente e conseguiram
impedir que o fogo irrompido na Madeireira Silveira, na rua Domingos de Abreu,
atingisse os prédios vizinhos. Mesmo assim parte do depósito e a maioria dos
produtos para a construção civil foram perdidas.
O mês de março registrou muitos outros
sustos e também vítimas pelo mundo. Já no primeiro dia do mês, segunda-feira, a
imensa e caótica Cidade do México enfrentou enormes engarrafamentos de trânsito
por conta de um gigantesco incêndio em uma de suas estações do metrô. Durante
mais de quatro horas os bombeiros lutaram contra as chamas – dois deles
sofreram intoxicação. Todo o sistema de transporte subterrâneo permaneceu parado
e mais de 300 lojas comerciais foram destruídas.
Já na pequena e italiana Flores da Cunha,
próxima a Caxias do Sul, região dos vinhedos, centenas de turistas que estavam
na Terceira Festa da Vindima desta vez assistiram, ao vivo e a cores, o
espetáculo do fogo que destruiu uma cantina no final da tarde de sexta-feira,
5.
Nos Estados Unidos, no dia 9, terça-feira,
nove pessoas ficaram feridas e uma morreu em um hotel de 72 quartos, próximo ao
aeroporto de Los Angeles, Califórnia. O sinistro iniciou no térreo e não teria
alcançado o segundo andar se a pessoa que o descobriu fechasse imediatamente a
porta. Em pânico, vários hóspedes se jogaram lá de cima. A única vítima fatal
foi uma mulher que não conseguiu sair a tempo.
MENINO CAIU DO DÉCIMO NONO ANDAR E SÓ QUEBROU
O FÊMUR
Na sexta-feira daquela mesma semana, 12 de
março de 1976, algo absolutamente insólito e espetacular - e que, por sua total
inverossimilhança, causaria deboches até mesmo se fosse incluído em alguma cena
de novela mexicana - aconteceu no centro da capital do Rio Grande do Sul, mais
precisamente no edifício Galeria Di Primio Beck, construção de 23 andares junto
à praça da Alfândega: um garoto de 13 anos despencou em queda livre do décimo
nono andar – incrivelmente, milagrosamente, ele sobreviveu a isso sem
ferimentos graves.
Trinta e dois dias depois, quando
finalmente deu alta do hospital, Jeferson Silva de Melo, conhecido como Pingo,
contou aos repórteres que, naquele dia, havia saído à tarde de casa para ser
atendido por um dentista que era parente seu. Enquanto esperava sua hora de
consulta, debruçou-se à janela para contemplar a paisagem do centro. Todavia,
ao olhar para baixo sentiu uma forte tontura e suas vistas escureceram – desse
momento em diante não lembrava de mais nada, além do fato de acordar
imobilizado em um leito de hospital. Pingo fraturou a tíbia, o tornozelo e o fêmur
da perna direita.
Na verdade ele despencou do décimo nono
andar (alguns jornais falaram em décimo sexto) do edifício, a quase 60 metros
de altura, e caiu estrondosamente sobre o telhado da livraria Coletânea. Conduzido
ao Pronto Socorro, foi depois transferido para o hospital Independência, de
onde recebeu alta no dia 14 de abril, com direito a uma grande matéria da Folha
da Manhã e à curiosidade divertida de todos os seus amigos que o aguardavam na
rua Silvio Romero, bairro Partenon, onde chegou engessado até a cintura.
Morando ali, em uma casinha de material de
quatro peças, “sem reboco, com vidros quebrados e madeiras carcomidas pelos
cupins, com escassos móveis e paredes nuas”, junto com o pai, dois irmãos de
sete e 16 anos, mais o avô e a avó, Jeferson achava que poderia ficar “mais de
dois anos” sem poder jogar no time dos seus amigos, o Ajax. Contrariando seu
hábito, não quis ler as revistas que guardava embaixo do travesseiro e não
demonstrou estar preocupado com as faltas escolares. Pingo ainda deveria
retornar ao hospital dali a vinte e cinco dias para retirar o gesso e iniciar a
longa fisioterapia de recuperação dos movimentos.
Outro caso não menos insólito havia
acontecido naquele verão porto-alegrense, quando um franzino garoto de 11 anos
fez o que os jornais chamaram, sem qualquer exagero, de “viagem fantástica”.
Assim como Pingo, Paulo Roberto Betines Cardias, morador do bairro Medianeira,
também virou celebridade, posou para fotos e deu muitas entrevistas. Afinal, se
ele não despencara de nenhum alto edifício do centro, havia realizado – com
plena consciência de cada segundo vivido - uma travessia bem mais escura e
vertiginosa empreendida nada menos do que quatro quilômetros adentro do sistema
de esgotos pluviais da capital.
A data – 26 de janeiro de 1976 –
dificilmente seria esquecida pelo menino que morava com seu pai na rua Oscar
Schneider, 265, nas proximidades do estádio Olímpico e nas encostas do morro da
Glória. Naquela segunda-feira, ao tentar apanhar um boneco de plástico trazido
pela enxurrada do arroio Cascata, desequilibrou-se e caiu em um bueiro.
Agarrado a um pedaço de madeira, Paulo
Roberto iniciou uma jornada quase irreal e que só terminaria uma hora e meia
depois, nas águas do arroio Dilúvio, proximidades da rua Botafogo. Lá, com
leves escoriações na testa e nos joelhos, ele viveu a pior parte da sua
aventura: sem saber nadar, debateu-se na corrente do riacho até conseguir
alcançar a margem e correr de volta para casa, onde foi recebido com um misto
de euforia e incredulidade. Afinal, os bombeiros já estavam à procura do seu
corpo na foz do arroio Dilúvio com o Guaíba, e ninguém apostaria um tostão
furado na sobrevivência do garoto.
No dia seguinte o Correio do Povo dedicaria
quase uma página ao fato na sua crônica policial: “Menino arrastado 4 quilômetros pelo esgoto pluvial escapa ileso”
“Agarrado a um pedaço de madeira, Paulo Roberto Betines Cardias, de 11
anos, realizou, ontem, o que se pode chamar de uma “viagem fantástica”.
Arrastado pelas águas do arroio Cascata, onde caiu ao tentar apanhar um boneco
de plástico que a enxurrada que descia do Morro da Glória carregava, Paulo
Roberto foi levado de roldão, mergulhou num bueiro e iniciou, agarrado a um
pedaço de madeira, uma aventura que só terminou bem - segundo os mais velhos –
porque Deus assim o quis.
“Da
Rua Oscar Schneider (ele mora no número 265) foi levado à grande velocidade
pelo esgoto pluvial, por um trajeto de aproximadamente 4 quilômetros. Ele conta
que só pensava no pai, na mãe e nos irmãos, enquanto a água o impulsionava. Do
ponto em que mergulhou no bueiro, ele passou sob a rua General Gomes, sob a
Avenida Carlos Barbosa, percorreu toda a extensão da Rua Coronel Gastão
Hasslocher (nos fundos do Estádio Olímpico), chegou ao bairro Menino Deus
passando sob a Rua José de Alencar, e atingiu a Rua Botafogo, para ser lançado,
finalmente, cinco quadras adiante, no arroio Dilúvio. Ali o menino viveu a pior
parte de sua aventura: debateu-se desesperadamente até alcançar a margem e a
segurança. Depois, sem saber que uma guarnição do Corpo de Bombeiros estava
postada no local em que o Riacho desemboca no Guaíba, esperando para resgatar
seu corpo, e que ali também se encontrava seu pai, o agente penitenciário Paulo
Vespúcio Cardias, de 36 anos, este desesperado e apegado à esperança de que um
milagre pudesse salvá-lo da morte que todos julgavam inevitável, Paulo Roberto,
apenas com escoriações leves nos joelhos e na testa, e com o calção rasgado,
iniciou a corrida de volta para casa, sem duvidar um instante que o resultado
daquele passeio seria uma surra memorável.
“Ora
correndo, ora caminhando, ele venceu os quilômetros que o separavam de casa e
parou na esquina de sua rua, amedrontado, ao ver tenta gente na frente de casa.
Então começaram os gritos. Uns vizinhos vieram ao seu encontro, para
carregá-lo; outros, eufóricos, chamavam sua mãe, dona Evinha; a avó, dona
Doralina, de 77 anos; os irmãos de Paulo Roberto, que são seis. A família
inteira, com exceção do pai, a essa hora rezava pedindo a Deus e a todos os
santos pela vida do menino.
“No
encontro foi um choro só. Paulo Roberto, como disse depois um amigo da família,
“veio chegando meio cabreiro, certo de que iria apanhar”. Mas a felicidade foi
tanta que a ninguém ocorreu a ideia de castigá-lo, ele que tinha escapado de
morrer afogado na escuridão do esgoto. Os bombeiros e o agente penitenciário
Paulo Vespúcio Cardias estavam firmes nos seus postos, junto ao Arroio Dilúvio,
quando chegou a boa nova: o menino, são e salvo, tinha voltado para casa por
seus próprios meios! A princípio ninguém queria acreditar e foi preciso que
todos vissem Paulo Roberto em carne e osso para crer.
“Depois, já mais calmo, Paulo Roberto, que se tornou o centro de todas
as atenções, contava os pormenores da “viagem” que durou bem uma hora e meia,
mas que para ele pareceu um século. Disse que, pensando no pai, na mãe e nos
irmãos, dominado pelo medo, às vezes enxergava a claridade dos bueiros, sob as
ruas por aonde ia passando. Mas, embora tentasse alcançá-los, não o conseguia.
E assim foi até o Riacho, em cujas águas foi atirado com violência. Depois foram os momentos terríveis que
passou, lutando para não morrer afogando, bebendo muita água. Paulo Roberto
conseguiu, com muito esforço, subir para a margem e correu até a ponte da
Azenha para iniciar a viagem de volta”.
Voltando para o elemento fogo: sem nenhum
óbito ou feridos, o novo edifício central da Caixa Econômica Federal, na avenida
Rio Branco, no Rio de Janeiro, ainda em fase de construção, com 31 andares, incendiou
na manhã de 16 de março, terça-feira. Cinco viaturas do Corpo de Bombeiros
acorreram ao local – cujo sinistro anterior, muito suspeito, deixara um
prejuízo de 170 milhões de cruzeiros e um vigilante morto dentro do elevador.
Desta vez os próprios operários sufocaram as chamas.
No sábado, 21 de março, em São Paulo, um
incêndio proposital destruiu a Galeria Antártica, no bairro do Bom Retiro. Durante
o socorro os bombeiros descobriram tocos de vela e cobertores e logo suspeitaram
que tudo se tratasse de uma grande armação. De fato, nos dias seguintes três donos
de uma loja de confecção, detidos pela polícia, confessaram a autoria: estavam em
dificuldades financeiras e tencionavam receber o valor do seguro, não
imaginando que as chamas se propagassem com tal voracidade e causassem tamanha
destruição - os três últimos andares do prédio simplesmente desmancharam.
Entrava o mês de abril e toda a zona
portuária da cidade de Paranaguá, no litoral do Paraná, por pouco não ia pelos
ares, livrando-se de uma grande tragédia na manhã de sexta-feira, 9, quando um
incêndio em um depósito da Esso matou duas pessoas e deixou outras 11 feridas.
Segundo os jornais, o terminal de inflamáveis, todo o bairro do Rocio e parte
da cidade portuária não foram pelos ares tão somente por milagre, já que o
reservatório de gasolina da empresa continha, naquele momento, apenas 60 mil
litros – se fosse alguns dias antes estaria lotado com quase nove milhões.
Em meados
de maio os bombeiros da capital gaúcha divulgaram estatísticas referentes ao
mês de abril, informando ter atendido o total de 196 ocorrências, das quais 74
eram incêndios.
O major Clóvis, mesmo reconhecendo a
expressividade dos números, assegurou que isso não era algo inédito e nem tão
surpreendente assim – segundo ele, grandes incêndios, como o da Renner,
habitualmente acontecem nos meses mais frios do ano, quando a população se
fecha em casa e tem mais dificuldades de perceber os focos de combustão, ao
contrário do verão, período em que estes se expandem e se fazem notar com mais
facilidade.
“O impressionante é que em um curto espaço
de tempo, de 27 ao dia 30, houve um grande número de incêndios, começando na Fernando
Machado, seguindo-se o Renner e outros”, declarou o oficial. “Só na
quinta-feira, 29, atendemos a uma meia dúzia de pedidos, e isto, em um só dia,
é muito”.
Quase dois meses depois do acontecido na
Renner os porto-alegrenses ainda estavam com os nervos à flor da pele neste
quesito, o que pode ser efetivamente comprovado na tarde do dia 10 de junho, quinta-feira,
quando grande parte dos moradores, transeuntes e trabalhadores da zona central
da cidade parou para acompanhar o trabalho de quase 100 bombeiros chamados para
atender uma ocorrência na esquina das ruas Doutor Flores - novamente ela - e
General Vitorino.
Lá, a parte baixa de um edifício de quinze
andares, onde se localizava o depósito de embalagens da rede de lojas Cambial,
pegara fogo e grossos rolos de fumaça evolavam da construção, o que atraiu uma
multidão quase tão numerosa como a que ocorreu na tarde de 27 de abril para ver
o incêndio das lojas Renner, constatou um repórter.
O fogo foi dominado e extinto em duas longas
horas de muito trabalho. Dois bombeiros acabaram intoxicados pela fumaça, mas ninguém
se queimou seriamente. Como sempre, a Brigada Militar teve dificuldades para
conter os curiosos. Muita gente abandonou seus escritórios e apartamentos,
temendo uma nova tragédia.
Outro grande sinistro – também só com
prejuízos materiais – aconteceria na estação férrea Diretor Pestana,
proximidades do aeroporto Salgado Filho, zona norte da Capital, no início da
tarde de segunda-feira, 21 de junho, quando uma locomotiva chocou contra um
vagão-tanque recém-chegado da refinaria Alberto Pasqualini. Devido ao choque,
as chamas rapidamente se alastraram para quatro vagões de transporte de óleo
diesel, destruindo um total de 120 mil litros e se elevando a mais de 50 metros
de altura. Parte da BR-116 teve que ser bloqueada.
Porém, na madrugada anterior, domingo, 20,
as labaredas não eram acidentais – pelo contrário, tinham endereço certo e
conhecido: o colégio Anne Frank (que completava dez anos de fundação), na avenida Cauduro, nas proximidades da Osvaldo Aranha e do parque da Redenção, foi
criminosamente incendiado, com várias salas destruídas, repetindo algo já tinha
ocorrido no início daquele mês. Em uma parede, encontrou-se a inscrição “Viva a
Alemanha, abaixo os Judeus”, levando a crer em um atentado antissemita.
Enquanto isso, a milhares de quilômetros de
Porto Alegre, funcionários e clientes da agência centro do Banco do Brasil, em
Fortaleza, levaram um tremendo susto no final da manhã de quinta-feira, 3 de
junho, horário em que um curto-circuito no sistema elétrico do elevador de
carga provocou um princípio de fogo. Houve muita fumaça, correria e pânico nos
17 andares do edifício, localizado na praça do Carmo, centro da capital
cearense. Três pessoas saíram feridas, incluindo uma que fraturou um dos pés ao
saltar de um lance de escada. Os bombeiros dominaram a situação em quarenta
minutos e constataram que o prédio – inaugurado havia dois meses – não dispunha
de escadas externas de emergência para fogo e as caixas dágua, destinadas prioritariamente
ao sistema de combate às chamas, estavam totalmente vazias.
Um
dia depois, na sexta-feira, foi a vez da sede da Rede Globo de Televisão, no bairro
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, ser parcialmente destruída pelas chamas. A
despeito de a emissora ter desenvolvido um sistema anti-incêndios particular,
nada disso funcionou minimamente e foram necessárias várias guarnições de bombeiros
cariocas para combater as chamas, só controladas no final do dia. O excesso de
material inflamável nos estúdios e, principalmente, o fato de o fogo não ter
sido combatido logo no início, explicavam a grande destruição de sofisticados produtos
eletrônicos e a irreparável perda de fitas de vídeos-tapes dos arquivos da
emissora.
Julho iniciou com outro susto na área
central de Porto Alegre: o edifício Formac, perto do cais do porto, teve todo o
seu sétimo andar queimado na madrugada do dia 6. Felizmente não houve feridos.
Também a rua Leopoldo de Freitas, no Passo da Areia, tornou a ser notícia
devido ao fogo que aconteceu exatamente no mesmo prédio (número 83) em que
patroa e doméstica se feriram no início de maio. Desta vez, porém, havia uma
vítima fatal, de apenas um ano e cinco meses de idade – o menino Fábio,
carbonizado no início da manhã de 10 de julho, sábado. Segundo testemunhas, o
bebê e um irmão seu, de dois anos, tinham sido deixados sozinhos pelos pais. Às 7h30min os vizinhos notaram a densa fumaça
que saía do local e arrombaram a porta. Eles ainda conseguiram salvar a criança
de dois anos, mas Fábio morreu na cama onde dormia. Os bombeiros aventaram a
possibilidade de o garoto mais velho ter riscado inadvertidamente um fósforo
próximo ao colchão.
No interior do Estado, em Camaquã, três
aviões agrícolas abrigados em um dos hangares do aeroclube daquele município foram
destruídos na noite de segunda-feira, 12. Os prejuízos foram totais, já que nem
o carro-pipa da Prefeitura, situada a cinco quilômetros de distância, pode
chegar a tempo – tampouco havia destacamento do Corpo de Bombeiros na cidade. Os três aparelhos, pertencentes às empresas
Sotriar e Jopani, eram usados para pulverizar com pesticidas as lavouras da
região. Devido ao mau tempo, nenhum deles havia decolado aquele dia.
Na quarta-feira da mesma semana, na rua
Portugal, zona norte de Porto Alegre, um violento incêndio destruiu a
vulcanizadora Metrópole. Segundo o major Clóvis, não fossem os problemas com os
hidrantes, que não funcionavam o sinistro poderia ser bem menor. No dia
seguinte, durante os trabalhos de rescaldo, os bombeiros encontraram, em uma
peça dos fundos, o corpo carbonizado de Marino Martins da Silva, funcionário do
almoxarifado. Ele foi morto pela explosão de um tonel de tíner.
Em julho outro grande susto voltou a evocar
a tragédia do Renner: na manhã de segunda-feira, 26, a uma quadra do edifício
sinistrado, mais exatamente na esquina da rua Otávio Rocha com a Senhor dos
Passos, um princípio de incêndio congestionou as ruas do centro e atraiu
centenas de curiosos que observavam a contínua fumaça que saía do prédio do grupo
Alfred. Quando os bombeiros chegaram a situação já estava sob controle graças à
pronta ação dos próprios empregados do hotel, dos colegas das lojas Alfred e de
moradores da vizinha galeria A Nação.
O fogo havia iniciado na cobertura plástica
do filtro de água que servia ao sistema de refrigeração do edifício. A causa não
poderia ter sido mais banal: alguns pingos candentes de solda caíram do
terraço, onde operários fixavam uma grade de proteção. Os mais de 70 hóspedes
do hotel não chegaram a ser retirados do local.
Prejuízos imensos tiveram os proprietários
de uma indústria de parque da cidade de Guaíba, em grande parte destruída pelas
chamas na madrugada de 6 de agosto, fato este que exigiu a intervenção dos
bombeiros de Porto Alegre, queimando, além de valiosas máquinas importadas,
mais de 100 mil metros quadrados de tacos prontos, metade dos quais seria
exportado para os Estados Unidos. O fogo começou no setor de colagem, logo depois
que os mais de 120 operários deixaram o trabalho no final da sexta-feira.
Segundo os diretores da Prepark, somente o laboratório, a oficina e locais da
administração foram salvos.
Na noite de 16 de agosto, segunda-feira, a
mesma fábrica de refrigerantes que havia incendiado e explodido naquele verão
voltou ao noticiário, novamente causando angústia entre os moradores do bairro
Menino Deus. Desta feita um vazamento de amoníaco no laboratório fez com que
muitas pessoas abandonassem suas casas e chamassem os bombeiros. O cheiro do
produto químico era tão forte que poderia ser sentido a quadras de distância. A
despeito do quase pânico geral, os próprios funcionários conseguiram resolver o
problema.
No dia 18 de agosto uma explosão na fábrica
da Olvebra, em Pelotas, deixou cinco trabalhadores feridos, três deles em
estado grave. Eles trabalhavam no setor de moagem, de madrugada, quando três
elevadores explodiram. Os bombeiros impediram que o incêndio se espalhasse aos
milhares de toneladas de óleo de soja ali depositadas.
A noite fria do último dia do mês, terça-feira,
foi de mais sustos para os porto-alegrenses: três empresas localizadas na avenida
Osvaldo Aranha, zona central da cidade, arderam em chamas, mobilizando mais de
50 bombeiros que pouco puderam fazer para evitar a destruição quase total da
pizzaria La Favorita, da imobiliária Schaffran e do café Bonfim. O fogo iniciou
em um dos fornos da pizzaria, onde sete ou oito pessoas jantavam, e se propagou
rapidamente pelos dois prédios vizinhos. Dez veículos, incluindo caminhões-tanque
e até uma escada Magirus, foram usados no combate às chamas que ameaçavam
alastrar-se para outros pontos da avenida – na rua Felipe Camarão, 715, por
força disso, as vidraças das janelas de um apartamento se partiram e as
cortinas chegaram a pegar fogo.
Mais uma vez os bombeiros perderam um
precioso tempo procurando inutilmente por hidrantes - no final foram obrigados
a retirar a água do chafariz central do parque da Redenção. Logo se verificou
que nenhuma das três firmas possuía qualquer equipamento anti-incêndio ou
sequer extintores. Tampouco havia seguro contra fatos dessa natureza – sintomaticamente
um dos proprietários da pizzaria, cidadão uruguaio, foi visto correndo para a
rua, abraçado à caixa-registradora. Os vizinhos disseram que no local
funcionava também uma malharia clandestina. Ninguém saiu ferido.
O tradicional restaurante Dona Maria, no centro, reabriu em setembro, depois de ter sido consumido pelo fogo. |
Menos de duas semanas depois, a 11 de
setembro, o frigorífico da Cooperativa Central Oeste Catarinense, em Chapecó,
foi quase totalmente destruído pelas labaredas que iniciaram na estufa
defumadora e só não consumiram todas as construções à volta graças à pronta
iniciativa dos empregados da empresa. Eles usaram habilmente de todos os
extintores disponíveis e ainda saíram à cata de outros, em firmas das
redondezas.
De menores proporções, porém imensamente
mais trágico, foi o que aconteceu para uma das 36 famílias de imigrantes
japoneses radicados no município de Ivoti, nas proximidades de Porto Alegre,
local da maior colônia nipônica do Estado.
Na terça-feira, 14 de setembro, Tadaiko
Osaki, de 43 anos, e sua mulher Yasue, podavam o parreiral da sua propriedade,
a quatro quilômetros da cidade, quando viram nuvens de fumaça saindo da casa
onde haviam deixado três filhos pequenos – Hideto, de quatro anos, Rie, de
três, e Cláudio, de 11 meses. Infelizmente nada mais foi possível fazer: eles
encontraram os pequenos já carbonizados entre os escombros da casa. O casal
tinha mais três outros filhos em idade escolar.
Chorando muito e amparado pelos vizinhos,
Tadaiko – havia 15 anos no Brasil – relatou a sua vida, espantosamente marcada
por muitos fatos comoventes e negativos. Três anos antes, um dos seus filhos,
também de três anos, morrera afogado na Barra do Ribeiro. Recentemente sua
filha de dois anos havia sofrido acidente, fraturando um dos braços – ela ainda
estava hospitalizada na capital. Como se não bastasse, no ano anterior a
família havia perdido quase toda a safra de uva devido ao excesso de defensivos
agrícolas aplicados no parreiral. Os Osaki foram consolados pelos vizinhos
brasileiros e pela própria comunidade nipônica, incluindo o cônsul do Japão em
Porto Alegre, que foi até lá oferecer ajuda oficial.
No dia 20 de setembro (que, em 1976, não
era feriado estadual), segunda-feira, o supermercado Porto-Alegrense, no centro
da cidade de Dom Pedrito, na região da Campanha, a 440 km da capital, foi
consumido pelas chamas que iniciaram com um curto-circuito no forno da padaria.
Os bombeiros mais próximos, da guarnição de Bagé, só chegaram a tempo de
efetuar o rescaldo.
Na madrugada seguinte, no município de Mata,
próximo a Santa Maria, dois dos três pavilhões de um engenho de arroz da firma
Paraboni e Filhos sofreram destino semelhante. Os bombeiros santa-marienses
foram chamados – alegando, porém, possuir apenas um carro para atender todas as
ocorrências regionais, deixaram que a tarefa fosse feita por populares e
funcionários da empresa.
Também um prédio desocupado da empresa
Samrig, na zona portuária de Pelotas, queimou no dia 29, exigindo mais de cinco
horas de esforços para ser debelado.
E, a 30 de setembro, os jornais de Porto
Alegre anunciavam uma boa notícia: o tradicional restaurante Dona Maria, ponto
de encontro de artistas, jornalistas e intelectuais, no centro da cidade,
reabriria suas portas no dia seguinte, sexta-feira. A casa, que incendiara
meses antes (destruindo também muitas máquinas fotográficas dos “lambe-lambes”
que, por cortesia do proprietário, Ernesto Moser, ali guardavam seu material de
trabalho), fora restaurada e voltava à ativa.
UM MILHÃO DE PERITOS EM PREVENÇÃO DE INCÊNDIOS,
DIZ SÉRGIO JOCKYMANN
Bem antes disso tudo, na sexta-feira, 30 de
abril, três dias depois da tragédia, o jornalista e intelectual Sérgio
Jockymann (46 anos de idade completos no dia anterior) escreveu em sua coluna
diária na Folha da Tarde: “Pois há três dias que Porto Alegre tem pelo menos um
milhão de peritos em prevenção de incêndio”.
Sérgio Jockymann, um dos mais importantes jornalistas e intelectuais gaúchos. |
Para Jockymann, “o milagroso, o
extraordinário, o espantoso é que essas calamidades só aconteçam de vez em
quando. O normal seria que tivéssemos uma tragédia por dia.”
No mesmo jornal a cronista Ivete Brandalise,
35 anos, cobrou das autoridades as prometidas e nunca aplicadas medidas de
segurança. Para ela, enquanto tragédias como aquela aconteciam a Prefeitura e a
Câmara continuam discutindo a conveniência ou não da obrigatoriedade de um
extintor de incêndio por andar: “E de que adiantaria um extintor de incêndio
ontem, nas Lojas Renner?”. Adiante, a colunista sublinhou: “Enquanto o Código
de Obras continuar ignorando o assunto e liberando projetos que não apresentam
nenhuma segurança em relação ao fogo, nós continuaremos expostos, sem qualquer
proteção, ao perigo eminente”.
Em
sua coluna de Zero Hora de sexta-feira, 30, o jornalista e político Jorge
Alberto Mendes Ribeiro, 46 anos, pedia explicações ao prefeito Villela: “Quero
saber, querem todos saber, pois todos nesta cidade somos candidatos a
personagens de outras tragédias: quando as leis serão cumpridas? Quando teremos
estação central? Quando teremos hidrantes? Quando os bombeiros terão mais do
que a coragem e a própria vida para combater as chamas?”
O conhecido humorista Carlos Nobre, 47 anos,
não perdeu o trocadilho para tecer um justificado humor negro: “As discussões
dos políticos para tomar medidas contra incêndios servem apenas para botar mais
lenha na fogueira”. Ao lado, alfinetou: “Sim as resoluções para evitar
tragédias nos incêndios por certo queimarão mais etapas. Agora a indiferença se
chama etapas”.
Carlos Nobre, talvez o mais popular humorista gaúcho dos anos setenta. |
Em Brasília, na quarta-feira, o senador
paraense Jarbas Passarinho, 56 anos, da Arena, subiu à tribuna para comentar o
episódio de Porto Alegre e pedir, em caráter de urgência, normas nacionais de
prevenção contra incêndios em edificações urbanas. Passarinho lembrou de uma
mensagem nesse sentido enviada pelo ex-presidente Emílio Médici logo após o
sinistro do Joelma e no entanto retirada de discussão no início do atual governo.
Na contramão de tudo isso o jornalista e
colunista político Adil Borges Fortes da Silva, 59 anos, o “Hilário Honório” da
Folha da Tarde, considerado por muitos como um reacionário, considerou o evento
algo “praticamente inevitável”, isentando a todos, e principalmente a empresa
Renner, de toda e qualquer culpa ou responsabilidade.
“Medidas contra incêndios? Por acaso os próprios estabelecimentos não os
tomam da melhor maneira possível? Por acaso tragédias como a de ontem e a de
dois anos e meio atrás (Lojas Americanas) não estão acontecendo em centros
muito mais adiantados?” (...)
“Por
que, então, acusar-se este ou aquele administrador, a falta desta ou daquela
medida? Lamentavelmente, são fatos praticamente inevitáveis, incêndios como
esses que abalaram toda a cidade”.
No Correio do Povo, a escritora Dinah
Silveira de Queiroz recordou, em uma de suas crônicas publicadas diariamente em
vários jornais do País, o inesquecível pavor que passara, anos antes, durante
um princípio de incêndio no prédio onde havia morado, no Rio, relacionando tal
experiência às repetidas cenas do edifício Renner vistas pela tevê em todo o
País: “Hoje vivi, entregue ao
inconsciente, o pesadelo do fogo, sugerido decerto por aquelas terríveis
notícias de Porto Alegre, ainda não esquecidas; as minúcias terríficas daquele
braço queimado visto contra a janela do sexto andar; as rádios da cidade
noticiando que as Lojas Renner haviam pegado fogo. Visualizava o antigo jogador
do Grêmio (sic) correndo a apanhar sua irmã que morria em
seus braços, antes de chegar ao hospital; e aquela moça Lazir que, quando se
contavam os vinte e três mortos, principiou a chorar recordando a cara
gordalhona do chefe do restaurante. Enfim, no grande mar da tragédia, os casos
isolados”.
Também no CP, mais técnico e contundente, Sérgio da Costa
Franco (“Morte por Atacado”) criticava os direitos privados e imediatistas que
construíam “ratoeiras”: (...) “Se vamos
erguer um prédio para lojas, escritórios ou residências, desejamos edificá-lo
pelo menor custo, para que nos dê um rendimento maiúsculo. Tudo o que nos
pedirem a título de defesa coletiva nos parecerá insuportável exigência, que
onera os custos, eleva os preços, minora os lucros. Se o poder municipal reduz
o gabarito de altura, isso nos parece atentado aos direitos do proprietário. Se
nos exige mais áreas de circulação, escadas de incêndio ou outros dispositivos
de segurança, estrilamos com veemência. E logo arranjamos algum técnico que
deite entrevistas para garantir que escadas de incêndio estão superadas. Sem
oferecer qualquer alternativa de solução. Assim somos nós – os tranquilos donos
da urbe. E o nosso interesse privado e imediatista vem prevalecendo sempre. De
modo que continuamos a construir ratoeiras onde aprisionamos o povo. E fornos
para cremá-los”.
Passado um mês os jornais observariam uma visível metamorfose
psicológica que acometida a população da Capital. Nesse período a mera menção
da palavra “fogo” bastava para fazer estrilar os telefones do Corpo de
Bombeiros.
“É a psicose dominando o povo. Se há fumaça já
parece incêndio”, afirmou o Diário de Notícias. “E assim se alimenta a psicose
coletiva. Há gente que dorme sobressaltada, há gente que permanece alta
madrugada, olhos acesos, com o ouvido preso ao distante lamento de uma sirena
qualquer”, emendou a Folha da Tarde, vendo o surgimento de “uma fase de
incêndios” que precisava ter fim: “Toda e qualquer saída dos bombeiros passou a
merecer registro dos jornais e rádios. Em suma, passou a ser notícia”.
A população, antes quase indiferente ao
perigo, via agora um Andraus, um Joelma, uma Americanas e um Renner em cada
prédio. Pessoas evitavam tomar elevadores, síndicos faziam reuniões
extraordinárias para discutir medidas de segurança, instalações elétricas eram
vistoriadas de cabo a rabo, fumantes eram estigmatizados como incendiários em
potencial e corretores de seguros – mais desembaraçados e seguros do que nunca
– festejavam a boa fase em seus negócios. Vivia-se a era de Mercúrio.
Mercuriais e igualmente candentes eram os
debates e as cobranças. Todos concordavam em um ponto: a tragédia poderia ser
evitada, embora ninguém assumisse a culpa e dela, na realidade, todos saíssem
chamuscados.
“Aproximadamente 50% dos prédios de Porto
Alegre poderão oferecer cenas tão ou mais dramáticas que as da Renner”,
declarou o técnico Cláudio Alberto Hanssen, integrante da Comissão de Estudos e
Prevenção de Incêndio da Prefeitura. Já o secretário municipal de Obras e
Viação, engenheiro Jorge Englert, afirmou que “janelas não são fundamentais” em
casos de incêndio e enumerou algumas vantagens dos edifícios “gaiolas”:
economia de ar condicionado e, em caso de fogo, o seu abafamento, pois “não há
alimentação de oxigênio: “O importante são as saídas especiais e isoladas”. Mas
ressaltou: no caso de o proprietário recusar-se a cumprir a lei a Prefeitura
não teria como obrigá-lo a isso.
Englert, sobretudo, dizia defender a
capacitação do pessoal que trabalha em edifícios: “Não tenho dúvidas de que os
primeiros cinco, dez minutos de um incêndio são fundamentais. Se, num edifício
de médio ou grande porte, o pessoal que nele vive ou trabalha estiver treinado,
sempre se poderá evitar tragédias”.
Já o presidente do Sindicato da Indústria da
Construção Civil no Rio Grande do Sul, Mário José Maestri, concordou com
a exigência de normas mais rígidas, “mas não levadas a extremos”. Segundo autoridades,
cerca de 70% dos prédios da capital gaúcha sequer contavam com um simples
extintor de incêndio.
Capital que detinha, ela própria, a solução
tecnológica plenamente disponível para dar fim à carência crônica de
equipamentos dos bombeiros, assegurou o diretor administrativo da indústria de
equipamentos de prevenção de incêndios Kidde Sul, Rui Pinheiro. Dois dias após
o sinistro da Renner, ouvido pela Folha da Tarde (matéria paga, talvez, mas que
não diminui sua importância informativa), o executivo informou que “todo o
equipamento necessário para que um carro de bombeiros fosse bem aparelhado para
o seu serviço já existe em Porto Alegre e é fabricado pela Kidde Sul. Os
recursos tão invejados dos bombeiros europeus e norte-americanos podem ser
adquiridos aqui e, no entanto, nada é utilizado. É claro que o preço não é dos
mais acessíveis. Mas enquanto o governo dá verbas para obras e outros serviços
importantes, um maior interesse pela prevenção de incêndios deveria haver”.
Segundo explicou Pinheiro, sua empresa
produzia sistemas de combate ao fogo por hidrantes, gás carbônico, sprinklers, spray,
halon, espuma, sem contar detectores, alarmas e extintores. Até mesmo produtos
mais sofisticados, como uma substância química (sem cheiro e sem produzir
manchas) que, impregnando panos e tapete, impedia a propagação das chamas, e um
engate de metal em forma de S preso a uma corda, que possibilitaria a qualquer
pessoa descer suavemente de qualquer altura, tudo isso estava disponível no
mercado local naquele momento.
Existiam, de fato, tais métodos e
equipamentos, todavia não havia interesse em adquiri-los por uma questão de
mentalidade, entendia o diretor: “Incêndios de grandes proporções, como o que
aconteceu terça-feira nas Lojas Renner poderiam ser evitados se fosse
modificada a mentalidade dos empresários gaúchos, que só pensam em fazer
investimentos com retorno imediato. Como a prevenção de incêndio é algo em que
se investe na probabilidade e não na certeza, eles se recusam a investir
dinheiro”.
E prosseguia: o problema básico começava
mesmo é nos órgãos governamentais: “A comissão da Prefeitura que estuda a
prevenção de incêndios é formada por pessoas que não conhecem muito a fundo o
assunto. Somente o engenheiro Cláudio Hanssen, que é meu concorrente e fez
parte desse grupo de estudos, entende disso. Eu apoio o trabalho deles, claro,
mas não adiante exigirem equipamentos de alto custo, pois o poder aquisitivo de
nossa gente é baixo. A portaria tem que conscientizar para um meio de prevenção
e não para um meio comercial. Nossos empresários, principalmente, não se
preocupam com a segurança de seus estabelecimentos. Continuam sendo construídos
prédios comerciais sem a mínima segurança. O que matou muita gente na Renner
foi o fato de não existirem saídas suficientes para desafogar o interior. E o
problema das grades nas janelas pode ser notado em grande parte das lojas da
zona central. Há lojas que possuem vários andares, sem nenhuma janela ou
abertura. Um seguro custa barato, mas para a morte e não a vida. Nosso serviço
custa caro e garante a vida. Acho que é melhor uma empresa gastar um milhão de
cruzeiros na instalação de um equipamento de prevenção do que terminar perdendo
tudo. E o pior não é isto. Quando ocorre um incêndio a morte de funcionários
gera um problema social imenso. Quanto tempo os parentes das vítimas da Renner
terão que esperar para receber alguma coisa? Muitos empresários se recusam a
gastar com prevenção e terminam não conseguindo dormir, de consciência pesada,
quando acontece o inesperado”.
A IMPRENSA E O PODER DA RENNER, SÍMBOLO
EMPRESARIAL DO RIO GRANDE
A imprensa porto-alegrense, por sua vez, mesmo
concordando no essencial, variava no tom e no enfoque a respeito da tragédia do
edifício Renner e dos seus desdobramentos gerais. Enquanto o Correio do Povo
enfatizava o “esquema perfeito” de socorro e atendimento às vítimas, a Folha da
Manhã (diário da Caldas Júnior, mais arejado e combativo) ressaltou que, no dia
da tragédia, “a cidade, de um modo geral, não funcionou”.
No item prevenção, a rigor, os principais
órgãos evitaram críticas diretas – ou mesmo indiretas - à direção das lojas
Renner, algo explicável pelo grande volume de anúncios que a empresa, um dos
orgulhos empresariais do Rio Grande do Sul, carreava para seus departamentos
comerciais: havia tempo, a Renner comprava espaços de páginas inteiras dos
jornais e também patrocinava programas de rádio e televisão, entre eles o
Correspondente Renner, na Rádio Guaíba, espécie de Repórter Esso do rádio
gaúcho. Conceituando cada vez mais a própria marca, o grupo investia em prestigiosos
eventos, incluindo o badalado Rainha das Piscinas, o qual reunia representantes
dos mais conhecidos clubes sociais do Rio Grande do Sul: naquele ano, por
exemplo, haveria um grande show da cantora Clara Nunes (ela vivia o seu auge
como cantora) no ginásio Gigantinho, do Sport Clube Internacional.
A bem da verdade, o descaso dessa empresa
com a questão da prevenção a incêndios nada tinha de particular e sim, a rigor,
representava todo o contexto da época: literalmente, o que aconteceu na rua
Doutor Flores na tarde de 27 de abril bem poderia acontecer a qualquer outro
edifício empresarial, público ou residencial de Porto Alegre, do Estado e do
Brasil naquele ano de 1976.
O
grupo Renner – um símbolo de operosidade e da solidez empresarial gaúcha -
nasceu em janeiro de 1912, quando Antônio Jacob Renner, neto de imigrantes
alemães, fundou uma modesta indústria de fiação e tecelagem na cidade de São
Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da Capital.
Nascido
a 7 de maio de 1884 na localidade de Feliz (então distrito de Caí), Antônio
criou-se em Montenegro, para onde seus pais se mudaram quando ele tinha apenas
dois anos. Aos 14 veio para Porto Alegre, empregando-se como aprendiz de
ourives na Joalheria Föernges. Aos 19 anos voltou para São Sebastião do Caí,
onde se casou com a filha do mais rico comerciante do lugar, abrindo uma ourivesaria
e depois associando-se ao próprio sogro. Em 1911 fundou uma pequena tecelagem –
o início do império empresarial.
A
princípio a empresa destacou-se pelo pioneirismo na fabricação de capas de
chuva impermeáveis (que o próprio A.J. Renner experimentou e desenvolveu depois
de trabalhar como caixeiro-viajante), as quais, por sua qualidade e resistência
(não deixavam passar a água da chuva), se tornaram famosas em todo o Estado e
substituíram os “ponchos peruanos” dos tradicionais gaúchos campeiros. Lançada
em 1913, nascia a famosa e prática capa Ideal, na cor cinza, um imediato e
duradouro sucesso de vendas. Em 1914 a indústria chegou a Porto Alegre. Vinte
anos depois a Renner estava produzindo roupas, comercializadas em mais de cinco
mil pontos de venda em todo o Brasil, além de calçados de couro, máquinas de
costura, resinas e tintas para construções.
No
final da década de trinta, a organização, com mais de dois mil funcionários, já
era uma das principais empregadoras do Estado e, mais tarde, nome de um clube
de futebol, o Grêmio Esportivo Renner, bancado e ligado à empresa, campeão citadino
e gaúcho de 1954. No início dos anos setenta as Lojas Renner conquistavam o
primeiro lugar entre as redes de magazines do Estado, investindo pesadamente em
anúncios publicitários. Ao falecer, em 27 de dezembro de 1966, aos 82 anos, Antônio
Jacob Renner, o “patrono da indústria gaúcha”, foi alvo de homenagens e artigos
elogiosos na imprensa, da qual, por sinal, era ativo colaborador. Era
considerado um industrial progressista e preocupado com a assistência e o bem-estar
de seus empregados.
FALTA
QUASE TUDO EM TODA A PARTE, A CONSTATAÇÃO DAS SUCURSAIS
Em abril de 1976 havia seis diários em Porto
Alegre, pertencentes a diferentes grupos econômicos – de alguma forma competindo
entre si: Correio do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde (Caldas Júnior);
Zero Hora (RBS); Diário de Notícias (que fecharia em 1979) e Jornal do
Comércio.
Já no dia posterior à tragédia todos os correspondentes
dos principais jornais, nos mais variados recantos, foram mobilizados para
checar as condições de segurança contra o fogo nas maiores cidades do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina. De Pelotas, Caxias do Sul, Santa Maria, Rio
Grande, Passo Fundo, Novo Hamburgo, Lages, Florianópolis – emergiam as mesmas
constatações: em todos os casos, sem exceção, o que acontecera em Porto Alegre
apenas mudaria de nome e endereço.
Em Caxias do Sul só existiam 21 hidrantes
para uma população de 180 mil habitantes e mais de uma centena de edifícios –
quando a necessidade era de dois para cada quadra. Pesquisa anterior feita por
uma emissora de rádio local descobriu que apenas dois em cada quinze caxienses
sabiam utilizar um extintor, o que talvez explicasse a ocorrência de mais de
cem incêndios na cidade durante o ano de 1975, período em que o Quinto
Grupamento de Incêndios local somava um efetivo de pouco mais de 40 homens.
Segundo reclamava o seu comandante, major Luiz Carlos Casales, “os arranha-céus
de Caxias são verdadeiras armadilhas”.
Dois meses mais tarde, ao término de um levantamento
feito pelo Grupamento e por técnicos da prefeitura, em colaboração com
entidades empresariais, constatou-se a necessidade de 865 hidrantes em toda a
cidade. Os empresários, por seu lado, “estudavam meios” de angariar recursos.
Em meio a tantas carências caxienses, pontificava
uma solitária exceção urbana: com seus 17 andares, a recém-inaugurada agência
do Banco do Brasil da “Pérola das Colônias” dispunha de um moderno sistema anti-incêndios
- duas saídas de emergência, paredes externas feitas de concreto em vez de
tijolos, paredes internas sem a presença de material inflamável ou combustível,
amplas janelas de vidro e alumínio e um moderno mecanismo de evacuação estilo
tobogã. Podia-se assim soltar um tubo de lona desde o alto até o chão -
escorregando nele, desceriam as pessoas. Dois elevadores – ou “jaús” – presos
em trilhos nas paredes externas e capazes de parar em qualquer ponto do prédio
serviriam igualmente como opções de fuga – se para tanto houvesse o
indispensável treinamento humano, é claro.
Já na histórica Pelotas, cidade com 200 mil
habitantes e muitos casarões antigos, as escadas e os estreitos corredores combinavam-se
com o total despreparo da população para tais situações de emergência. A única
escada Magirus atingia somente o sétimo andar das edificações, nenhuma das
viaturas dos bombeiros dispunha de rádio e os cerca de cem enferrujados
hidrantes citadinos não eram nem um pouco confiáveis. No bairro Cohab - onde
viviam mais de 1500 famílias em cerca de 400 prédios de quatro andares - não
era possível sequer estacionar um caminhão entre as construções.
Os bombeiros aproveitaram a curiosidade providencial
dos repórteres para lembrar o grande incêndio acontecido em 1970 no mercado
central - com apenas duas viaturas, eles pouco puderam fazer. Mais tarde, com os casos do Andraus e do
Joelma, as discussões voltaram à tona e políticos, empresários e lideranças
locais prometeram mais e melhores equipamentos para a corporação. Como sempre, só
prometeram.
Em Santa Maria, também uma das principais e
mais estratégicas cidades gaúchas, o efetivo de setenta bombeiros deveria
atender todos os demais municípios da região, entre eles São Sepé, Júlio de
Castilhos, Tupanciretã, São Pedro do Sul e Jaguari. A maior escada mecânica
atingia tão somente nove metros e meio e faltavam materiais elementares no combate
ao fogo como utensílios para arrombamentos de portas e janelas, e escadas leves.
As leis municipais tampouco ajudavam: o plano diretor, datado de 1969, nada
exigia dos responsáveis por construções no tocante à prevenção.
Em reunião com lideranças da Associação
Comercial e Industrial, no dia 7 de maio, o comandante da corporação
santa-mariense foi incisivo ao afirmar que “existe irresponsabilidade quase que
total da comunidade quando se trata de prevenir incêndios”. E informou: em diversas
garagens da cidade existiam bombas de gasolina e grandes depósitos de
combustíveis que poderiam ocasionar tragédias.
No mês de junho de 1975 o mesmo jornal
havia feito uma série de matérias abordando as precárias condições dos
bombeiros daquele município. E tinham motivos de sobra, já que a municipalidade
cobrava de todos os cidadãos santa-marienses uma taxa anual expressamente destinada
à compra de materiais para a corporação. Mas, apesar da expressiva arrecadação,
esta última nada recebera – nem mesmo as prometidas máscaras contra gases.
E assim era em outras regiões gaúchas. No
Vale do Rio Taquari havia apenas um carro-pipa, nenhuma escada Magirus e um
efetivo de 19 bombeiros sediados na cidade de Estrela, para atender 13
municípios, o que incluía a vizinha Lajeado e a distante Arvorezinha, a mais de
100 quilômetros. Ouvido pela reportagem, o sargento Adão Xavier lamentou ainda
a inexistência de hidrantes em quase todas estas comunidades. E lembrou que por
ocasião de um grande incêndio ocorrido na região em 1974 foi necessário pedir
socorro aos colegas de Santa Cruz do Sul, Novo Hamburgo e até mesmo de Porto
Alegre. Quando estes finalmente chegaram, uma fábrica de rações, uma fábrica de
óleo e as instalações de uma cooperativa já tinham virado pó.
Não muito distante dali, na cidade de Cachoeira
do Sul, a “capital do arroz”, os bombeiros locais dispunham de três veículos
para o combate ao fogo, cada um com capacidade para três mil litros de água. Com
11 edifícios, todos de até cinco andares (uma lei municipal proibia a
construção de prédios mais altos), nenhum destes contava com sistema de
prevenção. A guarnição local recebia uma pequena verba anual da Prefeitura para
a sua manutenção, 40 mil cruzeiros – dinheiro este gasto quase todo com combustível
e material de uso diário.
Folha da Manhã |
Em São Gabriel, a “terra dos marechais”, a
situação, no dizer da imprensa, lembrava certas sequências de comédias tipo
pastelão do cinema mudo: o último incêndio na cidade, no final do ano anterior,
fora debelado com baldes de água. Ao chegarem ao local, os “bombeiros” (somente
um sargento da brigada tinha curso especializado no combate ao fogo)
descobriram que os extintores estavam todos vazios. “No caso de um incêndio no
quinto andar de algum prédio a única coisa que podemos fazer é isolar o local e
deixar queimar”, queixou-se o sargento Euvídio Balconi.
Em Uruguaiana a lei municipal que previa
escadas de incêndio para prédios com mais de 15 metros “só existe no papel”,
denunciou o vereador Lafayette Isidro de Lima, exigindo do executivo que ela
fosse imediatamente aplicada “ou então revogada de vez”.
Maior município em extensão do Estado,
Alegrete, na fronteira oeste, a 500 quilômetros de Porto Alegre, não contava
sequer com um caminhão-tanque: o corpo de bombeiros local, criado em 1968,
tinha, a bem dizer, mera função decorativa. O único velho veículo Ford fora
aposentado, pois o tanque de água estava furado e totalmente corroído pela ferrugem.
“Quando ocorria um incêndio, o caminhão já chegava ao local com o tanque pela
metade”, descreveu um soldado.
Situação muito parecida vivia a comunidade de
Santa Rosa onde os seis bombeiros dispunham de apenas um velho carro – veículo,
aliás, cujo motor havia sido fundido. Em casos mais graves eles precisavam
pedir auxílio aos seus colegas de Santo Ângelo.
Rezar muito. Este foi o desabafo do
comandante da guarnição dos bombeiros de Cruz Alta. João da Silva Dorneles chefiava um efetivo de
menos de vinte homens que não contavam com escadas Magirus e sofriam a falta de
máscaras contra a fumaça e demais equipamentos de salvamento.
IJUÍ, RARO EXEMPLO DE PREOCUPAÇÃO,
TREINAMENTO E PREVENÇÃO
Pertinho dali, em Ijuí, o reaparelhamento da
corporação havia sido criteriosamente discutido no final de janeiro, três meses
antes da tragédia da Renner, quando o legislativo local criou uma comissão
específica para estudar o assunto e sugerir medidas “para que os bombeiros
possam prestar melhores serviços à comunidade”. Ao término de longos debates os
vereadores recomendaram que fosse instalada uma oficina a fim de que os
próprios soldados, alguns deles mecânicos, pudessem fazer a manutenção das
viaturas. Pediram ainda que fosse substituído com urgência o mais antigo carro
em atividade, de 1954. A par disso consideravam que os prósperos municípios vizinhos
de Catuípe, Augusto Pestana e Ajuricaba, atendidos pelos bombeiros da “Colmeia
do Trabalho”, bem poderiam abrir os cofres em favor de algo que lhes
beneficiava diretamente.
O Alto e o Médio Uruguai, nos fundões do Rio
Grande, viviam situação curiosa: havia um carro-bomba na cidade de Frederico
Westphalen, porém não havia uma única guarnição de bombeiros ou alguém
especializado no combate ao fogo nos dez municípios da região. Adquirido em
1974, graças a recursos captados junto à própria comunidade, o veículo
permanecia parado, à espera de uma resposta do governo estadual. Nesse período
ocorreram vários sinistros, entre eles o de uma indústria de óleos vegetais.
Via de regra, não havia surpresas quanto à
precariedade técnica e operacional das corporações. Em nenhum – absolutamente
nenhum – município gaúcho eram oferecidas aos bombeiros condições sequer
razoáveis. O engenheiro Cláudio Hanssen, veterana autoridade no assunto e sempre
ouvido nestas horas, lembrou que o próprio equipamento dos soldados da Capital,
em conjunto, revelava-se defasado em pelo menos duas décadas – as duas únicas Magirus,
por exemplo, remontavam ao distante ano de 1957.
Membro da Comissão de Estudos e Prevenção
de Incêndios da Prefeitura e professor do curso de aperfeiçoamento de oficiais
do Corpo de Bombeiros, além de empresário do ramo, Hanssen ressaltou que muita
coisa nova havia surgido ao longo dos últimos anos, tal como roupas
aluminizadas e dotadas de equipamentos de respiração que permitiam aos
bombeiros penetrar sem maiores perigos junto ao fogo mais intenso. Segundo ele,
as autoridades porto-alegrenses não só se mostraram despreocupadas com o
reaparelhamento da corporação como sequer repunham peças danificadas ou
vencidas ao longo do tempo. No caso da Renner, os bombeiros tiveram que pedir
emprestadas até máscaras de oxigênio e lidaram com a carência de hidrantes na
zona central da cidade. Hanssen pedia ainda uma legislação “rígida e incisiva”.
Na
real, nem mesmo a Câmara de Porto Alegre ou a Assembleia Legislativa do Estado,
esta com 12 andares, mostravam-se de acordo com os padrões de segurança – caso
fossem assolados pelo fogo, previa-se que os políticos, funcionários e
visitantes teriam, talvez, destinos semelhantes aos das vítimas da Renner. Os
21 vereadores porto-alegrenses – que, naquele momento, pediam ao prefeito que
interditasse os prédios municipais sem segurança, como estava se fazendo em São
Paulo depois do Joelma – logo descobriram que o seu próprio ambiente de
trabalho era uma “ratoeira”. Funcionando então em três andares situados no
grande edifício da chamada “prefeitura nova”, na rua José Montaury, (as obras
da atual sede da Câmara, na avenida Loureiro da Silva, só seriam iniciadas no
final do ano), seu sistema elétrico estava inteiramente sobrecarregado e havia
sempre o iminente risco de um curto-circuito. Nem sequer o ar condicionado
central poderia ser ligado e inexistia qualquer saída de emergência ou o mais
elementar plano de fuga.
A propósito disso, o presidente da casa,
José César de Mesquita, informava que muitos vereadores, assustados com as
cenas da Renner, estavam agora pedindo a mudanças de seus gabinetes para o
primeiro e segundo andares. No prédio todo, com seus quatro elevadores, trabalhavam
cerca de 600 pessoas, incluindo os edis Antônio Magadan e Rafael dos Santos: curiosamente,
na sessão de segunda-feira, 3 de maio, os dois arenistas usaram a tribuna para
destacar o luto que atingia toda a cidade e também enfatizar “não haver culpado
ou culpados na questão”.
De um modo geral assim era o Brasil naqueles
anos setenta. Sob o título “Trágica ratoeira humana”, a revista Veja que
circulou no dia 5 de maio tentava, sem êxito, encontrar uma exceção à regra
geral na mentalidade de descaso para com a segurança contra o fogo. São Paulo,
Belo Horizonte, Recife, Salvador, Rio de Janeiro – na prática o Brasil pouco aprendera
com as repetidas tragédias e os habitantes dos grandes e médios centros estavam
entregues às mãos do Destino.
Em Belo Horizonte, já então a terceira
maior cidade do País, não havia um código de posturas que tratasse da prevenção
e os maiores edifícios não contavam – além dos prosaicos extintores – com
nenhum equipamento de segurança. O conjunto residencial Juscelino Kubitscheck,
com 34 andares, por exemplo, já havia sido condenado pelo corpo de bombeiros no
ano anterior – mesmo assim rigorosamente nada foi feito. Salvador, com seus muitos
casarões seculares, dispunha apenas de um código generalizado no referente a
tal tipo de prevenção e bombeiros desaparelhados. Questionado a respeito, o
comandante local afirmou “não garantir o êxito” no caso de um mais exaustivo
combate às chamas.
Não só na capital baiana como em outra nenhuma
cidade do Brasil qualquer incêndio surgido no sétimo ou oitavo andares poderia
ser debelado com eficiência e rapidez, garantiu ele, lembrando a necessidade da
instalação obrigatória dos pequenos chuveiros acionados automaticamente quando
aumenta a temperatura ambiente, tipo “splint”.
Em outras capitais, mais pobres e
esquecidas, a situação conseguia ser ainda pior: “Em Teresina, por exemplo, a precariedade da corporação chegou a
provocar episódios ridículos, como no início do ano passado, quando uma turma
de salvamento foi estrondosamente vaiada ao descer de um táxi e sem levar
qualquer instrumento ou ferramenta capaz de apagar o fogo que destruía uma
simples residência, no centro da cidade. “O Corpo de Bombeiros aqui não
existe”, afirmou o comandante da Polícia Militar”, relatou Veja.
EM
SANTA CATARINA SÓ DEZ MUNICÍPIOS TINHAM CORPO DE BOMBEIROS
Nem se precisaria ir tão longe. A sucursal
da Companhia Jornalística Caldas Júnior em Santa Catarina informou o que acontecia
naquele Estado: dos 197 municípios, apenas dez contavam com corpo de bombeiros
e só havia uma escada Magirus em todo o território barriga-verde.
“Para uma população superior a três milhões de habitantes, o Estado
conta com apenas 600 homens, contingente total das unidades de corpo de
bombeiros. E, dos 197 municípios, apenas 10 contam com estações de corpo de
bombeiros, e mesmo assim impedidos de executarem suas tarefas pela ausência
absoluta de meios de ação.
“Santa
Catarina tem municípios com edifícios de até 16 andares, muito embora a maioria
tenha estabelecido o gabarito oficial de 12 pavimentos. O atendimento em casos
de incêndios será procedido sempre com limitações. Os catarinenses dispõem de
apenas uma escada Magirus, que atinge a altura de apenas 30 metros, e que
estaria em condições de possibilitar atuação dos bombeiros apenas até o oitavo
andar dos prédios maiores.
“Em Joinville, onde sobrevive uma das três
últimas unidades de bombeiros voluntários, o prédio mais alto tem 12 andares e
uma ultrapassada escada manual de 10 metros representa o único meio de ação.
“No Balneário Camboriú, com dezenas de
construções modernas e vários arranha-céus localizados na Avenida Atlântica,
uma população flutuante superior a 150 mil pessoas, na temporada de verão, não
existe uma unidade de corpo de bombeiros. Uma emergência naquele importante
centro de concentração de veranistas e turistas somente poderia ser atendida
pelo corpo de bombeiros de Florianópolis. A estação mais próxima, situada em
Itajaí, igualmente considera-se inabilitada para o trabalho de combate a
incêndios.
“Em
todos os municípios de Santa Catarina, somente em Florianópolis constrói-se um
edifício – o CECONTUR – que previu um heliporto. Todos os demais encontram-se
em total carência para evacuação de moradores em ocorrências graves de
incêndios.
“Nas
cidades importantes, como Florianópolis, Blumenau, Joinville, Lages, Itajaí,
Rio do Sul, Chapecó, Joaçaba, Tubarão e Criciúma, não existem um só edifício
com escadas externas de segurança” (...)
“Contando
com 600 homens, no efetivo total, o Corpo de Bombeiros de Santa Catarina está
presente em somente dez municípios dos 197: Florianópolis, Tubarão, Criciúma,
Itajaí, Lages, Chapecó, Mafra, Rio do Sul, Blumenau e Porto União”.
O próprio comandante geral da corporação,
coronel Alvair Nunes da Silva, reconhecia: na grande maioria dos
estabelecimentos comerciais e industriais, os extintores, quando existiam,
estavam em locais impróprios ou mesmo escondidos, sem contar o fato de que poucas
pessoas sabiam de fato manuseá-los: “E em muitos órgãos públicos e também
privados os extintores estão simplesmente descarregados”.
Também a falta de hidrantes tolhia
terrivelmente o trabalho dos bombeiros da própria capital catarinense, como se
comprovaria a 12 de novembro daquele ano, dia em que o depósito de mercadorias
da empresa João Moritz, no centro de Florianópolis, não pode ser salvo da
destruição total por falta de água para as mangueiras. Sem escada Magirus, auxiliados
até pelos Fuzileiros Navais, os bombeiros tiveram que buscar o líquido em local
distante, em sucessivas viagens de caminhão. Todo o estoque de produtos para as
festas de final de ano armazenado na empresa foi dado como perdido.
Em setembro, quando a guarnição completava
50 anos de existência, o mesmo comandante reclamou pelo fato de não ter
recebido, até aquele momento, qualquer das melhorias prometidas em abril, por
ocasião da comoção nacional decorrente da tragédia do edifício Renner. Com
certa ironia, ele atribuía à intercessão de Santa Catarina, padroeira do
Estado, o fato de nunca haver se registrado na ilha um incêndio sequer semelhante
ao ocorrido em Porto Alegre. “Parece que nossa padroeira protege muito bem a
nossa ilha, pois se ocorrer um incêndio de grandes proporções não vai ser nada
fácil dominá-lo”.
Outro exemplo negativo vinha de Joaçaba, estratégico
polo do meio oeste catarinense, a 370 km de Florianópolis e cuja economia
iniciara com a exploração da madeira. Lá se dispunha de apenas um carro-pipa e algumas
míseras escadas que mal davam para alcançar o segundo andar. Nem os soldados
haviam recebido o treinamento específico para combater o fogo, nem havia
condições materiais para atender outros municípios da região. Embora a cidade
já tivesse edifícios com mais de dez andares, tampouco havia qualquer
legislação municipal específica para regular a prevenção.
Com 110 mil habitantes, Blumenau, polo
têxtil e turístico situado no vale do Itajaí, estava “cheia de ratoeiras
humanas”, conforme afirmou um vereador local, lembrando que, dos 15 prédios com
mais de sete andares localizados na zona central da cidade, nenhum contava com
sistema de segurança ou prevenção contra incêndio. Já os cerca de 50 homens do
Corpo de Bombeiros local dispunham de dois obsoletos carros-bomba e nenhuma
escada Magirus.
PREVENÇÃO, ‘PROBLEMA DE SEGURANÇA NACIONAL’
A falta de treinamento geral diante dos
perigos do fogo, a retórica vazia das autoridades e a ganância de muitos outros
foram lembradas por um bombeiro aposentado, morador de Santa Maria, em um ponderado
desabafo publicado no Correio do Povo, O Incêndio Não Deve se Repetir.
Com autoridade técnica, Jones Santellano, então
vereador santa-mariense e ex-comandante dos bombeiros em Passo Fundo, falava em
“calamidade pública”, considerava o assunto de “segurança nacional, no seu
sentido universal”, e mostrava-se preocupado com a venda indiscriminada de
produtos por parte de comerciantes e industriais oportunistas e inescrupulosos.
A par disto lamentava a leviandade e desconsideração com que, de costume, eram
tratados estudos e parecerem técnicos.
“Está na pauta o assunto fogo. Até quando, desta vez? Não sei, mas pelo
menos a imprensa está colaborando, esclarecendo. Ainda que às vezes não
adiante, como no caso da Borregaard. Nunca se viu tanto papel e tinta gastos...
Afinal, conseguimos alguma coisa, pelo menos: o cheiro agora é
nacionalizado...
“Há
os que esperam faturar grosso, vendendo indiscriminadamente material contra
incêndio, agora em alta cotação na bolsa... Devemos moderar sua ganância, só
comprando o necessário e que for realmente aconselhado por um técnico, de
preferência honesto, da nossa gloriosa corporação de bombeiros, que possui uma
seção técnica especializada no assunto e não aconselha além do necessário, pois
não vende nem fatura as desgraças.
(...) “Não adianta material de incêndio sofisticado se não tiver uma
pessoa treinada, especializada, para usá-lo no momento preciso. (...) Nenhuma prevenção alcançará seu objetivo se
não houver treino, um plano simples de fuga (em caso de bloqueio das saídas
principais).
No final do texto o bombeiro Jones sugere ações educativas
e continuadas no tocante à prevenção, lembrando que a imprensa, de um modo
geral tão crítica nestas horas dramáticas, também se omitia a respeito, uma vez
que - destacando grandes sinistros como o da Renner e do Joelma - pouco ou nada
fazia, depois, para educar de fato a população. Propunha, ainda, cursos
especializados por parte não só do Estado como da iniciativa privada, nos
moldes dos oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial.
(...) “Precisamos urgentemente, isto sim, um “espaço educativo” nos
jornais, rádios e TVs do País, onde velhos bombeiros, sem interesse em
aparecer, tragam sua palavra ponderada e experiente para acalmar o povo, instruir
como agir em diferentes casos. Aí sim a imprensa estará no seu verdadeiro
papel, porque, além de informar, estará ajudando a educar”.
PSICÓLOGO É CONTRA DAR AULAS DE PREVENÇÃO
PARA OS ALUNOS
Proposta semelhante partiu de uma das
poucas igrejas que pareciam não ver o sinistro da Renner como uma fatalidade
criada por Deus para castigar os homens: em lúcida nota oficial firmada pelo
seu Conselho Regional, a Igreja Metodista de Porto Alegre pedia orações pelas
vítimas, mas enfatizava primeiramente a necessidade de providências práticas
imediatas, principiando com treinamento preventivo em escolas e edifícios. Ao
público interno, o bispo Sadi Machado da Silva aconselhou treinamentos
periódicos em todos os templos da sua fé.
Estranhamento, em sentido contrário, o
psicólogo Vinicius Jockymann – irmão do jornalista – manifestava-se na imprensa
contra a ideia de se dar aulas de prevenção de incêndios nas escolas, sob a
tese de que “o incêndio não é um fenômeno natural, e não se prepara os filhos
para enfrentar desastres, incêndios e acidentes”. No seu entender, “o popular
não é um bombeiro” e tais aulas serviriam apenas para reforçar ainda mais a
sensação de medo e até mesmo pânico entre a população, o que seria “péssimo”.
Quanto à neurose que tomava conta da cidade por aqueles dias, previa o seu
término em dois meses, “para depois tudo cair no esquecimento”.
Passadas duas semanas outro leitor (não
identificado) lembrou os inúmeros prédios, residências e construções antigas
existentes no centro de Porto Alegre, no seu entender “verdadeiros alçapões”
capazes de produzir mais tragédias humanas. Superficialmente reformados,
embelezados com “vistosas fachadas” e destinados ao uso comercial, eram, dizia,
“decoração para a morte”.
“Uma
verdadeira floresta de ferro é implantada nestas velhas paredes para apoiar
pesadas geringonças decorativas e ocultar carcomidas paredes destruídas pelo
tempo. Aberturas, sacadas, portas e janelas ocultam-se e dissimulam-se sob
ferragens e chapas coloridas. Só respeitam mesmo é a parte da entrada (ou de
saída). Tudo o mais é chumbado, bloqueado, obstruído”.
“Pergunta-se agora: se de um momento para o outro acontecer um princípio
de incêndio num desses “alçapões”? Que consequências poderão resultar? Apenas
uma porta para sair: a do térreo. E todas aquelas pessoas que se encontrarem
nos outros andares? (...) Como poderão os bombeiros dar combate às chamas, se
as aberturas que existiam foram fechadas, lacradas, emparedadas? Como poderão
evitar que o fogo se propague aos prédios vizinhos, se todas as possibilidades
de acesso foram eliminadas? Quem aprova semelhantes alterações de fachadas, com
a obstrução total das aberturas do prédio?”
E prosseguia o leitor, falando em “fornos de
incineração humana”:
“Se
a Prefeitura – através da SMOV (Secretaria Municipal de Obras e Viação) –
jamais aprovaria uma reforma em prédios que oferecem precárias condições de
segurança, quem está aprovando, então, projetos para essas “novas” fachadas,
com o propósito de “embelezar” velhos pardieiros para fins exclusivamente
comerciais? É mais um crime que se está praticando contra os indefesos
habitantes desta “mui leal” e... criminosa “cidade sorriso”... Velhos prédios
se transformando em “fornos de incineração humana.”
Na Folha da Manhã o cidadão-leitor Wanderlei
Fernandes dos Santos traçava analogias entre a tragédia da Renner e as imagens
fortes do filme Inferno na Torre, estrelado por Steve Mcqueen, Paul Newman e
Faye Dunaway, para depois lembrar alguns incêndios que haviam assolado o Rio
Grande e o Brasil nos últimos anos e a necessidade premente de se apontar os
culpados: “Atrás do Joelma, do Andraus,
da Wolens, das Lojas Americanas, vieram novas campanhas, novas vítimas e novos
prejuízos. Discursos, promessas, comissões. Não se falará de outra coisa nos
próximos dias, a não ser em incêndio. Depois tudo cessará, até que um novo
prédio seja consumido pelo fogo. Os edifícios continuam sendo erguidos,
diariamente, com massa corrida, porteiro eletrônico, mas sem extintores de
incêndio ou escadas de emergência. Arranha-céus sem heliporto, sem prevenção. (...)
Faz-se demagogia e lindos discursos. (...) As construções devem ser
fiscalizadas in loco e não só no projeto. E o principal: em qualquer incêndio é
necessário apurar os responsáveis, e sempre existirá um culpado, já que os
incêndios não são fruto do acaso”.
Já o leitor Clóvis Panizzi, morador da
cidade de Bento Gonçalves, na região da serra, apostava em soluções prosaicas e
básicas: por exemplo, o treinamento prático e periódico da população nas ações
contra o fogo, o “ovo de Colombo” esquecido em meio a tantos debates retóricos:
“É necessário antes de mais nada ensinar
as pessoas a usar extintores de incêndio e outras medidas de isolamento”. Panizzi
lembrou que, no início das chamas Renner, um brigadiano subiu ao quarto andar –
onde tudo começou - e implorou por um extintor: “Ele garantiu que teria debelado o incêndio, mesmo em fase mais
adiantada. Mas ninguém, naquele andar, soube usar os extintores, nem sequer
soube entregar os mesmos para alguém habilitado que se fez presente na
emergência’.
Entre as sugestões e críticas destacava-se
uma, enviada ao prefeito Villela no início de maio. Em carta de cinco laudas, o
ex-comandante do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre entre os anos de 1953 e
1955 (quando ocorreram, entre outros, os incêndios da Casa de Correção e os
decorrentes das agitações do suicídio de Vargas, e quando se deu início à
construção da nova estação central da praça Rui Barbosa), coronel Tisiano Leone,
enumerou uma série de medidas práticas que, caso fossem prontamente adotadas,
viabilizariam a prevenção e o combate ao fogo, algo que, a seu ver, não estava
acontecendo.
“Fogo é a primeira reação em cadeia que se
conhece. Lutar contra ele, praticamente só com extintores, como foi ou está
sendo pretendido, é mais do que um erro, é um crime. É querer combater a bomba
atômica, ou uma divisão Panzer, com estilingue”, sentenciou o militar
aposentado, lembrando que em sua época enfrentou muitos “interesses
subalternos” e “conveniências eleitoreiras”, entre as quais a que determinou a
extinção da “taxa de bombeiros”, algo que ele considerava necessária.
Outras medidas consideradas fundamentais por
Leone eram os “sprinklers” – chuveiros espalhados pelo teto das construções,
acionados automaticamente a partir de 70 ou 80 graus. Isso, no entanto, exigiria
obras suplementares como caixa dágua subterrânea e um reservatório no alto,
além de canalizações adequadas. Ele também considerava extremamente necessário
os pisos corta-fogo, fechando a abertura das escadas à propagação, as porta
corta-fogo, além de uma rede de hidrantes espalhada por toda cidade,
independente da rede domiciliar, abastecida por estações localizadas à beira do
Guaíba e das hidráulicas municipais.
Para o corpo de bombeiros, especificamente, via a necessidade de
“equipamentos pesados”, tais como instrumentos para arrancar grades e demolir
paredes (o que poderia ter salvo muitas vidas na tragédia da Renner e das
Americanas), canhões dágua capazes de disparar jatos até cem metros de altura
e, claro, a melhoria do equipamento convencional.
Bem mais simplista – na verdade, quase
hilária - foi a proposta apresentada por dirigentes do Clube dos Diretores
Lojistas de Porto Alegre, CDL: a entidade queria (esboçou até mesmo lançar uma
campanha nesse sentido) que a proibição de fumar no interior de
estabelecimentos comerciais fosse incluída entre as novas medidas de prevenção
a incêndio, “mas não como uma imposição”.
A propósito da tímida sugestão, em
editorial, a Folha da Tarde, mesmo apoiando a ideia, considerou o hábito de
fumar em qualquer lugar (incluindo churrascarias, restaurantes em horário de
almoço e até mesmo elevadores) algo já arraigado entre os gaúchos – portanto,
medidas bem mais amplas e eficazes deveriam ser tomadas para evitar o que
aconteceu na Renner. E aproveitou para lembrar: nos magazines elegantes da
Europa o hábito de fumar já estava proibido – embora a prática ainda fosse
comum em bares e restaurantes.
INICIA
A CAMPANHA PARA DOTAR A CIDADE DE MAIS HIDRANTES
No entanto, o incêndio da Renner – uma das
muitas tragédias na pródiga safra dos anos setenta – deixara suas indeléveis marcas
e algo precisava ser feito para satisfazer a opinião pública.
Nas semanas seguintes – a exemplo do que
tinha acontecido com as tragédias da Fulgor e das Americanas - a Prefeitura de
Porto Alegre mobilizou o seu departamento de fiscalização a fim de verificar as
condições dos edifícios da cidade, e muitas portas lacradas que impediam a
ligação entre um andar e outro foram derrubadas a golpes de marretas, sob o
aprovativo olhar dos moradores.
No dia 14 de maio o prefeito Villela enviou
projeto de lei à Câmara propondo a doação de uma área de mais de seis mil
metros quadrados, no bairro Praia de Belas, para a instalação da nova estação central
do Corpo de Bombeiros. Ao mesmo tempo foi dado início a uma campanha
comunitária com o objetivo de dotar a capital de uma eficiente e unificada rede
de hidrantes – existiam cerca de 500 em toda a cidade quando as necessidades
mínimas exigiam 4.500 mil. Nos dias seguintes ao sinistro da Renner, indagado a
respeito da falta de hidrantes na cidade, Villela havia justificado: “O fato é
que os bombeiros nunca nos pediram mais hidrantes”.
Agora sob o argumento de que não se dispunha
de recursos para fazer frente a tal volume de despesas (cada dispositivo, segundo
as autoridades, custava cinco mil cruzeiros, cerca de sete salários mínimos) Villela
apelou para a colaboração dos empresários, os quais poderiam “adotar” quantos quisessem.
Em positiva resposta, no dia 20 de maio, 24 grandes empresas anunciaram a
destinação conjunta de 800 mil cruzeiros para a compra e instalação de 160
novos hidrantes na cidade – o nome dos doadores, inclusive, era publicado em
espaço de página inteira na Folha da Tarde, e também gravado no próprio
equipamento a ser instalado.
Oito dias depois já havia 316 doações – para
tanto o doador depositava cinco mil reais em uma conta bancária e comunicava
isso à Prefeitura via telefone. Somente o grupo Gerdau depositou o valor referente
a 30. O grupo Ipiranga, o Estaleiro Só e as Organizações Renner pagaram 20 de
tais aparelhos, cada qual.
Para
variar, descobriu-se que a capital gaúcha, havia tempo, também estava
pessimamente aparelhada nesse quesito – existiam apenas cerca de 500 de tais
fontes em toda a cidade. Ou, como disse então o vereador João Severiano, do MDB,
presidente da morosa comissão especial criada para examinar o projeto de lei
que estudava o uso obrigatório de extintor de incêndio nos prédios de Porto
Alegre: “A cidade é bem abastecida de água, tanto que foi preciso construir um
muro contra as enchentes, mas na hora em que a água representa o ponto
principal num trabalho de controle ao fogo, não há hidrantes necessários para
isso”.
Havia, ademais, outro problema, o da
“bitola”. Antigos e instalados sem muitos critérios técnicos, não estavam
ligados a encanamentos de diâmetro suficiente para a vazão necessária ao
trabalho dos bombeiros. O diretor do Departamento Municipal de Águas e Esgotos,
DMAE, Jacob Lerner, reconhecia que a grande maioria estava conectada a redes
distribuidoras de escassa dimensão. À medida que a rede se afasta do
reservatório de água o diâmetro do encanamento também diminuía, enfraquecendo
ainda mais os jatos das mangueiras. Isso acontecera, por exemplo, na tragédia
das Lojas Americanas.
No início da semana seguinte ao incêndio da
Renner o governador Guazzelli reuniu-se com o alto comando da Brigada Militar e
prometeu publicamente, em tom incisivo: “Não vou regatear recursos, tudo o que
o nosso corpo de bombeiros precisa para ser reequipado eu vou dar”. Jogando por
baixo, calculava-se o valor a ser gasto com os bombeiros entre 70 e 80 milhões
de reais – dinheiro em grande parte a ser repassado pelo governo federal.
Guazzelli também informou que o Estado reexaminaria
a lei estadual 6019, de agosto de 1970, que dispunha sobre convênios com
municípios para o serviço de combate ao fogo, considerado muito oneroso para as
prefeituras, que arcavam com quase tudo, além de castrador em relação à
autoridade da corporação. Ele adiantou ainda que o governo gaúcho apresentaria
ao governo federal sugestões para a criação de um código nacional de prevenção
e combate ao fogo, uniformizando toda a legislação.
Outra medida anunciada dizia respeito à
educação e treinamento da população em situações como a ocorrida nas lojas
Renner, ensinando, sobretudo em colégios, como se comportar e agir para evitar
o pânico – e que, claro, nunca foi posta em prática.
Abrindo o encontro no quartel central, os
bombeiros convidaram o governador, bem como as demais autoridades e os
jornalistas presentes, a assistir a um filme sobre a ação da categoria nas
tragédias do Andraus e do Joelma, na cidade de São Paulo. O coronel Wellington
Carlos Soveral, comandante da corporação (e que seria substituído dali a poucos
meses), pediu a Guazzelli a rápida construção de uma sede no centro e duas mais
distantes da zona central – uma no bairro Navegantes, na zona norte, e outra em
Teresópolis, na zona sul. Quanto aos equipamentos, reivindicou-se a remodelação
da frota de auto bombas, a compra de mais escadas Magirus e auto jamantas, bem
como veículos leves e ambulâncias. Queriam também algumas escadas semelhantes
às Magirus, porém mais ágeis e com maior mobilidade, as quais só poderiam ser
adquiridas no exterior. Outra solicitação eram as roupas especiais de proteção,
para penetração em locais mais arriscados e, finalmente, máscaras de ar
comprimido. No tocante ao pessoal, foi solicitado um aumento do efetivo e a
inclusão de uma equipe oficial de engenheiro nos quadros da corporação.
A 4 de maio, analisando as deficiências dos
bombeiros em Porto Alegre, Zero Hora traçou uma radiografia da situação do
Primeiro Grupamento de Incêndio, que funcionava “em modestas dependências” da rua
Silva Só, e cujas atribuições abrangiam todo o município de Porto Alegre, além
de dar cobertura a outras unidades da região metropolitana.
As quatro escadas mecânicas então existentes
poderiam, no máximo, atingir a altura de um edifício de dez ou doze andares,
dependendo do tipo de construção. Outras quatro estações, no Partenon, na
Tristeza, na Floresta e no Passo da Areia, dispunham apenas de dois carros auto
tanques-bomba, tripulados cada um por nove homens. Em pior estado, a Companhia
de Socorro Naval, instalada junto ao Armazém C-5 da avenida Mauá, às margens do
Guaíba, contava com duas jurássicas lanchas fabricadas em 1903 – setenta e três
anos passados.
DESCOBRIU-SE: BOMBEIROS TIVERAM DIREITOS
RETIRADOS AO LONGO DO TEMPO
2 de Julho, dia do Bombeiro: eles não tinham equipamento adequado e eram menosprezados pelas autoridades. |
O jornal também descobriu que os bombeiros
sequer tinham autonomia para a escolha de seu próprio pessoal, previamente
selecionado pela Brigada Militar e depois a eles encaminhado para a realização
de cursos de treinamento.
Aí, sim, tornavam-se bombeiros – e, diga-se,
muito mal remunerados: em abril de 1976 os recrutas da corporação recebiam 575
cruzeiros de salário mensal. Acrescidas algumas vantagens, o total percebido não
ultrapassava 800 cruzeiros (o salário mínimo seria reajustado para pouco mais
de 700 naquele primeiro de maio). Ademais, a revogação da lei da insalubridade,
em 1971, fazia com que os soldados do fogo trabalhassem os mesmos 30 anos de
qualquer outro funcionário público para obter direito à aposentadoria – antes,
eles poderiam se aposentar com 17 anos e meio de serviço.
“O bombeiro é muito mal remunerado”,
reforçou, em editorial, o Jornal do Comércio em sua edição de 6 de maio: “Sua
função de salvamento e de perigo constante não tem em contrapartida sequer um
salário de doméstica”.
A promessa de Guazzelli de reequipar – ou
equipar – a corporação nas principais cidades gaúchas foi seriamente
questionada pelo deputado oposicionista Lélio Souza, no início de maio. Lélio
constatou que, dos dois recentes projetos de lei enviados pelo executivo para a
abertura de créditos suplementares, nenhum dizia respeito aos bombeiros.
Saindo em defesa do governo, o líder da
bancada situacionista, Celestino Goulart, admitiu que o Estado realmente não
dispunha de tais recursos, mas estava buscando ajuda do governo federal. “Tudo
está sendo feito para que no menor prazo possível os bombeiros estejam
perfeitamente equipados para evitar tragédias como a das Lojas Renner”, afirmou.
Na esfera municipal, no final de maio, ainda
sob o evidente impacto da tragédia, uma nova lei seria em breve votada e
aprovada por unanimidade, desta vez para ser cumprida no prazo máximo de 60
dias: a instalação obrigatória de extintores de incêndio em todos os prédios com
mais de quatro andares – a lei complementar número 20. Discutia-se, ainda, a obrigatoriedade
dos chuveiros automáticos, os sprinklers, nos edifícios com mais de 20 metros
de altura.
Aproveitando o clima de comoção, Villela encaminhou
ao legislativo, no mesmo momento, o código de instalações hidráulicas elaborado
pelo Departamento Municipal de Águas e Esgotos. E, junto com este, o decreto
que tornava obrigatório o parecer favorável do Corpo de Bombeiros para a
concessão da carta de Habitação, o “Habite-se”, medida que atingiria todos os
processos em andamento e os projetos de reformas dos prédios já existentes, a
qual previa novo parecer e nova aprovação por parte dos bombeiros em caso de
qualquer outra posterior alteração. Ficavam de fora, contudo, as residências
domiciliares.
Quanto aos prédios porto-alegrenses
raríssimas exceções pontificavam em meio ao cenário absoluto de descaso. Os
jornais destacaram especialmente o caso o edifício da Caixa Econômica Estadual,
na avenida Borges de Medeiros, esquina com a rua Andrade Neves, talvez o único
dotado de uma escada apropriada para fuga em caso de emergências. No caso, garantia-se
que a escada – instalada fora do corpo do prédio – não seria varrida pelas
chamas, por mais fortes que estas fossem, embora isso jamais fosse testado.
Também moradores e síndicos de alguns
grandes edifícios do centro anunciaram que, agora sim, iriam abrir a mão e
gastar com obras de prevenção. O síndico Cândido Bertolini, do problemático edifício
Formac, anunciou que, em comum acordo, todos os condôminos haviam decidido
dotar a construção de medidas urgentes de prevenção e fuga às chamas. A decisão
– segundo ele, tomada meses antes da tragédia da Renner – incluía criar uma
escada externa fixada em uma das paredes junto ao vizinho edifício Brasília,
dez andares mais baixo. Com isso, em caso de incêndio, os moradores poderiam
descer até o terraço deste último prédio e depois alcançar a rua em segurança
por meio de elevadores. Também, disse, iriam instalar portas corta-fogo em
muitos andares.
Ironicamente, o Formac – um dos mais altos
edifícios de Porto Alegre (28 andares), na travessa Leonardo Truda – quase se
transformou em uma réplica do Renner no dia 6 de julho, terça-feira, provando
que o discurso não correspondia à prática e que a sorte, ainda ela, era a
grande auxiliar em tais casos.
O fogo surgiu na madrugada e se espalhou por
todo o sétimo andar, onde se localizavam os gabinetes dentários do SESI, Serviço
Social da Indústria, e só seria contido, com muitas dificuldades, quatro horas
depois, causando novamente pânico entre os moradores do centro. Como sempre, os
bombeiros “acudiram com seus parcos recursos”, trazendo uma escada Metz,
considerada mais moderna que a Magirus, mas logo constataram que ela não seria
suficiente para alcançar o local das chamas.
O comandante da guarnição – um tenente que,
providencialmente, se chamava Cristo – pediu então a vinda da Magirus, mas esta
demorou muito a chegar pois não havia motorista disponível para isso, descobriu
a imprensa.
Debelado o incêndio, que destruiu totalmente
o sétimo pavimento e paralisou durante semanas os serviços odontológicos da
entidade, os bombeiros constataram que nada do prometido havia sido posto em
prática, além da simples colocação de mais extintores. Nem sequer a escada de
fuga fora iniciada – a prefeitura tampouco dera autorização oficial para tanto,
e todos se perguntavam o que teria acontecido se o fogo surgisse em horário
comercial e não no meio de uma madrugada vazia do úmido e frio mês de julho.
A existência de saídas de emergência, tal
como o projetado para o Formac, e que permitiriam às pessoas passarem de um prédio
a outro, diferenciava os edifícios Chaves e Di Primio Beck, do Multibanco e da
Fin-Hab, os quatro na rua dos Andradas e ligados entre si por escadas de passagem.
Segundo explicaram os síndicos, tais melhorias foram efetuadas depois do
acontecido com as Lojas Americanas.
De todos os bons exemplos de prevenção ao
fogo, entretanto, o mais modelar (e que em fevereiro mereceu páginas inteiras,
pagas, na imprensa gaúcha) não fora motivado basicamente pela preocupação com a
segurança e integridade das precárias vidas humanas e sim com o ardoroso zelo
em defesa do patrimônio material: o centro de processamento de dados do governo
do Estado (11 mil metros quadrados), instalado em um dos edifícios do ainda
inconcluso Centro Administrativo do Estado, na Praia de Belas, dispunha, do
“mais moderno sistema de prevenção do país”, conforme orgulhosa declaração do
secretário do Interior, Desenvolvimento Regional e Obras Públicas, Otávio
Germano.
O CPD estadual estava equipado com “a
última palavra do gênero em segurança contra incêndios em aparelhos eletrônicos
de computação”. Os técnicos da empresa paulista Kidde S.A. explicaram que, ao
invés de usar o costumeiro gás carbônico (CO2) para combater o fogo, o sistema
– já aprovado pelo CPD do Banco do Brasil em São Paulo - adotava outro tipo de
gás, o “halon”, que não causava envenenamento, não tinha qualquer toxidade e
não danificava os equipamentos eletrônicos. Mais de cento e vinte cilindros de
tal gás foram distribuídos pelos três andares do prédio, além de termostatos,
detectores de fumaça e “chuveiros” (sprinklers) estrategicamente colocados.
Mas o primeiro edifício de Porto Alegre a
ser concluído conforme as novas exigências da Associação Brasileira de Normas
Técnicas, ABNT, e da prefeitura municipal, em termos de prevenção a incêndios,
somente seria inaugurado no dia 10 de setembro, na rua Chaves Barcelos, 36,
entre as avenidas Júlio de Castilhos e Mauá. O Montecooper Business Center, com
18 andares e 11 mil metros quadrados de área construída, contava, basicamente,
com tudo que vinha sendo recomendado pelos bombeiros: escada enclausurada,
porta corta-fogo, câmara e antecâmara, além de outros mecanismos paralelos de
prevenção. Totalmente em concreto armado, com 25 centímetros de espessura, as
paredes do prédio permitiam o isolamento das peças e, portanto, do fogo.
O PREFEITO E O GOVERNADOR DÃO SEUS PÊSAMES À
DIREÇÃO DAS LOJAS RENNER
Dois dias depois da tragédia todas as
filiais das Lojas Renner reabriram normalmente. Representantes da empresa já
haviam percorrido os hospitais da cidade tentando encontrar seus funcionários com
vistas a determinar o número exato de desaparecidos, embora o cálculo final
somente fosse possível na sexta ou no sábado, quando os últimos se reapresentariam
a fim de receber os salários relativos ao mês de abril.
Os jornais noticiavam então que os diretores
Herbert Bruno Renner, Ricco Harbich e Henrique Pernau compareceram ao gabinete
do prefeito Villela, e também seguiram até o Palácio Piratini, onde se
avistaram com o Governador Guazzelli, a fim de agradecer as providências
tomadas pelos dois poderes públicos. Tratados muito respeitosamente como vítimas,
nada lhes foi cobrado – ao menos oficialmente - no tocante à segurança e
prevenção contra o fogo, atitude que, na realidade, não era de se estranhar - para
muitas pessoas, sobretudo as autoridades, a Renner, era, sim, a maior vítima do
episódio de 27 de abril.
Jornal do Comércio |
Segundo noticiou o Correio do Povo, “o
governador Sinval Guazzelli, ao mesmo tempo em que renovou o pesar do Estado
pelo incêndio que destruiu as lojas Renner no centro, causando tantas vítimas,
disse que o governo estava interessado em dar todo apoio para que aquela
organização não veja prejudicada as suas atividades”.
Em seguida os diretores visitaram a
Companhia Jornalística Caldas Júnior, onde foram recebidos por Breno e seu filho
Francisco Caldas. Lá também externaram “seu agradecimento pela solidariedade
recebida da CJCJ através de seus jornais e da rádio Guaíba” e detalharam “providências
diversas que estão sendo tomadas para normalizar o ritmo de trabalho após o
grande impacto sofrido”. Já a Associação
Riograndense de Imprensa, ARI, em nota oficial do seu presidente, Alberto
André, não estendeu condolências à empresa e sim destacou o luto pelo
acontecido, elogiando porém “os esforços da municipalidade” e de outros órgãos,
que “de alguma forma tiveram sua ação voltada para a debelação do sinistro”.
Por sua vez, em decisão interna da
diretoria, a equipe de funcionários que trabalhava no edifício incendiado foi
remanejada para as demais filiais da Renner, incluindo Pelotas e Novo Hamburgo.
A sede provisória, no bairro Passo da Areia, foi adaptada às pressas para a
nova função, enquanto um grupo de secretárias recebia a dolorosa incumbência de
prestar informações a respeito dos mortos e desaparecidos. A cada toque do
telefone seguiam-se embaraçosas explicações, permeadas de silêncios emocionados
e lágrimas nem sempre furtivas.
“Sentimos muito, meu senhor, mas esse nome
está na lista do Instituto Médico Legal e o senhor deve se dirigir para lá” –
dizia a secretária de plantão, esforçando-se para manter um tom de normalidade.
Alguns velhos clientes, acostumados a
comprar com determinado funcionário, queriam saber desta ou daquela pessoa, se
estava bem ou se constava na relação das vítimas fatais ou dos desaparecidos.
Nem sempre recebiam boas notícias.
Nas semanas seguintes o grupo veiculou uma
série de anúncios institucionais com depoimentos de antigos clientes que
externavam seu apreço e carinho por uma das marcas mais conhecidas do Estado.
Possivelmente de forma espontânea, em seu início, algumas pessoas enviaram
cartas aos jornais lamentando a tragédia, ao mesmo tempo em que evocavam
lembranças pessoais agradáveis da empresa.
Intitulado “Solidariedade”, um desses textos
foi publicado no “Correio do Leitor”, do Correio do Povo, na edição de domingo,
2. Sem lembrar as vítimas, uma leitora, que assinou simplesmente como “Maria”,
fala da sua relação sentimental com o magazine Renner.
(...) “Foi lá que comprei a primeira peça do
meu enxoval de casamento. Quase menina, cheia de ilusões. Era tudo tão lindo! A
esperança no futuro, o meu enxoval.”(...)
“Compro a primeira camisinha para o meu bebê
e a seguir todo o meu enxoval. O carinho da balconista ao me atender, o sorriso
respeitoso do gerente e a delicadeza da empacotadora contribuíam de maneira
marcante para a formação de um conjunto de alegrias e felicidade já existente
com a expectativa do ser que estava para nascer e que, em breve, vestiria
aquelas roupinhas que, com tanto carinho, escolhemos.
“O primeiro corte de cabelo, com o “cineminha
calmante”, na sessão (sic) infantil;
o primeiro sapatinho, as calcinhas e as camisinhas, tudo tão lindo...
“Nova gravidez, outro menino, mais compras e
novas alegrias. Eram três os cortes de cabelo, a escolher presentes e a serem
atendidos carinhosamente pelos funcionários.
“A bicicleta com caroneira, a boneca, o jipe
do Exército, a bola colorida, a chuteira e tantos outros brinquedos.
“Passam-se os anos e as crianças crescem, se
modificam, mas a lojas Renner permanece acolhedora, embora maior e mais
moderna. Surge então o primeiro traje com gravata e paletó para o meu “bebê” já
homenzinho; os vestidos graciosos para a minha menina-moça. E agora o traje
esporte para o caçula de 16 anos, última compra que fizemos na “familiar” loja
Renner da Octávio Rocha, onde sentíamo-nos em casa. A casa da qual trazemos tão
grata lembrança e lamentamos a destruição”.
Na edição de 10 de maio o mesmo texto –
desta vez com o nome completo, a foto e o endereço da autora – foi republicado
na íntegra em página inteira da Folha da Tarde e também do Jornal do Comércio.
Certamente a Renner havia comprado tal espaço na tentativa não só de melhorar sua
imagem como de provar que tal pessoa não era uma personagem e sim existia de
fato, em carne e osso: chamava-se Maria Rosa de Lima Pires, residente à rua
Salvador Calamucci, 71, parque Madepinho, no bairro Cavalhada, em Porto Alegre.
Abaixo, em rodapé, vinha o texto da empresa: “Um amigo na necessidade é um amigo de verdade. Nas últimas horas e
dias, descobrimos quantos e que bons amigos temos. As palavras solidárias que
estamos recebendo nos animam e comovem. Elas dizem tudo o que sentimos e o que
gostaríamos de ter dito. A d. Maria e todos os nossos amigos, muito obrigado.
Renner”.
Ainda no mês de maio, a Sociedade de Engenharia do Rio
Grande do Sul anunciou publicamente que, a exemplo do que acontecera com o
Joelma, em São Paulo, por parte da sua similar paulista, a entidade gaúcha
havia criado uma comissão técnica para estudar detalhadamente as causas e os
efeitos do incêndio das lojas Renner.
Coordenada pelo engenheiro Antônio Carlos
Pereira de Souza, presidente, tinha nomes de expressão responsabilizando-se por
diferentes áreas: engenheiro Cláudio Hanssen (engenheiro químico, especialista
em prevenção a incêndios); Alberto Elnecave (estruturas); Hermann Bojunga
(instalações elétricas); Raul Rego Faillace (edificações); Ibá Ilha Moreira
Filho (engenharia legal) e Dirceu Duarte Calegari (materiais de construção). O
laudo técnico resultante dessa união de esforços seria tornado público e
encaminhado aos órgãos oficiais, garantiu Pereira de Souza, ao tempo em que
solicitava livre acesso a todas as informações e procedimentos.
Todavia, estranhamente, tal documento nunca
veio a público e sequer voltaria a ser mencionado nas páginas dos jornais – nem
mesmo quando se completou o primeiro ano da tragédia. Também do inquérito
policial nada mais se falou.
Já no dia 30 de abril, três depois do
acontecido, a Folha da Manhã externava o seu ceticismo com a apuração dos
acontecimentos, lembrando de dois episódios anteriores, o dos Fogos Fulgor e o das
Americanas. Nos três casos, um mesmo personagem, o delegado de polícia:
“O
inquérito que vai as causas do incêndio das Lojas Renner será presidido pelo delegado
(Geraldo) Ivo Gaston. O mesmo policial foi responsável pelos inquéritos do
incêndio das Lojas Americanas, a 29 de dezembro de 1973, no qual morreram cinco
mulheres. Até hoje o delegado não divulgou nenhuma informação a respeito, não
sabendo-se a que conclusões chegou o inquérito, e que revelações estão contidas
nele. Quando era procurado pelos repórteres o delegado dizia não ter
satisfações a dar a ninguém. O mesmo delegado, atualmente na Primeira
Delegacia, também orientou e presidiu o inquérito sobre outro grande incêndio
ocorrido em Porto Alegre: a explosão da fábrica de fogos de artifício Fulgor,
no Navegantes, na tarde de 3 de maio de 1971. Extraoficialmente foi tornado
público que morreram 16 pessoas, e essa cifra até hoje é discutida. Mesmo passados
cinco anos o delegado não informou nada sobre o inquérito policial, e nem a que
conclusões levaram as investigações. Ontem, o delegado foi procurado inúmeras
vezes pela imprensa, não sendo localizado”. (Folha da Manhã, “A
Investigação do Incêndio Será Presidida por Ivo Gaston”, 30 de abril de 1976,
sexta-feira)
HOMEM ATEIA FOGO NA LONA DO CIRCO: MAIS DE
500 MORTOS E COMOÇÃO MUNDIAL
Um mês antes do fogo no edifício Renner, na noite de
sábado, 26 de março, a imprensa de Porto Alegre destacava a chegada à cidade do
circo Norte-Americano, uma das mais famosas e tradicionais companhias circenses
que percorriam as Américas.
Instalado na esquina das avenidas Borges de
Medeiros com Ipiranga, o Norte-Americano permaneceria na capital até o dia 2 de
maio, domingo - sua presença, naquele momento, tinha um significado emblemático
que remetia ao mais tenebroso incêndio da história brasileira e um dos mais
mortíferos de todo o mundo.
Mais precisamente à tarde de domingo, 17 de
dezembro de 1961, proximidades das festas de final de ano, em Niterói, Rio de
Janeiro, onde uma multidão calculada entre duas e três mil pessoas – metade das
quais eram crianças - assistia à apresentação final dos trapezistas do Gran
Circus (sic) Norte-Americano quando o toldo de lona pegou fogo e, em menos de
três minutos, deixou mais de duzentos mortos, a maioria pisoteados. Outros tantos
morreram nos dias seguintes nos hospitais de Niterói e do Grande Rio. Os cálculos
apontaram então 600 feridos e 323 vítimas fatais – no final, com os posteriores
óbitos em hospitais, computou-se mais de 500 mortos.
A tragédia – nas proximidades dos festejos
de final de ano - chocou o mundo. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha,
Argentina ofereceram ajuda às autoridades brasileiras. Os Estados Unidos
enviaram uma remessa de plasma sanguíneo e medicamentos. Um avião da Força
Aérea Argentina trouxe médicos e especialistas do Instituto de Queimados de
Buenos Aires. Todos os cirurgiões plásticos da Guanabara (a cidade do Rio de
Janeiro era então um Estado), inclusive o doutor Ivo Pitanguy, que ainda não
despontara para a notoriedade mundial, foram convocados a trabalhar e
estabeleceu-se uma ponte marítima entre Rio e Niterói para o transporte de
feridos e toneladas de medicamentos – bem como uma ponte aérea entre São Paulo
e o Rio. Solidário, o Estado gaúcho coletou e enviou em avião da FAB cinquenta
litros de plasma sanguíneo.
O presidente João Goulart foi pessoalmente
visitar os feridos nos hospitais. Em um emocionado apelo nos rádios e na tevê,
o popular palhaço Carequinha pediu mais doações de sangue.
Porém algo mais chocante se revelaria nos
dias seguintes, quando se comprovou o caráter criminoso do fato. Surgiu então o
“Monstro de Niterói” – Dequinha, ou Adilson Marcelino Alves, favelado carioca,
preso inúmeras vezes por furto e vadiagem, e que possivelmente havia ateado
fogo no circo para se vingar de um tratador de elefantes que o esbofeteara - e
também, como reconheceu, para saquear as vítimas mortas.
Feita a combinação sinistra, um cúmplice seu
jogou gasolina na lona – um sintético feito à base de derivados de petróleo – e
Dequinha riscou o fósforo. No dia seguinte, absolutamente tranquilo, o
incendiário vendeu alguns litros de sangue nos hospitais do Rio e foi preso
somente depois que sua companheira de barraco comentou o fato com alguns
vizinhos e estes procuraram a polícia.
Para não ser linchado, o “Monstro de
Niterói” foi recolhido à fortaleza de Santa Cruz, sob a guarda de soldados do
Exército. Mais tarde, submetido a exame por um grupo de psiquiatras, foi
classificado como “oligofrênico, imbecil e sugestionável”, com idade mental de
seis anos, conquanto capaz de entender o ato que praticou.
A tragédia de Niterói serviu para que, nos
anos seguintes, as autoridades passassem a fazer uma fiscalização rigorosa de
tais locais, explicou o secretário do “novo” Circo Norte-Americano ao repórter
da Folha da Manhã, em reportagem publicada na segunda-feira, 3 de maio. Miguel
Martins – descrito como um homem sério e engravatado que não gostava de falar
sobre o acontecido em dezembro de 1961 – lembrou que aquela era a primeira vez
que a companhia retornava a Porto Alegre depois daquele triste fato de quinze
anos atrás.
Segundo ele, nesse período não somente a
fiscalização e a consciência dos perigos se tornaram maiores como a própria
evolução tecnológica viera em auxílio à segurança, com o surgimento de lonas
não combustíveis, revestidas por uma camada química que impede a propagação do
fogo, algo que não havia no Brasil no início dos anos sessenta.
“O comandante dos bombeiros de Caxias do
Sul, quando veio fazer a vistoria, começou a rir quando dissemos a ele que a
lona não queimava. Ele não queria acreditar, e só acreditou quando tentamos
tocar fogo em alguns pedaços e não aconteceu nada”, relatou Martins. “Mas esse
tipo de lona é muito caro e só é acessível a circos médios e grandes, como é o
nosso caso. Tem uma empresa de São Paulo especializada na fabricação dessa lona
incombustível sintética”.
“O circo, hoje, é uma das casas de
espetáculo que oferece mais garantias de segurança para o público”, garantiu o
funcionário, lembrando que, em toda e qualquer cidade, a fiscalização “in loco”
feita pelos bombeiros pautava-se pelo rigor no cumprimento das normas técnicas.
Além disso, era agora expressamente proibido fumar no interior de qualquer
circo e todos os empregados haviam sido treinados no manuseio de extintores e
de como proceder em casos de emergência.
Também a abertura das lonas laterais
facilitava a saída de três ou quatro mil pessoas em questão de minutos – nas
laterais do Norte-Americano, por exemplo, existiam três portas de emergência
com seis metros de largura cada uma, sem contar a abertura frontal de 30
metros. Os cabos elétricos, por sua vez, eram todos blindados e colocados do
lado de fora. A chave-geral da eletricidade desligava automaticamente com o
surgimento de qualquer curto-circuito.
Antes da tragédia de Niterói o maior flagelo
desse tipo no Brasil – ao menos em sua história urbana mais recente - parece
ter sido registrado a 14 de junho de 1953, na cidade de São Paulo, quando
centenas de pessoas, a maioria “gente de cor” e “empregadinhas domésticas”, na
expressão da revista O Cruzeiro, divertiam-se ao ritmo dos sambas em um baile popular
em homenagem a Santo Antônio, o santo dos casamenteiros.
O "baile das empregadinhas" terminou de forma trágica: não havia saídas (CP, 1953) |
Instalado na parte de cima de um velho sobrado,
o clube 28 de Setembro - rua Florêncio de Abreu, centro da capital paulista –
contava com um único acesso e uma única saída, uma velha escada de madeira que
rangia ao peso de poucas pessoas. Embaixo, funcionava uma loja de tecidos.
Poucos perceberam o calor estranho que vinha
do assoalho até que aos 25 minutos da madrugada rolos de fumaça invadiram o
salão, fazendo com que uma verdadeira onda humana se projetasse em direção à
escada. Em poucos minutos muitos corpos, caídos ao chão, foram sendo esmagados,
enquanto outras pessoas atiravam-se das janelas. No final de tudo
contabilizou-se 53 mortos, incluindo um bombeiro. Poucos estavam carbonizados –
o pânico incontrolável, mais uma vez, foi o elemento assassino.
Também o pânico, tão somente ele, foi o
causador da grande tragédia envolvendo crianças na mesma cidade de São Paulo,
25 anos antes. O acontecido no Cine Theatro Oberdan ficou gravada como um dos mais
tristes e traumáticos ocorridos na então tranquila terra da garoa.
Domingo de Ramos, 10 de abril de 1938, bairro
do Brás. Segundo a versão mais aceita, um garoto de pouco mais de dez anos que
assistia à sessão, em apuros intestinais, foi sozinho ao banheiro: ele não
encontrou o “lanterninha”. Para iluminar o local, incendiou um pedaço de papel.
Alguém viu aquilo e começou a gritar “fogo, fogo!”, desencadeando uma
incontrolável onda de terror entre os presentes. Neste momento, na tela, surgia
a cena de dois aviões se chocando no ar.
Saldo final: trinta e uma crianças entre
sete e 14 anos, a maioria filho de operários (somente uma mulher adulta, que
tentava proteger o filhinho de colo, morreu), jaziam sem vida no piso de um dos
mais vistosos e conhecidos cinemas de São Paulo. Eles tinham ido à sessão
vesperal assistir o filme Criminosos do Ar, com a jovem atriz Rita Hayworth,
precedido pelos seriados X-9 e Ameaças da Selva.
No local havia apenas duas escadas de um
metro de largura e que se afunilavam. A perícia da época constatou a existência
de quatro saídas de emergência, todas elas trancadas por fora, mas os
proprietários, imigrantes italianos, não foram responsabilizados (seus
documentos estavam em dia). O cortejo fúnebre das vítimas do Oberdan, na
segunda-feira, com desmaios e as cenas de desespero, parou as ruas centrais da
capital.
Todavia o horror daquele episódio, nos anos
trinta, resultou em mudanças, ainda que primárias, nas normas de segurança das
casas de espetáculos paulistanos: as portas de saída não poderiam mais ser
trancadas por fora, como era então o costume, e os corredores deveriam
permanecer iluminados durante as sessões. Os proprietários também perceberam a
importância de se contar com escadas internas espaçosas em caso de pânico e
correria.
CENAS DE HORROR DO EDIFÍCIO JOELMA SÃO
TRANSMITIDAS AO VIVO: FEVEIRO DE 74
Nas duas décadas seguintes o fogo retornaria
às páginas da imprensa. O da boate Vogue, no Rio, em 14 de agosto de 1955, poucos
dias depois do falecimento de Carmen Miranda, com cinco mortos e mais de cinquenta
feridos, tragédia esta que abalaria a alta sociedade carioca; o do edifício
Astória, também com cinco mortos e também no Rio, em junho de 1963; o da Favela
da Praia do Pinto, que destruiu 800 barracos, feriu 32 e deixou cinco mil
desabrigados. E, em São Paulo, o de São Bernardo do Campo, na fábrica da Volkswagen,
às margens da via Anchieta, em 18 de dezembro de 1970, com um homem morto e
cerca de 100 feridos (a empresa negou que um caminhão com 30 operários tivesse
sido soterrado, matando a todos, episódio ainda hoje nebuloso), seguido do
edifício Andraus, na capital, em 24 de fevereiro de 1972, com 16 mortos, quase
400 feridos e seis horas de duração.
Mas é do Joelma que os brasileiros mais lembram.
O edifício, na avenida Nove de Julho, no coração de São Paulo, fora inaugurado
havia apenas dois anos e nele estavam instalados a sede e os escritórios da
financeira Crefisul, pertencente ao City Bank norte-americano. Seus 25 andares,
revestidos internamente com lambris, cortinas e muitas divisões de madeira,
além de incontáveis aparelhos de ar condicionado que sobrecarregavam a rede
elétrica; seu telhado de placas de cimento e amianto térmico e uma grande caixa
dágua que impedia o pouso de helicópteros – isso tudo, somado, formaria o
fatídico cenário para a grande tragédia.
Assim a revista Manchete de 16 de fevereiro
de 1974, edição número 1.139, da Bloch Editores (que, no desastre da Renner,
não publicou uma linha sequer a respeito), resumiu o sinistro do Joelma:
“Foi
uma das maiores tragédias do século no Brasil. Primeiro dia de fevereiro, mês
da alegria. Sexta-feira, véspera do fim de semana. Nove horas da manhã, quando
todos iam para o trabalho. Tudo aconteceu de repente no centro de São Paulo, a
megalópole brasileira que em dez anos terá ultrapassado Nova Iorque e será a
maior cidade do mundo. São Paulo não parou, apenas. Toda sua
população, tomada de pânico, concentrou seu pensamento numa só ideia: a ideia
da morte. Essa morte que na grande cidade se tornou bem mais complexa e
dramática do que se possa imaginar. De quem a culpa? Basicamente, de todo um
modo de vida que inclui as catástrofes, a poluição, a neurose e a violência. O
saldo: medo, angústia e muitas vidas perdidas – muito mais do que podem indicar
as frias cifras oficiais. E talvez uma lição amarga, portadora de mudanças que
façam alguma coisa para que desastres
como os incêndios do Andraus e do Joelma não se repitam”.
Tudo começou quando faltavam 15 minutos para
as 9 horas da manhã de sexta-feira, primeiro de fevereiro, no décimo segundo
andar. Em 20 minutos o fogo chegava ao topo, tempo que os bombeiros, driblando
o caótico trânsito paulistano, levaram para chegar ao local, levando três
escadas Magirus que atingiam o limite máximo de 45 metros. Um helicóptero da
Operação Para-Sar – o único apropriado para a situação - conseguiu manter-se
imóvel a centímetros do teto e salvou muitas vidas.
Pelo menos vinte pessoas já haviam se jogado
pelas janelas. Apesar do heroísmo da corporação, somente uma hora e meia depois
do início do fogo é que o primeiro bombeiro conseguiu saltar no alto do prédio
para dar início ao dificílimo resgate.
Dezenas de soldados e oficiais – dos 450 que
participaram da operação - arriscaram a vida rodopiando nas cordas e escalando
andar por andar. Carros-pipa trouxeram água de uma distância de até 30
quilômetros. Às 16h15min, quando as últimas chamas foram debeladas, cerca de
500 mil paulistanos tinham assistido ao vivo o drama.
A causa possivelmente estava em um ar
condicionado, costumeiro vilão de tais episódios. E talvez pudesse ser
combatida a tempo, e quem sabe debelada, se os ocupantes do prédio soubessem
manejar os equipamentos anti-incêndios instalados em cada andar. Os próprios
bombeiros testemunharam: os extintores e as mangueiras estavam intactos em seus
lugares.
A revista Manchete, de Adolpho Bloch, assim
como quase todo o restante da imprensa, denunciou a antiquada legislação em
vigor (se é que se poderia usar o termo “legislação” para algo que era
“opcional”) e o total descaso das autoridades que na prática nada haviam feito
depois da tragédia do edifício Andraus e de suas cenas chocantes.
(...) “A população paulista, entretanto, prefere acusar o seu Código de
Obras, um documento em vigor há 40 anos, quando a cidade tinha menos de um
milhão de habitantes. Obsoleto, sem qualquer adequação com a realidade de hoje,
o velho código permite a construção de edifícios sem os modernos sistemas de
prevenção contra o fogo, dos quais a técnica hoje dispõe. As próprias
construtoras é que procuram dotar suas obras da maior segurança possível, mas
esta segurança é relativamente opcional: faz quem quer e compra quem puder.
Enquanto isso o fogo se encarrega de provar que há algo de exageradamente
combustível nos gigantes de concreto armado”.
Considerando que o Joelma “não era um
pardieiro caindo pelas tabelas”, falar em “fatalidade” era ofender o senso
comum, lembrou a revista, externando seu pessimismo quanto aos resultados das
investigações. Oitocentas e sessenta e uma pessoas trabalhavam no prédio, das
quais cerca de 600 estavam no local, à hora do início do fogo.
“Em
sua maioria, as vítimas trabalhavam na Crefisul, uma poderosa companhia
financeira que alugara a parte superior do edifício Joelma para ali instalar
seus escritórios. E o prédio, em si, não era um pardieiro caindo pelas tabelas.
Muito pelo contrário, tratava-se de um edifício novo, construído há pouco menos
de dois anos, com todos os chamados requisitos de conforto e a segurança – até
prova em contrário – era garantida pelo habite-se
das autoridades competentes. O inquérito que a Prefeitura de São Paulo mandou
abrir responderá a muitas questões levantadas por mais este desastre, mas a
conclusão final – a menos que se prove uma ação criminosa – revitalizará aquele
antigo substantivo polissílabo abstrato: fatalidade.”
(Manchete)
O prefeito (nomeado) de São Paulo era então o
jovem economista Miguel Colasuonno que, no dia seguinte ao incêndio, festejava
os seus 35 anos de vida. Uma semana depois tal autoridade editou um decreto
estabelecendo normas oficiais para ocupação dos edifícios, pela primeira vez
fixando a obrigatoriedade da instalação dos chuveiros automáticos (sprinklers)
nas construções. Também se passou a exigir escadas de incêndio e uma laje no
teto capaz de suportar o peso do pouso de um helicóptero.
Mesmo tardias, eram medidas que faziam parte
do primeiro e histórico regulamento oficial e efetivo sobre incêndios no Brasil,
espécie de marco divisor no assunto e para o qual quase duzentas pessoas
pagaram com a vida. Bem ao estilo brasileiro, não bastasse o acontecido com o
Andraus, em 1972, foi preciso mais uma grande tragédia, ao vivo e a cores, de
intensa repercussão mundial, para que São Paulo acordasse e tomasse
providências.
Doze
dias após o acontecido no Joelma, uma notícia vinda de Caracas, via agência
UPI, demonstrou cabalmente os resultados da presença de equipamentos de
salvamento na hora e local necessários – neste caso, sem intencionalidade
alguma. A presença fortuita de um guindaste gigante nas proximidades de um
edifício de 12 andares que pegou fogo na capital venezuelana acabou por salvar
a vida de mais de uma centena de pessoas, aglomeradas no alto do prédio e
resgatadas de lá graças ao manuseio inesperado do equipamento utilizado na
construção de outro prédio ao lado. “A presença de um guindaste ali foi
providencial”, reconheceu, aliviado, o comandante dos bombeiros locais – assim
como os brasileiros, sem escadas à altura da escalada.
Porto Alegre já havia sentido na carne o
efeito de pelos menos dois grandes sinistros com vítimas fatais e não precisava
mirar-se no exemplo do Andraus ou do Joelma para extrair lições e adotar
medidas de prevenção a tragédias.
Na tarde de segunda-feira, 3 de maio de
1971, poucos minutos depois das 15 horas, a cidade foi sacudida pela explosão
do depósito de Fogos de Artifício Fulgor, na rua João Inácio, número 138, entre
a avenida Voluntários da Pátria e a Presidente Roosevelt, no bairro Navegantes.
A chamada “tragédia do quarto distrito”, zona
operária e fabril, de casas modestas, quase às margens do Guaíba, matou pelo
menos oito pessoas, feriu mais de cinquenta, destruiu totalmente onze
residências e vários carros, quebrou as vidraças da Quarta Delegacia de Polícia
e causou danos materiais consideráveis em um raio de dois quilômetros. A
vibração foi sentida até mesmo em alguns edifícios do centro, a quatro
quilômetros de distância. Segundo testemunhas, “parecia que haviam jogado uma
bomba atômica ali”.
Depois de visitar o local, o arcebispo de
Porto alegre, d. Vicente Scherer, chegou a declarar ter visto “uma das maiores
catástrofes da história desta cidade”.
Contrariando suas práticas, o Correio do
Povo abriu de capa uma grande foto da explosão, vista de longe, com um imenso
rolo de fumaça se alteando contra o céu, e destacou, em letras garrafais, a seguinte
manchete “Explosão Arrasa Área do Quarto Distrito”. O jornal dedicou duas páginas internas ao
acontecido.
Segundo testemunhas, uma explosão fortíssima
foi seguida por uma segunda, tão forte quanto a primeira, enquanto labaredas
subiam a grandes alturas. Um cogumelo de fumaça elevou-se contra o céu, onde,
coincidentemente, naquele momento passara um avião que havia decolado do
aeroporto Salgado Filho – muitos moradores imaginaram que ele havia caído e
explodido contra o solo. De igual forma não se descartava, em um primeiro
instante, um atentado de “grupos terroristas” – a luta armada contra o regime
militar estava em pleno curso.
“De longe, em todos os cantos da cidade, o
cogumelo foi avistado”, assinalou o Correio.
Veja, em sua edição 140, de 12 de maio,
dedicou uma página ao assunto (“Os fogos da morte”) e também traçou comparação
imaginária com um grande acidente aéreo: “Os
quase cinquenta repórteres que correram para o local, na tarde de segunda feira
passada, levavam inicialmente a incumbência de cobrir um desastre de avião,
única explicação que os primeiros informantes davam para as proporções do
acidente”.
Logo em seguida guarnições do Corpo de
Bombeiros, conduzindo cerca de 100 soldados, 12 viaturas transportando 60
homens da Polícia do Exército, todas as camionetas do Serviço de Ronda e
Vigilância da Polícia Civil, cinco ambulâncias do Hospital de Pronto Socorro e
duas da Associação dos Funcionários Municipais, mais três veículos do Instituto
Médico Legal, convergiram para o local.
“A
confusão era total”, descreveu o repórter da Caldas Júnior. “Os moradores das vizinhanças, os que se
encontravam em casa, além dos ferimentos recebidos pelo desabamento de paredes
e telhados, encontravam-se em estado de choque. Havia vários focos de incêndio.
Documentos, retratos, roupas, pedaços de móveis, utensílios de cozinha
amassados, material de escritório, tudo se misturava a estilhas de tijolos,
telhas, pedaços de vigas, fogos de artifício ainda intactos, fragmentos de
carne humana, automóveis destroçados e algumas paredes de pé cujas janelas
olhavam nuas para o nada”.
Funcionário de uma oficina situada nas
vizinhanças (rua Santos Dumont), o mecânico Valtoni Spíndola, de 39 anos, foi
um dos primeiros a chegar ao cenário da explosão e lembrou que “estremeceu
tudo” devido ao impacto.
“Os fogos ainda estavam explodindo, mas
assim mesmo me meti entre os escombros e pude retirar dois homens e duas
mulheres, todos com vida. Outro homem que arrastei estava morto”, relatou ele.
Valtoni colocou os feridos em automóveis que
passavam, enviando-os aos hospitais mais próximos, enquanto presenciava pessoas
em pânico correndo pela rua e “gritando como loucos”.
Dezenas de repórteres que acorreram ao local
constataram um “cenário de filme de guerra”. Um deles, transmitindo ao vivo
pela tevê, comentou: “Isso não é o Vietnã, é Porto Alegre em 197l”. Cerca de sessenta feridos foram conduzidos ao
Pronto Socorro. Sobre um telhado, a mais de meia quadra, recolheu-se pedaços de
um homem. Já o proprietário do estabelecimento, Clemente Dias de Andrade – que
se encontrava na fábrica no exato momento da explosão – foi literalmente
pulverizado.
Uma dessas históricas quase incríveis que
parecem acompanhar tais catástrofes foi relatada por moradores próximos – o de
uma moça chamada Elsa Borges, de 19 anos, que residia em uma casa nos fundos do
depósito da Fulgor em companhia de um irmão. Conforme os vizinhos, Elsa – dada agora
como desaparecida – residia lá fazia pouco tempo. Fugindo ao trauma e buscando
uma vida nova, ela e o irmão tinham vindo de São Paulo, onde seus pais teriam
morrido em um incêndio acontecido na fábrica da Volkswagen de São Bernardo do
Campo, em dezembro de 1970.
Azar também teve o menino Ângelo Biazeto,
filho de um representante comercial que estava carregando sua camioneta DKW com
uma partida de foguetes. Ele brincava em frente ao prédio quando tudo
aconteceu. Em compensação, uma menina de cinco anos, Márcia Rosa Lopes, filha
de um viajante e moradora em uma casa vizinha ao depósito de fogos, foi
apontada pela imprensa como a sobrevivente milagrosa da catástrofe. Mais de
duas horas depois de iniciados os trabalhos dos bombeiros, ela foi descoberta
pelo choro quase imperceptível que provinha dos destroços.
O bombeiro que a recolheu não resistiu à
emoção e também chorou convulsivamente ao ver tal criança ali, em estado de
choque, mas sem ferimento algum: a pequena, na verdade, estava caída em um vão,
entre a geladeira e uma laje.
O milagre, por assim dizer, não era algo
individual e sim coletivo e somente uma imensa dose de sorte pode explicar
porque dezenas de outras pessoas não perderam a vida naquela tarde de segunda-feira:
atrás da fábrica Fulgor localizava-se uma grande arrozeira com mais de 200
empregados, os quais, tal hora da tarde, faziam o seu lanche habitual, desta
vez encerrado minutos antes da explosão. Já os 500 mil sacos de arroz estocados
junto a uma das paredes laterais acabaram por servir de escudo ao impacto e às
chamas na hora da explosão, e isto salvou muitas vidas.
Não tardou a ser apurado que a fábrica de
artifícios – na verdade um tosco armazém de dois pisos, um antigo sobrado concentrando
não só foguetes e bombinhas de traque – estava abarrotada de explosivos a base
de pólvora, em desobediência ao plano diretor do município que proibia essa
atividade naquela área. O alvará expedido pela Prefeitura somente autorizava a
venda de explosivos e não a sua fabricação.
A tragédia, de fato, fora anteriormente
sinalizada: o depósito já havia sofrido duas explosões menores e não dispunha
da mínima segurança. Mas, como de regra, nada de efetivo fora feito ou cobrado pelas
autoridades.
Entre as hipóteses aventadas como causa da
explosão, a primeira dizia respeito a um caminhão carregado que teria tocado um
fio de energia elétrica, na rua, originando curto-circuito na rede. Mas nunca
se soube e provavelmente jamais se saberá de coisa alguma: o inquérito a
respeito nunca foi divulgado. Em 1971 tais fatos não precisavam ser respondidos
ou explicados.
No editorial “Lições da Tragédia”, o Correio
do Povo comparou as cenas ao cogumelo atômico de Hiroxima, em 1945: “Porto Alegre, nestes dias, é uma cidade
abalada com a catástrofe que ocorreu no Quarto Distrito. (...) “Os jornais, as rádios e as televisões
revelaram ao povo de Porto Alegre e de todo o Estado cenas de devastação e de
horror: casas demolidas, destroços humanos, paredes desabando, as nuvens da
fumaça repetindo, no espaço, o cogumelo apocalíptico de Hiroxima e Nagasaki. Os
que assistiram a tragédia reagiam como se estivessem diante do absurdo.
CP |
Dias depois alguns adolescentes se
transformaram em vítimas correlatas dos fogos fabricadas pela Fulgor. No sábado,
8, na rua São Carlos, cinco meninos brincavam com um insólito artefato que
haviam encontrado em meio aos destroços quando este subitamente explodiu. Um
dos garotos perdeu a mão direita.
Nas semanas seguintes à explosão, os
debates, os discursos e o conhecido jogo de empurra-empurra e de cobranças de
culpa frequentaram as páginas dos jornais e geraram eloquentes pronunciamentos
na Câmara de Vereadores. Em resposta, policiais e órgãos do executivo
municipal, por sua vez, fizeram algumas vistosas (sempre acompanhados da
imprensa) operações de fiscalização e aplicação de multas – a costumeira
encenação que se segue às tragédias de impacto. A igreja católica, por seu
turno, mobilizou-se em favor das vítimas da catástrofe, lançando uma campanha
de doações e de amparo aos feridos carentes – alguns deles mutilados - e suas
famílias.
Na sessão da Câmara Municipal o assunto
motivou inúmeros pronunciamentos e um pedido de informações ao prefeito
municipal, Telmo Thompson Flores, encaminhado pelo vereador Glênio Peres, do MDB,
partido cujo líder, César Mesquita, cobrou duplamente das autoridades
executivas, considerando o fato dos depósitos de explosivos serem controlados
pelo Exército, “e desde 1964 o controle foi ampliado”.
“Os responsáveis pela tragédia do Quarto
distrito devem ser apontados”, pediu Mesquita. Já o vereador situacionista
Martin Aranha, líder da Arena, considerou que houve uma “burla” por parte da
empresa Fulgor, já que o alvará só autorizava a venda e não a fabricação dos
foguetes.
O tema também repercutiu na Assembleia
Legislativa, onde o deputado Pedro Simon, de 41 anos, manifestou seu pesar e
solidariedade às vítimas, ao passo que sugeria um estudo detalhado, a fim de
que a legislação impeça a localização de uma firma de explosivos “no centro de
uma região tão populosa”. O governador e major reformado Euclides Triches, de
57 anos – engenheiro caxiense que assumira o cargo havia menos de dois meses –
esteve pessoalmente no Hospital de Pronto Socorro, em visita aos feridos lá
internados.
Enquanto isso, menos solidários em seus atos,
ladrões promoviam um lucrativo saque em muitas das casas danificadas pela
explosão e que haviam sido abandonadas por seus moradores, o que fez com que a
polícia, de forma evidentemente tardia, montasse um esquema de policiamento no
local.
CINCO MOÇAS MORREM ABRAÇADAS NO BANHEIRO DAS
LOJAS AMERICANAS
A tragédia das Americanas evidenciou os problemas com os hidrantes e a precariedade dos bombeiros; 1973. |
Dois anos e meio depois da Fulgor e um mês
antes do Joelma, a 29 de dezembro de 1973, um sábado (início de um feriadão,
pois o dia primeiro cairia na terça-feira), uma pequena confraternização de
final de ano dos funcionários das Lojas Americanas, conhecida rede de magazines
com filiais espalhadas por todo o Brasil, transformou-se em uma tragédia que
estragou o Reveillon de muitos gaúchos.
E aconteceu em um conhecido edifício comercial
do centro da cidade, na rua da Praia, quase esquina com avenida Borges de
Medeiros, a hoje “Esquina Democrática”. Não causou mais vítimas porque, por um
destes desígnios da sorte, não havia movimento de clientes. Dos cerca de
trezentos funcionários não mais do que quinze estavam no local - os demais,
encerrado o coquetel, haviam saído fazia minutos.
Tal como o edifício Renner, o prédio era uma
jaula, com apenas duas saídas para diferentes ruas e quase todas as janelas
vedadas por grades. A causa mais provável teria sido – assim como na Renner –
um curto-circuito elétrico no interior da sorveteria, no lado da rua dos Andradas.
O fogo iniciou por volta das 15h30min, denunciado
pela fumaça que vinha do painel de eletricidade da sobreloja. Cercadas por fogo
e fumaça, em pânico, Sueli Ferreira Lopes, Remildes Maria de Jesus, Marli
Silva, Iracema Mengaldo e Marli Almeida buscaram abrigo no banheiro do segundo
andar. Morreram por asfixia – abraçadas. Já a colega Vera Lúcia Leche, de 23
anos, conseguiu chegar a uma janela e de lá saltou sobre a marquise,
despencando sobre a calçada de uma altura de sete metros. A despeito de graves fraturas,
foi a única sobrevivente do grupo. Um popular quis entrar no prédio para
salvá-las, mas foi impedido pela polícia e preso por desacato. Vários botijões
de gás de cozinha explodiram no interior da loja, como se fossem bombas de
guerra. Todo o centro de Porto Alegre foi interditado.
Os bombeiros chegaram em 20 minutos (ou 30,
afirmaram alguns), sem escadas, sem máscaras contra gases, sem instrumentos de
demolição de janelas e grades e com um dos carros sem água. Água que também faltou nos hidrantes – ou
melhor, faltaram os hidrantes, retirados por contingência das muitas obras que rapidamente
iam cobrindo a cidade com um tapete de cimento e concreto. Valendo-se de uma
lancha da corporação, cerca de 100 mil litros precisaram ser bombeados do Guaíba,
a meio quilômetro de distância.
Mais tarde soube-se (ou pelo menos assim se
alegou) que, dos 12 hidrantes ao longo da Rua da Praia, nenhum funcionou naquela
hora – ou estavam estragados ou simplesmente não puderam ser operados pelos
bombeiros.
Em sua edição de 9 de janeiro (“O preço da
água”), a revista Veja enfocou a questão crucial: “Entre as acusações estava a de que faltou água na hora de combater o
fogo, pois muitos hidrantes foram retirados em consequência de obras
municipais. Além disso, alegando que a água tratada está muito cara e a
prefeitura precisa economizar, 100 000 litros foram bombeados do rio Guaíba, a
500 metros de distância. O município deve estar satisfeito. Menos cinco
consumidores para uma água tão cara em tempos de rigorosa economia”.
Defendendo-se das críticas, os bombeiros
pediram maior fiscalização da prefeitura, garantindo que, neste caso, não lhes
foram passadas as mínimas informações necessárias - sequer lhes disseram que
havia gente no prédio, lembrou o comandante da Brigada Militar, coronel Clóvis
Antônio Soares.
À noite eles ainda trabalhavam no rescaldo das
Americanas quando foram chamados a atender uma nova ocorrência: parte do mercado
público estava sendo consumida pelo fogo – treze bancas do centenário prédio ficaram
totalmente destruídas, um entre vários incêndios que acometeram o histórico
local.
Na esteira da tragédia das Americanas, a
fim de acalmar o clamor público, encenou-se a mesma e surrada ciranda de
hipocrisias, jogos de cena e ocos brilhos retóricos (“vamos estudar medidas”).
Uma “comissão especial” foi constituída rapidamente por Telmo Thompson Flores
“para definir de uma vez por todas um código de normas de prevenção contra
incêndios”, ocasião em que o prefeito ressalvou que “este assunto é um dos mais
polêmicos da atualidade, tanto assim que em nenhuma parte do mundo se chegou a
uma conclusão definitiva a respeito. A prevenção de incêndio é muito complexa”.
Lembrou ainda que aquela não era a primeira vez que se preconizava a
necessidade de tal código de prevenção: na segunda administração José Loureiro
da Silva, no início dos anos sessenta, uma comissão semelhante dedicou-se por um
ano a tal tarefa e acabou por não chegar à conclusão alguma.
A despeito disso o prefeito prometeu que
daria todo apoio e todos os recursos necessários aos bombeiros. Ao mesmo tempo esquivou-se
das críticas à falta de hidrantes, dizendo que isso não cabia à Prefeitura e
sim ao Corpo de Bombeiros, do Estado: “Eles indicam os locais e o DMAE
(Departamento Municipal de Águas e Esgotos) providencia a colocação”.
Por ironia, o próprio prédio central que
abrigava a grande maioria das secretarias municipais, na rua Siqueira Campos, tinha
sido notícia justamente por causa de um princípio de incêndio que acontecera no
final da noite do dia 2 de novembro de 73, uma sexta-feira, matando um servente
de pedreiro que trabalhava na reforma da secretaria da Fazenda, localizada no
terceiro andar. A vítima foi identificada como Rubens Riveira, 36 anos,
residente na Vila Farrapos. Ele foi encontrado horas mais tarde pelos técnicos
do Instituto de Criminalística que foram fazer o levantamento do sinistro.
Estava caído no interior de um pequeno banheiro junto ao elevador, provavelmente
morto pela inalação da fumaça. Talvez sem ânimo ou dinheiro para voltar para
casa depois do expediente, ficara irregularmente para dormir no local de
trabalho.
Em fevereiro de 1974, já com o caso do
Joelma em evidência, usando a tribunal do legislativo estadual, o deputado
Pedro Simon encaminhou um pedido de esclarecimentos sobre a situação dos
bombeiros gaúchos – com a adesão do colega Waldir Walter e do arenista Hugo
Mardini. Em longos discursos, os três reivindicaram maiores recursos “e outras
medidas do governo à prevenção e combate a incêndios em nosso Estado, em face
das últimas ocorrências trágicas”. Mardini, líder da bancada da Arena, lembrou
que um amigo seu, o engenheiro Rudolf Hoffmeister, havia perdido uma filha na
tragédia do edifício paulistano.
No dia primeiro de janeiro de 1974,
terça-feira, com a cidade ainda chocada com a tragédia da rua da Praia, o
Correio do Povo, em editorial “O Incêndio das Americanas”, falava que as cinco
jovens mortas “devem servir como trágica motivação para que se revise a
política de prevenção contra incêndios da cidade” – cidade, segundo o jornal,
“sem proteção contra incêndios”. A 15 de fevereiro, voltando ao tema, o diário
lamentava: “As experiências do passado
ensinam o povo a descrer do que lhe é prometido ao impacto de um grande
sinistro ou de um grande acidente, pois, ao passar do tempo, tudo é esquecido”.
No seu editorial “Lições da Tragédia”, na quarta-feira, 2, o
concorrente Zero Hora destacou o contraste entre a bravura dos bombeiros e a
precariedade dos equipamentos que estes tinham à disposição para o seu trabalho,
sobretudo a falta de hidrantes. Frisou ainda que “o prédio sinistrado era uma
verdadeira ratoeira” (“prédios cujas janelas sequer permitiram que as pessoas se
atirassem por elas”) e lembrou que as consequências seriam bem piores se o fato
tivesse acontecido em outro horário: “Dezenas de pessoas teriam sido vitimadas
pelas chamas ou pisoteadas num tumulto, caso o incêndio tivesse ocorrido em
hora de movimento comercial”.
No dia seguinte, em sua seção Informe
Especial, o tabloide da RBS voltou a criticar a construção de edifícios “sem as
mínimas preocupações contra o fogo”, bem como uma prática “verdadeiramente
criminosa, tolerada tanto pelos bombeiros quanto pela fiscalização municipal”:
a existência de portas cerradas entre os andares, fechando o acesso às escadas.
Considerando, sobretudo, que “está na hora de ser usado o poder de polícia para
evitar mortes perfeitamente evitáveis”, finalizava: “Enquanto os ratos andam às
soltas na cidade, ameaçando de epidemias a população, permite-se a existência
de ratoeiras para as pessoas humanas”.
O político e jornalista Mendes Ribeiro, no
mesmo jornal, em sua coluna, também criticou com contundência o descaso com a
prevenção a incêndios vigente desde sempre na capital e lamentou a morte das
cinco funcionárias, “gente humilde, que exalto”. Curiosamente – retratando, talvez, grande parte
da mentalidade da época – rebateu: “Não leiam aqui acusações contra os empregadores
das mortas. Não, nada disso. Fizeram o que podiam fazer, o que todos fariam que
(sic), afinal, o fogo não identifica antes de matar”.
Na verdade todos os empresários, sem
exceções, da boca para fora, se diziam sinceramente preocupados com o perigo de
incêndios e de tragédias humanas, todos apontavam deficiências, omissões e
culpas neste quesito – no entanto todos que assim falavam o faziam como se não
lhes competisse, individualmente, nenhuma ou quase nenhuma responsabilidade concreta
em tal questão: simplesmente isso era sempre passado adiante, a um terceiro, a “eles”,
geralmente “o Governo”, “as autoridades”, os bombeiros, ou algo ainda mais
incorpóreo e difuso: “a legislação vigente”. Bem ao jeitinho brasileiro, não havia mea
culpa. Entre culpados, omissos e coniventes, salvavam-se todos.
Ouvidos por Zero Hora nos dias seguintes à
tragédia (“Comércio preocupado com incêndios”, 6.01.74, domingo), todos foram
unânimes em reconhecer que “95% dos edifícios e casas comerciais de Porto
Alegre não possuem as mínimas condições de segurança contra incêndios”.
Boa parte de tais empresários culpou a
precariedade técnica do corpo de bombeiros de Porto Alegre e a “necessidade de
criação de leis que obriguem todos a se equiparem”.
“Porto
Alegre é talvez a única cidade do mundo em que os bombeiros vão encher os
tanques de água depois que o incêndio já iniciou”, comentou um comerciante. Já
o gerente de uma filial da Ibraco na rua dos Andradas disse que os
estabelecimentos comerciais deveriam “reagir energicamente” para impedir novas
tragédias. Ele achava que “deveria haver leis obrigando engenheiros e
arquitetos a incluírem nas plantas dos edifícios áreas próprias para evacuação
rápida”, opinião que era também do diretor das Lojas Safira: “Obrigam a usar
cinto de segurança nos veículos. Então por que não obrigam a construir prédios
com segurança contra incêndios?”. Já a
responsável pela Calçados Paquetá sugeriu que cada prédio tivesse uma escadaria
de emergência “que desse para a rua”, enquanto José, gerente da Casas
Pernambucanas, considerava os bombeiros “parcialmente culpados” pelo que
aconteceu nas Americanas: “Eles demoraram 40 minutos a chegar ao local”.
Preocupadas de fato estavam as funcionárias
da loja Lenarts, instalada em sala com apenas uma porta e sem nenhuma janela,
nos fundos de um prédio da rua da Praia. A gerente confessava estar “com a
pulga atrás da orelha”, mas garantiu que todas as suas funcionárias haviam
apreendido a manejar corretamente seus quatro extintores. A exemplo de tantos
outros, também criticou a falta de água no salvamento das Americanas: “Bombeiro
quer dizer socorro. Socorro quer dizer estar preparado para casos de
emergência. E estar preparado quer dizer tanque cheio”.
A imprensa mais uma vez descobriu o óbvio
ululante: 95% dos prédios de Porto Alegre haviam sido construídos sem qualquer
preocupação com os sinistros desse tipo, mais de 50% não trocavam a carga dos
extintores na época certa e 90% dos prédios residenciais não contavam com
qualquer sistema de proteção. E, claro, nenhuma fiscalização severa e periódica
era exercida por qualquer órgão municipal.
A repórter Marilena Marasca, de Zero Hora,
acompanhou a vistoria efetuada por um técnico em planejamento contra incêndios
nas duas semanas subsequentes ao acontecido nas Americanas. Era o distante mês
de janeiro de 1974 – mas talvez o resultado não fosse muito diferente do
encontrado no século 21.
Por exemplo, no edifício número 612 da avenida
Borges de Medeiros nenhum dos corredores dos seus 21 andares, onde viviam cerca
de 600 pessoas, possuía qualquer extintor de fogo, a escadaria tinha largura
para apenas uma pessoa passar, não havia portas de isolamento e os hidrantes
estavam instalados de forma errada. Segundo Fernando Vieira, técnico que
procedeu a vistoria, “este é o tipo do edifício que, se dá um incêndio lá pelo
décimo andar, o pessoal dos andares de cima não tem como escapar”.
No teatro Leopoldina, na avenida
Independência (aquele que teria um princípio de fogo em abril de 1976, durante
o show de Amelita Baltar), casa com mais de 1200 assentos, então o local preferido
para bons espetáculos em Porto Alegre, o panorama tampouco se revelava animador:
não havia extintores na sala de espera, nem junto à plateia e ou no mezanino –
quando tais equipamentos deveriam ser colocados na entrada e na saída, de forma
bem visível. O pior mesmo era o palco, considerado ainda mais perigoso pelo
técnico: “As instalações elétricas estão desorganizadas, puxam fios daqui e
dali, sem proteção. E este pequeno extintor (havia um apenas) é insuficiente”.
Conclusão: o Leopoldina não poderia ter
conseguido alvará do Corpo de Bombeiros, pois não possuía extintores à vista na
plateia e nem hidrantes exigidos para casa de diversões”.
O problema da falta de extintores à vista
era ainda mais notório em ambientes requintados. Os hotéis de luxo, por
exemplo, preferiam ocultá-los das vistas de sua distinta clientela. Em
contraposição, o tradicional cinema Vitória e o hospital Ernesto Dornelles
poderiam, então, ser definidos como padrões nesta área: possuíam extintores em
bom número, hidrantes adequados, saídas de emergência, instalações elétricas
isoladas por área (o que permitiria o uso de elevadores), depósitos de
materiais inflamáveis em local isolado e um quarto da água da caixa dágua
reservada para incêndios.
ILDO MENEGHETTI TENTOU MAS NÃO CONSEGUIU
A resistência – ou mesmo franca oposição –
dos empresários da construção à criação e aplicação de medidas legais de
prevenção de incêndios não era nenhuma novidade na história de Porto Alegre – e
provavelmente tampouco na história de todas as médias e grandes cidades
brasileiras. Vinte anos antes, no final de 1952, o então prefeito Ildo
Meneghetti tentou efetivamente implantar uma legislação moderna e inovadora
que, se levada a efeito naquela época, teria poupado posteriormente muitas vidas
humanas e milhões em prejuízos ao patrimônio da capital – inclusive evitando a
tragédia da Renner. Ele havia sancionado a lei 1023, proposta pelo vereador
Lúcio Marques, a qual previa a obrigatoriedade da instalação (em prédio a ser
construído ou mesmo reformado) com três ou mais andares – de dois reservatórios
de água com capacidade de 20 mil litros cada qual, um localizado no subterrâneo
e outro no alto, todos eles ligados a um simples e eficiente sistema de combate
ao fogo. Caso isso não fosse feito a municipalidade negaria o “habite-se” da
construção.
Imediatamente, em viva voz, o então Centro
de Proprietários de Imóveis manifestou o seu veemente protesto. A entidade,
presidida por Fanor de Azambuja Marsillac, classificou a lei como “inexequível,
antitécnica e, principalmente onerosa”, conforme registraram os jornais da
época. Pressionado, Meneghetti voltou atrás e não se falou mais no assunto.
Em junho de 1966, logo depois do incêndio do
edifício Mallet, no centro da capital e no qual até a década de 50, funcionava
o célebre e chique Grande Hotel, o tema voltou a ser debatido com intensidade.
O conhecido comissário E.W. Bergmann, em artigo para o Correio do Povo, da qual
era assíduo colaborador, considerou que “Porto Alegre é uma cidade ludibriada
em sua prevenção de incêndios”. Ele se
reportou a prédios públicos, como a Biblioteca do Estado, na rua Riachuelo e
onde mais de 80 mil volumes de papel poderiam arder a qualquer momento, já que
as instalações elétricas internas eram comprovadamente falhas e perigosas. O
local não tinha um plano de prevenção ao fogo, o que se verificou em dezembro
de 1965, quando um princípio de incêndio causado por um curto-circuito por
pouco não se alastrou pelas salas e depósitos do velho e mal-conservado prédio,
“um emaranhado de fios expostos”. O mesmo acontecia com o Museu Júlio de
Castilhos, ali perto.
Em julho de 1966, dez anos antes da
tragédia da Renner, o engenheiro Cláudio Hanssen declarou, em palestra aos
alunos da Faculdade de Engenharia da URGS: “Lamentavelmente, a quase totalidade
dos grandes edifícios de Porto Alegre, quer residenciais, quer de escritórios,
não dispõem de meio que, pelo menos, ofereçam segurança às vidas dos
ocupantes”. Ele pedia uma lei municipal de prevenção, “realmente adequada, sem
exageros, sem artifícios, reunindo a experiência de engenheiros, bombeiros,
legisladores, e que estabeleça um mínimo de proteção para os prédios que se
construírem”.
O jornalista Ivo Egon Stigger, em matéria de
página inteira no Correio, a 2 de maio, domingo, historiou a questão dos
incêndios e a legislação a respeito (“A Necessidade de Leis e Fiscalização Mais
Severa”). Ele via no cipoal da burocracia, nas burlas das normas, na morosidade
geral e na falta e na aplicação de leis claras e rígidas, bem como nas atitudes
desleixadas da própria população, o combustível maior para grandes tragédias
como a Renner e o Joelma. Um dos entrevistados, integrante da Comissão de Estudos
e Prevenção de Incêndios, criada em 1974, durante o governo Thompson Flores e a
primeira que a cidade já teve, o arquiteto David Leo Bonder, lembrou que vinte
milhões de cruzeiros – menos que o prêmio semanal da Loteria Esportiva – seriam
suficientes para tornar ideal a obsoleta e não padronizada rede de hidrantes da
cidade, ressaltando porém as responsabilidades do cidadão comum, pouco afeito
aos cuidados com segurança: “Pela
basculante do banheiro a turma joga pedaços de papel, revistas, embalagens de
xampu, etc, que se depositam no térreo. Um cigarro aceso pode custar 200 vidas.
A colocação de uma simples tela nos basculantes pode impedir o que a educação
não nos deu”.
O FOGO CONSOME A RÁDIO FARROUPILHA MAIS UMA
VEZ
O mês de janeiro de 1974 – cujas
temperaturas, como de habitual, chegaram a 38 graus na Capital e região
metropolitana – registraria outro sinistro, sem vítimas, mas de grande
repercussão noticiosa: no sábado, 12, no meio da tarde, os estúdios da Rádio
Farroupilha, no morro Santa Teresa, foram rapidamente tomados pelas chamas,
fazendo com que as 15 pessoas que lá estavam trabalhando naquele momento fugissem
correndo.
O fogo, provavelmente causado por um curto,
foi percebido no momento em que os apresentadores da casa gravavam o programa
Sou Fã de Roberto Carlos. Quatorze viaturas e mais de 60 homens do corpo de
bombeiros acudiram prontamente e conseguiram controlar a situação em 45 minutos.
Mesmo assim os danos foram consideráveis, atingindo os dois estúdios grandes da
emissora, o estúdio de comerciais, a central técnica, a central de esportes, a
direção, a discoteca e a fitoteca. Nesta última os prejuízos eram também
históricos – a fitoteca armazenava as gravações das vozes de grandes figuras da
constelação artística ao longo dos anos, acervo este que se perdeu.
A Farroupilha, aliás, já havia sofrido com o
incêndio de 24 de agosto de 1954, quando populares, militantes políticos,
acrescidos de vândalos e desordeiros, atearam fogo na emissora, então
pertencente ao grupo Diários Associados, para vingar a morte do presidente
Getúlio Vargas, no Rio.
Incêndios e sinistros em veículos de
comunicações nunca foram novidades. Em junho de 1972 (marcado, dia 14, pela
morte da jovem atriz Leila Diniz, em acidente aéreo na Índia, e pela ocorrência
de fortes chuvas que deixaram mortos e desabrigados em todo o Estado) tinha
sido a vez dos prédios da Rede Brasil Sul de Comunicações, também no morro
Santa Teresa.
Aquele 9 de junho entrou para a história da
RBS como a sexta-feira negra de prejuízos incalculáveis para a rede que
iniciava a sua forte expansão estadual. No sinistro perdeu-se equipamentos sofisticados,
três estúdios da Televisão Gaúcha, dois da Rádio Gaúcha e todas as instalações
da Rádio Porto Alegre, que operava em fase experimental (e onde começou o fogo),
além da aparelhagem da TV Tuiuti, de Pelotas, emissora que deveria ser
inaugurada dali a duas semanas.
Em rápida reação, sob o comando de Maurício
e Jayme Sirotsky, a empresa imediatamente deflagrou uma operação de guerra para
retomar as suas transmissões de televisão e rádio. A rádio Gaúcha voltou a
funcionar poucas horas depois, transmitindo da redação do jornal Zero Hora, via
telefone, para a residência de Maurício Sirotsky e de lá, por micro-ondas, para
os transmissores na avenida Getúlio Vargas. Enquanto isso, valendo-se de um
caminhão de externas, em breve se retomou a geração das imagens do Canal 12. Um
transmissor foi trazido da rádio e televisão Imembuí, de Santa Maria. A
Embratel, por sua vez, cedeu alguns equipamentos seus que estavam em depósito.
A Rede Globo, no Rio, também colaborou, enviando aparelhagem.
Já os soldados do fogo encontraram sérias dificuldades
operacionais: além do grande ajuntamento de curiosos no local, prejudicando o
trabalho, simplesmente não havia hidrantes no morro Santa Teresa. Também um
depósito de água com 500 mil litros, localizado junto à emissora, não pode ser
utilizado, uma vez que não havia tomada adequada para o encaixe das
mangueiras.
Na manhã de 30 de maio, um domingo cinzento
e úmido, o que havia restado da sede das Lojas Renner foi visto pela última vez
por centenas de curiosos que se comprimiam atrás do cordão de isolamento para
assistir o “gran finale”.
Em pequenos grupos, pouco mais de 200
pessoas comprimiam-se em um perímetro que compreendia as esquinas da Otávio
Rocha com a Senhor dos Passos, Doutor Flores com Andradas, Otávio Rocha com
Vigário José Inácio e Senhor dos Passos com Andradas.
Uma comitiva de dezenas de jornalistas, autoridades,
amigos e parentes das autoridades, penetras e alguns convidados Vips compareceram
ao local, todos portando crachás especialmente confeccionados pela Secretaria
da Segurança. Afinal, a inédita implosão era agora, digamos, um grandioso
espetáculo histórico, um momento único na história da cidade.
Na
sexta-feira, no seu espaço da Folha da Tarde, o cartunista Santiago, 25 anos,
publicou uma charge que valia por muitas palavras – acomodado em uma
escrivaninha, tendo ao fundo uma fileira de ônibus de excursão, um circunspecto
homem de óculos escuros cobrava ingressos da multidão. Acima, os dizeres:
“Neste local sensacional implosão. Sessão única. Ingressos aqui”.
Outro chargista, o veterano Sampaulo, pai do personagem “Sofrenildo”, compareceu
com uma charge de página inteira: “Coisas nossas: RGS – ano 2000”. Ao centro,
um único e solitário edifício era contemplado de longe por um grupo de turistas.
O guia explicava: “... E agora visitaremos o prédio que não incendiou”.
Inicialmente muito questionado, tal tipo de
destruição instantânea chegou a ser considerado “muito pouco viável,
principalmente porque pode ainda haver corpos soterrados e a implosão
acarretaria um maior entulho, impedindo a remoção de cadáveres que ainda se
encontram no local”, opinou o secretário Jorge Englert no início do mês de
maio.
Logo, porém, tais manifestações humanas de
escrúpulo e algum respeito para com os mortos foram atropeladas pela nova ordem
dos fatos e pela urgente necessidade de se “limpar” o centro daquele esqueleto malcheiroso
e incômodo, com sua inevitável carga de lembranças e cobranças.
Focando unicamente os problemas técnicos (e
certamente um tanto melindrado pelo esquecimento), um dos mais tradicionais
empresários do ramo de demolições na capital manifestou-se publicamente contra
a implosão – Leopoldo Lago de Castro entendia que o terreno no qual estava
assentado o edifício era movediço, “muito barrento e próximo do Guaíba”. Para
ele, a aplicação de tal técnica - que via “com muitas reservas” - abalaria os
prédios vizinhos. Antes disso, assegurou, era antes necessário um criterioso
estudo do solo. “É melhor prevenir do que remediar”.
Já os técnicos da Triton – os quais evitaram
a exposição pública - diziam estar mais preocupados com as condições climáticas
reinantes na data marcada, que não poderiam ser de fortes chuvas (“provocaria
uma diminuição da estática”) e nem de tempo muito seco, “com poeiras”.
No aspecto humano, no entanto, desde a data
da tragédia, o local se tornara um ponto central de aglomeração de populares e
curiosos e também o cenário que ainda alimentava a angustiante esperança de
alguns familiares em busca dos despojos insepultos de seus pais, filhos,
maridos, irmãos, parentes ou amigos, oficialmente dados como desaparecidos.
O caso de Rosemary Manomics, de 36 anos,
residente à rua Riachuelo, chamava a atenção: quase diariamente ela ia ao local
do sinistro e por vezes ao prédio do Instituto Médico Legal, na avenida João
Pessoa, tentando identificar algo do seu ex-marido Alberto, de quem estava
desquitada havia 11 anos – tarefa até ali em vão. Morador da cidade de Estrela,
Alberto, ajudante de engenharia, tinha vindo a Porto Alegre naquele 27 de abril
especialmente para comprar sapatos na Renner. “Depois ninguém mais soube
notícias dele. Não aguento mais essa angústia”, desabafou ela aos repórteres.
Sábado,
dia anterior à implosão, quase uma centena de quilos de explosivos havia sido
estrategicamente colocada em pontos sensíveis do prédio que, em poucos segundos
ruiria de “fora para dentro”, uma explosão peculiar, quase asséptica, sem
riscos para a vizinhança, garantiam técnicos e autoridades em tom de
autossuficiência. A implosão – neologismo consagrado a partir da experiência
pioneira com o edifício Mendes Caldeira (30 andares), em São Paulo, sete meses
antes, por si só já era um espetáculo: para aqueles que haviam assistido às
imagens na tevê, o efeito lembrava a “explosão de uma bomba atômica”.
Com efeito, durante semanas os técnicos da empresa
paulista Triton haviam planejado cuidadosamente a operação em Porto Alegre,
anunciada com muita antecedência e cercada de algumas polêmicas e
questionamentos. O nervosismo geral era visível: nada poderia dar errado. Ambulâncias
e policiais posicionados nas calçadas para o caso de qualquer eventualidade. Todos
os moradores dos prédios mais próximos foram evacuados, arcando com as próprias
despesas de translado, uma vez que nenhum hotel lhes foi oferecido pela Renner
ou pelas autoridades públicas.
A saída de casa era uma determinação, não
uma proibição – os que insistissem em ficar deveriam estar cientes de todos os
riscos e responsabilidades de tal atitude.
A maioria, no entanto, saiu ainda na noite
de sábado, pernoitando em casas de parentes e amigos. Os mais retardatários partiram
no início da manhã de domingo, ainda com cara de sono, levando os pertences que
julgavam mais necessários, já que só deveriam retornar aos seus apartamentos às
10 horas da manhã.
Destes, alguns demonstraram irritação com a
mudança forçada, o caso de dona Nelci Monteblanco, que residia no prédio 65 da
praça Otávio Rocha, o primeiro fora do limite estabelecido dos 100 metros de
segurança: “Tive que sair, mas acho que aqui existe muita ganância, querem
demolir logo para já fazer outra loja”.
Quase todos os que saíram pela manhã o
faziam com ar apreensivo. Alguns diziam que não havia muita certeza de que a
operação desse certo, envoltos em cuidados para não pisar nos fios amarelos que
já começavam a ser estendidos.
Levando seus dois filhos e duas sacolas de
roupas às mãos, dona Elisabete Fernandes disse aos repórteres, pouco antes de
partir: “Estamos apenas fazendo um passeio forçado, não tomei qualquer cuidado
em casa, só fechei bem as janelas para que o pó não entre. Como não temos parentes
aqui, não pudemos passar a noite fora”.
Dona Ieda Duarte, síndica do edifício
Comercial Louro, uma das últimas a sair, havia transferido sua mãe para um hotel
no sábado. “Só fiquei aqui porque pode ocorrer qualquer problema, como um morador
se recusar a sair do prédio”.
Dezenas de repórteres, cinegrafistas (a tevê
transmitiria flashes ao vivo) e fotógrafos colocaram-se a postos desde o início
da manhã: às seis horas, a área em volta foi isolada por soldados da Brigada
Militar e em seguida foi feita a verificação dos prédios vizinhos, para ver se
restava alguém lá dentro. Cinco viaturas dos Bombeiros se postaram na praça
Otávio Rocha, junto ao hotel Alfred, além de duas ambulâncias do Pronto Socorro
municipal. Cerca de 150 homens do Nono Batalhão da PM isolavam o local, sendo
que, até 100 metros do local da explosão, só entravam pessoas credenciadas.
O público – muitos com expressão aflita ou
comovida, outros com ar de gaiatos - começou a chegar já às oito horas da manhã,
disputando os melhores ângulos de observação. Alguns traziam binóculo, máquina
fotográfica ou filmadora. Os terraços dos edifícios mais altos estavam lotados
de curiosos e até mesmo os hóspedes do elegante hotel Plaza São Rafael, nas proximidades,
posicionaram-se às janelas.
Por sua vez, em frente à igreja do Rosário
os habituais mendigos e moradores de rua pareciam demonstrar pouco interesse no
espetáculo, alegando que “domingo é um dia para faturar, a gente não gosta de
abandonar aqui a porta, perdendo os devotos da missa”. Um deles considerou que o medo da “improsão”
e a chuva fria que teimava em cair haviam afastado muitos fiéis. Uma pedinte – descrita
como uma senhora de olhos muito azuis e cabelos totalmente brancos – lembrou
que havia perdido um filho em um trabalho de pedreira e que tinha horror à
dinamite: “Se soubesse da explosão, nem tinha vindo”.
Aquela era a terceira vez que se fazia uma
implosão no Brasil e a primeira em que se contratava uma empresa nacional – a
Triton S.A., com sete anos de experiência na área, a mesma do Mendes Caldeira, prédio
demolido para dar passagem à linha do metrô paulistano. A demolidora orgulhava-se
de ter absorvido o “know-how” norte-americano em tal setor, e que, em sua
origem, baseava-se nas técnicas utilizadas em minas da América do Norte.
Segundo o engenheiro responsável e diretor
técnico da empresa, Hugo Takahashi, 365 bananas de tritonita, uma variante da dinamite
desenvolvida (e batizada com este nome) pela Triton, dariam cabo das fortes
estruturas construídas havia quase meio século. A “tritonita”, ensinou, é um
explosivo de alta velocidade, grande força de expansão, insensível a choques
mecânicos, à fricção e isento de gases tóxicos. Sua formulação foi aprimorada
por ele, Hugo, depois de um mês de pesquisas nos laboratórios do Exército
Brasileiro, na Serra da Mantiqueira.
Takahashi explicou que o princípio básico da
implosão é cortar vigas e colunas com a finalidade de “descalçar” o
prédio. Sendo assim, as vigas que estão
no centro têm que ser as primeiras a ceder, já que o edifício precisa desabar
para dentro, na direção do seu ponto de equilíbrio. Na implosão da Renner
seriam usados 93 quilos de tritonita – os outros 50 haviam sido utilizados nas
explosões preparatórias preliminares. No entanto o técnico considerou a
implosão de Porto Alegre diferente das demais já feitas pela empresa, já que
desta feita eles não contavam com a orientação da planta arquitetônica da obra,
queimada durante o incêndio. Assim, para evitar surpresas, algumas paredes do arcabouço
restante do edifício foram antecipadamente retiradas com vistas a permitir mais
espaço para a queda do material. Havia mais de quinze dias que técnicos vindos
de São Paulo trabalhavam nos destroços.
Os jornais descreveram os minutos que precederam
o acionamento: às 8h40min os técnicos saíram da área cercada pelo tapume e se
dirigiram para a escada da praça Otávio Rocha que fica defronte à porta do hotel
Alfred, trazendo “os fios amarelos” ligados ao detonador e que comandariam todo
o sistema. Às 8h50 soaram as sirenas de um carro dos bombeiros, alertando que
faltavam três minutos para a explosão, algo que se repetiu dez segundos antes
do final, concedendo-se assim mais três minutos adicionais de prazo.
Eram exatamente 8 horas e 58 minutos quando
se ouviu um barulho surdo calculado em cerca de 80 decibéis, seguido de uma
grande nuvem de poeira branca que envolveu toda a praça. Pequenos pedaços de
pedras voaram a uma distância de até 30 metros. Do início ao fim, até o momento
em que todo o prédio ruiu sobre sua própria base, passaram-se apenas seis
segundos.
A Folha da Tarde descreveu o espetáculo: “Um estrondo semelhante ao disparo de um
canhão, seguido de dez outros de menor intensidade, sacudiram o local. No
primeiro som, uma pequena nuvem de pó saiu do meio do edifício, que se uniu com
a imensa fumaça que se ergueu na base, na sequência das detonações, escondendo
a estrutura que começou a cair seccionada. Em um momento, a imensa nuvem de
poeira se expandiu, alcançando uma altura aproximada de 25 metros e um raio
semelhante. No minuto seguinte, começou a baixar o pó e os escombros do que
antes havia sido a Renner surgiram em meio à névoa, num espetáculo surrealista”.
Junto com o barulho das detonações foi ouvido um som de vidros
quebrados das vitrinas da Comercial Louro, na esquina oposta, e da churrascaria
Quero-Quero, as duas atingidas por pedras lançadas no espaço – danos estes que
seriam cobertos pelo seguro que a Renner havia firmado. Os manequins e a
decoração interna da loja também vieram abaixo.
Diversos outros estabelecimentos comerciais das
imediações sofreram avarias nas suas vitrines, enquanto muitas pessoas correram
assustadas, incluindo um policial que depois se desculpou: “Eu fui fugindo da
poeira”. Nas igrejas de São José e do Rosário, ali próximas, os padres
interromperam as missas e pediram orações em favor das vítimas de 27 de abril.
Assim que se dissipou a espessa nuvem foi-se
embora também a carga de tensão humana que antecedeu todo o espetáculo. Aliviados
e tentando disfarçar o nervosismo, os funcionários da empresa começaram a
conversar animadamente com os repórteres e as autoridades. Hugo Takahashi
comentou, satisfeito: “A implosão foi perfeita”. O major Clóvis repetiu a
expressão e o secretário Jorge Englert foi ainda mais ufanista: “Isso é uma
prova do adianto da engenharia brasileira”.
Praticamente toda a cidade de Porto Alegre ouvira
o barulho, semelhante ao de um avião voando muito baixo, e sua nuvem de poeira foi
avistada a muitos quilômetros de distância. Para surpresa geral, minutos depois
a janela de um edifício da Otávio Rocha descerrou-se para revelar expressivas faces
vincadas: contrariando as ordens oficiais de abandonar o local, sem luz
elétrica (cortada na noite anterior), duas velhinhas que moravam juntas trancaram-se
furtivamente em seu apartamento e lá ficaram até quando tudo acabou.
Quem também ficou – ou melhor, resistiu –
foi um objeto inanimado e emblemático. Intacto, se destacava à vista entre
todos os despojos e negrumes oriundos da grande explosão: o cartaz da campanha
“Vivre”, aquela cujo anúncio foi publicado nos jornais no dia 27 de abril,
“Basta uma vontade louca de viver, e pronto”.
Findo o grandioso espetáculo, o público assistente
– alguns vindos do interior especialmente para ver o evento - dividia reações a
respeito. O pensativo José Prezer lembrava o acontecido no final de abril.
“Trabalhei na Renner, revistando os aparelhos de ar-condicionado. Da implosão
não deu para ver muita coisa, mas acho que isso não vai conseguir apagar
aquelas imagens horríveis na história da cidade”. Já a doméstica Ereni da Silva
disse ter sentido uma “sensação horrível”: “- Parecia que o mundo vinha abaixo,
mas acho que foi a melhor solução, demolir aos poucos seria pior. Só o que é
triste, na minha opinião, é que os corpos ficaram ali, sei que os parentes
dessas pessoas não poderiam discordar, mas é triste saber que não se tem nem o corpo
da pessoa depois de morta”.
Empunhando um guarda-chuva, envolto dos pés
à cabeça em agasalhos, um homem queixava-se, decepcionado: “Não deu pra ver
nada, só a nuvem de poeira”. Outro senhor que havia chegado cedo ao local e depois
seguiria para a missa, opinava para terceiros que “era pecado explodir corpos”,
argumento um pouco divergente da opinião emitida pelo pintor Nei Vieira dos
Santos, de 40 anos, casado, cinco filhos, para quem tudo aquilo era “um
milagre” que já estava previsto na Bíblia, nos escritos dos profetas, nas
palavras de Jesus, e só acontecera realmente “por força de Deus”.
Charge de Sampaulo, na Folha da Tarde. |
Argentino e estudante de Sociologia, um
rapaz chamado Ricardo revelava-se bem menos emocional em suas impressões. Há
dez anos no Rio Grande do Sul, ele considerou tudo aquilo “belo, mas triste”, e
lamentou que o Brasil – capaz de, neste caso, ter uma tecnologia que nem o seu
país possuía – não se valesse de técnicas tão precisas no tocante à prevenção de
tragédias. Para o futuro sociólogo tais coisas não poderiam, de modo algum, ter
se repetido depois do ocorrido com as Lojas Americanas. Também criticou as
condições de trabalho dos bombeiros locais: “Na Argentina as escadas Magirus
são altíssimas, com plataformas mecânicas a cada dez metros, abastecidas com
jatos poderosos de água e com espaço para permitir a ação de pelo menos três
bombeiros”.
Perto dele, dona Zilda Ferreira, proprietária
de um restaurante no centro, disse ter sentido um pouco de medo antes da
implosão. “Mesmo eles dizendo que seria segura, a gente nunca sabe o que pode
acontecer. Mas é triste a gente assistir uma coisa que teve o sacrifício de
vidas humanas”.
Autêntico turista da implosão, vindo de
Tapes, cidade a 100 quilômetros da capital, seu Constantino Medeiros mostrava-se
emocionado com o que havia presenciado – ele mal conseguia falar e preferia não
se aproximar muito dos monturos. O mesmo fez o casal Sebastião José e Edi Melo,
pelotenses que adiaram a sua viagem de volta a fim de assistir a cena - eles
diziam “não ter palavras”. Por sua vez as
porto-alegrenses Araci Morfeu e sua filha Susana não se importaram em pagar uma
corrida de táxi da avenida Azenha até a avenida Salgado Filho. Emocionadas, as
duas garantiam que “o espetáculo valeu a pena”, opinião compartilhada pela
estudante Márcia, que viera da Praia de Belas com seu pai - os dois chegaram pontualmente
às oito horas da manhã. Márcia considerou o efeito “fabuloso”. Bem menos entusiasmado com o que vira “em um
piscar de olhos”, João de Lima, 39 anos, achava que “as coisas só têm graça no
momento em que estão acontecendo”. Ele classificava a implosão como “uma coisa
natural, que amanhã todo mundo já esqueceu”. Já Leo Oliveira, antigo morador do
centro, traçava comparações entre o que havia presenciado naquela manhã e a
lenta e cansativa demolição do Grande Hotel, dez anos antes: “Hoje em vi um
edifício cair em poucos segundos. Eu lembro que o Grande Hotel foi demolido a
picareta. Se existisse esse método naquela época seria tudo bem mais fácil”.
Igualmente pragmático e, sobretudo, aliviado,
Oscar Kurtz, do departamento de relações públicas das Lojas Renner, foi um dos
primeiros “expulsos” da vizinhança a retornar com a família para casa, um
apartamento no segundo andar do prédio número 190 da rua Doutor Flores e onde a
luz ainda não havia sido religada, tanto que eles tiveram de subir com cuidado
as escadas recobertas de pó e estilhaços de vidros.
Maria Luísa, tia, lembrou da tragédia que
assistiu dali mesmo e cujas lembranças não a abandonavam desde então: “Foi como
ter visto o inferno na Terra. E a gente ainda fica mais triste quando sabe que
no meio destes escombros existem cinzas de cadáveres. Mas a operação foi perfeita”.
Na verdade, foi tudo muito perfeito e
técnico, “aborrecidamente técnico”, anotou um repórter. De qualquer forma a
destruição dos escombros punha um termo final à busca pelos restos dos desaparecidos.
Destes, três trabalhavam na própria loja e os demais eram pessoas que saíram de
casa dizendo que iriam fazer compras na Renner e nunca mais retornaram.
Na seção “Correio do Leitor” de terça-feira
(o CP não circulava nas segundas), primeiro de junho, alguém, assinando com as
iniciais C.E.M, escreveu a respeito da implosão e, de quebra, propôs algo
insólito, ou talvez irônico, no tocante à memória das dos prováveis
desaparecidos e que jamais seriam identificados:
“Efetivada a implosão do que restava do prédio de Lojas Renner, viam-se
dezenas de caminhões removendo os entulhos a fim de restabelecer, no mais curto
espaço de tempo, a normalidade do trânsito do centro da cidade. Tive
oportunidade de observar que grande parte do material em remoção está sendo
espalhado nas obras do aterro do futuro Parque Marinha do Brasil, no Menino
Deus.
“Misturados com aquele material, existem cinzas de cerca de 15 pessoas,
cremadas no mais pavoroso incêndio que Porto Alegre já assistiu. Ocorreu-me
então uma ideia que apresento como sugestão ao Prefeito Municipal: espalhar
cinzas humanas em parques públicos ou particulares é prática tradicional em
vários países. Por que não se aproveitam as circunstâncias para erigir, na área
aterrada, um mausoléu com nomes daqueles cujos corpos foram incinerados?
“A
cidade, que acompanhou compungida o seu trágico final, estaria, desta forma,
prestando-lhes uma perene homenagem e seus familiares teriam um local digno
para reverenciar suas memórias”.
Já o historiador Sérgio da Costa Franco
cobrou “mais respeito” para com os mortos e apontou o que considerava um
leviano espetáculo circense, “algo quase festivo” que envolveu a implosão do
edifício incendiado. Franco lamentou que sequer uma simples homenagem, ou
simbólica cerimônia, fosse feita no local da tragédia.
(...)“Mas
onde ficou o respeito que se deve tributar aos mortos? Teriam esquecido que
ali, sob os escombros das Lojas Renner, perduram os restos de quatorze
desaparecidos, presumivelmente sacrificados no sinistro? Havia, pelo menos,
três funcionários da firma, que se achavam trabalhando na ocasião do incêndio e
nunca mais apareceram. E onze outras pessoas que saíram de casa declarando como
destino o estabelecimento fatídico, e que não retornaram a seus lares.
“Quatorze soldados desconhecidos da selva urbana deixaram seus corpos
irremediavelmente misturados ao entulho e ao pó da festejada implosão. E não li
que tivesse havido alguma homenagem fúnebre em sua memória, antes da final
destruição de todos os vestígios. Nem um sino que dobrasse a finados, ou uma banda
que entoasse a marcha fúnebre. Ou um simples clarim que tocasse e continência
aos mortos.
(...)
“Penso, todavia, nas famílias desses mortos jamais encontrados. Imagino que se
tivesse perdido algum dos meus, ainda estaria pessoalmente remexendo nos escombros,
à procura de um anel ou de um sapato, de uma fivela de cinto ou de uma carteira
de identidade. E que olharia aquelas ruínas como se fossem a própria sala de um
velório nunca encerrado. Envio daqui a mensagem de solidariedade a essas
famílias pobres e sem brasões, que não tiveram a graça de um responso pelos
seus mortos. Eles morreram e foram inumados como autênticos cidadãos de uma
cidade sem alma. E de escassa piedade”.
Com razão, familiares e amigos destes vinham
tentando, sem sucesso, adiar a implosão – eram, contudo, vozes demasiado fracas
para serem ouvidas.
Bem antes disso,
na noite do dia 15 de maio, sábado, uma equipe de médicos, odontologistas,
legistas e peritos conseguiu identificar (ou assim afirmaram) três corpos: Luísa
Rodrigues Fernandes, 30 anos, Shirley Chaves, 39, e José Francisco Nunes
Cerqueira. Eles foram encontrados por volta das 14 horas por uma equipe de
funcionários da Triton que fazia a remoção dos escombros. Estavam vestidos e
não portavam documentos.
“Com
certeza não há mais nenhum aqui”, declarou um dos técnicos, em tom definitivo.
Captada a senha, as autoridades municipais
sentiram-se à vontade para proclamar que o período de resgate dos corpos estava
definitivamente encerrado: o empenho para encontrar aqueles que constavam na
lista dos desaparecidos cedeu lugar aos preparativos técnicos que antecediam a
implosão.
Nesse meio tempo os operários comentavam
coisas que logo ganhavam às ruas e respingavam nas redações dos jornais.
Sabia-se que a quilômetros dali, em um conjunto de barracos da Vila Farrapos,
zona norte da cidade, algumas crianças maltrapilhas, habituadas a brincar com o
lixo, haviam encontrado coisas estranhas e malcheirosas em um terreno baldio. A
despeito disso, no aterro sanitário do Departamento Municipal de Limpeza
Urbana, na rua Frederico Mentz, as caçambas prosseguiam despejando peças de
roupas, máquinas e tecidos quase intactos – o espólio do grande empório Renner,
devidamente ressarcido pelo seguro.
Plenamente satisfeitos com os resultados da
célere demolição das sobras do antigo edifício, os diretores da Renner agora só
pensavam em erigir uma nova e moderna construção em cima do mesmo valorizado
local. Contratado para levantar a nova loja, o engenheiro Hugo Roque Bing se
mostrava entusiasmado com a oportunidade a ele confiada, declarando textualmente
aos repórteres que pretendia “tirar proveito da desgraça”, melhorando
determinados detalhes da obra a ser erguida no prazo mais rápido possível. “Se
for possível, trabalharemos 24 horas por dia, dia e noite, porque esse serviço
tem que ser feito logo”. Para tanto, a rua Doutor Flores permaneceu mais uma
semana fechada, sob o constante entra-e-sai de caminhões e caçambas.
Abatido e amargurado, no dia seguinte à
implosão, uma segunda-feira fria que já prenunciava o cinzento inverno gaúcho,
seu João de Deus Carvalho, pai de Rui, o rapaz de 19 anos que alguns disseram
ter visto caminhando pelas ruas de Porto Alegre na tarde do incêndio e que João
pensou ser seu filho, arrumou suas malas e preparou-se para voltar à cidade de
Santiago, na distante região da Campanha.
Durante um mês – gastando o que não tinha - seu
João vivera o pesadelo da dúvida, o exasperante drama de percorrer hospitais,
albergues e delegacias à procura de uma figura intangível que vira, mas não
vira.
Na terça-feira, primeiro de junho, o pai
receberia a notícia final: o corpo do seu filho havia sido identificado pelo
pessoal do IML, onde permanecia ainda o corpo carbonizado de uma mulher de
identidade desconhecida. Na manhã de 17 de agosto, três meses e 21 dias depois
da tragédia da Renner, este mistério também se desfez: tratava-se de Virgilina
Ayala Soares, identificada por Pedro de Paula, seu companheiro, que residia no
bairro Matias Velho, em Canoas. Ela foi reconhecida por um detalhe na única
parte do seu corpo que escapara ao fogo (não havia exames de DNA na época): um
dos pés tinha uma unha defeituosa encravada, pintado com o usual esmalte cor de
vinho.
Virgilina, natural de São Luiz Gonzaga,
trabalhava como ajudante de cozinha no restaurante Terrasse e estava inclusa na
lista dos desaparecidos, que agora, oficialmente, se resumiam a 11 pessoas. A
polícia, todavia, não soube explicar porque só agora, tanto tempo depois, Pedro
havia finalmente identificado a sua companheira.
Ainda constavam na lista dos desaparecidos
os nomes de Kátia Rosane da Silva, Maria da Graça Boff, Maria Oliveira, José
Siqueira de Campos, José Elói da Rocha, Tânia Ribeiro, Berenice Antas Lopo,
Helena Morais, José Barbosa, Alberto Manomics e Carmen da Silva.
*
Encerrando o ano de 1976, decorridos mais
de sete meses da tragédia de abril, às portas do escaldante e seco verão
porto-alegrense, o Correio do Povo novamente alertava a respeito do risco de
novos incêndios, lamentando velhas promessas não cumpridas e a vergonhosa
morosidade da aplicação das leis já existentes. Compreensivelmente cético, o
editorial do dia 11 de dezembro, sábado, concluía: “O recurso é a prevenção de
caráter particular e que, embora não sendo grande, mostra-se sempre proveitosa.
Apelemos, pois, para ela. Mesmo porque não há outra solução”.
Com efeito, três dias depois, na manhã de terça-feira,
mais um sinistro assustava os moradores da área central. Na esquina das ruas
Sarmento Leite e Osvaldo Aranha, o velho casarão da Faculdade Católica de
Medicina por pouco não ficou reduzido a cinzas.
O ecônomo Rui Rodrigues explicou que tudo
iniciara com o escapamento de gás na cozinha na lanchonete do centro acadêmico,
o que foi confirmado pelos bombeiros – os quais, sem a água que faltou nos
hidrantes, tiveram que captá-la bem longe. Duas velhas casas contíguas, e que
serviam como moradias para os funcionários, foram quase inteiramente destruídas
pelas chamas. Felizmente os três locais estavam devidamente segurados contra
fatos desta natureza.
Um mês depois, no dia 10 de novembro, ao
meio de uma tarde de quarta-feira, os mesmos bombeiros evitaram o que poderia
ter sido outra tragédia, desta feita em um sobrado da avenida Benjamin
Constant, zona norte de Porto Alegre. Ocupado na parte térrea pelo “Chico Bar”
e na parte superior por uma república de estudantes, o local – com escadas
estreitas e íngremes – só não foi totalmente consumido pelo fogo graças a
rápida presença de duas guarnições da
Estação Floresta. Ao término do socorro, de uma maneira um tanto ingrata, o proprietário
do estabelecimento comercial lamentou que a água vertida pelas mangueiras tenha
causado, segundo ele, mais danos que o próprio fogo.
No domingo, 28 de novembro, um prédio
comercial de quatro pavimentos entre as ruas Garibaldi e Voluntários da Pátria
foi quase totalmente devastado pelas chamas. Seis carros de bombeiros, um deles
com escada Magirus, tripulados por mais de 50 homens, conseguiram impedir que
as labaredas se alastrassem para as construções vizinhas. Conforme retrataram os
jornais, pela primeira vez nos últimos meses os bombeiros não tiveram problemas
com a água, já que todos os hidrantes funcionavam a contento. Um dos socorristas,
porém, sofreu ferimentos na cabeça por força dos estilhaços de um botijão de
gás.
No dia 12 daquele mês, em um luxuoso
apartamento em Los Angeles, Califórnia, morria o ator e cantor Jack Cassidy, de
49 anos, então um dos nomes mais populares da televisão norte-americana e que
havia participado de seriados como Gunsmoke, Bonanza, Columbo e Havaí 5.0.
Fumante inveterado, ele possivelmente deixara cair um cigarro aceso no tapete.
O corpo só foi identificado mediante o exame de arcadas dentárias.
Menos
trágico foi o caso do milionário paulista Osvaldo Lara Vidigal, o Osvaldinho,
um playboy muito conhecido por suas brincadeiras de extremo mau gosto. No final
da madrugada do dia 17, no interior do restaurante Pandoro, na avenida Cidade
Jardim, ele foi surpreendido por funcionários da casa quando tentava incendiar
o toldo do estabelecimento, atitude nada surpreendente para quem, meses antes,
desfilara a cavalo pela elegante rua Augusta. Osvaldinho também se notabilizara
por lançar de um helicóptero mais de 50 quilos do efervescente Sonrisal na
piscina do fechadíssimo Clube Harmonia, em represália por ter sido expulso dali
ao desfilar nu em um dos bailes de carnaval.
Voltando à realidade popular da capital
gaúcha, o ano do dragão e do fogo de 1976 encerraria de forma triste para o
casal Vera Lúcia e Roberto, moradores de duas modestíssimas peças localizadas
nos fundos de uma obra na avenida Primeira Perimetral, zona central da cidade.
No início da noite de terça-feira, 28 de dezembro, dois homens armados de paus
e facas invadiram o casebre, à procura de dinheiro. Vera reagiu, apanhou e
ainda levou uma facada. Na saída os ladrões derrubaram propositalmente uma das
velas acesas que estava sobre a mesa, ocasionando um incêndio que devorou tudo
do pouco que o casal possuía – incluindo um toca-discos.
40 ANOS DEPOIS - A tragédia do edifício Renner, com as cenas transmitidas pela televisão e pelo rádio, é lembrada até hoje pelos porto-alegrenses como um dos episódios mais traumáticos na vida da capital gaúcha. Em número de mortos, todavia, foi amplamente superada pelo acontecido na boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013 e cujas semelhanças de causas mostram que o rigor na prevenção a incêndios pouco mudou em relação a 1976. O incêndio da Kiss - também ocorrido em um dia 27 - matou 243 pessoas (um rapaz que auxiliou no resgate morreu dois anos depois, por complicações pulmonares), a quase totalidade jovens que se divertiam no local.
Estranhamente, o acontecido em Porto Alegre há quatro décadas praticamente não foi mencionado pela imprensa por ocasião do episódio da Kiss. Os telejornais, reportando a incêndios anteriores no Rio Grande do Sul, mencionaram, muito rapidamente, o incêndio de "um grande magazine" em abril de 1976, sem nomeá-lo.
Até hoje há quase um pacto não oficial para não se lembrar do que se passou naquele 27 de abril de 1976. Nenhum jornal - nem mesmo o Correio do Povo - fez qualquer matéria um ano, cinco anos ou dez anos depois, o mesmo acontecendo com outros veículos de imprensa do Rio Grande do Sul. Não há imagens do incêndio na Internet e as emissoras de televisão não as projetam em circunstância alguma - embora tais imagens existam em arquivo. Também as vítimas sobreviventes foram esquecidas.
Mesmo assim imaginava-se que por ocasião do transcurso dos 40 anos do evento - a 27 de abril de 2016 - se publicasse alguma matéria a respeito nos grandes jornais, rádios ou televisões de Porto Alegre. Nada disso aconteceu.
Houve porém uma honrosa e corajosa exceção: o jornal Metro, publicação de distribuição gratuita do Grupo Bandeirantes em Porto Alegre, trouxe, de 25 a 27 de abril, uma série de três reportagens sobre os 40 anos da tragédia, ouvindo sobreviventes, bombeiros, profissionais e testemunhas e revivendo o que tinham sido aqueles dias de angústia. De autoria do jornalista André Mags, de 40 anos, é um trabalho de exceção que merece ser lido.
Ver no Youtube ("Vitor Minas", "incêndio da Renner", "tragédia da Renner"), a entrevista com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Cadão, testemunha ocular do acontecido no edifício Renner: "O incêndio das lojas Renner, visto por um fotógrafo, 40 anos depois".
40 ANOS DEPOIS - A tragédia do edifício Renner, com as cenas transmitidas pela televisão e pelo rádio, é lembrada até hoje pelos porto-alegrenses como um dos episódios mais traumáticos na vida da capital gaúcha. Em número de mortos, todavia, foi amplamente superada pelo acontecido na boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013 e cujas semelhanças de causas mostram que o rigor na prevenção a incêndios pouco mudou em relação a 1976. O incêndio da Kiss - também ocorrido em um dia 27 - matou 243 pessoas (um rapaz que auxiliou no resgate morreu dois anos depois, por complicações pulmonares), a quase totalidade jovens que se divertiam no local.
Estranhamente, o acontecido em Porto Alegre há quatro décadas praticamente não foi mencionado pela imprensa por ocasião do episódio da Kiss. Os telejornais, reportando a incêndios anteriores no Rio Grande do Sul, mencionaram, muito rapidamente, o incêndio de "um grande magazine" em abril de 1976, sem nomeá-lo.
Até hoje há quase um pacto não oficial para não se lembrar do que se passou naquele 27 de abril de 1976. Nenhum jornal - nem mesmo o Correio do Povo - fez qualquer matéria um ano, cinco anos ou dez anos depois, o mesmo acontecendo com outros veículos de imprensa do Rio Grande do Sul. Não há imagens do incêndio na Internet e as emissoras de televisão não as projetam em circunstância alguma - embora tais imagens existam em arquivo. Também as vítimas sobreviventes foram esquecidas.
Mesmo assim imaginava-se que por ocasião do transcurso dos 40 anos do evento - a 27 de abril de 2016 - se publicasse alguma matéria a respeito nos grandes jornais, rádios ou televisões de Porto Alegre. Nada disso aconteceu.
Houve porém uma honrosa e corajosa exceção: o jornal Metro, publicação de distribuição gratuita do Grupo Bandeirantes em Porto Alegre, trouxe, de 25 a 27 de abril, uma série de três reportagens sobre os 40 anos da tragédia, ouvindo sobreviventes, bombeiros, profissionais e testemunhas e revivendo o que tinham sido aqueles dias de angústia. De autoria do jornalista André Mags, de 40 anos, é um trabalho de exceção que merece ser lido.
Ver no Youtube ("Vitor Minas", "incêndio da Renner", "tragédia da Renner"), a entrevista com o fotógrafo Ricardo Chaves, o Cadão, testemunha ocular do acontecido no edifício Renner: "O incêndio das lojas Renner, visto por um fotógrafo, 40 anos depois".
Foro retirada da Internet. |
Outros incêndios que marcaram época:
1947: A IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO É
CONSUMIDA PELO FOGO
Quarta-feira, 22 de outubro de 1947. Eram
5h30min quando as poucas pessoas que transitavam pelo centro de Porto Alegre
observaram grossas nuvens de fumaça que saíam do terceiro pavimento do prédio
onde funcionava a Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do Sul, na esquina
da Rua das Praia com a Caldas Júnior – o antigo e belo prédio do jornal A
Federação, órgão oficial do Partido Federalista gaúcho, hoje abrigando o Museu
de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Ao ver a cena o dono Restaurante
Ghiloso, José Ghiloso, não teve dúvidas de que se tratava de um incêndio e
imediatamente comunicou-se com o Corpo de Bombeiros. Estes chegaram em poucos
minutos mas já encontraram todo o terceiro andar, onde estavam as seções
administrativas e o arquivo, devastado pelas chamas. Mesmo assim conseguiram
evitar que o fogo se alastrasse para o segundo e primeiro andares, nos quais
funcionavam os setores de tipografia e encadernação.
Depois de cinco horas de trabalho os
bombeiros dominaram a situação, sendo dois deles feridos pelos escombros. O
governador do Estado, Valter Jobim, do Partido Social Democrático, PSD, eleito
em março daquele ano e que estava em viagem ao município de Santana do
Livramento, lançou nota oficial lamentando a destruição do prédio e a perda completa
do seu rico acervo.
NOVEMBRO DE 1949: EM CHAMAS, A JUSTIÇA GAÚCHA
SOFRE UM DURO GOLPE
Um sinistro de prejuízos incalculáveis, um
divisor na história do judiciário gaúcho, um mistério nunca esclarecido: o
incêndio que destruiu o Tribunal de Justiça e a Secretaria do Interior do
Estado “ficará nos anais policiais da cidade como um dos mais dramáticos e
ruinosos, pois que, entre outras coisas, poderá retardar e até desviar a marcha
da Justiça em questões de transcendental importância”, noticiou o Correio do
Povo naquela sua edição de domingo, 20 de novembro de 1949.
O cenário era o “vetusto” prédio da Praça
da Matriz, construído ainda na época do Império e chamado então, com evidente
exagero, de Palácio da Justiça. O dia era sábado, 19. O horário, cinco horas,
mostrava uma capital quase deserta, com raros transeuntes e noctívagos nas ruas
e alguns entediados motoristas de táxi que faziam ponto na praça. Foram eles os
primeiros a avistar um “tênue fio de fumaça” que escapava do edifício e
rapidamente se transformava em “grossos e assustadores rolos negros que
irrompiam pelas frestas do portão principal e pelo teto, já então lançando para
o ar um cone de chamas”, conforme descrição do Diário de Notícias.
CP |
Por volta das 5h15min a parte principal da
construção parecia “um vulcão em plena ebulição”. Às 5h30min mais nada havia a
se fazer. A fumaça, o crepitar do fogo, o desabamento de vigas, ofereciam um “espetáculo
dantesco” aos circunstantes.
Mais de dez horas depois, auxiliador por
populares e voluntários, os bombeiros das quatro unidades que compareceram ao
local ainda apagavam os últimos focos. Comandados pelo tenente Jarci de
Queiroz, eles perderam a batalha por questão de minutos: já no início do
combate um dos hidrantes falhou, permitindo que as chamas se alteassem
novamente de maneira incontrolável. Pior mesmo foi a falta de uma escada
mecânica que atingisse o segundo andar, atestando a precariedade dos
equipamentos da corporação.
SEM VIGILÂNCIA – A despeito de ser um dos mais vitais prédios públicos do
Estado, o Tribunal da Justiça e a Secretaria do Interior estavam sediados em
instalações acanhadas que datavam de 1870 e nem de longe condiziam com a sua
importância. Juízes chegavam até mesmo a
fazer fila a fim de concederam audiências em suas poucas salas e dezenas de
advogados que por ali circulavam, bem como o quadro de funcionários permanentes
ou dos cartórios, acomodavam-se como podiam em exíguas e toscas repartições.
Outro fato lembrado dizia respeito à absoluta ausência de vigilância, já que
não havia sequer um guarda destacado para a ronda da noite.
Dias antes um funcionário havia notado
pegadas suspeitas nos seus corredores e que convergiam justamente para o local
onde o fogo supostamente teria iniciado. Também se constatou que havia massa na
fechadura, indicando talvez que alguém havia tirado um molde da chave para
entrar no local sem ser percebido. Tais hipóteses, no entanto, caíram por terra
quando os técnicos do Instituto de Polícia Técnica concluíram que o foco
inicial do incêndio teria sido, possivelmente, a sala de cafezinho da
Secretaria do Interior: lá existia um “bico de gás” e que teria ficado aceso
durante a noite.
Quanto aos prejuízos, não somente para a
Justiça como também para o funcionamento da Secretaria do Interior, foram
imensos e dificilmente mensuráveis. Um bombeiro relataria mais tarde a um
repórter que havia, por sorte, salvado o dossiê de um processo volumoso. Ao
entregá-lo a um funcionário do Forum, este, ao ler na capa o nome de uma parte
envolvida, jogou os documentos de volta às chamas... Um dos mais importantes
cartórios de crime – onde estavam processos sobre a colocação de bombas Molotov
e outros que diziam respeito ao Partido Comunista Brasileiro (colocado na
ilegalidade apenas dois anos antes pelo governo Dutra) foi totalmente
destruído, a despeito de ser um dos últimos a serem atingidos pelo fogo. Outros
milhares de documentos e ações foram igualmente consumidos ou seriamente afetados.
Processos de heranças familiares, partilhas de bens e inúmeros vindos do
interior do Estado, em grau de apelação, também acabaram destruídos, bem como
40 mil cruzeiros em dinheiro – queimados ou, talvez, surrupiados.
Os prejuízos culturais não foram menores. A
queima total da biblioteca do Palácio da Justiça foi uma das consequências mais
irreparáveis para a cultura do Estado, já que esta era considerada uma das mais
completas do País em sua área, com obras raras do direito e sentenças antigas
lavradas em latim e caprichosamente encadernadas. Já os documentos de
casamentos – cujas cerimônias cíveis aconteciam em uma das dependências do
edifício – não foram afetados pois eram guardados em um edifício próximo e não
no Tribunal. Até mesmo os matrimônios programados para aquele dia, sábado, não
precisaram ser cancelados, apenas sendo transferidos para os cartórios do
registro civil.
A situação da Secretaria Estadual do
Interior – que funcionava em parte do casarão que dava para a Rua Riachuelo –
tinha agravantes e foi descrita como um “prejuízo incalculável” devido aos
processos que por ali transitavam – convênios entre o Estado e prefeituras do
interior, bem como com vários corpos consulares (Porto Alegre, na época,
abrigava muitos consulados) e a junta comercial. De parte de tais documentos
dependiam a Repartição Central de Polícia, o Departamento das Prefeituras
Municipais, o Arquivo Público, a Junta Comercial, a Brigada Militar e até mesmo
a Biblioteca Pública ali vizinha.
Com a destruição do edifício do Tribunal de
Justiça os serviços judiciários gaúchos sofrerem um desarranjo que levou meses
para ser reparado, se é que isto era possível. Certamente intencional, o
incêndio foi objeto de muitas discussões nos meses seguintes. O Diário de
Notícias insistiu em seu caráter criminoso, muito embora a deficiente polícia
técnica da época não tenha conseguido provar tal fato. Meses depois, no ano de
1950, um tipo estranho, um vigarista e mitômano de naturalidade espanhola, o
“Major Aragón”, e que estava preso em São Leopoldo, bradou aos jornalistas que
havia sido ele o autor do sinistro. Mas a história era por demais inverossímil
para ser levada a sério. No dia 23 de agosto de 1952, sábado, tal personagem
foi assassinado a tiros por outro detento no pátio da Casa de Correção – um crime
encomendado ou talvez motivado por ciumeiras ou rixas com outros detentos.
Em
1959 Manoel Frederico Gonzales de Aragon estava preso em São Leopoldo, identificado
com outro nome. Acusado de estelionato, ele já tinha passagens por outros presídios
brasileiros, entre os quais o de Curitiba, de onde fugira usando uma farda de
major do Exército – o que lhe valeu a alcunha de “major Aragón”. Nascido na
Espanha, calvo, ar inofensivo e de boa cultura, Aragón era um vigarista
especialista em criar “sociedades anônimas”, levando todo o dinheiro arrecadado
fraudulentamente. Em estranha coletiva convocada pelas autoridades policiais
ele afirmou ter fugido da prisão do Vale dos Sinos com a finalidade de roubar
um famoso processo criminal para assim chantagear as partes interessadas e
conseguir muito dinheiro. Também disse ser o autor do incêndio da Repartição
Central de Polícia – nas duas versões, poucos repórteres de fato acreditaram no
que afirmava. Mais tarde o Major Aragon alegou ter sido torturado pela polícia
para que assumisse a autoria dos dois sinistros – algo também questionável.
O
certo é que, se houve muitos prejudicados com o episódio (incluindo quem
trabalhava no Foro e perdeu o emprego e fonte de rendas), outros tantos também
auferiram grandes vantagens com a destruição de processos e acusações. Mais
tarde se tentou estabelecer uma justificável ligação entre o incêndio do
Tribunal, bem como o da Repartição Central de Polícia, com um grande aumento da
criminalidade em Porto Alegre no ano de 1950.
Até a construção de uma nova sede para o
judiciário rio-grandense, os cartórios e repartições passaram a funcionar de
maneira improvisada em diferentes locais da cidade, tais como o grupo escolar
Paula Soares, na rua General Auto, e em casas da rua Duque de Caxias, onde
antes funcionava a Secretaria da Agricultura. No mesmo local do prédio incendiado seria
construído mais tarde o Foro Central da capital dos gaúchos.
1950: MILHARES DE PROCESSOS ARDEM NA REPARTIÇÃO
CENTRAL DE POLICIA
Se havia realmente um incendiário a postos para queimar
prédios públicos, tal pessoa, ou pessoas, sabiam muito bem o que queriam:
depois do Tribunal de Justiça, foi a vez da Repartição Central de Polícia, na rua
Duque de Caxias, outro sinistro histórico que destruiu milhares de inquéritos
policiais e quase matou mais de 50 presos desesperadamente trancafiados em um
dos xadrezes da construção. Foi mais um duríssimo golpe nos serviços de
segurança pública do Estado e seria apontado como uma das causas do grande
aumento da criminalidade registrado na Capital aquele ano.
O incêndio da RCP aconteceu também em um
sábado, às 2 horas da madrugada de 14 de janeiro de 1950, transcorridos apenas
55 dias depois do acontecido com o Foro, com a diferença de que se alastrou de
maneira muito mais violenta e causou temores redobrados em toda a população do
centro, aterrorizada com a sequência de explosões de granadas de mão
armazenadas no depósito de munições e com a possibilidade ainda mais dramática de
tudo aquilo, inclusive os colégios femininos situados nas vizinhanças, como o
Sevigné, ir pelos ares caso as chamas atingissem um depósito de gasolina e
diesel existente nos fundos do prédio, sem contar um grande paiol de
explosivos. No final, felizmente, os
danos foram somente materiais e judiciários, pois ninguém morreu queimado.
Dos 52 presos na cela cujo cadeado teve que
ser arrombado a pé-de-cabra apenas um, detido por vadiagem, fugiu. A população,
por sua vez, acordou sobressaltada e surpresa, receando, quem sabe, a eclosão
de um movimento militar ou de uma nova revolução: o estampido das granadas,
acomodadas em um cofre, e o barulho de balas explodindo, bem como a altura das chamas,
faziam prever pelo pior, até mesmo uma guerra. Afinal, na Duque, na parte alta
da cidade, hoje considerada centro histórico, está também o Palácio Piratini,
sede do governo estadual.
Tal como o casarão do Tribunal de Justiça e
da Secretaria do Interior, o prédio da chefia da Polícia também era quase um
pardieiro, uma construção antiga, repleta de paredes, divisórias e tabiques de
madeira servidos por arremedos de instalação elétrica. Sem dinheiro e
endividado, assim como hoje, o Estado gaúcho, comandado por Valter Jobim, havia
interrompido ou adiado a construção ou reforma de grande parte dos seus prédios
públicos. Pedindo providências para solucionar o problema, o jornal Correio do
Povo, ao noticiar o fato, lembrava que, caso isso não acontecesse e não se
desse fim a casos daquela natureza, “ninguém mais convencerá a opinião pública
que esses eventos não são provocados por mãos criminosas, ou que se verificam
pura e simplesmente devido à negligência e ao indiferentismo do poder executivo”.
PREJUÍZOS INCALCULÁVEIS – O fogo teria começado na parte alta, no sótão do segundo
andar do prédio, provavelmente em uma sala que servia de depósito de colchões e
papéis, o que facilitou extraordinariamente a propagação das chamas, percebidas
somente por alguns policiais de plantão e por um carpinteiro que dormia ao
lado. Um deles comunicou o fato ao inspetor-chefe, Nuno Alves Guimarães – neste
momento as chamas já saíam pelas janelas. O delegado Geraldo Monteiro Alves,
que estava de plantão momentos antes e fora deitar em uma das camas, acionou os
bombeiros, os quais, mesmo chegando em grande número, pouco puderam fazer.
O incêndio da Repartição Central de Polícia
consumiu milhares de processos, destruindo sobretudo aqueles que diziam
respeito aos réus soltos afetos aos “atentados à propriedade”, os quais foram
beneficiados pelo fato de não haver cópias dos documentos, ao contrário dos
dossiês dos réus presos. O Instituto de Polícia Técnica também amargou grandes
prejuízos de equipamentos e de material, embora o seu responsável, José
Lubianca, garantisse que 95% dos prontuários criminais estavam apenas
chamuscados nas bordas e poderiam ser aproveitados. De tudo o que havia no
plantão daquela noite apenas se conseguiu salvar duas máquinas de escrever,
duas mesas, duas cadeiras e o livro de ocorrências.
Bem ao espírito da época (Guerra Fria e
polarização ideológica em um ano de eleições presidenciais no Brasil), as
autoridades da segurança pública estadual se apressaram em tentar jogar a culpa
nas costas de militantes do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, o quarto mais
importante e votado no país, proscrito recentemente pelo general e presidente
eleito Eurico Gaspar Dutra. O líder comunista Flávio Argolo, um cirurgião
dentista que passava férias na praia de Capão da Canoa com sua família, foi
preso como suspeito e teve de recorrer a advogados, os quais impetraram um
habeas-corpus a fim de libertá-lo. As cópias do processo contra ele, trancadas
no cofre do gabinete da chefia de Polícia, mostraram-se intactas quando se
abriu o cofre, na quinta-feira, 19. Tal peça, mesmo queimada e avariada, ainda
assim resistiu.
Meses mais tarde o mesmo “Major Aragón” –
aquele que se declarou o incendiário do Tribunal de Justiça - reivindicou a
autoria do fato.
NOVEMBRO DE 1951: O MISTERIOSO FOGO QUE
DESTRUIU O COLÉGIO JULINHO
Talvez hoje, em meio a tantos fatos ruins e à indiferença geral,
a destruição de um grande colégio público não causasse comoção a Porto Alegre.
Porém no início dos anos cinquenta o ocorrido com o Colégio Estadual Júlio de
Castilhos, o Julinho, consternou verdadeiramente os habitantes da Capital,
zelosa dos seus valores e orgulhosa do alto padrão educacional de um estabelecimento
modelar que simbolizava o que então o Rio Grande do Sul tinha de melhor: o seu
relativamente mais avançado padrão civilizatório frente aos demais Estados e o genuíno
orgulho que isso trazia ao povo gaúcho.
Público e gratuito, com um ensino
considerado de excelência, o colégio dava acesso direto ao terceiro grau e nele
estudaram, entre tantos, nomes que depois de tornaram famosos ou notórios em muitas
áreas, incluindo Leonel Brizola, Paulo Brossard, Paixão Cortes e Barbosa Lessa
– uma elite intelectual e pensante vinda democraticamente das muitas camadas da
sociedade gaúcha. Foi também no Julinho, em 1948, que iniciou o Movimento
Tradicionalista Gaúcho, embrião dos milhares de CTGs que se espalham pelo
mundo.
CP |
O incêndio foi marcado pela forte suspeita
– na verdade, uma certeza – de ter sido um ato intencional e premeditado,
“praticado por mãos criminosas”, como disse o Correio do Povo, ou por um
“piromaníaco insano”, um “perigoso tarado que vê seus instintos doentios
despertar em determinadas épocas do ano”, conforme escreveu o Diário de
Notícias. Era, desde 1947, o quinto
grande prédio público a queimar desta forma. Em nenhum deles o inquérito
policial apontou a autoria e muito menos se estabeleceu uma ligação direta
entre os fatos.
A destruição daquela que era considerada a
unidade de ensino mais avançada e democrática em todo o Estado aconteceu na
primeira hora da madrugada de 16 de novembro de 1951, sexta-feira, ao final do
feriado da Proclamação da República, uma noite ventosa na cidade que ainda mal
se recuperara do renhido combate eleitoral, no dia primeiro, entre Leonel
Brizola (PTB) e Ildo Meneghetti (PSD) para o cargo de prefeito municipal –
Meneghetti virou o placar e venceu ao final com diferença de apenas mil votos.
Os dois, aliás, engenheiros formados pela Escola de Engenharia e ligados à
história do Julinho. Curiosamente, naqueles dias uma greve geral mobilizava os
estudantes universitários de todo o Brasil. Radicalmente politizado, o efervescente
Julinho repercutia internamente isso tudo.
Também naquele início do ano de 1951 os
alunos haviam deflagrado uma greve pedindo o cancelamento da decisão de separar
os rapazes das moças – um prédio da rua Doutor Flores já teria sido alugado
para abrigar as alunas, relatou o radialista, ex-vereador e então aluno Lauro
Hagemann em depoimento para o livro Julinho: Cem Anos de História, organizado pelos
professores Paulo Ledur e Otávio Rojas Lima (Editora AGE) no ano de 2000.
Motivos ou pretextos à parte, o certo é que
em poucas horas a imponente construção, inaugurada em 1908 na avenida João
Pessoa, defronte à Escola de Engenharia, ao qual era ligada, e à vizinha
Faculdade de Direito, veio abaixo devido à espantosa rapidez das chamas. Os
prejuízos, porém, eram ainda bem maiores para toda a cultura do Rio Grande do
Sul, já que da biblioteca – tal qual a do Tribunal de Justiça, com
valiosíssimos e raros volumes de livros dos séculos XVIII e XIX – também nada
havia restado. O mesmo aconteceu com o museu, um dos mais completos do Rio
Grande.
Dias depois o jornalista Wilson Müller, 22
anos, ex-aluno da instituição, publicou no Diário de Notícias uma crônica em
que lamenta “o que nunca imagináramos pudesse acontecer”: “(...) Quem não conheceu o Julinho? Naquele casarão
velho da João Pessoa formou-se a consciência democrática de milhares de
gaúchos. A alma farroupilha vibrou dentro do Colégio Júlio de Castilhos, desde
51 anos passados, quando, no ofuscar do século passado e no dealbar do
presente, levantou-se o nosso colégio como a barreira invencível do espírito
indomável do estudante gaúcho. Quem por ali passou jamais o esquecerá. Quem
viveu algum tempo no “Julinho” sempre dirá, com um orgulho que só nós podemos
ter: “Eu estudei no Julinho”. Basta isso para endossar a vida estudantil de um
homem. Assembleias barulhentas e tumultuosas. Greves contra os professores.
Abaixo-assinados de protesto contra esta ou aquela medida. Discussões
intermináveis sobre a teoria do conhecimento e sobre a quarta dimensão.
Passeatas de regozijo e de protesto. Exames orais e escritos feitos sem
conhecimento da matéria. “Colas” e provas anuladas. Colóquios amorosos nos
corredores, às escondidas dos professores e perto dos professores. Fim do curso
e uma sincera homenagem aos que nos guiaram lá dentro. Um vestibular. A
faculdade. Um agradecimento eterno. Lodeiro, Melo, Marieta, Tristão, Abílio,
Ripol, Ataualpa, Zilá, Damasceno, Morais, Orlando, Paixão e o Machadinho são
nomes que ligaram nossa mocidade à vida futura e são a garantia do patrimônio
moral do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Adeus, Julinho...”
SINISTRO ANUNCIADO – Na realidade sabia-se que, mais cedo ou mais tarde, o
colégio pegaria fogo – só não se poderia precisar em que circunstâncias isso ocorreria.
Uma simples questão de tempo e de oportunidade.
Com efeito, por diferentes vezes o Julinho
esteve às voltas com malogradas tentativas de incêndio, a última das quais na
quarta-feira, 14. À noite, nessa data, uma das serventes encontrou quebrados os
vidros da porta da secretaria, situada ao lado do prédio principal. Dentro, jogado
no chão, estava um pano embebido em gasolina que só não pegara fogo devido à
forte umidade decorrente das chuvas caídas no dia anterior.
Ciente do perigo que rondava a instituição,
o diretor José Lodeiro solicitou policiamento às autoridades estaduais, algo
que deu muito a falar nos dias seguintes: a Polícia Civil, em nota emitida por
seu chefe-geral, Germano Sperb, confirmou que recebera o pedido e havia
designado um guarda-civil para o policiamento do local, mas que este, dias
antes, havia sido dispensado da tarefa pela direção, embora estivesse presente
na noite do incêndio – tanto que teria sido o primeiro a comunicar o fato à
polícia e aos bombeiros. Lodeiro, por sua vez, desmentiu categoricamente tal
afirmação, garantindo que, por sua própria conta, o vigilante deixara de comparecer
ao serviço, fazendo com que ele, Lodeiro, costumasse vistoriar o colégio antes
de dormir – o diretor residia nas proximidades. O Grêmio Estudantil, por sua
vez, saiu oficialmente em apoio à direção e acusou a polícia de “ter colaborado
positivamente com o incêndio”, conforme nota assinada pelo presidente do
Grêmio, Onofre Quadros. Também o resultado do trabalho da perícia foi diferente
da versão de muitas testemunhas e até mesmo dos bombeiros. Para a perícia o
sinistro poderia ser, quem sabe, ocasional, enquanto direção e estudantes
batiam-se pela tese única da intencionalidade – certamente a mais plausível. O
certo é que a chave-geral da energia elétrica havia sido desligada durante o
feriado, dia em que o prédio estava deserto, e isso afastava a possibilidade de
um curto-circuito interno.
Segundo testemunhas, o fogo foi avistado das
ruas e residências vizinhas à meia-noite de quinta-feira ou aos quinze minutos
da madrugada de sexta-feira, quando as chamas já tomavam conta do telhado,
espalhando-se com incrível rapidez em virtude dos ventos que sopravam. As mesmas
pessoas afirmaram ter visto três focos na cumeeira – nas extremidades e no meio
da cobertura, onde se elevava a bela cúpula central. Mais tarde, em depoimentos
aos jornais, alguns estudantes (dentre os primeiros a ver as chamas) negaram
que isso fosse verdadeiro e asseguraram ter visto apenas um único foco. Em um
“espetáculo contristador”, os repórteres anotaram que as folhas de zinco que
cobriam as cúpulas “desprendiam-se em brasa sobre a cerca de grades de ferro
pontiagudas”.
Durante quatro horas cerca de 50 bombeiros vindos principalmente da
estação da avenida Júlio de Castilhos enfrentaram algumas dificuldades
operacionais, já que o hidrante mais próximo mostrou-se dotado de pouca vazão
de água e foi suprido pelos demais instalados na avenida, defronte ao
necrotério e também na esquina da rua Avaí. Quatro veículos da corporação foram
posicionados nas imediações enquanto uma grande multidão, vinda de várias
partes do centro, se comprimia em volta a fim de presenciar aquele momento histórico.
Grossos rolos de fumaça chamavam a atenção dos transeuntes que passavam pela João
Pessoa, nas proximidades da antiga praça do Portão. Chefiando a operação de
combate às chamas estava o oficial-aspirante Jesus Linares Guimarães – anos
mais tarde comandante geral da Brigada Militar e participante das ações do
edifício Renner em 1976.
Depois de muitos esforços os bombeiros
conseguiram isolar o local e evitar a propagação do fogo para a Escola de
Engenharia – que teve apenas duas janelas atingidas. Linares disse ter
estranhado a celeridade com que as chamas se espalharam por todo o segundo
pavimento, mas deu graças pelo fato de um dos seus soldados ter escapado por
pouco do desabamento de um dos tetos – se atingido, seria morte certa.
Ao término de tudo, dezessete salas de aula,
mais a biblioteca e o museu, haviam se transformado em cinzas fumegantes. Por
sorte quinze valiosos aparelhos de microscópio e outros de física, emprestados
dias antes à Faculdade de Filosofia, escaparam ao cômputo dos prejuízos gerais,
calculados em cerca de 10 milhões de cruzeiros. No dia seguinte, entre tantos
curiosos ilustres, visitaram o local o governador Ernesto Dorneles, o
secretário da Educação, Júlio Marino de Carvalho, o professor Mabilde Ripoll,
superintendente do ensino secundário, e o reitor da Universidade do Rio Grande
do Sul, professor Alexandre Martins da Rosa. O governador prometeu a imediata
construção de um novo prédio para o Julinho (que já fazia parte dos planos),
desta vez localizado na praça Piratini, também na avenida João pessoa. Enquanto
isso as aulas passariam para o prédio do Arquivo Histórico do Estado, na
Riachuelo.
Felizmente ninguém morreu ou saiu
seriamente ferido em consequência do incêndio do Julinho naquela
noite-madrugada de quinta para sexta-feira. Porém uma semana depois, no início
da tarde de 26 de novembro, segunda-feira, o operário Antonio José Nascimento,
27 anos, branco, casado e residente no Passo da Cavalhada, na Capital, pisou em
falso quando trabalhava na demolição do primeiro andar. Ele caiu de uma altura
de cinco metros e morreu no Hospital de Pronto Socorro, minutos depois.
NOVO PRÉDIO – No dia 29 de junho de 1958, domingo, em meio a “brilhantes festejos”,
o governador Ildo Meneghetti inaugurou oficialmente o novo prédio do Julinho,
na praça Piratini, muito embora este, na prática, já estivesse em
funcionamento. O local tinha capacidade para cinco mil alunos e dava fim ao
período no precário casarão do Arquivo Público.
A data fora escolhida por ser o dia de
aniversário de Júlio Prates de Castilhos, patrono da instituição, e também dia
do padroeiro do Rio Grande do Sul, São Pedro.
NOVEMBRO DE 1954: O INCÊNDIO DA “CASA DOS
HORRORES”
Um “plano diabólico” para a fuga em massa de
mais de mil detentos, “celerados da pior espécie” – assim os jornais resumiram
um dos fatos mais marcantes na história de Porto Alegre, o incêndio na Casa de
Correção, o “horrendo cadeião da Ponta do Gasômetro”, a “casa do inferno”, a
“casa dos horrores”, o “tétrico casarão”, ocorrido três meses depois do
quebra-quebra pela morte de Getúlio Vargas e mais um marcante episódio no
capítulo dos grandes sinistros em prédios públicos registrados na década de cinquenta
na capital gaúcha.
Era o dia 28, último domingo do mês de
novembro de 1954, nem haviam transcorridas duas semanas da eleição de Ildo
Meneghetti como novo governador rio-grandense e dois meses da inauguração
oficial do estádio Olímpico, do Grêmio, quando o complexo prisional às margens
do Guaíba ardeu em chamas durante quase 20 horas, expelindo rolos de fumaça que
podiam ser avistados dos quatro cantos da cidade. Cidade que temeu seriamente
pela própria sorte: caso tal tentativa de fuga tivesse dado certo as consequências
seriam imprevisíveis para os seus quase 500 mil habitantes.
Tudo começou às 18h30min, logo após o
encerramento do horário das visitas na rebatizada “Penitenciária Industrial”,
já então considerada uma das piores do Brasil, uma “masmorra medieval” com capacidade
para 300 presos, porém superlotada por mais de mil.
O fogo irrompeu na cela 72, no segundo
andar, na parte dos fundos da construção, e se propagou com uma rapidez,
atingindo também a padaria e a tipografia – até porque tudo havia sido
planejado por um grupo de presidiários, os quais praticamente controlavam o
funcionamento interno da instituição, tal como hoje dividida em facções
criminosas.
Desde o mês de agosto daquele ano nada menos
do que três princípios de incêndios e de motins já haviam ocorrido ali e a
deflagração e outro parecia simples questão de tempo. No dia anterior os
agentes penitenciários haviam encontrado no forro de uma das celas um colchão,
um monte de palhas e oito litros de gasolina. O clima entre os detentos era,
mais do que nunca, de extraordinária tensão – os nervos estavam à flor da pele.
No entardecer daquele domingo, encerrado o
horário de visitas, depois da conferência dos detentos, um grupo destes recusou-se
a voltar às celas – prenunciando o que viria a seguir, eles só concordaram com
isto sob a promessa dos agentes de que estas permaneceriam abertas. Com o
início repentino das chamas outro agrupamento passou a percorrer as demais
celas: armados de facas, facões, adagas e porretes, obrigaram os outros
detentos a também incendiar tudo.
Em seguida, em “estrondo”, todos começaram a
correr pelos corredores em direção à parte térrea e ao portão, forçando a saída.
Segundo a direção, havia 1.093 apenados no local, contra não mais do que 40
brigadianos e agentes penitenciários para contê-los. Os bombeiros chegaram em poucos
minutos, vindos da estação central, na praça Rui Barbosa, enquanto homens da
brigada e um grupo de socorro da Guarda Municipal, comandados pelo delegado
José Henrique Mariante, detinham os revoltosos a golpes de cassetete e bombas
de gás lacrimogêneo, a muito custo impedindo que chegassem à rouparia: se isso
acontecesse eles teriam acesso a roupas civis e poderiam se misturar até mesmo
às autoridades e fugir às ruas.
Estabeleceu-se no pátio um “cinturão” de
segurança, com duas linhas de praças da Brigada armados com fuzis-metralhadoras
e soldados com baionetas caladas, que “calçavam” e imobilizavam os presos
contra as paredes. Nesse trabalho destacou-se o tenente Cantalício Camargo,
comandante do destacamento local. Com poucos recursos, e dando apenas três
rajadas de metralhadora para o alto, ele e seus homens enfrentaram a maré humana
de mais de 500 presos, conseguindo fazer – oficialmente sem vítimas fatais –
que recuassem.
A raivosa determinação de destruir de vez o
velho cadeião, queimando-o inteiramente, e a certeza de que o plano havia sido
elaborado com a participação de gente de fora das grades, foram evidenciadas
pelo fato de que, no mesmo instante em que as chamas se propagavam às margens
do Guaíba, os bombeiros haviam se deslocado para combater outra ocorrência em
um matagal do morro de Teresópolis, adiante do final da linha dos bondes. Segundo
os repórteres, de lá divisava-se perfeitamente o interior do presídio, o que
levantava a suspeita de que a pessoa que ateou fogo no terreno pudesse ser
comandada à distância pelos detentos, quem sabe através de um jogo de espelhos.
Do mesmo modo estes poderiam, das janelas da Casa, avistar a chegada dos
caminhões. Outro fato sintomático foi a depredação antecipada da bomba de água
do Cadeião.
PÂNICO NA CIDADE – A possibilidade de que cerca de mil homens conseguissem
fugir e se espalhassem pelas ruas da cidade, tomando a população de refém, a
visão dos rolos de fumaça, o cair da noite, bem como a péssima fama da
instituição prisional, a promiscuidade, o histórico de fugas e os fatos bárbaros
que lá ocorriam geraram um evidente clima de medo entre os moradores da capital,
os quais, naquele entardecer de domingo, encerravam o seu pacato e modorrento final
de semana.
Falava-se inicialmente em muitos mortos e
em sangrentas cenas de ajuste de contas entre os próprios presos, com inúmeros
esfaqueamentos e até degolas. Um preso disse aos repórteres tem visto uma
cabeça jogada dentro de um vaso sanitário – algo não confirmado depois. Todavia,
pelas versões oficiais, não só nenhum sentenciado teria conseguido se evadir
como ninguém, fosse apenado, policial ou funcionário, morreu durante ou depois
do episódio.
Aos poucos, em contrapartida, surgiam relatos
de alguns funcionários que enfrentaram o perigo das chamas e da violência para
retirar detentos que ficaram presos em suas celas e outros, doentes (a maioria
com tuberculose) hospedados na enfermaria e mesmo os inválidos ou com
dificuldades de locomoção.
Na edição de terça-feira, 30, jornal Folha
da Tarde, na matéria “A Trama Sinistra dos Presidiários”, relatou o clima
depois do incêndio, quando a situação já havia sido dominada, algo que revela o
inferno humano que caracterizava o local: “Em
todas as fisionomias dos presos notava-se intensa satisfação. Riam e
pilheriavam já que, para eles, qualquer situação será melhor do que a da Casa
de Correção. Um presidiário adiantou-nos que há muito vinha entrando gasolina
no presídio, em pequenas quantidades, e que em todas as celas havia um foco
preparado ao qual foi ateado fogo quando deram alarme na primeira, a 72”. Já
o Correio do Povo lembrou que “foi um sinistro dos mais terríveis de que se tem
notícia” e que se o plano desse certo “Porto Alegre estaria até agora em
pânico, com suas ruas invadidas por homens para quem os conceitos de vida e de
respeito ao próximo pouco ou nada significam”.
Folha da Tarde |
Em grandes operações de segurança os detentos foram sendo realocados
em diferentes locais – quartéis da brigada, delegacias de polícia, no Instituto
Psiquiátrico Forense (manicômio judiciário) e, principalmente, na Colônia Penal
Daltro Filho, na localidade de Mariante, município de Venâncio Aires, para onde
cerca de 300 deles foram conduzidos em barcaças do Departamento Autônomo de
Estradas de Rodagem, DAER – a viagem pelo rio Jacuí demorava cerca de quatro
horas, com os revoltosos vigiados por soldados armados de metralhadoras. O
policiamento na colônia agrícola já havia sido fortemente reforçado por uma
companhia do primeiro Batalhão de Caçadores.
Na
Casa de Detenção permaneceram 550 homens, abrigados em barracas, em pavilhões
não totalmente queimados ou recolhidos aos fétidos e úmidos porões, o “buraco”,
enquanto os mais colaborativos voltavam às suas funções habituais. Para a oitava
Delegacia de Polícia, em Petrópolis, seguiram os elementos mais perigosos,
entre os quais aqueles apontados como os líderes da rebelião. O chefe do
Departamento de Institutos Penais do Estado, Neu Reinert, ordenou o isolamento
total do presídio, proibindo qualquer tipo de visitas. O desespero maior, no
entanto, provinha dos familiares dos presos, concentrados em frente e que
imploravam por notícias.
Em depoimento oficial, um preso chamado
Vavá – ou Gaspar Ávila da Silva, líder de quadrilha - afirmou ter sido ele o
principal líder do movimento, junto com Washington Aires, o Paulistinha, e
Nelson Bassani, os três agora recolhidos aos xadrezes da Oitava DP. As
declarações de Vavá surpreenderam as autoridades – até mesmo ao secretário do
Interior e Justiça, Theobaldo Neumann, e o diretor do presídio, Aires Rodrigues
da Cunha - já que era um preso considerado de bom comportamento. Outro detento chamado
Veríssimo Caduri Leal também assumiu a liderança.
ESCOLA DE VÍCIOS – Em maio de 1971, quando o antigo Cadeião já tinha vindo
abaixo, o repórter Isaías Valiatti, durante anos setorista policial da Caldas
Júnior e nome reconhecido da imprensa gaúcha, escreveu um interessante artigo
intitulado “Casa de Perversão”:
“Felizmente nem sequer o portão da medonha masmorra que tinha o nome de
Casa de Correção ficou de pé para lembrar um passado indescritível. Vamos e
venhamos, para que conservar a memória de coisas horríveis? O mundo talvez não
se torne ideal com a supressão de imagens nefandas, mas pelo menos a nova
geração não terá de perguntar: “O que é aquilo ali?” E a resposta, para ser
correta, seria longa, chocante e incompreensível. Não tenho engenho e arte para
descrever o que vi e ouvi na medieval cadeia ao longo de tristes anos de
reportagem policial para o Correio do Povo e, em certa época, para a Folha da
Tarde. Espetáculos que superavam a imaginação de Hitchcock e cenas que nem
Dante conseguiu traçar em seu Inferno repetiam-se de tempos em tempos, entre um
motim e um incêndio provocados pelos próprios detentos. Paradoxalmente, a Casa
de Correção era, em verdade, a escola dos vícios e das anomalias que só uma
Casa de Perversão seria capaz de “ensinar” e praticar.
“Por
mais de uma vez, através das colunas deste jornal, chamei, juntamente com outras
vozes que terminaram ecoando, contra o claustro imundo e revoltante que era a
Casa de Correção. Inadequada sob todos os aspectos, contrariando os mais
elementares princípios consagrados pela moderna penalogia, e sempre superlotada
– chegou a ter quase 1.500 presos, quando sua capacidade real era para 300 –
foi preciso um grande incêndio com um motim sem precedentes, que me coube
documentar à época, para chegar-se à conclusão acaciana de que a velha cadeia
deveria ser demolida para começar da estaca zero.
“A
penitenciária estadual, localizada no Partenon, pode ter falhas gritantes ou
deficiências que devem ser eliminadas, mas jamais chegará a ser o que foi a
Casa de Correção. Há problemas de estrutura de funcionamento, de vigilância e
de métodos de recuperação que estão sendo encarados em seu devido tempo, mas,
creio eu, jamais se encontrará naquele presídio as cenas e as ocorrências tão
comuns e freqüentes na famigerada Casa de Correção.
“Vibrei quando, em 1955, o então governador do Estado presidiu a
cerimônia que assinalou a demolição simbólica do vergonhoso presídio. Era o
primeiro passo decisivo para riscá-lo definitivamente do mapa da cidade. Era o
princípio do fim das celas permanentemente inundadas, pois se localizavam
abaixo do nível do Guaíba. Os chamados “republicano” e “democrata”, que num
período não muito recuado da nossa história política serviram para castigar os
“rebeldes”, iriam desaparecer, juntamente com as amoralidades, os assassinatos
com requintes de barbarismo, as negociatas entre presos e funcionários, o
tráfico de tóxicos e de álcool, enfim, as bestialidades entre seres que cada
vez mais se degradavam num processo crescente de sordidez humana, típico do
submundo que era a Casa de Correção.
“A
despeito de tudo isso, surgiram opiniões em favor da manutenção de algo que
lembrasse o cárcere e as muralhas que o cercavam. Serviria – argumentavam –
como motivação histórica ou turística.
“Mas
eu não estava só. O venerando e bondoso padre Pio, por longos e tenebrosos anos
o capelão do extinto presídio, também admitia uma única saída: a destruição
total, o arrasamento da Casa de Correção. As razões, como vemos, dispensam
maiores comentários.
“Conservar a imagem da Casa de Correção – respeitadas as opiniões em
contrário – seria o mesmo que guardar as imagens de atrocidades que fazem a
humanidade recuar no tempo e no espaço. Seria a negação, a antítese do próprio
homem”.
Bem antes da publicação deste artigo, em
janeiro de 1955, ou seja, dois meses depois do incêndio, a Revista do Globo
dedicou várias páginas à Casa de Correção e à sua longa e sinistra trajetória.
Assinada pelo jornalista Tabajara Tajes, relata alguns dos muitos acontecimentos
ocorridos nas celas e nos porões de “uma das cadeias mais antigas do mundo”.
“Tem
o casarão, na sua existência de um século, histórias de dor, de sangue e de
tristezas, capazes de impressionar quantos ainda se comovam com a sorte dos
condenados pela Justiça. Rios de sangue correram nos seus subterrâneos. Suas
salas de tortura, em tempo não muito afastado, esconderam cenas tétricas, de
homens judiados com requinte selvagem. Presos políticos tiveram unhas
arrancadas, membros picados a pontas de cigarro. Caras humanas foram deformadas
a socos e pontapés”.
O repórter prossegue, descrevendo alguns desses episódios,
como os da cela 16, e os locais chamados de “democrata” e “republicano”: “A cela 16, há poucos anos, abrigava a
escória do presídio. Ao ser deposto um governador, o chefe de polícia mandou
trancafiar ali um parente do mesmo, delegado de uma cidade do interior. Um
malfeitor, que fora mandado prender por essa autoridade, cumpria naquela cela a
sua pena. E na sua primeira noite de presídio, quando o silêncio invadira o
casarão, vultos fugitivos arrastaram-se até ao beliche onde dormia o novo
hóspede do cubículo. Mãos fortes taparam-lhe a boca com um pano. Durante longas
horas serviu de pasto aos instintos bestiais do condenado que jurara vingança.
No dia seguinte, em prantos, jogou-se aos pés do guarda carcerário, pedindo-lhe
pelo amor dos filhos que não o deixasse mais ali. Que o matasse. Não lhe haviam
valido os cabelos brancos e nem a personalidade forte”. (...)
“No
“republicano”, buraco feito de cela, escavado abaixo do nível do Guaíba, foi
trancafiado um preso que matara um companheiro de cela. Sua reclusão foi
adotada mais em razão da própria segurança do que mesmo de castigo. O preso
morto era donzela de vários presidiários. No trajeto, por um desentendimento
qualquer, o condenado esbofeteou um guarda. E, no dia seguinte, sem que nem
presos e nem vigilantes vissem nada, o infeliz amanheceu virado num autêntico
paliteiro. Oitenta e seis punhaladas marcavam a vingança daquelas feras
humanas. Nunca se explicou como detentos puderam abrir celas, portas de
corredor e várias grades intermediárias para terminarem estourando o forte
cadeado do “republicano”.
(...) “Noutra cela, Guaiaca, presidiário de bom comportamento, e até com
indícios de debilidade mental, foi morto aos pouquinhos num torniquete feito de
lençóis. Numa ponta, um pau extraído de um dos beliches e na outra um tamanco.
Presos amotinados, que o haviam apanhado como refém, foram torcendo, torcendo,
até estrangulá-lo. No cubículo ao lado o imundo comércio de presos menores
determinou o assassinato de “Sete...”, que levava a alcunha pelo número de presos
que violentou numa só noite”.
(...) “Na Enfermaria, onde quase uma centena de tuberculosos escarram os
pulmões, um pretinho apareceu enforcado nas grades da porta. Aparentemente
cometera suicídio. Necropsia posterior apurou o estupro bestial que sofrera,
provavelmente na hora da agonia. Na famigerada Sétima Enfermaria, ao lado do
“Reizinho”, sem dúvida o maior arrombador de cofres do Brasil, minado pela
tísica, vivia o “Sarará do Galo”, vingando-se da reclusão com escarros na cara
dos guardas e de quantos dele se aproximassem”.
(...) “Escola de crimes, do interior da cadeia saíam gatunos aperfeiçoados
na arte de roubar e de matar. Cidadão decente que uma briga inevitável levasse
às suas celas, de lá saía acabrunhado, sem honra e sem dignidade, descrente dos
homens, descrente da Justiça”.
(...) “Depois que administrar presídio se tornou cargo de afilhados
políticos, a situação piorou ainda mais na Casa de Correção. (...) Com os
dirigentes sucediam-se as portarias. Golpes de pena destruíam o que os outros
haviam construído. A política carcerária caiu para níveis baixíssimos. Havia
presos gozando se regalias inexplicáveis”.
(...) “O tráfico da erva maldita ganhou alento dentro da prisão. A erva
do diabo circulava com facilidade e os atritos sucediam-se entre os presos
alucinados pela “diamba”. O jogo também campeava e quase toda semana
esfaqueavam-se os presidiários. Álcool não era contido nem pelos muros, nem
pelas grades e nem pelas revistas que passavam nos visitantes. Porres
memoráveis eram tomados entre desordens, pancadas e golpes de arma branca. O
álcool da enfermaria era desviado e vendido aos viciados. Os preços eram
alucinantes, coisas assim como 300 cruzeiros o vidro de álcool e 500 o de
cachaça. Não havia moral na seleção das visitas. O baixo meretrício, nos dias
em que o presídio era franqueado aos de fora, passeava a sua garrulice envolta
em auras de perfume barato no pátio empedrado da cadeia. Cenas espantosas de
cupidez e de falta de respeito entrepunham-se ao quadro triste da mãe comovida
que beijava o filho vestido de uniforme azul”.
CONSTRUÍDO PELOS ESCRAVOS - Na realidade o problema prisional gaúcho era crônico e vinha
desde o século XIX, e a Casa de Correção tão somente simbolizava os horrores e
as iniquidades de tal sistema.
Quando a primeira parte da sua construção
foi concluída, em 1855, era chamada de Cadeia Civil e abrigou inicialmente
cerca de 200 presos. Construída pelos braços de escravos, suas paredes, formadas
pela junção de grandes pedras, chegavam a ter mais de um metro de espessura. A localização à beira do Guaíba se explicava
pelo fácil acesso à água, pela questão da higiene – os dejetos seriam jogados
no rio – pelo solo rochoso para assentar firmemente as suas fundações e também
pelas características geográficas do local, uma “quina” da cidade e que então
passou a ser chamada de Ponta da Cadeia.
Em 1897, nos primórdios da República,
segundo os historiadores, ganhou o nome oficial de Casa de Correção. A partir
daí, de ano a ano, a sua população carcerária só foi aumentando, incluindo
presos políticos dos vários movimentos de revolta que caracterizaram o Rio
Grande.
A Casa de Correção teve sua demolição
concluída oficialmente no dia 11 de maio de 1967, uma quinta-feira. Uma equipe
de funcionários da prefeitura (Célio Marques Fernandes era o prefeito de Porto
Alegre), sob a coordenação do engenheiro João Antônio Dib, dava fim a uma era
de horrores que, no entanto, se repetiria com o não menos infame Presídio
Estadual da Chácara das Bananeiras (bairro Partenon), o Presídio central, inaugurado
em 1963 e bem mais distante dos olhos da imprensa.
MAIO DE 1967, O FIM DE UMA ERA: O PRÉDIO DO
GRANDE HOTEL PEGA FOGO
Talvez não tenha havido construção mais intimamente ligada
à história política dos gaúchos e ao “grand monde” da capital do que o Grande
Hotel, na rua dos Andradas, esquina com a Caldas Júnior, a antiga rua Payssandu,
local onde hoje é o Shopping Rua da Praia.
CP |
Fundado com este nome em 1908, foi, até os
anos cinquenta, considerado a mais tradicional, prestigiosa e sofisticada casa
hoteleira de Porto Alegre. Em seus apartamentos se hospedaram poderosos
políticos brasileiros, diplomatas, influentes empresários e personalidades do
mundo das artes e dos esportes. O marechal Hermes da Fonseca, o senador
Pinheiro Machado, Assis Brasil, Flores da Cunha, Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha,
Lindolfo Collor, Raul Pila, Salgado Filho, o general norte-americano Mark
Clark, o Marechal Cândido Rondon. Foi nas dependências do Grande Hotel (a sede
informal de todos os partidos políticos) que se estabeleceram as premissas para
a pacificação do Rio Grande do Sul em 1923 e foi também lá que se arquitetou o
plano para a revolução de 1930 que levou Getúlio ao Catete e sepultou a
República Velha. Em seus salões aconteciam os banquetes mais elegantes, as
festas mais concorridas, jogatinas profissionais, flertes, brigas, luas-de-mel
e encontros amorosos. Muitas famílias ricas e estudantes abastados ali moravam
de forma permanente. Símbolo da Belle Epóque porto-alegrense, das suas janelas
e sacadas assistia-se o “footing” de uma Rua da Praia ainda glamourosa, com
seus restaurantes, cafés, cinemas, lojas finas e homens e mulheres
elegantemente trajados.
Em meados de 1956 – naquela que foi
considerada uma das maiores transações imobiliárias de Porto Alegre – o prédio
foi vendido ao Grêmio Beneficente dos Oficiais do Exército, GBOEX, e rebatizado
com o nome de Edifício General Mallet, militar brasileiro nascido na França,
patrono da arma de artilharia.
O Grande Hotel funcionou até o início de
1957, quando foi entregue aos novos proprietários, que o readaptaram para fins
comerciais. Até essa época a construção, com três alas e sete andares, contava
com 180 salas e capacidade para receber até 250 hóspedes individuais, que
pagavam caro para desfrutar de finíssimas louças e talheres importados e comer
e beber do bom e do melhor.
As obras do edifício, a cargo do construtor
Francisco Tomatis e fiscalizada pelo engenheiro Viterbo de Carvalho, iniciaram
em 1916 e terminaram dois anos depois, em uma Porto Alegre que não chegara
ainda a 200 mil habitantes, concretizando o sonho do imigrante francês João
Pedro Bourdette e seu genro Cristino Cuervo. Os dois empresários, no entanto,
não viveram o suficiente para ver a venda do seu patrimônio. Em 1956, os três
filhos de Cristino Cuervo é que dirigiam o negócio.
No final da tarde daquele sábado de 1967, quando a Porto
Alegre de 800 mil habitantes dançava ao som da Jovem Guarda e dois dias após a
violenta repressão policial a um protesto de estudantes contra o regime militar
(eles foram espancados até mesmo dentro da Catedral Metropolitana), nesse dia
13 de maio, data da abolição da escravatura no Brasil, véspera do Dia das Mães,
um incêndio de grandes proporções iniciou no quinto andar do edifício Mallet.
As chamas se propagaram com tal força que muitos clientes do tradicional Salão
Cruzeiro fugiram com metade da barba por fazer e o cabelo só em parte cortado.
Eram 18h30min, caía a noite e os bombeiros demoraram a chegar – quando isso
aconteceu a água dos raros hidrantes mostrou-se com pouca força e foi necessário
buscá-la no rio Guaíba.
Dada a intensidade das chamas e dos jatos
das mangueiras, temia-se que todo o velho prédio viesse abaixo. Também as
fagulhas que se espalharam geraram o temor de novos focos. Felizmente nenhuma
construção vizinha foi atingida e as grossas paredes de tijolos mantiveram-se
de pé. Às 23h30min o incêndio já estava praticamente dominado.
MUITOS PREJUÍZOS E DESEMPREGADOS – No coração da cidade, com sua bela e histórica fachada,
o Mallet era um importante centro comercial da capital gaúcha. Grande número de
profissionais liberais, entidades de classe e representações comerciais operavam
em suas salas.
No último pavimento estava o Círculo Militar
de Porto Alegre e no andar térreo localizava-se a nova farmácia do GBOEx, o
Salão Cruzeiro, a Livraria Jackson, o escritório dos municípios gaúchos e a agência
Radional de notícias.
Com o sinistro de maio criou-se também um problema
social e trabalhista. Dezenas de homens e mulheres perderam seus empregos e rendas,
milhares de papéis, contratos e documentos importantes foram destruídos e
vultosos prejuízos de equipamentos e máquinas não puderam ser cobertos pelo
seguro – o do prédio como um todo era igualmente irrisório.
Os funcionários do tradicional Salão
Cruzeiro, por exemplo, trabalhavam como diaristas e passaram os dias seguintes
procurando colocação em outras barbearias.
Por sua vez os empregados de pequenas firmas poucas esperanças tinham de
uma possível indenização, já que seus patrões também haviam perdido tudo.
Não
só humildes empregados como instituições e nomes conhecidos da vida de Porto
Alegre, inquilinos do prédio incendiado, viveram dias angustiosos naquele outono
de 1967. A relação fornecida pelo próprio GBOEx incluía o advogado José
Henrique Mariante (o delegado que acudiu durante o incêndio da Casa de
Correção, doze anos antes) o também advogado, jornalista e vereador Alberto
André, o político João Brusa Neto, o jornalista e colunista esportivo Cid
Pinheiro Cabral, o ex centroavante do Grêmio Rubens Mostardeiro Torelly. Também
tinham endereço no Mallet a diretoria regional dos Correios e Telégrafos, a
Editora Mérito, a Agência Marítima Interamericana, a Companhia Rádio Internacional
do Brasil, o Banco Ítalo-Belga, a União Gaúcha dos Estudantes Secundários, o
Centro de Confraternização Jaguarense, a Associação dos Licenciados do Rio
Grande do Sul, o Centro Itaquiense, a Federação Gaúcha de Futebol de Salão, Dioni
York Bado, Livraria Ibal, Centro dos Oficiais Administrativos do Estado, Territorial
Vale do Araguaia, entre outros.
Especialmente prejudicados ficaram os
segurados do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e
Empregados em Serviços Públicos, IAPFESP, um dos principais órgãos de
assistência social brasileiro e cujos fichários haviam sido totalmente
consumidos pelo fogo. Com eles desapareceram a história clínica de milhares de
pacientes, além de equipamentos de radiologia, fisioterapia, odontologia, raio
X. Felizmente os bombeiros haviam conseguido isolar a tempo os laboratórios
onde estavam depositadas grandes quantidades de ácidos e produtos inflamáveis –
atingidos pelo fogo, a explosão seria monumental e de consequências
imprevisíveis.
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