Jardim Botânico, Porto Alegre. Fundado em 2006 por Vitor Minas. Email: vitorminas1@gmail.com
sábado, novembro 23, 2013
Novembro de 1918: há 95 anos acabava a maior epidemia que assolou a Humanidade no século XX
Texto baseado em pesquisa de jornais, revistas e publicações da época, citados no texto. Republicação
Pesquisa e Texto: Vitor Minas
Nunca se viu nada igual: a rua da Praia vazia, as casas comerciais fechadas, os bares e os cafés desertos, os bondes elétricos paralisados, os colégios sem alunos ou professores e a entrega de correspondência suspensa. O desabastecimento atingia toda a cidade – faltavam remédios, leite, lenha, gasolina e gêneros alimentícios e tudo encarecia do dia para a noite. Cortejos fúnebres se encontravam nas esquinas; nos cemitérios detentos condenados substituíam os coveiros que morriam em serviço. Mesmo assim, os caixões disponíveis eram insuficientes para tantos óbitos e centenas de pessoas eram sumariamente enterradas em valas coletivas, enquanto dezenas de corpos amontoavam-se à espera de sepultamento.
A cada edição os jornais publicavam a relação oficial dos mortos. Havia cenas de histeria pública, os casos de suicídio aumentavam e ninguém se sentia seguro em parte alguma. Quem podia abandonava a cidade em busca de ares mais saudáveis. Nas calçadas os raros transeuntes seguiam a passos apressados. Dos sinos da igreja matriz partiam dobres tristes anunciando novas vítimas da “influenza espanhola”, a maior pandemia da história da Humanidade, com um bilhão de infectados, a metade da população da época, e cerca de 20 milhões de mortos. Somente no Brasil foram mais de 300 mil óbitos, dos quais18 mil no Rio de Janeiro.
A Grande Guerra Mundial iniciada quatro anos antes estava para terminar. Faminto e debilitado, o Velho Continente transformara-se em um território propício a toda espécie de doenças. Na América, no Brasil arcaico e rural da Velha República, grassavam a tuberculose, a varíola, a varicela, o tifo, a escarlatina, a malária, a sífilis, a lepra. Em Porto Alegre, de cada 1.000 bebês mais de 300 morriam antes de completar 2 anos.
LEITE FALSIFICADO - A capital gaúcha , com 170 mil habitantes, era então um amontoado de casas velhas e vielas estreitas e escuras. A água municipal não recebia qualquer tratamento e, nos dias de chuva, as torneiras despejavam uma desagradável mistura da cor do barro, embora a maioria da população se valesse do serviços dos aguadeiros - ou “pipeiros”.
A rede de esgoto servia tão somente os bairros nobres – Independência, Duque de Caxias, parte do Menino Deus - o recolhimento de lixo não seguia nenhuma diretriz rigorosa e as fétidas “casinhas” externas desempenhavam o papel de vasos sanitários. Comerciantes inescrupulosos vendiam alimentos falsificados ou deteriorados: carne velha, pão feito de fava e milho, pimenta do reino misturada a pó de sapato, leite aguado e manteiga rançosa. Não bastasse, vivia-se uma aguda crise econômica, com carestia, endividamento, inflação, greves operárias em São Paulo e insatisfação generalizada.
A “influenza” chegaria ao País em meados de setembro a bordo dos navios que vinham da Europa. Das capitais litorâneas ou portuárias – Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio - rapidamente estendeu-se para os quatro cantos do território nacional. Chegou a pontos remotos da “hinterland” brasileira, não poupando cidades, vilas, de sul a norte, matando e dizimando tribos inteiras da região amazônica. Com quase 1 milhão de habitantes, clima insalubre e alta densidade demográfica, a Capital da República transformou-se em um vasto hospital. Centenas de pessoas morreram diariamente entre outubro e novembro e 70% da população caiu de cama, acometida da estranha moléstia cuja origem, afinal, ninguém precisava. Em São Paulo foram 350 mil infectados – 65% da população – e 5100 mortos oficialmente contabilizados. Da virulenta peste sabia-se apenas que era diferente de tudo o que até então se vira e que provavelmente se originasse da Espanha, convencionando-se então chamá-la de “gripe” ou “influenza hespanhola”, embora nenhuma nação - muito menos a própria Espanha (que a cognominou “febre russa”), assumisse a paternidade. Na Rússia foi denominada de “febre siberiana”, na Sibéria de “febre chinesa” e na França de “catarro hespanhol”. Fez 5 milhões de vítimas fatais na Índia e 450 mil nos Estados Unidos. Espalhando-se rapidamente pelos quatro cantos do Mundo, matou os primeiros brasileiros na costa da África, em setembro de 1917. Do efetivo de 2 mil militares da Divisão naval brasileira – dois navios de patrulha e uma missão médica - que, tardiamente, iriam participar da Grande Guerra(o conflito acabou um dia depois da chegada ao front), 90% foram atingidos pela doença e mais de cem morreram nas proximidades de Dakar, no Senegal.
Por mar a moléstia aportou na costa brasileira e logo fez morada nas principais cidades litorâneas. No início de outubro a Capital Federal sucumbiria à doença. Em seu livro de memórias “Chão de Ferro”, o médico e escritor Pedro Nava descreve o que foram aqueles dias na cidade do Rio de Janeiro.
“Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto de doentes e cifras pavorosas de obituário. As funerárias não davam vazão – havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-las(...) Era muito defunto para os poucos coveiros do trivial – assim mesmo desfalcados pela doença. Foram contratados amadores a preços vantajosos. Depois vieram os detentos. (...) Era de ver as ruas vazias cortadas de raro em raro pelos rabecões e caminhões de cadáveres(...) Um ou outro passante andando como se estivesse fugindo e trazendo no rosto a expressão das figuras do quadro de Eduard Munch: Angst. Isso mesmo, angústia: faces de terror, crispações de pânico, vultos de luto correndo, pirando, dando o fora e, no fundo, um céu vangogue sangue ocre.”
ELA CHEGOU A BORDO DOS NAVIOS - Oficialmente, a espanhola chegou ao Rio Grande do Sul no dia 9 de outubro, uma quarta-feira, a bordo do navio Itajubá, vindo do Rio de Janeiro: 38 de seus tripulantes apresentavam os sintomas da febre. Ao atracar em Rio Grande, seu comandante comunicou o fato às autoridades portuárias, descrevendo, sucintamente, uma febre de “caráter benigno”. Por sua vez as autoridades sanitárias gaúchas limitaram-se a examinar os tripulantes, para isolá-los em seguida. O navio foi desinfetado e – como de praxe - o fato comunicado ao Palácio Piratini.
Três dias depois o navio Itaquera – que, devido à doença, havia sido impedido de atracar em portos do Paraná e Santa Catarina – chegou a Rio Grande, transferindo-se seus 32 doentes para o lazareto da cidade. Cumpridas as formalidades sanitárias, o vapor prosseguiu viagem pela Lagoa dos Patos, chegando a Porto Alegre a 14 de outubro. Dois dias após, com outros 7 doentes confirmados, atracava no cais da Capital o navio de cabotagem Mercedes, do Lloyd Brasileiro, procedente de Rio Grande. Não havia nenhum médico a bordo e somente 48 depois da chegada seus tripulantes seriam postos em isolamento. No dia 17 finalmente atracou na Capital o Itajubá, trazendo consigo os tripulantes que haviam sido submetidos a uma curta quarentena em Rio Grande.
No dia 18, por fim, surgiram notícias de alguns casos da estranha gripe, com três registros em pontos diferentes; um funcionário da higiene Pública e mais dois homens pediram espontaneamente para serem isolados. Uma moça também compareceu à Diretoria de Higiene do Estado apresentando os mesmos sintomas dos demais: calafrios em todo o corpo; prostração intensa; febre que chegava a 40 graus; dores musculares, dores de cabeça e na barriga, nos olhos, nos ombros, nas costas, nos rins e nas pernas; catarro abundante e muita tosse, bem como sensibilidade extrema à luz, náuseas, vômitos, calor no rosto, vertigens e lágrimas.
A tais sintomas acrescentava-se uma profunda depressão psíquica e, muitas vezes, sensíveis alterações cardíacas ou respiratórias que levavam à morte.
Nos dias 20 e 21 seriam notificados mais 12 casos suspeitos, todos, ressaltavam as autoridades gaúchas, “benignos”. Outros quatro caixeiros viajantes recém chegados à cidade também apresentavam os mesmos sintomas. No dia 23, somavam 21 pessoas recolhidas ao isolamento. Em outra porta de entrada do Estado, na mesma data, comunicava-se o fato extraordinário às autoridades da Capital: à exceção de um telegrafista, todos os funcionário da estação de trens de Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina, haviam caído vítimas da “influenza”. Em poucos dias, no Hospital da Brigada, na Capital, baixaram, vítimas da febre, mais de 30 praças. Outros 130 soldados foram colocados em isolamento compulsório. Depois de percorrer mundo, a gripe espanhola era também gaúcha.
A “IMUNDICIE” DA SANTA CASA- Em 1918 o intendente José Montaury, do Partido Republicano Riograndense, comandava a municipalidade. Espécie de títere do presidente do Estado, o caudilho Antonio Augusto Borges de Medeiros, Montaury, um fluminense nascido em Niterói, assumiu o cargo em 1897 e exerceu-o por longos 27 anos, período no qual não faltaram os mais variados surtos epidêmicos. A última fora a de varicela, em 1916.
Ainda que uma das mais populosas cidades brasileiras a Capital do Rio Grande do Sul resumia-se então ao centro e alguns bairros de difícil acesso. Os carros de praça “motorizados” competiam com outros movidos a parelhas de cavalos e aos bondes elétricos. Via-se as comédias mudas de Carlitos e no final da tarde fazia-se o “footing” na rua da Praia, com homens de chapéu e bengala e mulheres de grandes e pesados vestidos. A Confeitaria Rocco, o Café Colombo, na Andradas, o Chalé da Praça XV, a Livraria do Globo, os cine-teatros Guarani – o mais “luxuoso” – e o popular Apolo, o Petit Casino, o Clube do Comércio, o Germania, o Caixeiral, o Clube dos Caçadores (na verdade, um cabaré) e o Hipódromo do Moinhos de Vento incluíam-se entre os pontos de referência da sociedade mundana da época – industriais, comerciantes, funcionários públicos, advogados, jornalistas, poetas, boêmios e desocupados em melhor situação financeira.
Os principais jornais - Correio do Povo, A Federação, A Gazeta do Povo e O Independente, recebiam, via cabo submarino, os acontecimentos do restante do mundo que os leitores liam com dias de atraso. As revistas Kodak e “Máscara” – de entretenimento, cultura e variedades - douravam a vida social e cultural da capital e das principais cidades gaúchas: Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santa Maria. Havia futebol – ou “matchs” - aos domingos e pescarias e esportes náuticos no rio Guaíba, cujas águas, limpas e calmas, espraiavam-se até a Cidade Baixa. As noites eram previsivelmente calmas e escuras – a iluminação elétrica ainda convivia com os velhos lampiões dos postes. Comandadas pelo doutor Mário Totta, as famílias mais chiques veraneavam no “arrabalde” da Tristeza e a praia da Pedra Redonda, um dos cartões postais da cidade, servia de cenário para concorridas festas e saraus onde não faltavam intelectuais e escritores como Augusto Meyer, Olyntho Sanmartin, Teodomiro Tostes e afetados poetas parnasianos.
No centro, à noite, pontificavam os discretos “rendez-vous” e cabarés mais caros com as necessárias mulheres francesas e polacas. Quase tanto quanto a tuberculose, a sífilis impunha cuidados e cobrava seu preço aos moços desprevenidos. A cidade dispunha de seis precários hospitais e quatro médicos voltados ao atendimento público em igual número de postos de saúde. Por seu lado, o Departamento de Higiene, com 56 funcionários em todo o Estado e duas ambulâncias e seis carroças na Capital, pouco tinha a oferecer. Os médicos mais renomados – Sarmento Leite, Mário Totta, Jacinto Gomes, Ivo Corseuil, Landell de Moura e Protásio Alves, hoje nomes de ruas e avenidas – dividiam-se entre a clínica estabelecida e o atendimento familiar a domicílio.
Os portoalegrenses abastados, contudo, tratavam-se em casa, evitando a promiscuidade, a sordidez, as infecções e a imundície dos quartos da Santa Casa, “um atentado à higiene”, na descrição do doutor Mário Totta. Fiel ao imaginário da época e às noções da medicina do início do século, as mães fortificavam e depuravam seus filhos com Emulsão de Scott e óleo de rícino, reputação milagrosa e restauradora dividida com os “banhos de mar” (naquele ano inaugurava-se o “luxuoso” balneário do Cassino), e os bons ares da serra e do litoral, embora todo o cuidado fosse pouco para evitar-se os mortíferos “golpes de ar”.
Na última semana de outubro esta simplória Porto Alegre transformou-se subitamente em uma cidade enferma. Nem mesmo os esforços irritantes e patéticos do Governo positivista de Borges de Medeiros, para o qual não havia motivos de alarma ou pânico, já que a gripe, a princípio, não mostrava-se tão virulentamente fatal, evitaram que a população se apercebesse claramente da extensão da epidemia: chegara à cidade a peste que viera da Europa.
De súbito, hordas de populares aglomeraram-se às portas das farmácias, disputando toda espécie de medicamentos indicados para a prevenção da doença, em especial o quinino, que havia se mostrado eficaz em outras ocasiões. Os estoques do produto, de purgantes, de óleo de rícino e mesmo as sortidas de limão e pencas de cebola vendido nas feiras e armazéns sumiram do mercado ou encareceram de forma exorbitante. Os balconistas das farmácias – aqueles que mantinham-se de pé - não descansavam um só instante. Hospitais como a Santa Casa de Misericórdia – abrigando um terço dos doentes do Estado – recebiam levas de novos pacientes, acomodados à maneira possível. À falta de leitos improvisavam-se toscas enfermarias e o Governo – finalmente reconhecendo a situação mas fugindo à sua real extensão e gravidade – passou a organizar hospitais improvisados e equipes de emergência para percorrer as residências e levar assistência médica à população pobre.
Recomendava-se, a princípio, cama, higiene e repouso, além de limpar a boca e as fossas nasais várias vezes ao dia com uma lavagem de água e sabão, sem esquecer dos proverbiais gargarejos com água oxigenada ou boricada. Os portoalegrenses, no entanto, apelavam para tudo que estivesse ou não estivesse à mão – chá de eucalipto, cachaça com mel e limão, aspirina, suco de cebola, vinho, caldo de galinha, purgantes, infusões, preces, benzimentos, promessas, talismãs. O uso abusivo do quinino não raro causava intoxicações, com prejuízos irreparáveis à audição e à visão. Charlatões, curandeiros e vivaldinos encontravam terreno fértil para a venda dos mais bizarros produtos ou receitas: pílulas, chocolates, filtros de água e até cigarros que “preveniam ou afastavam o mal”.
A partir de 21 de outubro haviam sido registrados os primeiros óbitos. Os jornais da Capital, habitualmente voltado à cobertura da Grande Guerra e aos acontecimentos políticos no Rio de Janeiro, abriram suas páginas para a evolução da “peste”. No início de novembro informava-se que a Escolha de Engenharia, o colégio Sevigné, o colégio Militar, Ginásio Anchieta e outros estabelecimentos de ensino da cidade haviam decidido suspender as aulas e adiar os exames finais. Sem movimento de público, o comércio e as repartições fechavam suas portas e os teatros e os cinemas comunicavam a suspensão dos espetáculos. Na tradicional Confeitaria Rocco a maioria dos empregados caíra doente.
CIDADE TINHA "ASPECTO FÚNEBRE" - Na Livraria do Globo 62 funcionários contraíram a influenza e o Correio do Povo passou diariamente a oferecer vagas de entregador em substituição àqueles que iam sendo atingidos pela epidemia. O “turbilhão’ da rua da Praia deu lugar a calçadas vazias. Sem carteiros, os Correios suspenderam as entregas e a Companhia telefônica, desfalcada de 285 funcionários, pediu à população que só fizesse uso do telefone em caso de extrema urgência. Os guardas desapareceram das esquinas, os horários dos bondes foram suspensos ou adiados, a Assembléia Legislativa cancelou as suas sessões ordinárias. A Companhia Força e Luz ficou sem foguistas. Todos se recolhiam mais cedo, evitando contatos.
“A cidade tem durante o dia um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre. Raro é o transeunte que anda. Os cafés, os bares, tudo escuro, dando à Capital a forma de uma cidade morta e sem vida”, escreveu o jornal O Independente em seu número de primeiro de novembro.
Temendo o contágio ou já atingidos pela doença, até os costumeiros leiteiros que vinham da periferia deixaram de vender o produto às portas das residências.À aproximação do feriado de Finados, as autoridades alertavam as pessoas para que não fossem aos cemitérios, a fim de evitar aglomerações e o possível contágio. Inicialmente pensou-se que o vírus pudesse ser transmitido pela água, ou até mesmo pelo ar.
“O pavor coletivo, o alarma social, se está tornando mais grave do que a própria epidemia. Alguns suicídios o demonstram”, escrevia o jornal A Federação, vinculado ao governo de Borges de Medeiros. O Dr. Mário Totta advertia: “Em todas as epidemias são justamente os que mais medo têm são os que mais depressa são levados de lufada”. Os padres oficiavam missas, pedindo a Deus o afastamento da “peste”, os clubes decidiram suspender as partidas de futebol e nas páginas dos jornais surgiam anúncios de remédios miraculosos contra a doença.
Já as autoridades municipais e estaduais insistiam em pedir calma à população, ao mesmo tempo em que apregoavam que a situação estava sob controle e que a epidemia já mostrava sinais de refluxo. “Povo! Não devemos entregar-nos à morte, sem nada fazer pela vida: devemos esforçar-nos para combater o mal”, concitava o boletim da União Metalúrgica distribuído à população.
Em sua edição de 5 de novembro a revista Máscara insistia na tese de que o pior já passara e que dentro em breve a cidade voltaria à normalidade.
“E esqueçamos...
“Conforme previmos em nosso número passado, a epidemia entrou em declínio em princípios desta semana. As notas fornecidas pela Diretoria de Higiene da imprensa foram sempre as mais animadoras, o que faz supor a estas horas que os casos novos da gripe sejam raros. E agora, que tudo promete voltar à normalidade, agora que a nossa cidade lembra um hospital, tal é o número de convalescentes que se arrastam pelas calçadas, com as faces cavadas e pálidas, os olhos fundos e abatidos, agora que um frisson de vitória abafa a nossa alma, mesmo os que fremem em corpos combalidos, e nosso dever afastar o mais possível da recordação popular esses tristíssimos dias de angústia e sobreexcitação nervosa a fim de que possamos beber novamente a grandes haustos a vida que o “anjo da paz ‘ promete dulcificar.(...)”
A realidade, contudo, revelava-se bem diferente, e a própria imprensa tornaria a adotar tons sombrios. A 9 de novembro o Correio do povo noticia: “Das 18 horas de ante hontem às 18 horas de hontem foram registrados nesta Capital 32 óbitos de pessoas que faleceram em consequência da “influenza hespanhola”.
Na lista dos falecidos “em domicílio” constavam pessoas de todas as idades e moradores das principais ruas da cidade: Juvenal Faria Dias, de 29 anos, residente à rua General Auto, 35; Sabina Antonia da Silva, 50 anos, moradora do número 123 da rua José de Alencar; Angela Teixeira Nunes, da rua Ramiro Barcelos, 133, "menina Catharina, filha de Ariosto Menezes, rua Lima e Silva, 147-B; Jorge Anto, residente no Hotel Lagache; Rubens Santos, de 32 anos, morador da rua Aquidaban, 9; “menino Alziro”, filho de Frederico Castro, com endereço à rua Santa Luíza, 66; Antonio Monteiro, morador da rua Moinhos de Vento, 70; Antonieta Rabello Gorfmann, residente à rua Fernandes Vieira, 36; Bibiana Rodrigues, 20 anos, “mixta, solteira, residente à rua Santana, 7”. Na edição do dia 11 a lista incluía, dentre os óbitos em domicílio, os seguintes nomes: Carlos Albuquerque, 52 anos, residente à rua Andrade Neves, 6; Carlos Haesbaeri, 39 anos, morador da rua Garibaldi, 32; Dante Matteoli, 17 anos, rua Castro Alves, 156; Mathilde de Michaelsen Wolff, 43 anos, da rua General Vitorino, 13. Na mesma data nominava-se a ocorrência de novos casos da doença: “Ontem enfermaram sete pessoas da família do major Edmundo Arnt; a exma. Esposa do Dr. Joaquim Gaffrée; o Dr. Gaspar Saldanha, sua senhora e três filhos; sete pessoas da família do major Labieno Jobim; “o nosso colega Lourival Cunha, da Kodak”(revista); as senhoritas Aracy, Júlia, Odette e Nayr Bacellar, filhas do capitão Bacellar Júnior”.
Uma pequena nota, vinda de Buenos Aires, onde também grassava a gripe, informava de uma campanha de combate às moscas – “veículo de imundícies de toda espécie e transmissora de várias moléstias”- desencadeada pelas autoridades portenhas junto à população.
A GRIPE ATRÁS DAS GRADES - Dos mais de 600 detentos da casa de Correção metade estava enferma, informava o Dr. Ivo Corseuil, médico da diretoria de Higiene. Nas residências, a gripe não poupava vítimas mais ilustres: o Dr. Jacinto Gomes, diretor da enfermaria de Gripados da Santa Casa de Misericórdia, contraíra a gripe e teve que ser substituído. No dia 10 de novembro o Correio do Povo, em sua coluna de necrologia, destacava o sepultamento de algumas figuras da sociedade portoalegrense:“Com grande acompanhamento, realizou-se ontem o enterro do doutor Álvaro Nunes Furtado, clínico residente, nesta capital, e que, como noticiamos, faleceu vitimado pela influenza hespanhola”. “Faleceu ontem, nesta capital, vitimado pela influenza hespanhola, o jovem Antenor Maciel Júnior, filho do tenente Antenor Maciel.“O infortunado jovem que, com bastante brilho, fazia o curso do Colégio Militar, deixa profunda saudade entre o grande número de seus colegas, no seio dos quais se fazia estimar.“Ele era natural de Uruguaiana, onde também contava com um grande círculo de relações.“O enterro, realizado ontem mesmo às 16 horas, esteve bastante concorrido, vendo-se sobre o caixão mortuário grande número de coroas”.
Dia 13, uma quarta-feira, a Empresa de navegação Cahy comunicava a suspensão de todas as viagens ao longo do rio “visto a maior parte dos seu empregados estarem enfermos”. No mesmo dia um anúncio de rodapé, na capa do Correio do Povo, oferecia um novo e rápido serviço de impressão: “Nas oficinas desta folha apromptam-se com presteza convites para enterro”. Vários funcionários da casa – incluindo jornalistas – estavam enfermos.
Da distante Europa vinham notícias mais alentadoras, publicadas pelo mesmo diário, e que repercutiam em todo o Estado, especialmente na região colonial italiana: fora assinado o armistício no dia 11 e a Grande Guerra que matara mais de 10 milhões de pessoas chegara ao seu final. A Itália estava entre os países vencedores.
“Garibaldi, 12 – Esta vila está em festa com a notícia da assinatura do armistício com a Alemanha. Sobem ao ar girândolas de foguetes. Os sinos repicam. Bandas de música percorrem as ruas. Quase todas as casas estão embandeiradas. Reina grande alegria.”
Os jornais noticiavam a derrota da Alemanha, a fuga do kaiser Guilherme II e, no Rio Grande do Sul, a influenza espanhola que, em vez de declinar, seguia em crescendo. Cortejos fúnebres de pessoas a pé, segurando os caixões aos ombros, cruzavam-se a caminho dos cemitérios, os coveiros trabalhavam sem interrupção, nas casas e cortiços improvisavam-se rápidos velórios. Prostrados e reclusos em seus barracos, os moradores mais pobres viravam-se como podiam em tais circunstâncias. Famílias inteiras adoeciam e os poucos em condições de caminhar percorriam quilômetros a pé para disputar os donativos distribuídos às portas de algumas instituições filantrópicas – igreja católica, maçonaria, centros espíritas.
À peste somava-se agora a falta de alimentos e a especulação desenfreada dos preços praticada por comerciantes e aproveitadores. “Está tudo pela hora da morte”, constatou o jornal Gazeta do Povo em 11 de novembro. Leite e aves sumiram do mercado, a canja de galinha passou a custar os olhos da cara, a lenha para os fogões dobrou de preço e até os aluguéis dispararam. Os diários locais imploravam por entregadores, os médicos não dispunham de gasolina suficiente para abastecer seus carros e visitar os doentes mais distantes e as farmácias vendiam quinino e óleo de rícino como se fossem especiarias. A cadeia produtiva fora interrompida pela epidemia e a cidade, paralisada, não encontrava forças para reagir. O que havia em remédios e alimentos não bastava para uma época , sob todos os aspectos, absolutamente anormal.
AUTORIDADES CENSURARAM A IMPRENSA - A censura à imprensa imposta pelas autoridades estaduais(incomodadas pelas críticas à ineficiência e morosidade das medidas de combate à epidemia) a partir de primeiro de novembro não calava o pavor coletivo e – em evidente efeito contrário - só fazia aumentar os boatos a respeito da mortandade.
O Correio do Povo que, assim como os demais veículos, recebera a ordem de não publicar a lista diária das vítimas da gripe, após informar da determinação aos seus leitores optara, em protesto, por deixar colunas em branco. Particularmente visado pela censura borgista, o jornal insistia em apontar as ineficiências e morosidades no combate à epidemia e as falhas no socorro à população mais pobre, que, a par da doença, sofria com a fome e da desassistência. Famílias inteiras estavam acamadas, sobrevivendo do pouco que ainda possuíam em casa. Os que encontravam forças de sair às ruas apelavam para os donativos – feijão, café, açúcar, banha – distribuídos pela Maçonaria, pela Federação Operária do Rio Grande do Sul ou por alguns comerciantes mais generosos ou em melhor situação financeira. O clima geral era de pânico.
“O boato no Coração da Cidade“
(...) Eu vi com estes olhos cinco mortos na rua dos Andradas, disseram-me que os coveiros cavam noite e dia as sepulturas; “Fulano(que está vivo e um poucochinho doente) acaba de morrer...” e outras e outras afirmações que só a polícia correcional podia evitar.“Desta forma andam pelas ruas, ilesos, os ‘boateiros”, explorando a situação enferma da cidade, acendendo perigo onde não existem(...)”( Máscara, 23 de novembro)
A partir da segunda metade de novembro, descrente das autoridades, a população falava em centenas ou mesmo milhares de mortos diários. A epidemia fugia a qualquer controle e a relação dos óbitos fornecida pela Secretaria de Higiene voltou às páginas dos diários. Ignora-se contudo os falecimentos sem assistência médica, numerosos nos bairros pobres.
Se até ali, de modo geral, a imprensa oficialista insistia no progressivo recuo da epidemia, atribuindo todas as culpas aos espíritos alarmistas e boateiros de plantão, a partir de quinta-feira, 14, tornou-se impossível mascarar a realidade visível, que, se não era tão terrível – afinal, não morria-se aos milhares - tampouco conferia com a versão das autoridades: entre as 18 horas de terça e as 18 horas de quarta-feira 34 pessoas haviam morrido em decorrência da influenza. Outras 24 faleceram sem assistência médica no mesmo período, totalizando 58 óbitos. No Domingo, 17, o Correio do Povo listaria mais 62 mortos nas últimas 24 horas, e, na terça, outros 49 óbitos entre o final da tarde de Sábado e o final da tarde de Domingo – o jornal não circulava às segundas.
Notícias enviadas pelos correspondentes do interior apontavam nos estragos que a espanhola estava causando em Passo Fundo, Santa Maria, Rio Grande, Pelotas, Arroio Grande, Tapes, São Gabriel, Encruzilhada, Carlos Barbosa, Rio Pardo, Taquari, Cruz Alta, Ijuí. Em Quaraí lamentava-se o suicídio do comandante do Sétimo Regimento de Cavalaria, que desferiu um tiro de revólver contra a própria cabeça. O major, informou o correspondente, “se achava doente, atacado de forte neurastenia, tendo ficado muito impressionado com o número de soldados enfermos na unidade que comandava, e ainda pela falta de recursos”. Cacequi, noticiava o jornal, “está transformada num vasto hospital. Há ali um número superior a 150 doentes, não havendo sequer uma pequena farmácia de campanha”. Em cada local a intensidade do surto epidêmico variava de acordo com as condições sanitárias, a densidade populacional e o clima, muito embora praticamente nenhum município do Estado tenha escapado ao flagelo.
Confundido inicialmente com o tifo, o vírus mutante da influenza gerava infecções bacterianas e punha em evidência moléstias latentes em cada organismo, afetando em especial os cardíacos, os asmáticos e os fracos de pulmão. A moléstia ia e vinha, com melhoras e recaídas. Para curá-la recomendava-se tão somente o repouso, a assepsia, quinino, purgantes e bons ares.
DE REPENTE ELA FOI EMBORA - Quase tão repentinamente como havia chegado, sem aviso, sem lógica ou explicação, a epidemia rapidamente declinou no final do mês de novembro. No dia 21, Quinta-feira, os diários da Capital já falavam em seu progressivo recuo. A reabertura de muitas lojas no centro, a crescente afluência de transeuntes às calçadas antes desertas, a volta dos rangidos dos bondes e dos apitos dos guardas de trânsito refletiam as estatísticas do Departamento de Higiene – números reais, desta vez: os casos novos eram cada vez mais raros e a mortandade estava em queda livre.
O Club Monte Carlos, o Brazil Club e o Clube dos Caçadores voltaram a funcionar. O teatro Apolo apresentava, aqueles dias, em matiné, episódios de a “Garra de Ferro”, em oito atos e, à noite, “uma grandiosa obra americana em sete belíssimos atos: New York.”. Na terça-feira, 26, reabriram suas portas o cine-teatro Coliseu e o Petit Casino. O Hipódromo do Moinhos de Vento também anunciava o retorno das atividades.
Na Sexta-feira os jornais noticiaram apenas 8 óbitos e a 3 de dezembro as autoridades informaram não ter conhecimento de novos casos de influenza espanhola. Na mesma data um pequeno anúncio publicado na capa do Correio do Povo atestava o final da tempestade.
“Leitaria
“Previno a minha distinta freguesia que reabri minha leitaria pelo nome Barroza Número 4. O motivo de estar fechada foi meu empregado estar doente”.
Em poucos dias reabriram-se as repartições públicas, os principais colégios chamaram de volta alunos, funcionários e professores, os cafés do centro festejavam a volta da velha clientela e a rua da Praia foi novamente tomada por moças e rapazes ao final do dia. No dia 29 apenas 8 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas e, finalmente, a 3 de dezembro, a Diretoria de Higiene afirmou não ter conhecimento de nenhum novo caso da doença - as mortes registradas diziam respeito aos já infectados.
Notícias alvissareiras vinham do interior do Estado e, a exemplo do que faziam antes da peste, os jornais direcionavam novamente suas atenções aos informes vindos da Europa, à fuga do Kaiser e a redefinição das fronteiras nacionais no Velho Continente. Os correspondentes do Correio do Povo já expressavam tons de otimismo.
Durante 57 longos dias, sitiada pela doença, a capital gaúcha convivera com a morte de uma maneira jamais observada em sua História. As qualidades dos homens e mulheres, postas à prova, diferenciaram grupos, revelaram aproveitadores e heróis, contrastando à prática real cotidiana as propaladas boas intenções de muitos. Desse jogo de luz e sombra emergiram algumas verdades.
“A hespanhola, de súbito, fez-nos ir até essas pobres vítimas da fome e da indigência, quando não no-los trouxe até as nossas portas”, reconheceu a elegante revista Máscara( “Os Nossos Pobres”, 23.11.1918), ao comentar a procissão sombria de homens e mulheres fracos e famintos que vinham dos subúrbios da cidade “com as faces covadas e pálidas, os olhos fundos, se arrastando pelas calçadas”.
Foram eles – cidadãos anônimos, desempregados, operários, comerciários, biscateiros, moradores dos bairros São João, Navegantes, Colônia Africana, no Quarto Distrito - as principais vítimas da influenza espanhola.No tocante ao total de óbitos, a historiadora Janete Silveira Abrão – autora da(infelizmente pouco conhecida) dissertação de Mestrado do curso de pós-graduação em História do Brasil do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica, “Banalização da Morte na Cidade Calada: a Hespanhola em Porto Alegre, 1918(Edipucrs, 1995), tese universitária transformada em livro – observa: “Todavia é impossível precisar as taxas de morbidade e de mortalidade ocorridas, visto que muitos casos não foram notificados pelas autoridades sanitárias”.
Oficialmente foram 1316 óbitos em Porto Alegres causados pela influenza, dos quais 1209 na cidade e o restante na zona rural. Ainda segundo as estatísticas oficiais, até 31 de dezembro de 1918 a gripe matara 3971 pessoas em todo o Estado. Somente em Rio Grande morreram 343, em Pelotas 321, em Bagé 191, em Cruz Alta 132 e em Itaqui, 40.
Algo parece certo: são números “chutados” e nunca se soube e jamais se saberá efetivamente o número exato, ou mesmo aproximado, das vítimas causadas pela gripe espanhola de 1918. Dois mil? Quatro mil? Cinco mil? Se as estatísticas oficiais falam em cerca de 70 mil infectados - “talvez abaixo da realidade”, nas palavras de Protásio Alves - e pouco mais de 1300 mortos em todo o município de Porto Alegre podemos, sem temor ao exagero, somar a isso um número impreciso de óbitos não contabilizados que aconteceram longe das vistas das autoridades sanitárias, em casebres, cortiços ou em esquecidas casinhas da zona rural, sem contar os enterros clandestinos – comuns a uma época em que os recém nascidos tornavam-se adultos sem portar qualquer documento. Alia-se a isso o fato de que somente aqueles aos quais os médicos reconheciam a morte em função da epidemia eram inclusos nas listas dos vitimados pela peste, excluindo-se destas quem falecia - de acordo com o ponto de vista médico - de outras causas: doenças cardíacas ou tuberculose, para citarmos dois exemplos que no entanto poderiam ter sua origem no vírus da própria gripe.
Segundo a historiadora Janete, um simples cotejar dos dados oficiais do período demonstra números subestimados: o Livro de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia registrou, de 21 de outubro de 1918 a 11 de janeiro de 1919 2420 mortes e o Departamento de Higiene do Rio Grande do Sul contabilizou naquele ano 30.219 falecimentos no Estado. Nos últimos três meses de 1918, aconteceram 12.811 óbitos, dos quais 5840 na Capital. Ainda segundo o Governo, 42% das mortes decorreram de moléstias transmissíveis.
Porém, passado o furacão, no início do verão de 1918/19, poucos queriam voltar os olhos às dores passadas. Epidemias vinham e iam, estar vivo e era o que contava e tentava-se a todo custo recuperar a alegria e o tempo perdidos. A gripe, todavia, ainda não morrera em definitivo. Depois de abandonar Porto Alegre e outras cidades às quais chegara de forma quase simultânea, dirigiu-se em seguida às localidades da Serra e lá fez mais uma nova legião de vítimas. Dela, contudo, já se falara muito, e a ordem era esquecer.
Dava-se início ao período de festas de final de ano. Alinhados no clube do Jocotó e centrados na figura do doutor Mário Totta – médico e bom vivant - com alívio redobrado, homens e mulheres da sociedade porto-alegrense reencontrava-se agora nos elegantes saraus do arrabalde da Tristeza. Ali, à beira do Guaíba, embalados por orquestras típicas especialmente contratadas, em meio a barulhentas batalhas de confetes, poucos lembravam da epidemia que, sozinha e silenciosa, em menos de dois meses fizera mais vítimas do que todos os combates da Grande Guerra e causara a todos um prejuízo econômico dificilmente mensurável.
Em “Solo de Clarineta”- primeiro volume de suas memórias(1974), Érico Veríssimo recorda:
“Em 1918 a influenza espanhola atirou na cama mais da metade da população de Cruz Alta, matando algumas dezenas de pessoas. Não se dignou, porém, contaminar-me. Lembro-me da tristeza de nossas ruas quase desertas durante o tempo que durou a epidemia, e dos dias de calor daquele dramático novembro bochornoso. Era como se os próprios dias, as pedras, a cidade inteira estivessem amolentados pela febre. A escola achava-se em recesso e eu podia passar dias inteiros a ler romances.(...) Foi durante a influenza em 1918 que li pela primeira vez Eça de Queirós (Os Maias), Dostoiévski (Recordações da Casa dos Mortos e Crime e Castigo).(...) Passada a epidemia a cidade entrou em lânguida e trêmula convalescença.”
Tardiamente, quando tudo parecia encerrado, em janeiro de 1919, a “influenza hespanhola” faria a sua vítima mais ilustre em terras brasileiras: o presidente eleito Rodrigues Alves, que já havia exercido este mandato de 1902 a 1906, período em que incumbiu Osvaldo Cruz de sanear o Rio de Janeiro e livrá-lo da febre amarela, morreu justamente deste mal que vacina nenhuma conseguiu evitar e que em poucos meses matou mais do que todos os combates da Primeira Grande Guerra.
A Influenza Espanhola foi a última grande epidemia globalizada com altíssimo poder de contágio e mortandade da História mundial. Para a capital do Rio Grande do Sul teve, ao menos, um efeito benéfico – a partir daí passou-se a dar atenção à qualidade da água servida à população, com a construção de uma grande hidráulica ainda no governo de José Montaury.
sexta-feira, novembro 22, 2013
Corinthians, campeão do Quarto Centenário
Em 1954 a cidade de São Paulo festejou,com justos motivos, o transcurso dos seus 400 anos de fundação. A extensa programação contou com um torneio de futebol dos maiorais paulistanos cujo clube campeão foi o Corinthians. Encontrei este poster na contracapa da Revista do Globo, de Porto Alegre, edição da primeira quinzena de janeiro de 1955.
Note-se a presença do goleiro Gilmar na foto.
Note-se a presença do goleiro Gilmar na foto.
quinta-feira, novembro 21, 2013
39 pessoas mortas: a quase esquecida explosão do shopping de Osasco em junho de 1996
Para muitos do que lá estavam e tiveram a sorte de sobreviver, viveu-se uma explosão atômica, uma Hiroxima acontecida naquele 11 de junho de 1996, uma terça-feira, véspera do Dia dos Namorados. Em poucos minutos restavam 39 pessoas mortas e quase 500 feridas. Das vítimas fatais, quinze eram mulheres, outras quinze eram adolescentes de ambos os sexos, sete eram homens e mais duas crianças pequenas - uma de onze e outra de três anos.
As fotos aéreas do local da explosão impressionam pelo volume do estrago, como se um míssil fosse jogado sobre a imensa construção do Osasco Plaza Shopping, na cidade de Osasco, grande São Paulo: paredes desabando, ferros retorcidos, corpos mutilados, gritos de dor e um pânico indescritível. Causa da explosão: um vazamento de gás no subsolo, capaz de detonar uma construção sólida, com poucos anos de uso. Horário do acontecido: 12 horas e 15 minutos, exatamente no momento em que muitas pessoas, ao saírem do trabalho para almoçar, aproveitam para flanar nesses modernos templos de consumo e lazer que são os shoppings centers.
Calcula-se que, naquele momento, cerca de 2 mil pessoas estivessem no local quando se deu o estrondo, "mais forte que um tiro de canhão": o chão tremeu e abriu-se em vários pontos. Uma lufada violentíssima de ar (velocidade aproximada de 340 metros por segundo, estimou a perícia) deslocou tudo à sua volta. Pessoas foram jogadas em todas as direções, paredes desabaram, o teto veio abaixo e de repente tudo ficou escuro e silencioso. Em poucos segundos, porém, já se ouviam os gritos, os gemidos e os pedidos de socorro.
A tragédia de Osasco não foi propriamente uma fatalidade e poderia, sim, ter sido evitada, conforme se apurou nos dias seguintes. Um projeto mal feito de instalação dos dutos de gás GLP utilizados nos restaurantes e lanchonetes da praça de alimentação do shopping acabou por resultar em acúmulo de gás sob o piso. Este misturou-se com o ar e, acionado por uma simples faísca, explodiu, causando as cenas de horror. O shopping - que não chegava a ser luxuoso mas recebia cerca de 50 mil pessoas por dia - estava localizado no centro da cidade e, segundo muitos dos funcionários que trabalhavam em suas lojas, era conhecido pelo cheiro ruim do GLP - o estopim da tragédia. Vistorias superficiais foram feitas nas semanas que precederam a tragédia mas nenhuma providência se tomou para sanar os problemas.
A explosão durou apenas 1 milésimo de segundo e teve o impacto de 140 decibéis, causando o rompimentos de tímpanos e hemorragias nos ouvidos de muitos sobreviventes. Alguns depoimentos das vítimas: Telma Cristina Rossetti, 16 anos, vendedora: "Abri a caixa registradora e a loja foi pelos ares. Voei um metro e meio de altura. Quando voltei a colocar os pés no chão, estava dentro de um grande buraco. A loja tinha sido sugada pela terra mais de 1 metro. Debaixo dos escombros, não conseguia entender nada. Achei que chovia, mas eram os vidros da vitrine que caíam sobre mim. " Outra - o músico e pintor Cliff Portugal, em depoimento aos repórteres da revista Veja: "Para cada lado que tentava fugir acontecia uma nova explosão. Até que fui atingido. Pensei na bomba de Hiroshima. O horror só estava começando. A poucos metros de mim, uma criança com um ferro no peito pedia ajuda. Não conseguia me mexer. Estava debaixo de blocos de concreto. Escutava gemidos por todos os lados. Então chegaram os saqueadores para roubar as vítimas." (Pesquisa e texto: Conselheiro X.)
quarta-feira, novembro 20, 2013
Novembro de 1954: o domingo em que Porto Alegre quase ficou refém nas mãos dos presidiários amotinados
*Nas fotos, a imagem da Casa de Correção, à margem do Guaíba, e reproduções do jornal Folha da Tarde, com evidentes exageros. Mais abaixo, reprodução da Revista do Globo e a foto do bandido Vavá, considerado um dos líderes da rebelião e famoso pela sua audácia. O presídio gaúcho já era, então, um dos piores, senão o pior, do Brasil. Em 1951 a Revista do Globo, em extensa reportagem sobre os presos famosos que estavam na Correção, citou o escroque internacional Mike Freemann, que conhecia as cadeias de muitas grandes cidades do mundo: "Antes de vir para cá eu estava convencido que a pior cadeia existente sobre o globo terrestre era a de Addis-Abeba, a capital etíope. Agora no entanto vejo que ela é uma deliciosa colônia de férias comparada à Casa de Correção de Porto Alegre."
Mike Freeman: "A pior cadeia do mundo". |
Pesquisa e Texto: Vitor Minas
Um “plano diabólico” para a fuga em massa de
mais de mil detentos, “celerados da pior espécie” – assim os jornais resumiram
um dos fatos mais marcantes na história de Porto Alegre, o incêndio na Casa de
Correção, o “horrendo cadeião da Ponta do Gasômetro”, a “casa do inferno”, a
“casa dos horrores”, o “tétrico casarão”, ocorrido três meses depois do
quebra-quebra pela morte de Getúlio Vargas e mais um episódio no capítulo dos
grandes sinistros em prédios públicos registrados na década de cinquenta na
capital gaúcha.
Era o dia 28, último domingo do mês de
novembro de 1954, nem haviam transcorridas duas semanas da eleição de Ildo
Meneghetti como novo governador rio-grandense e dois meses da inauguração
oficial do Estádio Olímpico quando o complexo prisional às margens do Guaíba ardeu
em chamas durante quase 20 horas, com rolos de fumaça que podiam ser avistados
dos quatro cantos da cidade. Cidade que temeu seriamente pela própria sorte:
caso tal tentativa de fuga tivesse dado certo as consequências seriam
imprevisíveis para os seus quase 500 mil habitantes.
Tudo começou às 18h30min, logo após o
encerramento do horário das visitas na rebatizada “Penitenciária Industrial”,
já então considerada uma das piores do Brasil, uma “masmorra medieval” com capacidade
para 300 presos, porém superlotada por mais de mil.
O fogo irrompeu na cela 72, no segundo
andar, na parte dos fundos da construção, e se propagou com uma rapidez
incrível, atingindo também a padaria e a tipografia – até porque tudo havia
sido planejado por um grupo de presidiários, os quais praticamente controlavam
o funcionamento interno da instituição, tal como hoje dividida em facções
criminosas. Desde o mês de agosto daquele ano nada menos do que três princípios
de incêndios e de motins já haviam ocorrido ali e a deflagração e outro parecia
simples questão de tempo. No dia anterior os agentes penitenciários haviam
encontrado no forro de uma das celas um colchão, um monte de palhas e oito
litros de gasolina. O clima entre os detentos era, mais do que nunca, de extraordinária
tensão – os nervos estavam à flor da pele.
No entardecer daquele domingo, encerrado o
horário de visitas, depois da conferência, um grupo recusou-se a voltar às
celas – prenunciando o que viria a seguir, eles só concordaram com isto sob a promessa
dos agentes de que estas permaneceriam abertas. Com o início repentino das
chamas outro agrupamento passou a percorrer as demais celas: armados de facas,
facões, adagas e porretes, obrigaram os outros detentos a também incendiar tudo.
Em seguida, em “estrondo”, todos começaram a
correr pelos corredores em direção à parte térrea e ao portão, forçando a saída.
Segundo a direção, havia 1.093 apenados no local, contra não mais do que 40
brigadianos e agentes penitenciários para contê-los. Os bombeiros chegaram em poucos
minutos, vindos da estação central, na Praça Rui Barbosa, enquanto homens da
brigada e um grupo de socorro da Guarda Municipal (ex-polícia de choque),
comandados pelo delegado José Henrique Mariante, detinham os revoltosos a
golpes de cassetete e bombas de gás lacrimogêneo, a muito custo impedindo que
chegassem à rouparia: se isso acontecesse eles teriam acesso a roupas civis e
poderiam se misturar até mesmo às autoridades e fugir às ruas.
Estabeleceu-se no pátio um “cinturão” de
segurança, com duas linhas de praças da Brigada armados com fuzis-metralhadoras
e soldados com baionetas caladas, que “calçavam” e imobilizavam os presos
contra as paredes. Nesse trabalho destacou-se o tenente Cantalício Camargo,
comandante do destacamento local. Com poucos recursos, e dando apenas três
rajadas de metralhadora para o alto, ele e seus homens enfrentaram a maré humana
de mais de 500 presos, conseguindo fazer – oficialmente sem vítimas fatais –
que recuassem.
A raivosa determinação de destruir de vez o
velho cadeião, queimando-o inteiramente, e a certeza de que o plano havia sido
elaborado com a participação de gente de fora das grades, fora, evidenciadas
pelo fato de que, no mesmo instante em que as chamas se propagavam às margens
do Guaíba, os bombeiros haviam se deslocado para combater outra ocorrência em
um matagal do morro de Teresópolis, adiante do final da linha dos bondes. Segundo
os repórteres, de lá divisava-se per
feitamente o interior do presídio, o que levantava a suspeita de que a pessoa que ateou fogo no terreno pudesse ser comandada à distância pelos detentos, quem sabe através de um jogo de espelhos. Do mesmo modo estes poderiam, das janelas da Casa, avistar a chegada dos caminhões. Outro fato sintomático foi a depredação antecipada da bomba de água do Cadeião.
PÂNICO NA CIDADE – A possibilidade de que cerca de mil homens conseguissem
fugir e se espalhassem pelas ruas da cidade, tomando a população de refém, a visão
dos rolos de fumaça, o cair da noite, bem como a péssima fama da instituição
prisional, a promiscuidade, o histórico de fugas e os fatos bárbaros que lá ocorriam
geraram um evidente clima de medo entre os moradores da capital, os quais,
naquele entardecer de domingo, encerravam o seu pacato e modorrento final de
semana. Contribuindo para o medo, uma emissora de rádio afirmou que mais de 50 detentos tinham fugido e estavam à solta nas ruas da Capital.
Falava-se inicialmente em muitos mortos e
em sangrentas cenas de ajuste de contas entre os próprios presos, com inúmeros
esfaqueamentos e até degolas. Um preso disse aos repórteres tem visto uma
cabeça jogada dentro de um vaso sanitário. Todavia, pelas versões oficiais, não
só nenhum sentenciado teria conseguido se evadir como ninguém, fosse apenado,
policial ou funcionário, morreu durante ou depois do episódio. Aos poucos, em
contrapartida, surgiam relatos de alguns funcionários que enfrentaram o perigo
das chamas e da violência para retirar detentos que ficaram presos em suas
celas e outros, doentes (a maioria com tuberculose) hospedados na enfermaria e
mesmo os inválidos ou com dificuldades de locomoção.
Na edição de terça-feira, 30, jornal Folha
da Tarde, na matéria “A Trama Sinistra dos Presidiários”, relatou o clima
depois do incêndio, quando a situação já havia sido dominada, algo que revela o
inferno humano que caracterizava o local: “Em
todas as fisionomias dos presos notava-se intensa satisfação. Riam e
pilheriavam já que, para eles, qualquer situação será melhor do que a da Casa
de Correção. Um presidiário adiantou-nos que há muito vinha entrando gasolina
no presídio, em pequenas quantidades, e que em todas as celas havia um foco
preparado ao qual foi ateado fogo quando deram alarme na primeira, a 72”. Já
o Correio do Povo lembrou que “foi um sinistro dos mais terríveis de que se tem
notícia” e que se o plano desse certo “Porto Alegre estaria até agora em
pânico, com suas ruas invadidas por homens para quem os conceitos de vida e de
respeito ao próximo pouco ou nada significam.”
TRANSFERÊNCIA PARA MARIANTE – Em grandes operações de segurança os detentos foram
sendo realocados em diferentes locais – quartéis da brigada, delegacias de
polícia, no Instituto Psiquiátrico Forense (manicômio judiciário) e,
principalmente, na Colônia Penal Daltro Filho, na localidade de Mariante, município
de Venâncio Aires, para onde cerca de 300 deles foram conduzidos em barcaças do
DAER – a viagem pelo Jacuí demorava cerca de quatro horas, com os revoltosos vigiados
por soldados armados de metralhadoras. O policiamento na colônia agrícola já havia
sido fortemente reforçado por uma companhia do Primeiro Batalhão de Caçadores.
Na Casa de Detenção permaneceram 550 homens,
abrigados em barracas, em pavilhões não totalmente queimados ou recolhidos aos
fétidos e úmidos porões, o “buraco”, enquanto os mais colaborativos voltavam às
suas funções habituais. Para a Oitava Delegacia de Polícia, em Petrópolis, seguiram
os elementos mais perigosos, entre os quais aqueles apontados como os líderes
da rebelião. O chefe do Departamento de Institutos Penais do Estado, Neu
Reinert, ordenou o isolamento total do presídio, proibindo qualquer tipo de
visitas. O desespero maior, no entanto, provinha dos familiares dos presos,
concentrados em frente e que imploravam por notícias.
Em depoimento oficial um preso chamado Vavá
– ou Gaspar Ávila da Silva, líder de quadrilha - afirmou ter sido ele o
principal líder do movimento, junto com Washington Aires, o Paulistinha, e
Nelson Bassani, os três agora recolhidos aos xadrezes da Oitava DP. As
declarações de Vavá surpreenderam as autoridades – até mesmo ao secretário do
Interior e Justiça, Theobaldo Neumann, e o diretor do presídio, Aires Rodrigues
da Cunha - já que era um preso considerado de bom comportamento. Outro detento chamado
Veríssimo Caduri Leal também assumiu a liderança.
ESCOLA DOS VÍCIOS – Em maio de 1971, quando o antigo Cadeião já tinha vindo
abaixo, o repórter Isaías Valiatti, durante anos setorista policial da Caldas
Júnior e nome reconhecido da imprensa gaúcha, escreveu um interessante artigo
intitulado “Casa de Perversão”:
“Felizmente nem sequer o portão da medonha masmorra que tinha o nome de
Casa de Correção ficou de pé para lembrar um passado indescritível. Vamos e
venhamos, para que conservar a memória de coisas horríveis? O mundo talvez não
se torne ideal com a supressão de imagens nefandas, mas pelo menos a nova
geração não terá de perguntar: “O que é aquilo ali?” E a resposta, para ser
correta, seria longa, chocante e incompreensível. Não tenho engenho e arte para
descrever o que vi e ouvi na medieval cadeia ao longo de tristes anos de reportagem
policial para o Correio do Povo e, em certa época, para a Folha da Tarde.
Espetáculos que superavam a imaginação de Hitchcock e cenas que nem Dante
conseguiu traçar em seu Inferno repetiam-se de tempos em tempos, entre um motim
e um incêndio provocados pelos próprios detentos. Paradoxalmente, a Casa de
Correção era, em verdade, a escola dos vícios e das anomalias que só uma Casa
de Perversão seria capaz de “ensinar” e praticar.
“Por
mais de uma vez, através das colunas deste jornal, chamei, juntamente com
outras vozes que terminaram ecoando, contra o claustro imundo e revoltante que
era a Casa de Correção. Inadequada sob todos os aspectos, contrariando os mais
elementares princípios consagrados pela moderna penalogia, e sempre superlotada
– chegou a ter quase 1.500 presos, quando sua capacidade real era para 300 –
foi preciso um grande incêndio com um motim sem precedentes, que me coube
documentar à época, para chegar-se à conclusão acaciana de que a velha cadeia
deveria ser demolida para começar da estaca zero.
“A
penitenciária estadual, localizada no Partenon, pode ter falhas gritantes ou
deficiências que devem ser eliminadas, mas jamais chegará a ser o que foi a
Casa de Correção. Há problemas de estrutura de funcionamento, de vigilância e
de métodos de recuperação que estão sendo encarados em seu devido tempo, mas,
creio eu, jamais se encontrará naquele presídio as cenas e as ocorrências tão
comuns e freqüentes na famigerada Casa de Correção.
“Vibrei quando, em 1955, o então governador do Estado presidiu a
cerimônia que assinalou a demolição simbólica do vergonhoso presídio. Era o
primeiro passo decisivo para riscá-lo definitivamente do mapa da cidade. Era o
princípio do fim das celas permanentemente inundadas, pois se localizavam
abaixo do nível do Guaíba. Os chamados “republicano” e “democrata”, que num
período não muito recuado da nossa história política serviram para castigar os
“rebeldes”, iriam desaparecer, juntamente com as amoralidades, os assassinatos
com requintes de barbarismo, as negociatas entre presos e funcionários, o
tráfico de tóxicos e de álcool, enfim, as bestialidades entre seres que cada
vez mais se degradavam num processo crescente de sordidez humana, típico do
submundo que era a Casa de Correção.
“A
despeito de tudo isso, surgiram opiniões em favor da manutenção de algo que
lembrasse o cárcere e as muralhas que o cercavam. Serviria – argumentavam –
como motivação histórica ou turística.
“Mas
eu não estava só. O venerando e bondoso padre Pio, por longos e tenebrosos anos
o capelão do extinto presídio, também admitia uma única saída: a destruição
total, o arrasamento da Casa de Correção. As razões, como vemos, dispensam
maiores comentários.
Major Aragón, o "incendiário" e vigarista, foi assassinado na Casa de Correção (foto da Revista do Globo) |
Bem antes da publicação deste artigo, em janeiro de 1955 - dois meses depois do incêndio - a Revista do Globo dedicou várias páginas à Casa de Correção e à sua longa e sinistra história. Assinada pelo jornalista Tabajara Tajes, relata alguns dos muitos acontecimento ocorridos nas celas e nos porões de "uma das cadeias mais antigas do mundo":
"Tem o casarão, na sua existência de um século, histórias de dor, de sangue e de tristezas, capazes de impressionar quantos ainda se comovam com a sorte dos condenados pela Justiça. Rios de sangue correram nos seus subterrâneos. Suas salas de tortura, em tempo não muito afastado, esconderam cenas tétricas, de homens judiados com requinte selvagem. Presos políticos tiveram unhas arrancadas, membros picados a pontas de cigarros. Caras humanas foram deformadas a socos e pontapés".
O repórter prossegue, descrevendo alguns desses episódios, como o da Cela 16, e os locais chamados de "democrata" e "republicano". "A cela 16, há poucos anos, abrigava a escória do presídio. A ser deposto um governador, o chefe de policia mandou trancafiar ali um parente do mesmo, delegado de uma cidade do interior. Um malfeitor, que fora mandado prender por essa autoridade, cumpria naquela cela a sua pena. E na sua primeira noite de presídio, quando o silêncio invadira o casarão, vultos fugitivos arrastaram-se até ao beliche onde dormia o novo hóspede do cubículo. Mãos fortes taparam-lhe a boca com um pano. Durante longas horas serviu de pasto aos instintos bestiais do condenado que jurara vingança. No dia seguinte, em prantos, jogou-se aos pés do guarda carcerário, pedindo-lhe pelo amor dos filhos que não o deixasse mais ali. Que o matasse. Não lhe haviam valido os cabelos brancos e nem a personalidade forte. (...)
"No Republicano, buraco feito de cela, escavado abaixo do nível do Guaíba, foi trancafiado um preso que matara um companheiro de cela. Sua reclusão foi adotada mais em razão da própria segurança do que mesmo de castigo. O preso morto era donzela de vários presidiários. No trajeto, por um desentendimento qualquer, o condenado esbofeteou um guarda. E no dia seguinte, sem que nem presos nem vigilantes vissem nada, o infeliz amanheceu virado num autêntico paliteiro. Oitenta e seis punhaladas marcavam a vingança daquelas feras humanas. Nunca se explicou como detentos puderam abrir celas, portas de corredor e várias grades intermediárias para terminarem estourando o forte cadeado do Republicano."
(...) "Noutra cela, Guaiaca, presidiário de bom comportamento, e até com indícios de debilidade mental, foi morto aos pouquinhos num torniquete feito de lençóis. Numa ponta um pau extraído de um dos dos beliches e na outra um tamanco. presos amotinados, que o haviam apanhado como refém, foram torcendo, torcendo, até estrangulá-lo. No cubículo ao lado o imundo comércio de presos menores determinou o assassinato de "Sete...", que levava a alcunha pelo número de presos que violentou numa só noite."
(...) "Na Enfermaria, onde quase uma centena de tuberculosos escarram os pulmões, um pretinho apareceu enforcado nas grades da porta. Aparentemente cometera suicidio. Necrópsia posterior apurou o estupro bestial que sofrera, provavelmente na hora da agonia. Na famigerada Sétima Enfermaria , ao lado do "Reizinho", sem dúvida o maior arrombador de cofres do Brasil, minado pela tísica, vivia o "Sarará do Galo", vingando-se da reclusão com escarros na cara dos guardas e de quantos dele se aproximassem.
"Escola de crimes, do interior da cadeia saíam gatunos aperfeiçoados na arte de roubar e de matar. Cidadão decente que uma briga inevitável levasse ás suas celas, de lá saía acabrunhado, sem honra e sem dignidade, descrente dos homens, descrente da Justiça."
(...) "Depois que administrar presídio se tornou cargo de afilhados políticos, a situação piorou ainda mais na Casa de Correção. (...) Com os dirigentes sucediam-se as portarias. Golpes de pena destruíam o que os outros haviam construído. A política carcerária caiu para níveis baixíssimos. Havia presos gozando de regalias inexplicáveis.
( ...) "O tráfico da erva maldita ganhou alento dentro do presídio. A erva do diabo circulava com facilidade e os atritos sucediam-se entre os presos alucinados pela "diamba". O jogo também campeava e quase toda semana esfaqueavam-se os presidiários. Álcool não era contido nem pelos muros, nem pelas grades e nem pelas revistas que passavam nos visitantes. Porres memoráveis eram tomados entre desordens, pancadas e golpes de arma branca. O álcool da enfermaria era desviado e vendido aos viciados. Os preços eram alucinantes, coisas assim como 300 cruzeiros o vidro de álcool e 500 o de cachaça. Não havia moral na seleção das visitas. O baixo meretrício, nos dias em que o presídio era franqueado aos de fora passeava a sua garrulice envolta em auras de perfume barato no pátio empedrado da cadeia. Cenas espantosas de cupidez e de falta de respeito entrepunham-se ao quadro triste da mãe comovida que beijava o filho vestido de uniforme azul."
CONSTRUÍDO PELOS ESCRAVOS
CONSTRUÍDO PELOS ESCRAVOS
Na realidade o problema prisional gaúcho era
crônico e vinha desde o século XIX, e a Casa de Correção tão somente simbolizava
os horrores e as iniquidades de tal sistema.
Quando a primeira parte da sua construção
foi concluída, em 1855, era chamada de Cadeia Civil e abrigou inicialmente
cerca de 200 presos. Construída pelos braços de escravos, suas paredes, formadas
pela junção de grandes pedras, chegavam a ter mais de um metro de espessura. A localização à beira do Guaíba se explicava
pelo fácil acesso à água, pela questão da higiene – os dejetos seriam jogados
no rio – pelo solo rochoso para assentar firmemente as suas fundações e também
pelas características geográficas do local, uma “quina” da cidade e que então
passou a ser chamada de Ponta da Cadeia. Em 1897, nos primórdios da República,
segundo os historiadores, ganhou o nome oficial de Casa de Correção. A partir
daí, de ano a ano, a sua população carcerária só foi aumentando, incluindo
presos políticos dos vários movimentos de revolta que caracterizaram o Rio
Grande.
A Casa de Correção teve sua demolição
concluída oficialmente no dia 11 de maio de 1967, uma quinta-feira. Uma equipe
de funcionários da Prefeitura (Célio Marques Fernandes era o prefeito de Porto
Alegre), sob a coordenação do engenheiro João Antonio Dib, dava fim a uma era
de horrores que no entanto se repetiria com o não menos infame Presídio
Estadual da Chácara das Bananeiras (bairro Partenon), inaugurado em 1963 e bem mais
distante dos olhos da imprensa.
segunda-feira, novembro 18, 2013
Hoje, há 35 anos, morria Jim Jones, o fanático que matou quase mil pessoas
James Warren "Jim" Jones (Crete, Indiana, 13 de maio de 1931 – Jonestown, 18 de novembro de 1978) foi o fundador norte-americano do grupo Templo do Povo, que tornou-se sinônimo de grupo suicida após o suicídio em massa de 18 de novembro de 1978 por envenenamento em sua isolada coletividade comunitária agrícola chamada Jonestown, localizada na Guiana. Jones foi encontrado morto com um ferimento de bala na cabeça junto a outros 909 corpos.
A história de Jim Jones é paradigmática da relação entre seita religiosa e suicídio coletivo. Este homem, com cerca de 40 anos, reuniu oprimidos e marginalizados nos EUA (em geral de raça negra) em troca de bens (dinheiro, terrenos, casas...) que ajudaram a consolidar a sua obra, logo auto-denominada de Igreja, o Templo dos Povos (Temple of Peoples). Rapidamente se formou um séquito de fanáticos e o pastor acabaria por fundar a cidade de Jones – Jonestown – na Guiana, em 1977, à “boa maneira” do culto da personalidade. Em 1978, quando começou a ser perseguido pelas autoridades dos EUA, Jim Jones ordenou a ida de todos os fiéis para Jonestown, abandonando as sedes da seita nos Estados Unidos.
Apesar desta perseguição, muito se falou da influência deste "pequeno ditador religioso" junto do poder nos EUA e da cobertura que lhe era fornecida.
Jonestown era uma comunidade auto-suficiente, que representava aparentemente um modelo socialista, estabelecida no meio da selva na Guiana (América do Sul). Viviam isolados do mundo sem poder estabelecer o mínimo contacto com o mundo exterior, sob pena de sofrer pesadas represálias.
Já em Jonestown, os crentes eram obrigados a admirar os seus discursos, dia e noite, e quaisquer resistências acabavam num espancamento, dito justiceiro. A fidelidade em relação ao Mestre não se discutia e eram frequentes as denúncias entre familiares como prova de lealdade. Era absolutamente proibido opinar acerca das regras estabelecidas e sequer sugerir o abandono. Jim Jones punia severamente aqueles que o tentavam abandonar.
Uma vez, num simulacro de suicídio colectivo, Jim Jones quis testar a lealdade incondicional dos seus seguidores. Para isso, pediu a todos os membros da seita para beberem veneno. Todos beberam e só posteriormente se confirmou que a bebida era inofensiva.
Entretanto, de Jonestown chegavam à América notícias dos desvarios do iluminado que incluíam orgias sexuais com crianças. O congressista pela Califórnia Leo Ryan, respondendo às solicitações dos eleitores, disponibilizou-se para ir à Guiana. No dia da visita a Jonestown, após verificar o desejo de alguns dissidentes em regressar aos EUA, apercebeu-se que realmente algo de muito grave se passava ali e fez com que Jim os libertasse. Este acedeu, mas quando Leo Ryan e os agora "ex-seguidores" se deslocavam para o avião, foram abatidos a tiro numa emboscada juntamente com dois jornalistas.
Jim Jones apercebeu-se que o fim da seita estava a chegar, pois o governo dos EUA iria agir em conformidade perante a gravidade da situação. O pastor reuniu o rebanho para o último sermão. Falou dos inimigos preferindo a suposta honra da morte à rendição, exigindo que todos ingerissem um refresco de cianeto. E assim morreram cerca de 900 pessoas. Três seguidores, que já havia algum tempo tentavam a fuga, conseguiram nesse mesmo dia fugir para a selva. Mais tarde, os sobreviventes contaram que as mães metiam o veneno na boca das crianças enquanto as famílias esperavam serenamente pelo desenlace. Morreram bebés, crianças, mães, pais, avós... Jim Jones suicidou-se com um tiro para um final de um deus menor.
Os discursos deste fanático estão gravados, inclusivamente o último e mais marcante. (Wikipedia)
domingo, novembro 17, 2013
Incêndio do edifício do Grande Hotel queimou capítulos importantes da história do Rio Grande do Sul
Notícia do Correio do Povo a respeito da demolição do Cadeião. Abaixo, do mesmo jornal, a violenta repressão policial a uma passeata estudantil dias antes do incêndio. Estudantes foram seriamente espancados, em uma época em que a ditadura ainda não se consolidara como tirania. O comandante da ação era o então major Pedro Américo Leal.
MAIO DE 1967, O FIM DE UMA ERA: O PRÉDIO DO
GRANDE HOTEL PEGA FOGO
Talvez não tenha havido construção mais intimamente ligada
à história política dos gaúchos e ao seu “grand monde” da capital do que o
Grande Hotel, na Rua dos Andradas, esquina com a Caldas Júnior, a antiga Rua
Payssandu, local onde hoje é o Shopping Rua da Praia.
Fundado com este nome em 1908, foi, até os
anos cinquenta, considerado a mais tradicional, prestigiosa e sofisticada casa
hoteleira de Porto Alegre. Em seus apartamentos se hospedaram poderosos
políticos brasileiros, diplomatas, influentes empresários e personalidades do
mundo das artes e dos esportes. O Marechal Hermes da Fonseca, o senador
Pinheiro Machado, Assis Brasil, Flores da Cunha, Getúlio Vargas, Osvaldo
Aranha, Lindolfo Collor, Raul Pila, Salgado Filho, o general norte-americano
Mark Clark, o Marechal Cândido Rondon. Foi nas dependências do Grande Hotel (a
sede informal de todos os partidos políticos) que se estabeleceram as premissas
para a pacificação do Rio Grande do Sul em 1923 e foi também lá que se
arquitetou o plano para a Revolução de 1930 que levou Getúlio ao Catete e
sepultou a República Velha. Em seus salões aconteciam os banquetes mais
elegantes, as festas mais concorridas, as jogatinas profissionais, flertes,
brigas, luas-de-mel e encontros amorosos. Muitas famílias ricas e estudantes
abastados ali moravam de forma permanente. Símbolo da Belle Epóque
porto-alegrense, das suas janelas e sacadas assistia-se o “footing” de uma Rua
da Praia ainda glamourosa, com seus restaurantes, cafés, cinemas, lojas finas e
homens e mulheres elegantemente trajados.
Em meados de 1956 – naquela que foi
considerada uma das maiores transações imobiliárias de Porto Alegre – o prédio
foi vendido ao Grêmio Beneficente dos Oficiais do Exército, GBOEX, e rebatizado
com o nome de Edifício General Mallet, militar brasileiro nascido na França,
patrono da arma de artilharia. O Grande Hotel funcionou até o início de 1957,
quando foi entregue aos novos proprietários, que o readaptaram para fins
comerciais. Até essa época a construção, com três alas e sete andares, contava
com 180 salas e capacidade para receber até 250 hóspedes individuais, que
pagavam caro para desfrutar de finíssimas louças e talheres importados e comer
e beber do bom e do melhor.
As obras do edifício, a cargo do construtor
Francisco Tomatis e fiscalizada pelo engenheiro Viberbo de Carvalho, iniciaram
em 1916 e terminaram dois anos depois, em uma Porto Alegre que não chegara
ainda a 200 mil habitantes, concretizando o sonho do imigrante francês João
Pedro Bourdette e seu genro Cristino Cuervo. Os dois empresários, no entanto,
não viveram o suficiente para ver a venda do seu patrimônio. Em 1956 os três
filhos de Cristino Cuervo é que dirigiam o negócio.
SÁBADO, DIA 13 – No final da tarde daquele sábado de 1967, quando a Porto
Alegre de 800 mil habitantes dançava ao som da Jovem Guarda e dois dias após a
violenta repressão policial a um protesto de estudantes contra o regime militar
(eles foram espancados até mesmo dentro da Catedral Metropolitana ) , nesse dia
13 de maio, data da abolição da escravatura no Brasil, véspera do Dia das Mães,
um incêndio de grandes proporções iniciou no quinto andar do edifício Mallet.
As chamas se propagaram com tal força e rapidez que muitos clientes do
tradicional Salão Cruzeiro fugiram com metade da barba por fazer e o cabelo só
em parte cortado. Eram 18h30min, caía a noite e os bombeiros demoraram a chegar
– quando isso aconteceu a água dos raros hidrantes mostrou-se com pouca força e
foi necessário buscá-la no rio Guaíba.
Dada a intensidade das chamas e dos jatos
das mangueiras temia-se que todo o velho prédio viesse abaixo. Também as
fagulhas que se espalharam geraram o temor de novos focos. Felizmente nenhuma
construção vizinha foi atingida e as grossas paredes de tijolos mantiveram-se
de pé. Às 23h30min o incêndio já estava praticamente dominado.
MUITOS PREJUÍZOS E DESEMPREGADOS – No coração da cidade, com sua bela e histórica fachada,
o Mallet era um importante centro comercial da capital gaúcha. Grande número de
profissionais liberais, entidades de classe e representações comerciais operavam
em suas salas. No último pavimento estava o Círculo Militar de Porto Alegre e
no andar térreo localizava-se a nova farmácia do GBOEx, o Salão Cruzeiro, a
Livraria Jackson, o escritório dos municípios gaúchos e a agência Radional.
Com o sinistro de maio criou-se também um problema
social e trabalhista. Dezenas de homens e mulheres perderam seus empregos e rendas,
milhares de papéis, contratos e documentos importantes foram destruídos e
vultosos prejuízos de equipamentos e máquinas não puderam ser cobertos pelo
seguro – o do prédio como um todo era igualmente irrisório. Os funcionários do tradicional
Salão Cruzeiro, por exemplo, trabalhavam como diaristas e passaram os dias
seguintes procurando colocação em outras barbearias. Por sua vez os empregados em pequenas firmas
pouca esperança tinham de uma possível indenização já que seus patrões também
haviam perdido tudo.
Não
só humildes empregados como instituições e nomes conhecidos da vida de Porto
Alegre, inquilinos do prédio incendiado, viveram dias angustiosos naquele
outono de 1967. A relação fornecida pelo próprio GBOEx incluía o advogado José
Henrique Mariante (o delegado que acudiu durante o incêndio da Casa de
Correção, doze anos antes) o também advogado, jornalista e vereador Alberto
André, o político João Brusa Neto, o jornalista e colunista esportivo Cid
Pinheiro Cabral, o ex centro-avante do Grêmio Rubens Mostardeiro Torelly.
Também tinham endereço no Mallet a diretoria regional dos Correios e
Telégrafos, a Editora Mérito, a Agência Marítima Interamericana, a Companhia
Rádio Internacional do Brasil, o Banco Ítalo Belga, a União Gaúcha dos
Estudantes Secundários, o Centro de Confraternização Jaguarense, Associação dos
Licenciados do Rio Grande do Sul, o Centro Itaquiense, a Federação Gaúcha de
Futebol de Salão, Dioni York Bado, Livraria Ibal, Centro dos Oficiais
Administrativos do Estado, Territorial Vale do Araguaia.
Especialmente prejudicados ficaram os
segurados do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e
Empregados em Serviços Públicos, IAPFESP, um dos principais órgãos de
assistência social brasileiro e cujos fichários locais haviam sido totalmente
consumidos pelo fogo. Com eles desapareceram a história clínica de milhares de
pacientes, além de equipamentos de radiologia, fisioterapia, odontologia, raio
X, entre outros. Felizmente os bombeiros haviam conseguido isolar a tempo os
laboratórios onde estavam depositadas grandes quantidades de ácidos e produtos
inflamáveis – atingidos pelo fogo, a explosão seria monumental e de
consequências imprevisíveis.
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