quarta-feira, junho 11, 2014

Na hora de "ir aos pés", a grande vingança canina

Com o isolamento e a solidão das grandes cidades, entre as quais talvez se inclua Porto Alegre, muita gente que mora em apartamentos resolveu adotar um cachorro para suprir suas carências emocionais e canalizar seu afeto - incluindo aí os jovens que não têm namorados ou namoradas, os que têm espinhas, os tímidos, os velhinhos e velhinhas em fim de carreira, os neuróticos e os dominadores, entre outros. 
No meu (que não é meu, é deles) condomínio, um conjunto de oito prédios construídos durante a ditadura militar, caracterizados pela uniformidade triste, pela solidez gelada das grossas paredes e pelo absoluto mau gosto estético (os arquitetos da ditadura eram stalinistas), há quase tantos cachorros quanto existe de gente humana. Não é exagero, é a mais pura verdade.
Assim, todo início de manhã e final de tarde, principalmente, homens e mulheres, alguns insuspeitos, levam, na batuta da coleira, seus exemplares das mais diferentes raças para se exercitar, tomar sol, farejar a bunda de outros semelhantes da sua espécie e, claro, defecar nas calçadas. A união dos seres racionais com os seus fiéis vassalos.
Recordo que, até um certo tempo atrás, as calçadas eram cloacas desses bichanos, e a gente tinha que desviar os coliformes a cada passo, o que nem sempre era possível. Porém de uns tempos para cá, com tanta "conscientização", com tantas campanhas e cobranças, com o politicamente correto etecétera e tal, os proprietários de cães passaram a levar consigo, nesses passeios caninos em volta dos prédios, uma pazinha para recolher a merda dos seus animais de estimação. Parece que os cães de apartamento, tipos melancólicos, deprimidos e calados (não são nem de latir muito) gostam mesmo é de ir aos pés nas ruas e calçadas.
Tenho observado, divertido, tal fato, que chamo do momento de vingança ou superioridade dos quadrúpedes sobre a espécie humana bípede que os domesticou e os dominou em troca de casa, comida e, às vezes, assistência médica. 
Isso, o que chamo de vingança (é fantasia minha, eu sei), se reflete naquele momento em que o cachorro se empina todo e "vai aos pés" em um canto de calçada, sem nenhum dos pudores dos seres humanos. os bichos ficam sérios e imponentes, enquanto seus donos esperam o fim da operação intestinal com uma pá nas mãos - pá esta utilizada para recolher os dejetos em um vasilhame, quase sempre um saco plástico, o qual será lançado fora não sei aonde.
Tenho visto tanto a cena que jurei nunca ter um cachorro de estimação em apartamento - exatamente para não ter que fazer isso. Na verdade acho o espetáculo tão embaraçador e de certa maneira patético - um homem silencioso recolhendo a merda de seu vira-latas - que jamais, em hipótese nenhuma, me disporia a tanto. 
É claro que já fiz coisas piores, bem piores, e até mais patéticas e vergonhosas, porém fazer isso, recolher cocô de cachorro em público, como um hábito civilizado, é demais para a minha pobre alma. Ademais, também acho que bicho em apartamento acaba como esses aí aos quais me refiro, seres tristes que têm no prazer de defecar (para que seu dono junto seu estrume) a sua vingança pela falta de liberdade que todos os animais deveria ter. Ovelha não é para mato, cachorro não é para apartamento, e tenho dito. (V.M.)

segunda-feira, junho 09, 2014

Morreu na selva do asfalto, igual um bicho rastejante

Nesse drama do fotógrafo Luis Cláudio Marigo, que morreu em frente ao Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio, sem socorro, infartado, agonizando, uma vez que os funcionários, enfermeiros e médicos  da instituição não fizeram caso da sua vida (estavam em greve por melhores salários) me meio a imagem da contradição das duas selvas - a propriamente dita e a selva urbana.
Vejam como é a coisa: a vítima, que se aventurava havia décadas pelas matas, rios e selvas atrás de belas imagens de animais muitas vezes perigosos e que poderiam ter lhe matado em várias ocasiões,  perdeu a vida não ali, no mato, na selva natural, em meio aos desafios e obstáculos da Mãe Natureza. Foi morrer - que triste, meu irmão - na outra selva maior, mais fria e mais nojenta, bem mais terrível e letal, a selva urbana das grandes cidades, na qual prolifera, em absurda quantidade, não os animais selvagens e irracionais e sim o bicho homem racional que não vale uma dose de sal. Me chamem de sentimental, mas é isso aí, em palavras, o que penso e sinto a respeito.
O fotógrafo (naturalmente eu não o conhecia e nem tinha sequer ouvido falar dele antes), que registrou belas imagens da Natureza brasileira, morreu igual um desses bichos que tentam atravessar a rodovia construída pelos homens, uma BR que lhes cortou em dois o velho mundo nativo e os expôs ao risco da morte em questão de segundo. O fotógrafo, esse agonizou muito mais tempo, horas, dizem, e finalmente morreu igual a um lagarto ferido e sem veterinário, uma tartaruga sem água, um quati, um tamanduá, um rato do banhado, um boi ofegante. 
Me veio essa imagem ao ver aquela cena terrível da selva urbana, de um ser humano abandonado, caído ao chão, condenado a morrer pelo desleixo criminoso dos que trabalham na área da saúde e que certamente julgam tal morte apenas mais um caso do qual lavam as mãos. Era para acontecer, acontecer. A culpa é dos patrões, não é mesmo? 
Não morreu no mato, esse Marigo, fotógrafo dos animais selvagens  - morreu na selva do asfalto, entre os racionais e os bípedes não emplumados, pior do que um bicho, quase como se fosse um nada. (V.M.)

Conhecer, a enciclopédia que marcou época

Como é bom reencontrar coisas do passado que nos marcaram, como foi o caso da Enciclopédia Conhecer, editada nos anos sessenta pela Abril. Primorosamente ilustrada e colorida, com uma excelente diagramação, informações certas e revisadas (tentei, mas nunca conseguiu achar uma informação errada), a Conhecer marcou época e foi, em grande parte, responsável por eu não ser um total ignorante: ainda hoje - quando não leio mais livros de ficção - gosto imensamente de ler enciclopédias. Conhecer misturava exatidão com um texto gostoso, informativo e acessível - sem concessões - a leitores de todos os níveis. Um grande mérito. A Abril comprou os direitos, se não me engano, de uma editora da Itália. Excelentemente distribuída, era vendida em toda parte, em pequenas livrarias e em bancas de revista.
Encontrei, por acaso, a Conhecer em uma estante da biblioteca da PUC, aquele conjunto moderníssimo que é visitado até mesmo por estrangeiros, que se espantam de haver algo assim, modernoso e eficiente, em território brasileiro.
Mas a querida Conhecer estava lá e viajei nela, lendo coisas que lembraram a minha infância em postos indígenas da hinterland gaúcha e paranaense, um tempo em que se usava o rádio-amador para se comunicar e que a gente - mesmo os meninos - ouvia as emissoras de ondas curtas que transmitiam da Europa (BBC, dóitchevele, rádio Canadá, rádio Japão) para o Brasil - uma hora diária. Uma carta, enviada para Londres ou qualquer outra capital européia, levava uns dois meses para ter resposta: como seguia de navio, ao ser colocada na caixa postal da minúscula agência de Correios da cidadezinha, a 15 quilômetros da área indígena, despertava uma emoção que nenhum e-mail do mundo jamais despertará. (V.M.)
Nani, em A Charge Online.


Hoje Michael Fox faz 53 anos, Natalie Portman faz 33 e Nico Nicolaiewsky faria 57.