Com o isolamento e a solidão das grandes cidades, entre as quais talvez se inclua Porto Alegre, muita gente que mora em apartamentos resolveu adotar um cachorro para suprir suas carências emocionais e canalizar seu afeto - incluindo aí os jovens que não têm namorados ou namoradas, os que têm espinhas, os tímidos, os velhinhos e velhinhas em fim de carreira, os neuróticos e os dominadores, entre outros.
No meu (que não é meu, é deles) condomínio, um conjunto de oito prédios construídos durante a ditadura militar, caracterizados pela uniformidade triste, pela solidez gelada das grossas paredes e pelo absoluto mau gosto estético (os arquitetos da ditadura eram stalinistas), há quase tantos cachorros quanto existe de gente humana. Não é exagero, é a mais pura verdade.
Assim, todo início de manhã e final de tarde, principalmente, homens e mulheres, alguns insuspeitos, levam, na batuta da coleira, seus exemplares das mais diferentes raças para se exercitar, tomar sol, farejar a bunda de outros semelhantes da sua espécie e, claro, defecar nas calçadas. A união dos seres racionais com os seus fiéis vassalos.
Assim, todo início de manhã e final de tarde, principalmente, homens e mulheres, alguns insuspeitos, levam, na batuta da coleira, seus exemplares das mais diferentes raças para se exercitar, tomar sol, farejar a bunda de outros semelhantes da sua espécie e, claro, defecar nas calçadas. A união dos seres racionais com os seus fiéis vassalos.
Recordo que, até um certo tempo atrás, as calçadas eram cloacas desses bichanos, e a gente tinha que desviar os coliformes a cada passo, o que nem sempre era possível. Porém de uns tempos para cá, com tanta "conscientização", com tantas campanhas e cobranças, com o politicamente correto etecétera e tal, os proprietários de cães passaram a levar consigo, nesses passeios caninos em volta dos prédios, uma pazinha para recolher a merda dos seus animais de estimação. Parece que os cães de apartamento, tipos melancólicos, deprimidos e calados (não são nem de latir muito) gostam mesmo é de ir aos pés nas ruas e calçadas.
Tenho observado, divertido, tal fato, que chamo do momento de vingança ou superioridade dos quadrúpedes sobre a espécie humana bípede que os domesticou e os dominou em troca de casa, comida e, às vezes, assistência médica.
Isso, o que chamo de vingança (é fantasia minha, eu sei), se reflete naquele momento em que o cachorro se empina todo e "vai aos pés" em um canto de calçada, sem nenhum dos pudores dos seres humanos. os bichos ficam sérios e imponentes, enquanto seus donos esperam o fim da operação intestinal com uma pá nas mãos - pá esta utilizada para recolher os dejetos em um vasilhame, quase sempre um saco plástico, o qual será lançado fora não sei aonde.
Tenho visto tanto a cena que jurei nunca ter um cachorro de estimação em apartamento - exatamente para não ter que fazer isso. Na verdade acho o espetáculo tão embaraçador e de certa maneira patético - um homem silencioso recolhendo a merda de seu vira-latas - que jamais, em hipótese nenhuma, me disporia a tanto.
É claro que já fiz coisas piores, bem piores, e até mais patéticas e vergonhosas, porém fazer isso, recolher cocô de cachorro em público, como um hábito civilizado, é demais para a minha pobre alma. Ademais, também acho que bicho em apartamento acaba como esses aí aos quais me refiro, seres tristes que têm no prazer de defecar (para que seu dono junto seu estrume) a sua vingança pela falta de liberdade que todos os animais deveria ter. Ovelha não é para mato, cachorro não é para apartamento, e tenho dito. (V.M.)