Porto Alegre faz toscas maquiagens para receber os milhares de turistas que aqui aparecerão durante os dias da Copa do Mundo que se aproximam. Uma pintura aqui, uma placa lá, uma calçada modernizada mais adiante, um bar que muda a fachada e o cardápio, gramas aparadas nos canteiros da avenida Ipiranga, muita polícia nas ruas e avenidas principais.
Mas a capital gaúcha, em que conte algumas inegáveis qualidades, é uma cidade provinciana e isolada cujas autoridades e população ruminam a sua bovina e plácida satisfação conformista. Um lugarejo conservador e um tanto sonolento e inodoro: aqui ninguém quer ultrapassar os sinais, ir muito adiante, propor modificações maiores. Digamos, um clube restrito e de regras tácitas, uma espécie de Portugal salazarista, uma Espanha franquista na qual não se quer mudar a posição dos móveis e nem sequer trocar os mais usados ou avariados, até porque dá trabalho. Quem faz isso acaba se dando mal e é ou ignorado ou hostilizado, com o surgimento de grupos radicais, discursos e ofensas pessoais.
Fala-se no espetáculo da Copa e de tudo o que ela representa. A palavra legado - que nem o Felipão sabia o que era conforme demonstrou na televisão - talvez seja representada pelo grande número de obras inacabadas locais e pelo transtorno dos ônibus urbanos que passaram a mudar drasticamente seu itinerário devido à obstrução das ruas e avenidas nos últimos meses. Em termos coletivos e públicos, não é muito mais do que isso. Até o tal metrô, que se falou tanto há pouco tempo, já foi inteiramente esquecido por todos, nem se fala mais nele. Pior ainda: nem sequer se falou na despoluição do arroio Dilúvio e nem na cloaca do rio Guaíba, como se fazia nos anos setenta, o que talvez fosse querer muito, já que somos um povo pouco imaginativo.
Mas há algo em que deveremos, sem sombra de dúvida, surpreender os visitantes de países ditos de primeiro mundo - o nosso trânsito, a nossa "mobilidade urbana", como gostam de dizer.
A Espanha tem as suas touradas sangrentas e vibrantes, herança "cultural", mas nós, gaúchos e porto-alegrenses, temos bem mais do que isso - temos o nosso trânsito, a peculiar riqueza humana do nosso trãnsito. E que trânsito, torcida brasileira, que trânsito!... O mais espantoso e medieval trânsito de todo o Brasil (alguém contestará?), onde os motoristas, novos e velhos, homens e mulheres, dirigindo como loucos, não respeitam pedestres, sinais de parar, faixas de segurança, nada. Uma gente que, no momento em que passa a pilotar um veículo motor, seja ele carro, caminhão, ônibus ou moto, se julga o destemido e invencível centauro dos pampas, um lanceiro vingador e inatingível enrolado na bandeira do Rio Grande, investindo contra o inimigo, na certeza da vitória prometida.
Sem querer me vangloriar da pretensa qualidade, mas sou um inveterado, ainda que inócuo e inútil, pesquisador das atualidades do passado, de antigos jornais e revistas, especialmente as da nossa província. Ou seja, procuro ter memória, mesmo daquilo que não vivi. E nisso, nas páginas amarelecidas e dormidas que retratam os fatos acontecidos, o que sobremodo sempre me chamou a atenção é a permanência da impune e despreocupada mentalidade selvagem dos nossos motoristas, naquilo que o jornal Correio do Povo de 1950, com feliz exatidão, chamou de "mentalidade de cancha-reta" dos gaúchos. Ou seja, o nosso querido e altaneiro povo acha que as nossas (?) ruas e avenidas são locais de disputa de provas, cancha-retas onde o carro é o cavalo que está disputando as célebres carreiras do nosso interior Em um país semi-bárbaro, em que o trânsito é esse horror sanguinolento que todos bem conhecem, conseguimos ser ainda piores..
Para se dar um exemplo de como isso é crônico: em dezembro de 1974, portanto há 40 anos e quando havia bem menos veículos na cidade, o Correio observava, em editorial: "O trânsito de Porto Alegre é um espetáculo anárquico, triste e perigoso. Jogam-se os carros nas ruas e avenidas sem muita preocupação com os demais. O pedestre parece que se tornou simplesmente um obstáculo que deve ser afastado a qualquer preço. E os veículos usados para a condução das massas, quando não se encontram em condições precárias, são conduzidos com um mínimo de cuidado e o máximo de velocidade possível."
Imaginem então: um holandês, um francês médio que aqui chega para assistir a um jogo do selecionado de futebol do seu país - a princípio nem melhor e nem pior do que os nossos grossos xirus - e passa, por exemplo, na rua Guilherme Alves, bem defronte ao Bourbon Ipiranga, o que esse sujeito observará da nossa bela terra sulina?
Pois eu respondo: observará este escrevinhador brigando com motoristas que saem dos subterrâneos do shoping sem respeitar quem está atravessando a faixa de pedestres, tocando o veículo por cima, xingando, rindo, debochando. E às vezes também atropelando, ferindo, mutilando e matando. Mas isso é assunto para depois, para amanhã, que o espaço já se esgotou. (V.M.)
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