quarta-feira, julho 22, 2009

Da serie grandes vergonhas nacionais

Ernani Ssó


Mário Prata, sobre a morte de Campos de Carvalho: “Quatro pessoas no velório. Quatro! Nenhum amigo, ninguém da imprensa. Não tinha gente pra carregar o caixão, gente!”. Qual o álibi que o país pode invocar? Todos, menos que Campos de Carvalho não era um dos poucos grandes escritores que tivemos. Pior: nem o país nem a imprensa vão tentar esconder a multidão que comparecerá ao velório do José Ribamar Sarney, por exemplo.
Por que ler Campos de Carvalho
Por coisas como este parágrafo — amargo, como quase sempre em se tratando de Campos de Carvalho — que pincei de A vaca de nariz sutil: “Sei que poderia aplicar-me em outras coisas, mas todas inúteis: tudo é inútil. Levei milhões de anos para chegar a esta sórdida conclusão, eu e meus antepassados; deve significar alguma coisa. Também fiz trapaças, e sobretudo comigo, para converter-me a alguma coisa, em alguma coisa: dizia o Credo em voz alta, todos os credos, postava-me de joelhos, de cócoras, as pernas para o ar, batia-me no peito como numa porta: o mais que consegui foi enrijecer estes músculos, o que será um dia o meu cadáver, ou já é. Lia nos jornais as grandes descobertas mas descobri que não me valiam de nada, nem a ninguém — era a mesma a condição humana, o vazio sobre a cabeça e sob os pés, e sobretudo dentro, dentro da alma. (…) Posso ser um antecadáver, o abismo debaixo dos pés, mas recuso-me a ser enterrado em vida — e meu fogo-fátuo prefiro queimá-lo em meu próprio entretenimento, neste auto-de-fé de perplexidade em vez de gases”.
Pergunta simples
Doutor Sigmund Freud: “Afinal, o que querem as mulheres?” Doutor Ernani Ssó: “Ser levadas a sério, como todo mundo”.
Inspiração
Henry Miller, quando empacava no que escrevia, não pensava mais nisso e ia andar de bicicleta. Tiro e queda: a solução vinha sozinha. Índigo diz que lava a louça acumulada. Simone Campos corre na esteira. Quanto mais rápido corre, mais ideias tem — deve ser o maior fluxo de sangue no cérebro. Raymond Chandler se trancava numa sala com uma garrafa de uísque. Desse modo acabou vários textos e a si mesmo. Graham Greene, pelo menos uma vez, tomou anfetamina para escrever um romance. Depois que o terminou, foi diminuindo as doses. Moravia passava a manhã no escritório, mesmo que não escrevesse uma palavra: punição ou um método contra a preguiça. Há dezenas e dezenas de outros exemplos semelhantes.
É complicado. Às vezes parar e ir fazer qualquer coisa é a medida correta. Às vezes a medida correta é insistir. É mais ou menos como namorar certas mulheres.
Meteorologia
Alguém da Metsul disse que o clima do Rio Grande do Sul é “fascinante”. Do ponto de vista científico, deve ser, mas não consigo esquecer o que o Barão de Itararé disse: “O Rio Grande não tem morador, tem sobrevivente”.
Dicionário do mau digitador
oOo Sistemátrico. Sistema dominado pelas mães. oOo Oreganizativa. Muito certinha, mas com tempero. oOo Gatará. Menina que vai ficar muito bonita quando crescer. oOo Realixação. Uma espécie de vitória de Pirro. oOo Orientalção. Sei lá, isso me cheira a coisa de japonês. oOo Seguintres. Os próximos três. oOo Dociumento. As provas que o detetive conseguiu para o marido ou para a esposa. oOo Moitivado. Muito interessado em ir pra trás da moita. oOo Coitínuo. Duas ou três sem tirar. oOo Comprimisso. É uma entalada, não podemos deixar de ir. oOo Estrangiros. Portugueses muito legais longe da pátria*. oOo Urtilizar. O uso de urtigas. Tremo só de pensar no quê. oOo Adapatações. São adaptações feitas a ferro e fogo. Vide medidas governamentais. oOo ———— * Aos que não sabem nada sobre o dialeto falado em Portugal: muito giro é o nosso muito legal, bacana. Ou fixe.


Ernani Ssó
redacao@coletiva.com.br
Ernani Ssó se define como “o escritor que veio do frio”: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois. Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças. (Coletiva)

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