Pesquisa e Texto: Vitor Minas
Talvez hoje, em meio a tantos fatos ruins e à indiferença geral, a destruição de um grande colégio público não causasse comoção a Porto Alegre. Porém no início dos anos cinquenta o ocorrido com o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o “Julinho”, consternou verdadeiramente os habitantes da Capital, zelosa dos seus valores e orgulhosa do alto padrão educacional de um estabelecimento modelo que simbolizava o que então o Rio Grande do Sul tinha de melhor: o seu mais avançado padrão civilizatório frente aos demais Estados e o genuíno orgulho que isso trazia ao povo gaúcho. Público e gratuito, com um ensino considerado de excelência, o colégio dava acesso direto ao terceiro grau e nele estudaram, entre tantos, nomes que depois de tornaram famosos ou notórios em muitas áreas, incluindo Leonel Brizola, Paulo Brossard, Paixão Cortes e Barbosa Lessa – uma elite intelectual e pensante vinda democraticamente das muitas camadas da sociedade gaúcha. Foi também no Julinho, em 1948, que iniciou o Movimento Tradicionalista Gaúcho, embrião dos milhares de CTGs que se espalham pelo mundo.
O incêndio foi marcado pela forte suspeita – na verdade, uma certeza – de ter sido um ato intencional e premeditado, “praticado por mãos criminosas”, como disse o Correio do Povo, ou por um “piromaníaco insano”, um “perigoso tarado que vê seus instintos doentios despertar em determinadas épocas do ano”, conforme escreveu o Diário de Notícias. Era, desde 1947, o quinto grande prédio público (incluindo aí a Cooperativa dos Funcionários Públicos) a queimar de forma semelhante. Em nenhum deles o inquérito policial apontou a autoria e muito menos se estabeleceu uma ligação direta entre os fatos.
A destruição daquela que era considerada a unidade de ensino mais avançada e democrática em todo o Estado aconteceu na primeira hora da madrugada de 16 de novembro de 1951, sexta-feira, ao final do feriado da Proclamação da República, uma noite ventosa na cidade que ainda mal se recuperara do renhido combate eleitoral, no dia primeiro, entre Leonel Brizola (PTB) e Ildo Meneghetti (PSD) para o cargo de prefeito municipal – Meneghetti virou o placar e venceu ao final com diferença de apenas mil votos. Os dois, aliás, engenheiros formados pela Escola de Engenharia e ligados à história do Julinho (Brizola estudou nele). Curiosamente, naqueles dias uma greve geral mobilizava os estudantes universitários de todo o Brasil. Radicalmente politizado, o efervescente Julinho repercutia internamente isso tudo.
Também naquele início do ano de 1951 os alunos haviam deflagrado uma greve pedindo o cancelamento da decisão de separar os rapazes das moças – um prédio da Rua Doutor Flores já teria sido alugado para abrigar as alunas, relatou o radialista, ex-vereador e então aluno Lauro Hagemann em depoimento para o livro “Julinho: Cem Anos de História”, organizado pelos professores Paulo Ledur e Otávio Rojas Lima (Editora AGE) no ano de 2000.
Motivos ou pretextos à parte, o certo é que em poucas horas a imponente construção, inaugurada em 1908 na Avenida João Pessoa, defronte à Escola de Engenharia, ao qual era ligada, e à vizinha Faculdade de Direito, veio abaixo devido à espantosa rapidez das chamas. Os prejuízos, porém, eram ainda bem maiores para toda a cultura do Rio Grande do Sul, já que da biblioteca – com valiosíssimos e raros volumes de livros dos séculos XVIII e XIX – também nada havia restado. O mesmo aconteceu com o museu, um dos mais completos do Rio Grande.
Dias depois o jornalista Wilson Müller, 22 anos, ex-aluno da instituição, publicou no Diário de Notícias uma crônica em que lamenta “o que nunca imagináramos pudesse acontecer”: “(...) Quem não conheceu o Julinho? Naquele casarão velho da João Pessoa formou-se a consciência democrática de milhares de gaúchos. A alma farroupilha vibrou dentro do Colégio Júlio de Castilhos, desde 51 anos passados, quando, no ofuscar do século passado e no dealbar do presente, levantou-se o nosso colégio como a barreira invencível do espírito indomável do estudante gaúcho. Quem por ali passou jamais o esquecerá. Quem viveu algum tempo no “Julinho” sempre dirá, com um orgulho que só nós podemos ter: “Eu estudei no Julinho”. Basta isso para endossar a vida estudantil de um homem. Assembleias barulhentas e tumultuosas. Greves contra os professores. Abaixo-assinados de protesto contra esta ou aquela medida. Discussões intermináveis sobre a teoria do conhecimento e sobre a quarta dimensão. Passeatas de regozijo e de protesto. Exames orais e escritos feitos sem conhecimento da matéria. “Colas” e provas anuladas. Colóquios amorosos nos corredores, às escondidas dos professores e perto dos professores. Fim do curso e uma sincera homenagem aos que nos guiaram lá dentro. Um vestibular. A faculdade. Um agradecimento eterno. Lodeiro, Melo, Marieta, Tristão, Abílio, Ripol, Ataualpa, Zilá, Damasceno, Morais, Orlando, Paixão e o Machadinho são nomes que ligaram nossa mocidade à vida futura e são a garantia do patrimônio moral do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Adeus, Julinho...”
SINISTRO ANUNCIADO – Na realidade sabia-se que, mais cedo ou mais tarde, o colégio pegaria fogo – só não se poderia precisar em que circunstâncias isso ocorreria. Uma simples questão de tempo e de oportunidade.
Com efeito, por diferentes vezes o Julinho esteve às voltas com malogradas tentativas de incêndio, a última das quais na quarta-feira, 14. À noite, nessa data, uma das serventes encontrou quebrados os vidros da porta da secretaria, situada ao lado do prédio principal. Dentro, jogado no chão, estava um pano embebido em gasolina que só não pegara fogo devido à forte umidade decorrente das chuvas caídas no dia anterior.
Ciente do perigo que rondava a instituição, o diretor José Lodeiro solicitou policiamento às autoridades estaduais, algo que deu muito a falar nos dias seguintes: a Polícia Civil, em nota emitida por seu chefe-geral, Germano Sperb, confirmou que recebera o pedido e havia designado um guarda-civil para o policiamento do local, mas que este, dias antes, havia sido dispensado da tarefa pela direção, embora estivesse presente na noite do incêndio – tanto que teria sido o primeiro a comunicar o fato a policia e aos bombeiros. Lodeiro, por sua vez, desmentiu categoricamente tal afirmação, garantindo que, por sua própria conta, o vigilante deixara de comparecer ao serviço, fazendo com que ele, Lodeiro, costumasse vistoriar o colégio antes de dormir – o diretor residia nas proximidades. O Grêmio Estudantil, por sua vez, saiu oficialmente em apoio à direção e acusou a polícia de “ter colaborado positivamente com o incêndio”, conforme nota assinada pelo presidente do Grêmio, Onofre Quadros. Também o resultado do trabalho da perícia foi diferente da versão de muitas testemunhas e até mesmo dos bombeiros. Para os primeiros, o sinistro poderia ser, quem sabe, ocasional, enquanto direção e estudantes batiam-se pela tese única da intencionalidade – certamente a mais plausível. O certo é que a chave-geral da energia elétrica havia sido desligada durante o feriado, dia em que o prédio estava deserto, e isso afastava a possibilidade de um curto-circuito interno.
Segundo testemunhas, o fogo foi avistado das ruas e residências vizinhas à meia-noite de quinta-feira ou aos quinze minutos da madrugada de sexta-feira, quando as chamas já tomavam conta do telhado, espalhando-se com incrível rapidez em virtude dos ventos que sopravam. As mesmas pessoas afirmaram ter visto três focos na cumeeira – nas extremidades e no meio da cobertura, onde se elevava a bela cúpula central. Mais tarde, em depoimentos aos jornais, alguns estudantes (dentre os primeiros a ver as chamas) negaram que isso fosse verdadeiro e asseguraram ter visto apenas um único foco. Em um “espetáculo contristador”, os repórteres anotaram que as folhas de zinco que cobriam as cúpulas “desprendiam-se em brasa sobre a cerca de grades de ferro pontiagudas.”
Durante quatro horas cerca de 50 bombeiros vindos principalmente da estação da Avenida Júlio de Castilhos enfrentaram algumas dificuldades operacionais, já que o hidrante mais próximo mostrou-se dotado de pouca vazão de água e foi suprido pelos demais instalados na avenida, defronte ao necrotério e também na esquina da Rua Avaí. Quatro veículos da corporação foram posicionados nas imediações enquanto uma grande multidão, vinda de várias partes do centro, se comprimia em volta a fim de presenciar aquele momento histórico. Grossos rolos de fumaça chamavam a atenção dos transeuntes que passavam pela Avenida João Pessoa, nas proximidades da antiga Praça do Portão. Chefiando a operação de combate às chamas estava o oficial-aspirante Jesus Linares Guimarães – anos mais tarde comandante geral da Brigada Militar e participante das ações do edifício Renner em 1976.
Depois de muitos esforços os bombeiros conseguiram isolar o local e evitar a propagação do fogo para a Escola de Engenharia – que teve apenas duas janelas atingidas. Linares disse ter estranhado a celeridade com que as chamas se espalharam por todo o segundo pavimento, mas deu graças pelo fato de um dos seus soldados ter escapado por pouco do desabamento de um dos tetos – se atingido, seria morte certa.
Ao término de tudo dezessete salas de aula, mais a biblioteca e o museu, haviam se transformado em cinzas fumegantes. Por sorte quinze valiosos aparelhos de microscópio e outros de física, emprestados dias antes à Faculdade de Filosofia, escaparam ao cômputo dos prejuízos gerais, calculados em cerca de 10 milhões de cruzeiros. No dia seguinte, entre tantos curiosos ilustres, visitaram o local o governador Ernesto Dorneles, o secretário da Educação, Júlio Marino de Carvalho, o professor Mabilde Ripoll, superintendente do ensino secundário, e o reitor da Universidade do Rio Grande do Sul, professor Alexandre Martins da Rosa. O governador prometeu a imediata construção de um novo prédio para o Julinho (que já fazia parte dos planos), desta vez localizado na Praça Piratini, também na João pessoa. Enquanto isso as aulas passariam para o prédio do Arquivo Histórico do Estado, na Rua Riachuelo.
Felizmente ninguém morreu ou saiu seriamente ferido em consequência do incêndio do Julinho naquela noite-madrugada de quinta para sexta-feira. Porém uma semana depois, no início da tarde de 26 de novembro, segunda-feira, o operário Antonio José Nascimento, 27 anos, branco, casado e residente no Passo da Cavalhada, na Capital, pisou em falso quando trabalhava na demolição do primeiro andar. Ele caiu de uma altura de cinco metros e morreu no Hospital de Pronto Socorro, minutos depois.
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