No final dos anos noventa, quando, pela
segunda vez, trabalhei como jornalista no Diário Popular, de Pelotas (época do
inesquecível doutor Clayr Rochefort), tive tempo suficiente para, sem pressa, ir
entrevistando pessoas sobre a fama nacional da cidade, então ainda uma espécie
de tabu do qual não se falava muito. Entrevistei muita gente pensando em
publicar a matéria em uma grande revista, mas acabei desistindo e a reportagem
saiu mesmo em um jornalzinho artesanal que eu e alguns amigos fizemos no
prosaico e nada charmoso município de Viamão, publicação quinzenal que, para
variar, não durou muito tempo, o “Olé!” Cheguei a ir a Pelotas em 1999 e distribuí uma
centena de exemplares por lá, tanto que até um deles apareceu, ampassã, anos
depois, no programa Fantástico, da Rede Globo, em matéria de um tal Maurício
Kubrusly, enfocando justamente o mesmo tema.
Esses dias, arrumando a casa em Porto
Alegre, encontrei alguns exemplares de tal jornal, que eu até julgava perdido e
não dava maior importância. Reli o texto e, para minha surpresa, gostei do que
eu próprio escrevi, o que me fez transcrevê-lo e publicá-lo agora em versão
eletrônica, neste meu humílimo bloguezinho que existe desde 2006, uma das
poucas coisas que não interrompi em minha vida.
Resolvi não alterar nada no texto, nem
mesmo a idade dos entrevistados, certamente agora, mais de quinze anos depois,
bem mais velhos. Alguns até faleceram, como dom Carlos Reverbel. (Vitor Minas)
Pelotas,
mais de 300 mil habitantes, terceiro maior cidade gaúcha, centro econômico,
educacional e cultural da Zona Sul rio-grandense, porto fluvial, clima
temperado, porta de entrada das frentes frias que chegam ao território
brasileiro. Distâncias: 271 quilômetros de Porto Alegre, 634 de Montevidéu, 200
de Bagé, 59 de Rio Grande e 266 do Chuí. Capital do doce e da conserva, maior
produtor de pêssego industrial do Brasil, economia baseada no cultivo e
beneficiamento de arroz, na atividade pecuária e na prestação de serviços. Dois
grandes frigoríficos exportadores. Princesa do Sul, Atenas Rio-grandense, terra
de Hipólito José da Costa, João Simões Lopes Neto e Glória Menezes.
Topografia plana, com
terras baixas e arenosas. Sensação olfativa: o cheiro de bolor que paira nas
ruas e invade os velhos casarões portugueses, manchando-os com uma nódoa de uma
umidade que penetra os ossos e dificulta a secagem das roupas. Pouca cerração,
mas muitos mosquitos. Céu nublado boa parte do ano e dias intensamente
luminosos no outono.
Particularidade:
principal centro econômico do sul do País por várias décadas do século 19,
quando foi imensamente rica, culta e esnobe às custas de milhões de bois
sacrificados ao abate durante o chamado Ciclo do Charque.
Fama nacional: cidade
gay.
VINGANÇA DE ESPARTA – “Isso é coisa inventada pelos riograndinos e
pelos porto-alegrenses”, explicam os pelotenses mais sisudos, parcela cada vez
menos expressiva da população, em processo de natural abrandamento.
Cristalizada e irreversível, a fama deixou de ser tabu e vem sendo
pacientemente driblada com o artifício do humor. Civilizado polo educacional,
com diversas escolas técnicas e duas universidades, a cidade descobriu o valor
da chula filosofia popular – já que o estupro é inevitável, relaxe e goze.
Rio Grande, porto
exportador, polo da indústria naval, mais de 200 mil habitantes, vizinha com
Pelotas e como vizinhos dificilmente se amam, persistem as diferenças entre a
Princesa do Sul, fidalga e rica durante quase um século, e a Noiva do Mar,
terra de peixeiros e marisqueiros, no entender de muitos pelotenses. Para
alguns riograndinos, Pelotas deveria se mirar no espelho e ver que o fausto e a
distinção são águas passadas. Para os pelotenses, Rio Grande não passa de um
balneário à beira mar plantado.
Os dois povos –
riograndinos e porto-alegrenses – teriam culpa em cartório: por mero despeito,
difamaram a bela e rica Atenas gaúcha, estigmatizando o seu nome perante os
demais brasileiros.
Culpas à parte, não há
como negar que o assunto mexe com os nativos e gera duas reações distintas, uma
para desagravo público e outra para consumo doméstico. Aos visitantes faz-se a
defesa da honra ultrajada. Internamente, porém, a “bichice” é moeda corrente.
Os pelotenses divertem-se comentando “fulano é, sicrano também, beltrano é
suspeito”. O ex-deputado e por duas vezes prefeito de Pelotas, Irajá Rodrigues,
conhece bem a questão. A cada vez que viajava a Brasília não escapava de ser
alvo de comentários maldosos.
- A fama existe, é claro.
Em Brasília tinha gente que me perguntava se o carro oficial do prefeito era
cor de rosa, essas coisas. Mas eu sempre expliquei que não tem nada a ver, a
fama foi algo inventado no passo, em razão do choque cultural.
Na eleição presidencial
de 1989, Irajá – único prefeito peemedebista gaúcho a apoiar o senador e
candidato Orestes Quércia – teve noticiada a calorosa recepção oferecida ao
ilustre colega campineiro através de uma notinha mordaz publicada na coluna
Informe JB, do Jornal do Brasil: “´É o eixo Pelotas-Campinas.”
O jornalista Carlos
Reverbel, falecido aos 82 anos, era um dos que defendiam a tese do choque
cultural. Radicado em Porto Alegre, autor da biografia do escritor pelotense
João Simões Lopes Neto, Reverbel conhecia bem a cidade, na qual passou
temporadas nos anos quarenta e cinquenta.
- Isso, no fundo, era
ciumeira. Pelotas era o centro econômico mais importante do Rio Grande do Sul
por causa da carne, havia uma vida muito ativa, inclusive intelectual. E os
locais inferiorizados inventaram essas coisas em detrimento de um centro mais
evoluído e civilizado. Uma espécie de vinganga – argumentava ele. O humorista
Luis Fernando Veríssimo é filho de uma pelotense. Mafalda, esposa de Érico,
nasceu na cidade. Veríssimo concorda com Reverbel: é pura história.
- Essa fama é um
folclore que se criou, talvez na época em que Pelotas era uma cidade muito
rica. E o pessoal confundiu educação com homossexualidade. Mas eu acho até que
dá para explorar esse filão em termos de humor, é uma coisa que ficou
convencionada e ninguém mais se ofende.
É e não é. Paladino da
moral pelotense, Libório, o Gaúcho de Pelotas, se ofende – e como! Personagem
criado pelo cartunista André Macedo, 37 anos, nascido e criado em Pelotas,
Libório frequenta as páginas do Diário Popular, o mais importante jornal da
região, fundados em 1890. Traumatizado com a fama da terra, Libório recusa-se a
parar de costas em filas de banco e beira um ataque de nervos quando alguém
indaga a sua procedência. Publicado em
tiras diárias, o rude pelotense fez tanto sucesso que seu criador passou a
imprimir camisetas estampadas com a personagem e os dizeres: “Sou de Pelotas
sim, por quê?”
André ri – a criatura não
tem nada a ver com o criador. “O Libório surgiu em um fanzine que eu e um
colega jornalista lançamos na cidade há alguns anos. De início recebi algumas
reclamações de pessoas que achavam que não se deveria mexer com o assunto.
Bobagem. Pelotas tem mesmo essa fama, como Campinas também tem, e não dá para
dar murro em faca ou tapar o sol com a peneira, como o Libório, que, aliás, já
abandonou esta postura. O gozado é que ele fez muito sucesso em Bagé, tanto que
um jornal de lá me encomendou as tirar e passou a publicá-las regularmente.”
BICHACAP X CORNOCAP – Sábado, dez da noite. Ainda é cedo – a
noite pelotense nunca inicia antes da uma da manhã e só vai esquentar mesmo lá
pelas três. Às oito da manhã ainda se vê
grupos de pessoas bebendo e conversando pelos bares do centro ou do Laranjal,
bairro e balneário às margens da Lagoa dos Patos, a maior do Brasil,o chamado
Mar de Dentro.
São águas poluídas,
impróprias para o banho ao longo de quase toda a orla. O Laranjal é o “point”
pelotense dos finais de semana e meses de verão. A 15 km do centro, urbanizado
por belas casas de veraneio, divide com a Avenida Bento Gonçalves, na cidade,
as preferências noturnas. No inverno a avenida reina soberana, no verão é tudo
com o Laranjal.
No bar da Beti, reduto
eclético, o Brasil é o assunto dominante agora. Não o Brasil País e sim o
Grêmio Esportivo Brasil, agremiação fundada no início do século e o primeiro
campeão estadual gaúcho de futebol, em 1919, quando aplicou 5 a 1 no Grêmio
Porto-alegrense no próprio campo do adversário. O time chegou a disputar a
série A do campeonato brasileiro, em 1985, obtendo um surpreendente terceiro
lugar. O campeão foi o Coritiba, mas os “xavantes” – o símbolo do clube é um
aguerrido índio xavante – orgulham-se até hoje de ter eliminado, na semifinal,
o Flamengo de Zico e companhia, em dramática vitória no estádio Bento Freitas,
a Baixada, repleto de quase 20 mil torcedores fanáticos.
Futebol é uma das
paixões dos pelotenses, divididos entre o Brasil, o Flamengo local (a camiseta
também é rubro-negra), com dois terços da torcida local, e o Pelotas, o
“áureo-cerúleo”, tachado de clube da elite, pó-de-arroz, um Fluminense dos
pampas. Na cidade quem não é xavante ou áureo-cerúleo é farrapo – torcedor do
Farroupilha, clube fundado por militares. Aliás, de um modo geral torcer pelos
times da capital fere os brios dos pelotenses mais bairristas e chega a ser uma
ofensa para os xavantes, a mais fanática torcida do interior do Estado, em sua
maioria formada pela população negra e pobre das periferias (dentre as grandes
cidades gaúchas Pelotas é uma com maior população negra). Os xavantes
orgulham-se de levar a campo a segundo maior bandeira desfraldada em estádios
brasileiros – mede 70 metros e só perde para a corintiana dos Gaviões da Fiel.
Arqui-inimigos, os dois
clubes locais aproximam-se em um ponto: a falta de dinheiro. “Se nós tivéssemos
um patrocinador forte, como tem o Juventude de Caxias, que nem torcida tem, já
estaríamos há tempos disputando o Brasileirão”, garante Roberto, um rapaz de
vinte e poucos anos que bebe cerveja no Bar da Beti em meio a uma roda de
amigos xavantes.
Roberto tem uma mania
tipicamente pelotense – agarrar o braço ou tocar na perna do seu interlocutor
para exigir atenção. O contato físico entre os homens – o abraço, o afago, o
alto de segurar os pulsos – faz parte do modo de ser masculino. Quem vem de
fora estranha um pouco tal atitude e sente até certo desconforto com isso.
Contudo, logo compreende que não significa nada de mais.
Em Pelotas desde 1957,
quando chegou de Porto Alegre, a colunista social Marina Oliveira, do Diário
Popular, aos poucos observou aqui atitudes que diferenciam a cidade do restante
do Estado: “Há uma abertura, um carinho maior entre os homens. Não sei bem
explicar, mas talvez haja uma maior espontaneidade de homem para homem, uma
coisa que não acontece, por exemplo, em Bagé. A sociedade local se caracteriza
por certo requinte, tanto na mesa quanto no vestir, no falar e no se portar.
Mas ainda é uma sociedade muito fechada, as famílias mais tradicionais
empobreceram sem perder a pose.”
Fechada, de fato, ela é,
e não somente a tradicional. Expansivo nas ruas e bares, o pelotense não é de
dar endereço de casa ou abri-la a recém-chegados. Nem mesmo a numerosa
população estudantil que aflui todos os anos – gente de outros municípios e
outros estados – foi capaz de alterar tal comportamento. Amizades superficiais
são fáceis, e fica-se por aí.
Falo a respeito disso
com Roberto, que concorda depois de alguma hesitação. Bebemos outra cerveja,
tempo suficiente para conhecer mais uma piada local: Pelotas está planejando
construir um estádio com 50 mil assentos e capacidade para 100 mil pagantes. Os
ingressos “No Colo” já estão todos vendidos... Outra de futebol, desta vez
verdadeira: década de setenta, jogo entre o Internacional e o Brasil, na
Baixada. A torcida visitante abre uma imensa faixa onde se lê: “A torcida colorada
saúda a Bichacap”. O troco veio na partida seguinte, em Porto Alegre: “A
torcida xavante saúda a Cornocap”. Ainda hoje, quando um porto-alegrense
pergunta se há mesmo tantos assim, os pelotenses têm uma resposta na ponta da
língua: “Tinham muitos sim, mas agora estamos trocando dois bichas de Pelotas
por um corno de Porto Alegre.”
SEPARATISMO PELOTENSE - Chega-se ao município pela BR 116, a
mais extensa rodovia nacional e que inicia em Jaguarão, fronteira entre o
Brasil e o Uruguai. O intercãmbio com a “banda oriental” é intenso e muitos vão
tentar a sorte em Montevidéu, outros seguem a passeio. Os uruguaios, da mesma
forma, chegam, abrem negócios, aclimatam-se sem maiores dificuldades, casam e
se instalam na cidade, alguns para sempre. No verão os pelotenses mais abonados
mudam-se para Punta Del Este – é um símbolo de status ter casa ou apartamento
no chique balneário para onde, naturalmente, também migra a crônica social.
Economia agropastoril, a
Zona Sul gaúcha é formada por terras baixas e férteis e duas grandes lagoas, a
dos Patos, de águas salinizadas, e a Mirim, menor, com águas doces e nenhuma
comunicação com o oceano. É água, muita água. Os plantadores de arroz irrigado
agradecem tanta abundância de recursos hídricos, embora vivam reclamando do
governo federal e de sua política de preços mínimos, da importação desleal do
produto asiático e dos juros altos que pagam pelo custeio agrícola. O certo é
que ganharam muito dinheiro durante décadas, compraram belas casas em Punta e
propriedades no Brasil, mas pouco investiram no próprio município.
Érico Ribeiro, o número
um dos orizicultores gaúchos, foge à regra. Apontado como o maior plantador
individual de arroz do mundo, esse senhor baixote e calvo é quase um mito na
cidade – o mais rico, o mais poderoso, evita porém badalações sociais e prefere
acompanhar de perto seus inúmeros e diversificados negócios, hoje em parte
transferidos para o Uruguai, onde o crédito é fácil e os juros mais baixos.
Chegou a faturar mais de 200 milhões de dólares por ano antes de divorciar-se e
ter seu patrimônio cindido. Influente politicamente, concorreu a prefeito em
uma das últimas eleições mas acabou perdendo na reta final.
Política, economia e
futebol são pratos diários nas rodas de conversação local. E, sobretudo,
lamenta-se muito: o esvaziamento político que tirou forças da Zona Sul em favor
da metade norte, industrializada e europeizada, a estagnação de uma economia
que sempre se orgulhou da sua pujança, uma prefeitura tão endividada que jamais
paga os salários dos servidores em dia, os meninos de rua, a violência, o
abandono dos parques e praças, a falta de empregos, o lixo nas calçadas, o
fechamento das grandes empresas locais, o tratamento dispensado pelo governo do
estado.
Radical, o ex-prefeito
Irajá Rodrigues lidera uma campanha para separar a metade sul da metade norte
do Rio Grande do Sul. A sul formaria o Estado do Piratini, investindo aqui o
dinheiro que, reclamam os pelotenses, estaria sendo desviado para a metade
norte, onde a renda per capita é três vezes maior. Irajá promove periódicas
manifestações secessionistas reunindo meia dúzia de gatos pingados mas garante
ter ás mãos uma lista com mais de 40 mil assinaturas apoiando a proposta
separatista. Piada, dizem os pelotenses, mas interessados no projeto de
reconversão econômica da metade sul gaúcha lançado pelo governo Fernando
Henrique Cardoso, mas cujos recursos ninguém sabe, ninguém viu – só no papel.
De fato, o clima de
desânimo e pessimismo aguçou-se nos últimos anos. Simpósios, seminários,
discussões e mais discussões – conhecidas as causas do atraso, o que fazer para
superá-las? Lançado pelo Centro das Indústrias do município, uma campanha de
auto-valorização de Pelotas tenta neutralizar o derrotismo reinando através de
mensagens de fé e otimismo propagadas pela mídia local. “Isso aqui está
condenado”, exageram alguns cidadãos amargurados que não esquecem de traçar
paralelos entre Pelotas e Caxias do Sul. Esta última progrediu imensamente,
superou a Princesa do Sul em tudo, inclusive em habitantes, e tornou-se um
poderoso parque fabril, produzindo de alfinetes a tratores. Pelotas, ao
contrário, enriqueceu com a carne de boi em um período em que boa parte dos
seus habitantes vivia à tripa-forra. Ganharam muito dinheiro, sim, e gastaram quase
tudo em festas, jogatinas, viagens, palacetes, roupas caras. Investir na
modernização das indústrias poucos o fizeram. Assim, quando o capital inicial
secou os pelotenses se depararam com o deserto econômico e passaram a viver da
saudade.
PIRATARIA CULTURAL – Adão Monquelat, figura conhecida nos
meios culturais da cidade e dono de uma livraria a poucas quadras da
Universidade católica, pensa que ainda há muitos mistérios a devassar na Atenas
Rio-grandense. Para ele “o pelotense sempre teve mentalidade de gigolô de vaca,
a burguesia daqui não soube a hora da modernização.” Como todo pelotense da
gema, Adão divide-se entre o orgulho e o lamento depreciativo. Orgulho de um
passado que, bem ou mal, ainda sobrevive em alguns aspectos. Lamento pelo que
chama de “bolor”: a acomodação geral, a falta de perspectivas e ações reais.
“No século 19 os cidadãos
daqui iam muito à Europa, especialmente Paris, sabem antecipadamente das
coisas. Para se ter uma ideia do que era esta cidade, o mercado editorial
gaúcho da época estava todo aqui. Pelotas foi a primeira cidade do Brasil a
editar Gibran Khalil. Foi em 1922, pela Tipografia Guarany. Aliás, um dado
curioso: praticava-se aqui a mais aberta pirataria cultural e editorial,
editava-se em pelotas os maiores autores nacionais e mundiais sem pagar um
tostão de direitos autorais. Zola, Álvares de Azevedo e Machado de Assis, que
provavelmente nunca tenham sabido disso. Um inglês, em visita ao Brasil, chegou
a acusar o município disso, dizendo que só perdíamos para os belgas em matéria
de pirataria cultural. Como a constituição do Estado foi inspirada em ideias
positivistas que consideram todo o conhecimento como conhecimento comum à
Humanidade, a desculpa era fácil.
Algumas dessas
obras-piratas estão expostas na livraria de Monquelat. São edições de capa
dura, em formato pequeno, e levam a chancela da Livraria e editoral Americana,
que não mais existe. Deve-se ao livreiro Adão Monchelat a descoberta – ou
redescoberta – do primeiro romance editado em terras gaúchas, A Divina Pastora
(1847), de Caldre Fião.
O marco inaugural da
literatura rio-grandense era uma espécie de Santo Graal quando Adão, em uma de
suas viagens a Montevidéu, encontrou um único exemplar no mercado das pulgas,
em 1991. Para o livreiro, foi como descobrir uma pepita de ouro: adquirido pela
rede Brasil Sul de Comunicações, RBS, por uma quantia que Adão não revela,
dorme agora em uma redoma de vidro da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, em
Porto Alegre. Mas quando a pergunta envereda de cultura para costumes e se
pergunta sobre Pelotas e sua fama, Adão coça a barba e torna-se sério: “Acho
que não confere. Na década de sessenta, quando fui morar em Porto Alegre, o
pessoal já nos gozava muito a esse respeito. Uns até perguntavam se era verdade
que em Pelotas até os garis usavam gravata. Eu acho que a fama veio justamento
do modo de ser e de vestir dos pelotenses.” Amigo de Monchelat, o psiquiatra
José Wolfango Montes Vannucci, 47 anos, há dez na cidade, já publicou oito
romances, entre eles Jonas e a Baleia Cor-de-Rosa, um dos vencedores do
concurso Casa de Las Américas do governo de Cuba. Natural de Santa Cruz de La
Sierra, Vannucci é psiquiatra por formação e escritor por vocação. Casado com
uma pelotense, sente-se perfeitamente adaptado à cidade onde, conforme diz, há
mais psiquiatras do que em toda a Bolívia.
“Pelotas é uma cidade
com personalidade, uma cidade em que o habitante é mais voltado para o passado
e se torna com isso mais reflexivo. É uma cidade nostálgica que acha que suas
glórias estão no passado, conservadora. Não é feita por imigrantes como tantas
outras do Rio Grande do Sul. O cidadão daqui acha que tem uma essência, que não
precisaria fazê-la, não é uma terra em que se tenha estimulado o espírito
lutador, desbravador. Aqui se tem mais valores artísticos do mundo, e quando
falo em pelotenses me refiro às classes média e alta, que são as que contam. As
pessoas aqui não valem só pelo dinheiro e sim por outras coisas, sem tem uma
vida intelectual que se faz nos cafés, nas livrarias. Pela própria nostalgia,
pelo clima, as pessoas olham mais para dentro de si do que em outros locais.”
Cidade gay? O escritor
conhece bem a fama. “Eu vou a meu país e digo que moro em Pelotas e as pessoas
já começam a rir, até no Chile já se conhece a fama. Mas eu não acho que
Pelotas tenha um número de homossexuais superior à média. Penso que o que
contribuiu para isso foi o carnaval. Uma das coisas que mais me chamou a
atenção quando cheguei à cidade foi o grande número de rapazes que se vestem de
mulher durante a folia. Inicialmente isso dá a impressão de haver
homossexualidade, mas eu passei a entender a questão como um ritual dionisíaco
em que as pessoas assumem, digamos assim, alguns aspectos mais escuros de sua
personalidade. Mas também reparei que, durante o ano, esses mesmo rapazes
tinham conduta hetero.”
Sobre o homem pelotense,
Vannucci sustenta uma opinião bem pessoal: “O homem pelotense não é machista,
isto eu noto. Mas eu vejo tanto bissexual enrustido... Por ser uma cidade em
que o papel social é tão importante, isso faz com que as coisas se disfarcem
mais.
Piada: um viajante chega
a Pelotas e observa que muitos locais apresentam uma estranha sinalização:
Passagem Só Para Pederastas. Surpreso, aborda um transeunte e pede explicações
sobre aquilo. “De fato, está errado”, concorda o sujeito. “O correto seria
Passagem Só Para Pedestres, mas não vai ser por causa de uma meia dúzia que nós
vamos mudar todas essas placas, né?”
CAPITAL DA ARISTOCRACIA – É a segundo cidade mais úmida do mundo,
só perdendo para Londres. A comparação aristocrática agrada os pelotenses, que
lembram da época dos barões do Charque, quando importou-se da Europa três
grandes e artísticas caixas dágua, além de chafarizes, objetos de arte, móveis,
livros e até material de construção para os palacetes, dos quais, em sua
maioria, só restou a fachada ou a fotografia.
Dessa cidade disse o
Conde D`Eu, o marido francês da Princesa Isabel, em 1865: “Depois de ter
percorrido por duas vezes em toda a sua extensão a Província do Rio Grande do
Sul, depois de ter estado em suas pretensas vilas cidades, Pelotas aparece aos
olhos cansados do viajante como uma bela e próspera cidade. As suas ruas largas
e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único na província), sobretudo
os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com suas elegantes
fachadas, dão ideia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a cidade
predileta do que eu chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode
empregar o termo aristocracia falando-se de um país do novo continente, aqui é
que o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e matar cavalos no interior
da campanha vem gozar as onças e os patacões que ajunto em seu mister.”
A Pelotas que o Conde
visitou, acompanhando a comitiva do Imperador Pedro II, contava com
estabelecimentos comerciais que “fariam honra ao Rio de Janeiro”, no dizer do
alemão Karl Von Koseritz (“Imagens do Brasil”), que visitaria a cidade cinco
anos depois. O escritor, político e ex-mercenário alemão observou nas ruas “um
ar de contentamento e prosperidade que penetra a gente”.
Vários outros
estrangeiros e visitantes teceriam comentários enaltecedores a respeito do
surpreendente grau de progresso e civilidade encontro neste ponto da remota
região sul: palacetes em estilo próprio, mesclando arquiteto neo-renascentista
com detalhes em barroco, muitos dos quais valeriam mais de 100 mil libras
esterlinas, mulheres bonitas, homens finamente trajados, sem contar os
monumentais jazigos onde repousavam os defuntos mais ilustres, os tais “barões
do charque”, assim agraciados pelo Imperador como agradecimento à fidelidade de
uma elite conservadora e imperial (na Revolução Farroupilha a cidade manteve-se
fiel ao império brasileiro). Tudo isso graças ao contingente de europeus que,
por influência do seu dinheiro e da sua cultura, contribuíram “para que aqui
houvesse mais civilização e mais gosto pela vida social do que em outras
regiões”, na visão do mesmo Koseritz. Quanto às mulheres, “tocam piano, falam
francês, dançam bem e permitem até o galanteio de um cavalheiro”. E conclui:
“São senhora que não cem em elegância e boas maneiras às mais graciosas
parisienses.”
Em 1831 esta sociedade
opulenta mandaria construir o teatro sete de Abril, o quarto mais antigo em atividade
no Brasil. Nas décadas seguintes o município se consolidaria como o principal
centro econômico da região sul brasileira. Localização privilegiada, às margens
de vias navegáveis, proximidade do mar e das repúblicas do Prata, numeroso
rebanho bovino, boas pastagens, chuvas bem distribuídas – tudo contribuía e
facilitava.
Tantas vias navegáveis
já eram, por sinal, familiares aos índios que habitavam primeiramente a região.
A palavra “pelotas” (bola, em espanhol) designaria uma tosca embarcação por eles
utilizada para a travessia de rios e canais, espécie de caiaque feito de couro
de boi estirado sobre varas.
DEGOLADORA DE BOIS – Em meados do século 19 um viajante
inglês surpreendeu-se ao contar mais de oitenta embarcações de médio e grande
porte atracadas às margens do canal São Gonçalo, à espera de carregamento de
charque, alimento utilizado por tropeiros, famílias pobres, escravos e soldados
em campanha. Quando eclodiu a Guerra do Paraguai (1864-70), a burguesia local
locupletou-se ainda mais com o conflito – a soldadesca que combatia Solano
Lopes nos charcos paraguaios e nas fronteiras gaúchas precisava de alimentos
não perecíveis, e Pelotas estava ali, para fornecê-los.
Uma cidade então com
mais escravos do que homens livres, e muito mais bois que gente. No auge do
chamado ciclo do charque abatia-se anualmente mais de 500 mil cabeças de gado
nas cerca de trinta charqueadas do município. No início do século 20 o escritor
João Simões Lopes Neto – o maior nome do regionalismo literário gaúcho –
estimava em 17 milhões os bovinos já sacrificados em Pelotas. A possível beleza
do espetáculo das boiadas chegando, tangidas por tropeiros vindos de todos os
recantos do Estado e mesmo do Uruguai, onde também costumava-se roubar muitas
reses, logo se desfaria em “uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode
caber na imaginação” – a hora do abate. Algo realmente repugnante, nas palavras
do médico alemão Robert Avé-Lallemant. Em seu livro “Viagem pela Província do
Rio Grande do Sul”, publicado na metade do século 19, ele chama Pelotas de “a
Degoladora de Bois” e não esconde o asco pelo que vê, sente e cheira no
interior dos estabelecimentos saladeris, “um repugnante atascamento no sangue e
na imundície dos animais, em que quase se animaliza a alma do magarefe dos
homens”. O odor de sangue, couro, vísceras, fezes, ossos e carne espalhava-se
por tudo, sempre temperado por um horrível cheiro de carniça.”
Desses dois mundos
complementares mas separados e até antagônicos – a cruel degoladora de bois e a
refinada Atenas rio-grandense – surgiria talvez a tese do choque cultural. Dois
universos, o do capital e o do trabalho. Gaúchos rudes e voluntariosos e a
sociedade dândi dos salões e palacetes e suas mentes direcionadas para Paris,
Londres, Lisboa e Rio de Janeiro, cidades onde estudavam muitos filhos da terra
que, ao retornar, exibiam estranhas maneiras, frescuras tais como puxar a
cadeira para as damas sentarem, pedir licença e arranhas expressões em francês.
Tal comportamento fidalgo encontraria ressonância em uma das mais conhecidas
obras da literatura brasileira. Ao escrever Quincas Borba, Machado de Assis
incluiu uma moça pelotense, Sonora, “uma guasca de primeira ordem, um beijou” e
que “só casa com homem da Corte.”
À época da publicação do
livro (final da década de 80 do século 19) Pelotas desfrutava do seu fausto
econômico e social. Em seu livro Opulência e Cultura na Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul – Um Estudo Sobre a História de Pelotas (1860-90) o
historiador Mário Osório Magalhães fixa as causas da desaceleração de uma
economia que, a partir do final daquele século, irá perdendo terreno para Porto
Alegre e as novas colônias de imigrantes italianos e alemães à sua volta: o
declínio das charqueadas e o descaso do governo estadual, que simplesmente
volta as costas a Pelotas, negando-lhe obras essenciais de modernização e mesmo
fechando ou transferindo muitos estabelecimentos oficiais que existiam no
município. É possível que date daí o sentimento isolacionista e uma certa mágoa
dos habitantes da “Chicago Brasileira” (a Chicago dos abates de bois, note-se,
e não a dos gângsteres) em relação à capital gaúcha.
Visconde da Graça, Barão
dos Três Cerros, Barão de Santa Tecla, Barão do Girau, Barão do Butuí. Ao
crepúsculo do reinado, a Degoladora de Bois já tinha os seus nobres de fato e
seus conselheiros do império que, nos meses de verão, podiam ser vistos na
praia do Cassino, em Rio Grande, cercados pela criadagem e passeando de fraque
e polainas o seu soberbo ar imperial, indiferentes aos olhares mordazes dos
peixeiros riograndinos. Mais de cem anos depois, os resquícios dessa época de
ouro podem ser vistos no Museu da Baronesa, antiga residência da família
Antunes Maciel, barão e baronesa dos Três Cerros. O museu abriga hoje mais de
três mil peças que retratam o modo de vida e o luxo dos potentados antigos:
mobiliário europeu, coleções de leques, vestidos franceses, bustos em mármore
de Carrara, azulejos portugueses e retratos desbotados de senhores e senhoras
circunspectos atestam uma riqueza refinada que feneceria em irremediável bolor.
Voltando à economia: discriminada
pelo poder central, a Princesa do Sul seria em seguida duramente atingida pela
evolução tecnológica nos meios de produção. A nível regional, a Revolução
Federalista de 1893/94 transformaria o Rio Grande em um vasto teatro de guerra,
com mais de 10 mil mortos e outros milhares de refugiados, inviabilizando o
trânsito e o comércio do gado. Em esfera mundial, a invenção do sistema de
eletricidade e refrigeração tornaria a salga um obsoleto e caro processo de
conservação da carne, agora armazenada em grandes frigoríficos. A chegada da
ferrovia, por sua vez, deslocou as charqueadas para outras regiões, livrando-as
da obrigatoriedade do escoamento por via aquática.
Aos poucos ia silenciando
o plangente apito noturno a sinalizar o início de mais uma matança de bovinos.
Mesmo sem saber direito, a Chicago Brasileira vivia seus estertores, mas a
Atenas Rio-grandense ainda dançava ao som das pianolas e mantinha a velha pose.
Nesta sociedade onde “praticava-se o culto excessivo às belas artes” e
discutia-se os clássicos franceses em alegres saraus, o escritor João Simões
Lopes Neto jamais obteria o devido reconhecimento. O autor de cancioneiro
Guasca, Casos de Romualdo e Lendas do Sul, de família rica e tradicional,
preferiu no entanto descrever não o elegante universo urbano e sim a existência
simples do homem rural. Audaz e sonhador, abriu inúmeros negócios e empresas
fracassadas, nelas torrando toda a sua fortuna. Quando morreu de úlcera
duodenal em 1916, com apenas 51 anos de idade, morava de favores na casa de um
parente. Considerado azarento, era evitado nas ruas até pelos amigos mais
próximos. Hoje é nome de um centro de cultura e de tradições gaúchas e de um
bairro da cidade. Sua obra, redescoberta na década de quarenta graças aos
estudos de Carlos Reverbel, Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira e Aurélio
Buarque de Hollanda, é sem dúvida uma das mais importantes da literatura
regional brasileira em todos os tempos.
Encerrado o grande ciclo
de prosperidade, ainda assim a vida mostrava-se risonha e agradável na Princesa
do Sul. A combinação opulência restante e cultura atraía homens e mulheres de
outros estados e países e seduzia especialmente os judeus franceses fugitivos da
dominação alemã na Alsácia-Lorena, os quais antes tentavam a sorte em Buenos
Aires e Montevidéu. As cortesãs francesas pontificavam nos cabarés e davam o
necessário verniz a airada vida noturna desta cidade perdulária e festiva.
Piada: Chegando à divisa de Pelotas um viajante vê um homem
pescando. Curioso por saber se havia ali algum peixe, aproxima-se e pergunta:
“E aí, tá dando?” “Não, hoje eu estou pescando”, responde o outro.
ROLETA E BELLE EPOQUE – Como e quando surgiu a fama que
estigmatiza (se é que o termo é adequado) Pelotas até hoje, a de cidade gay
onde as mulheres, para arranjarem homem, precisam esburacar as ruas, como
escreveu o colunista e humorista José Simão, da Folha de S. Paulo? Ou como escreveu Millor Fernandes, na sua seção de humor Livre Pensar é Só Pensar, na revista Veja de 24 de novembro de 1976: "Em Roma, como os romanos. Até aí tudo bem. Mas, e em Pelotas?"
Aos 90 anos, magro,
lúcido e elegante, José Collares mantém a voz firme e a inteligência alerta: à
menção do tema seus olhos deixam escapar um lampejo de malícia. Ele pede para
que sua sobrinha retire-se por alguns instantes – isso não é assunto para
mulheres. Em seguida descerra as cortinas e uma luminosidade difusa escoa do
cinzento céu pelotense e envolve, lá embaixo, a Praça Coronel Pedro Osório,
cercada de casarões históricos.
A praça é adornada com
belos e antigos chafarizes. À noite, porém, é “terra de marlboro”, com
assaltos, prostituição e consumo de drogas. Mulheres de programa dividem espaço
com travestis que enfrentam o rigor do clima em trajes sumários. Em fevereiro,
na avenida em frente, realiza-se o desfile das escolas de samba e blocos de
sujos daquele que já foi considerado o mais alegre e popular carnaval do
Estado. É este cenário que José Collares compara à Belle Epóque pelotense, os
anos vinte, período dos grandes cabarés, das francesas e da jogatina
desenfreada. Menino rico, como ele mesmo diz, viu e viveu tudo aquilo.
“Pelotas mudou muito,
não há mais aquela educação e nenhum glamour. Sei dizer que foi uma cidade
muito rica e o dinheiro foi todo na roleta, grandes fortunas se acabaram da
noite para o dia nas rodas de bacará. Só aqui em volta do Mercado Público havia
onze casas de jogos, mais umas três ou quatro adiante. Os croupiers vinham de
Buenos Aires e Montevidéu. O cassino mais famoso era o Palace, que funcionava
no Clube Caixeiral com roleta à tarde e à noite. Com os croupiers vinham as
mulheres, mulheres fantásticas, quase todos estrangeiras, francesas, italianas,
argentinas, as nacionais eram poucas. Sem falar nas das companhias de operetas,
que acabavam ficando por aqui, se tornavam amantes dos homens ricos. No resto
do Estado se criticava muito este comportamento, dizia-se que isso era “coisa
de pelotense.”
Pelotenses que, afirma
Collares, formavam quase uma casta à parte em relação aos demais habitantes do
Rio Grande do Sul. “Os pelotenses eram mesmo diferentes. Até no comer. A gente
ia a Bagé e notava que o sujeito era de Pelotas só pelo modo de empunhar o
garfo. De um modo geral o pessoal daqui não gostava dos bageenses e eles não se
aclimatavam bem na cidade, nos consideravam “poseur”, diziam que tínhamos mania
de superioridade. Nunca esqueço a vez em que fui a Bagé e, em um baile, vi um
sujeito deixar cair o revólver em pleno salão. Pois ele simplesmente se
agachou, apanhou a arma e a colocou no coldre como se aquilo fosse a coisa mais
natural do mundo, e seguiu dançando. Isto me horrorizou. As próprias mulheres
nos diziam que até na hora do amor o pelotense era diferentes, antes de ir para
a cama tirava os sapatos e as meias, tomava banho e perfumava-se, enquanto em
outras cidades o sujeito às vezes nem tirava as botas e fazia de pé mesmo.
Exagero, mas diz alguma coisa.”
Em 1920 o censo apontou
82 mil habitantes em Pelotas, somente na área urbana, e o município mantinha-se
como o décimo primeiro mais populoso do Brasil e o oitavo quanto às rendas,
superando muitas capitais e cidades importantes como Santos, Campinas e Juiz de
Fora. A primazia pelotense incluía a radiodifusão – a primeira emissora de
rádio do Rio Grande do Sul, a Rádio Sociedade Pelotense, fundada em 1925,
precedeu em alguns meses a Rádio Gaúcha de Porto Alegre. Também estava aqui a
primeira loja maçônica do Grande Oriente do Brasil no Estado. Por sua vez, a
telefonia local – moderna para os padrões da época – estava sob o controle da
municipalidade e os bondes elétricos ligavam o centro aos bairros mais
distantes. Antes, em 1913, o português Francisco Santos rodou na cidade aquele
que é considerado o primeiro filme brasileiro de ficção, Os Óculos do Vovô.
Descoberta em 1973 pelo cineasta Antonio Jesus Pfeil, da película só restaram
cinco minutos, hoje conservados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Nessa terra de ócio e
riqueza não faltavam prazer para a classe alta. Procedentes de Buenos Aires,
muitas companhias europeias de teatro e opereta iniciavam aqui sua turnê em
terras brasileiras, seguindo depois para os grandes centros. Aos espetáculos de
gala no Teatro Sete de Abril – depois surgiria o cine-teatro Guarany –
sucediam-se, para os homens, noitadas no “Apertadinho”, cabaré e cassino na Rua
15 de Novembro e onde brilhavam mulheres como Maria Vesuviana, italiana, e
Louisette, francesa – as duas depois abririam seus próprios negócios. Como de
praxe, tinham um amante oficial – que pagava as contas – e um rapaz bonito para
os prazeres da cama.
Havia cabarés, roleta,
coronéis, gigolôs, jogadores – e a fama de requintada cidade boêmia. A outra
fama, porém, já estava em gestação. José Collares não fala em “gays”, prefere o
termo “invertidos”: “Havia invertidos sim, até porque os pelotenses eram muito
mais civilizados e tolerantes do que os outros. A maioria das cidades do Estado
tinha essa mania de ser gaúcha, de trabalhadores, e os pelotenses estavam à
parte. Mas isto de invertidos também em outras cidades que nunca ganharam a
fama. Jaguarão, por exemplo, era conhecida por isso só porque dois irmãos,
donos do principal hotel de lá, eram. Essa fama de Pelotas, pelo que eu me
lembro, veio depois da Revolução de 30, quando as tropas do Getúlio seguiram
para o Rio. Lá difamaram a cidade.”
Ele inclina a cadeira de
balanço para a frente, olha em volta para conferir se não há mais ninguém e
sussurra, tossindo: “Se der o senhor volte outro dia que eu vou lhe falar de um
homem, um homem muito bonito, riquíssimo, que era...”
Não deu tempo: José
Collares faleceu duas semanas depois.
ÓDIO DE GETULIO – A quebra da Bolsa de Valores de Nova
Iorque, a depressão norte-americana e mundial que se seguiu a este fato e
Getúlio Vargas na presidência do Estado gaúcho atingiram duramente o município.
Com a crise econômica e a redução do consumo geral, o preço do boi e do charque
entrou em queda livre. Em 1930 a venda de carne gaúcha para fora do Estado já
caíra pela metade. O assoreamento do canal São Gonçalo e a modernização do
porto de Rio Grande, para onde se deslocou o comércio exterior gaúcho, pioraram
ainda mais as coisas, a ponto de lideranças locais, conduzidas pelo empresário
Cássio Tanborindeguy, encaminharem ao intendente municipal (prefeito) um
documento de alerta intitulado “Defesa de Pelotas”. Para muitos, 1930 marca o
início do decadentismo pelotense. Em 1931 a mais rica e prestigiosa instituição
local fecharia em definitivo as suas portas: o Banco Pelotense, então um dos
cinco maiores bancos do País, com mais de 20 filiais em diferentes Estados e,
em 1925, o campeão gaúcho em volume de depósitos, teve todo o seu patrimônio
transferido para o recém criado Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Efeitos
da crise mundial, má administração, armação política, tudo é aventado para
explicar como o banco oficial do Estado de 1921 a 1928 foi riscado do mapa.
Getúlio, conta-se, fez de
tudo para destruir o Pelotense, um dos tentáculos da política do seu
antecessor, Borges de Medeiros. Ao suceder a este na presidência do Estado, em
1928, transferiu para o Banco da Província todas as contas do governo e, no
final, recusou-se a mover uma palha em defesa da instituição. Outra versão
garante que Vargas teria feito isso por motivos pessoais, já que seu cunhado,
Antonio Sarmanho, suicidou-se ao ser acusado de desfalque na agência de São
Borja, onde era gerente.
Em seu belo livro Os Vargas, um relato sobre a história da família de Getúlio e suas origens, editado pela Livraria do Globo, o jornalista Rubens Vidal Filho fala da crise de 1929 e da Revolução de 30 que levou Getúlio ao poder, reportando o que era a Princesa do Sul por ocasião do Crack da Bolsa de Nova Iorque: "Pelotas, com suas charqueadas e plantações de arroz, era a cidade mais rica. Naquele ano de 1929 o Carnaval de rua em Pelotas foi tão deslumbrante que empolgou os próprios pelotenses. Muito luxo, gastos espetaculares, corsos com automóveis de capota arriada repletos de mulheres esplêndidas de shorts, com as pernas nuas para o ar, ruas cheias de confetes e serpentinas".
Em seu belo livro Os Vargas, um relato sobre a história da família de Getúlio e suas origens, editado pela Livraria do Globo, o jornalista Rubens Vidal Filho fala da crise de 1929 e da Revolução de 30 que levou Getúlio ao poder, reportando o que era a Princesa do Sul por ocasião do Crack da Bolsa de Nova Iorque: "Pelotas, com suas charqueadas e plantações de arroz, era a cidade mais rica. Naquele ano de 1929 o Carnaval de rua em Pelotas foi tão deslumbrante que empolgou os próprios pelotenses. Muito luxo, gastos espetaculares, corsos com automóveis de capota arriada repletos de mulheres esplêndidas de shorts, com as pernas nuas para o ar, ruas cheias de confetes e serpentinas".
Piada: Ao viajar a Pelotas, um cidadão é advertido, em tom de
brincadeira: “olhe que aquela terrinha é fogo, quem chega lá já sente uma
coceira no rabo...” Sem fazer caso, mal chega à cidade, é acometido de uma
forte diarreia e obriga-se a saltar do carro e fazer suas necessidades no mato.
À falta de papel, vai um ramo de urtiga: “Caramba, bem que tinham me avisado
que essa terrinha é fogo mesmo!”
LIBÉLULAS PELOTENSES – Fábio de Souza Ferreira, 32 anos,
chegou à cidade faz 11 anos, vindo da vizinha Camaquã. Em vez de seguir para
Porto Alegre, a 130 km de distância, preferiu seguir mais para o sul e
instalar-se em Pelotas. Aqui – homossexual assumido – passou a trabalhar como
estilista. Ganhou amigos, sossego e dinheiro para viver confortavelmente.
Quando está circulando pelo mundo gay pelotense, Fábio Ferreira passa a ser
Fabíola Ferrer. Porém, não se considera travesti – homossexual sim. Assíduo em
festas da sociedade local, desenha e confecciona vestidos e trajes
carnavalescos para homens e mulheres que frequentam o seu atelier em um sobrado
no centro.
Quem sobe as escadarias
de madeira se depara com fotos emolduradas, alguns quadros e, na peça contígua
à sala, uma imensa cama de casal. De bermudas, cabelos presos à nuca, Fábio –
ou Fabíola – acaba de encerrar seu expediente. Senta-se, cruza as pernas com feminilidade
não afetada, acende um cigarro e estuda o repórter com o olhar discreto. Está
sem pintura ou maquiagem. A voz é quase de mulher. “Vamos lá, o que você quer
saber?” O namorado, que abrira a porta, some de cena levando consigo um cão
felpudo. Fábio está à vontade – antes, porém, quer saber se pode falar tudo, se
a entrevista será mesmo publicada e se há necessidade de fotos. Exponho as duas
versões – a do choque cultural em primeiro.
“Puxa, é tanta coisa que
você me pergunta, que a gente teria de parar e conversar vários dias até
esgotar o assunto. O que eu acho é o seguinte: não vá nessa de que os filhos
das famílias antigas iam à Europa, voltavam assim e assado. Aqui há de fato
mais homossexuais do que em outros locais. Muitos vêm de fora, atraídos pela
fama da terra, por Pelotas ser considerada mais tolerante a este respeito. Não
sei qual a explicação, mas posso dizer que aqui o homossexual é tratado com
carinho e respeito, com naturalidade, ele pode frequentar qualquer ambiente sem
se sentir discriminado, inclusive casas de família. A cidade toda aceita o homo,
embora, claro, se façam piadinhas, o que eu acho natural, faz parte. O homem
pelotense gosta de transar com homossexuais, há procura. Dá para dizer que
nesta cidade a gente se complementa não só sexual como afetivamente, namorados
são fáceis, a coisa rola normal. Dou um exemplo: aqui eu nunca saía de uma
festa sem um namorado, já em Porto Alegre é muito difícil conseguir namorado.
Muitos homens pelotenses, até casados, mantêm relações estruturadas com gays.”
Pausa para o café. Mais
descontraído, Fábio levanta-se e traz dois convites em papel cor de rosa, Eles
X Eles, Elas X Elas. “Apareça para conhecer mais. Estarei lá.”
A festa Gato Calabouço
aconteceu dali a duas semanas. Fábio – agora Fabíola Ferrer – integrava o corpo
de jurados encarregado de escolher o mais belo e atlético rapaz dentre uma
dúzia que desfilavam seus músculos para uma numerosa plateia GLS. Casa cheia,
paredes escuras, ambiente de caverna, garçons vestidos a caráter da cintura
para cima – cobrindo o sexo apenas uma sunga reduzida. Clientela animada, mas
comportada. Funcionando em uma espécie de casamata no bairro Fragata, a boate
atrai não só gays e simpatizantes como grupos de mulheres que cotizam-se para
aniversários ou despedidas de solteira. Há outra do gênero no centro, a Bay
Bay, mais escrachada. A Calabouço funciona somente nos finais de semana e
vésperas de feriados. Mesmo assim é lucrativa, informa Cleuton Alves, 24 anos,
um dos sócios. “O nosso público é quase sempre o mesmo. Às vezes somem, dão um
tempo, mas sempre acabam voltando e gastando bem. Têm políticos, empresários,
professores universitários. Nós fazemos muitas promoções, trazemos
transformistas de Porto Alegre, promovemos shows. Também damos uma canja para
os michês, que não pagam ingresso.”
A festa Gato Calabouço
foi, meses antes, precedida pelo Bingo Boy, cujo principal atrativo foi o
sorteio de um loiro estilo Conan O Bárbaro de quase dois metros de altura,
oferecido como prêmio ao vencedor, que imediatamente o levou para casa. Se
quisesse, porém, poderia consumar ali mesmo: há uma peça escura nos fundos
destinada ao usufruto dos mais afoitos, homens e mulheres. “No dia seguinte
temos de recolher dúzias de camisinhas que ficam no chão”, diz Cleuton.
VAMOS ARRASAR COM ELES,
COLEGAS! – Na noite em
que o programa Você decide, da rede Globo, foi transmitido ao vivo da Praça
Coronel Pedro Osório para todo o Brasil uma piada circulava pelo Café Aquário,
o mais tradicional e frequentado da cidade. “Sabe como vai ser o final? Não
dúvida entre as duas mulheres, o sujeito acaba ficando com a bicha.”
Gracejos domésticos,
tudo bem. Da porta para fora a coisa muda de figura. Ano passado um jornal de
Rio grande noticiou o despejo na praia do Cassino de cães vadios recolhidos nas
ruas de Pelotas por funcionários municipais. A questão originou discussões e
protestos entre a Noiva do mar e a Princesa do Sul. O que irritou mesmo os
pelotenses foi a ilustração da matéria: ao desembarcar do caminhão, um cachorrinho
de fitinhas amarradas à cabeça, convocava os demais: “Vamos arrasar com eles,
colegas!” Irritado, o jornalista José Ricardo Castro, colunista político do
Diário Popular, esbravejou: “Querem nos denegrir!” Os ânimos, felizmente, não
tardaram a serenar, embora alguns pelotenses tenham se recordado do Doutor
Pelotas, personagem criado pelo humorista porto-alegrense Carlos Nobre no final
dos anos cinquenta e que ia ao ar pela Rádio Gaúcha. Para alguns o Doutor
Pelotas consolidou a fama da terra. Criado para comentar os jogos do Esporte
Clube Pelotas durante o campeonato gaúcho, o personagem emitia comentários
maliciosos com voz efeminada.
A cidade, contudo, dava
alguns panos para manga. Em 1968 gays de todo o Rio Grande do Sul aportaram em
Pelotas para participar do feérico e inesquecível Baile da Pedra, evento
realizado no dia da emancipação do município e que culminou com a escolha da
Miss cocota do ano, um transformista chamado Mônica. Precursor do atual Gala
Gay e do Nós em Festa, conhecidos em todo o Estado, o baile for realizado em
uma oficina em obras com mesas de pedra e tornou-se o acontecimento social do
ano, recebendo amplo destaque da mídia. Quem viu garante: foi um luxo só.
As reações contrárias
logo surgiram entre a população local. Uma campanha “moralizadora”, deflagrada
por um conhecido locutor de rádio, encontrou respaldo nos setores conservadores
da sociedade e que se julgavam atingidos pela onda de libertinagem desenfreada
e pela nódoa que pesava sobre o nome de Pelotas. Iniciava-se a “caça ás bichas”
– quem aparentava ser era agarrado na rua e ali mesmo tinha seu cabelo raspado,
deixando-se apenas uma mecha sinalizadora. A campanha, executada em pleno
regime ditatorial, durou vários anos e, se não diminuiu o número de
homossexuais assumidos, deu samba, a marchinha Rapa o Côco Dele, composta por
um fotógrafo e um pintor de paredes e o maior sucesso carnavalesco de 1969 na
cidade. “Rapa o côco desse/que ele também é/caminha rebolado e tem nojo de
mulher.”
Vieram os anos setenta e
nada da fala refluir. Na tarde de 4 de fevereiro de 1974, um domingo, o
apresentador Silvio Santos fez referências à suposta ambiguidade sexual da
população masculina pelotense. Justamente naquele dia – ou talvez por isso –
uma comitiva de vereadores de Pelotas visitava o programa. Soava como injusta
provocação. Faltava só o crachá, como publicou o jornal A Platéia, de Santana
do Livramento, em um gracejo que passaria despercebido não fosse a ira de
alguns vereadores liderados pelo peemedebista Raimundo Vieira da Cunha. Em
veemente protesto em plenário, o edil repudiou “este jornal de 50 exemplares”:
“Estão nos chamando de veados!” Também se fez referência a um projeto
apresentado na Câmara de Rio Grande e que propunha o uso de um crachá com a
letra V a ser usado por todos os vereadores gaúchos. Em Pelotas teria havido
eufórico apoio à medida...
No mesmo período o mundo
gay pelotense dava nome a alguns dos seus membros através de uma escrachada
imprensa cor de rosa e circulação restrita. Nos anos sessenta surgiram, por
exemplo, o Ponto Clube, Maricolândia e Clube dos Inocentes, informativos em
papel ofício e cuja tiragem raramente ultrapassada os 50 exemplares rodados em
mimeógrafo e que eram remetidos a travestis que moravam na França, Itália e
Inglaterra. “Muita gente acha graça de nós, mas nós também achamos graça de
muita gente”. Com esse bordão na capa o Ponto Clube, “semanário de divulgação
das libélulas pelotenses”, noticiava, opinava, denunciava e fofocava. Uma
discoteca que abrira em Milão, um filme recém lançado com atores gays, a
escolha da Miss Boneca do ano na cidade, e também muita fofoca: “Sara Jane já
retornou de sua circulada pela Europa, onde curtiu horrores”. “Com um sorriso
de orelha a orelha, Michelle Morineau está aguardando impaciente a chegada do
seu príncipe de Bagé neste feriadão. Grandes badalos e quebra-louça à vista.”
O Ponto Clube
desapareceria ainda nos anos setenta para ressurgir nos oitenta, agora sob a
responsabilidade de Andrea Messalina, Leide Messalina, uma das locomotivas da
sociedade gay pelotense. As libélulas esvoaçavam então sob a luz mortiça do
Fruto Proibido e do Clube 77, onde tais jornais eram distribuídos
gratuitamente. Rebatizado de Ponto Gay Clube, o informativo dava asas à
imaginação, como se vê aqui neste texto assinado por “Luis Augusto”:
“Sob o Signo da Ilusão (fantasia sexual”
“Tudo começou lá em casa, após um uísque. Os
convidados todos já tinham ido embora. Restávamos Cláudio e eu na sala.
Conversávamos sobre sexo. De repente senti sua mão pousar nas minhas coxas. Era
sempre assim. Cláudio tinha essa mania de falar comigo me tocando. Aquilo me
vencia, mas jamais poderia dizer-lhe. Não suportei. Toquei as suas, desta feita
já excitado. O moreno de coxas grossas penetrava na minha mente, aumentando ainda
mais a minha ansiedade. Naquele ida eu seria seu, custasse o que custasse – e
bolas para a sociedade. Cheguei ao monte divino. Senti o tamanho e pensei no
estrago que iria fazer em mim. Não importava. Eu havia chegado a um limite. Não
dava mais. Era apaixonado por ele. Era meu sonho pegar aquele roliço e depois
me oferecer. Ele, um pouco espantado, deixava tudo. Já estava também bastante
excitado com minhas suaves massagens. Então chegou a hora. Após todo o ritual
de nudez, encostei meu ânus no seu pênis e comecei a penetrá-lo em mim. Gemendo
e gritando, sentava em cima – a princípio vagarosamente e depois com violência
– um paraíso de gozo jamais imaginado. Quando dei por mim, porém, percebi o
quanto havia sonhado. O Prestobarba estava todo enfiado em meu ânus e o Cláudio
não era mais que um pôster da revista Rose”.
Em outubro de 1976 um
grupo de jornalistas resolveu encarar de frente a fama da cidade. Ayrton
Centeno, Luiz Ricardo Lanzetta e Róbson Barenho colocaram nas bancas o
semanário Triz, “o nanico de Pelotas”. Bem redigido, equilibrado em sua linha
editorial e com boa apresentação gráfica, trazia a seguinte manchete de capa:
“Frescura?” E, como título interno: “São 250 mil habitantes e uma fama
nacional”. Em cinco páginas, com muitos depoimentos, isentando-se de emitir
juízos ou conceitos e sem resvalar para o folclórico fácil, esmiuçava o tema,
sem esquecer de traçar paralelos. “No extremo da rodovia, a nossa irmãzinha:
Campinas”. A rodovia, no caso, era a famosa Transviadônica.
Triz durou um único
número.
GAIOLA DAS LOUCAS – “Sabe como o pelotense tira a
camisinha? Dá um passo pra frente”. Paulo não é pelotense, é bageense, mas mora
na cidade faz mais de dez anos. Bageense tem fama de machão, exatamente o
contrário de quem nasce em Pelotas. Dois pesos e uma só medida. Ele explica,
brincalhão: “Acho que é melhor ser pelotense do que bageeense. O bageense tem
sempre que estar fazendo pose de machão, já o pelotense, se não for bicha, já
está no lucro.”
Já é mais de meia-noite,
estamos em um bar da Avenida Bento Gonçalves. Como é sexta-feira, não chove ou
faz frio, a madrugada promete: “Vamos lá?”
Seguimos de carro.
Primeira parada: Rua Santos Dumont, esquina com a Doutor Cassiano, onde dezenas
de travestis fazem ponto, à espera dos clientes. Paulo pára, sem desligar o
motor, e uma loira (o) de óculos de grau com ar de professora primária
aproxima-se e oferece seus serviços. “Faço tudo”, garante. Preço: 50 reais,
mais o motel. “Se for pra passar a noite é mais caro.”
Na quadra seguinte a oferta
é ainda maior – meia dúzia de travestis, loiras oxigenadas, morenas,
perfilam-se profissionalmente. A demora da escolha irrita um mulato (a):
“Escolhe rápido, querido, e leva!” Nova rodada de negociações. Nada feito.
Avante.
Um comentário:
Sou pelotense e achei interessante poder ler sobre Pelotas, desmitificar alguns preconceitos com a cidade. Parabéns ao editor!
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