Pesquisa e Texto: Vitor Minas
Um “plano diabólico” para a fuga em massa de
mais de mil detentos, “celerados da pior espécie” – assim os jornais resumiram
um dos fatos mais marcantes na história de Porto Alegre, o incêndio na Casa de
Correção, o “horrendo cadeião da Ponta do Gasômetro”, a “casa do inferno”, a
“casa dos horrores”, o “tétrico casarão”, ocorrido três meses depois do
quebra-quebra pela morte de Getúlio Vargas e mais um episódio no capítulo dos
grandes sinistros em prédios públicos registrados na década de cinquenta na
capital gaúcha.
Era o dia 28, último domingo do mês de
novembro de 1954, nem haviam transcorridas duas semanas da eleição de Ildo
Meneghetti como novo governador rio-grandense e dois meses da inauguração
oficial do Estádio Olímpico quando o complexo prisional às margens do Guaíba ardeu
em chamas durante quase 20 horas, expelindo rolos de fumaça que podiam ser
avistados dos quatro cantos da cidade. Cidade que temeu seriamente pela própria
sorte: caso tal tentativa de fuga tivesse dado certo as consequências seriam
imprevisíveis para os seus 500 mil habitantes.
Tudo começou às 18h30min, logo após o
encerramento do horário das visitas na rebatizada “Penitenciária Industrial”,
já então considerada uma das piores do Brasil, uma “masmorra medieval” com capacidade
para 300 presos, porém superlotada por mais de mil.
O fogo irrompeu na cela 72, no segundo
andar, na parte dos fundos da construção, e se propagou com uma rapidez
incrível, atingindo também a padaria e a tipografia – até porque tudo havia
sido planejado por um grupo de presidiários, os quais praticamente controlavam
o funcionamento interno da instituição, tal como hoje dividida em facções
criminosas. Desde o mês de agosto daquele ano nada menos do que três princípios
de incêndios e de motins já haviam ocorrido ali e a deflagração e outro parecia
simples questão de tempo. No dia anterior os agentes penitenciários haviam
encontrado no forro de uma das celas um colchão, um monte de palhas e oito
litros de gasolina. O clima entre os detentos era, mais do que nunca, de extraordinária
tensão – os nervos estavam à flor da pele.
No entardecer daquele domingo, encerrado o
horário de visitas, depois da conferência, um grupo recusou-se a voltar às
celas – prenunciando o que viria a seguir, eles só concordaram com isto sob a promessa
dos agentes de que estas permaneceriam abertas. Com o início repentino das
chamas outro agrupamento passou a percorrer as demais celas: armados de facas,
facões, adagas e porretes, obrigaram os outros detentos a também incendiar tudo.
Em seguida, em “estrondo”, todos começaram a
correr pelos corredores em direção à parte térrea e ao portão, forçando a saída.
Segundo a direção, havia 1.093 apenados no local, contra não mais do que 40
brigadianos e agentes penitenciários para contê-los. Os bombeiros chegaram em poucos
minutos, vindos da estação central, na Praça Rui Barbosa, enquanto homens da
brigada e um grupo de socorro da Guarda Municipal (ex-polícia de choque),
comandados pelo delegado José Henrique Mariante, detinham os revoltosos a
golpes de cassetete e bombas de gás lacrimogêneo, a muito custo impedindo que
chegassem à rouparia: se isso acontecesse eles teriam acesso a roupas civis e
poderiam se misturar até mesmo às autoridades e fugir às ruas.
Estabeleceu-se no pátio um “cinturão” de
segurança, com duas linhas de praças da Brigada armados com fuzis-metralhadoras
e soldados com baionetas caladas, que “calçavam” e imobilizavam os presos
contra as paredes. Nesse trabalho destacou-se o tenente Cantalício Camargo,
comandante do destacamento local. Com poucos recursos, e dando apenas três
rajadas de metralhadora para o alto, ele e seus homens enfrentaram a maré humana
de mais de 500 presos, conseguindo fazer – oficialmente sem vítimas fatais –
que recuassem.
A raivosa determinação de destruir de vez o
velho cadeião, queimando-o inteiramente, e a certeza de que o plano havia sido
elaborado com a participação de gente de fora das grades, fora, evidenciadas
pelo fato de que, no mesmo instante em que as chamas se propagavam às margens
do Guaíba, os bombeiros haviam se deslocado para combater outra ocorrência em
um matagal do morro de Teresópolis, adiante do final da linha dos bondes. Segundo
os repórteres, de lá divisava-se perfeitamente o interior do presídio, o que
levantava a suspeita de que a pessoa que ateou fogo no terreno pudesse ser
comandada à distância pelos detentos, quem sabe através de um jogo de espelhos.
Do mesmo modo estes poderiam, das janelas da Casa, avistar a chegada dos
caminhões. Outro fato sintomático foi a depredação antecipada da bomba de água
do Cadeião.
PÂNICO NA CIDADE – A possibilidade de que cerca de mil homens conseguissem
fugir e se espalhassem pelas ruas da cidade, tomando a população de refém, a
visão dos rolos de fumaça, o cair da noite, bem como a péssima fama da
instituição prisional, a promiscuidade, o histórico de fugas e os fatos bárbaros
que lá ocorriam geraram um evidente clima de medo entre os moradores da capital,
os quais, naquele entardecer de domingo, encerravam o seu pacato e modorrento final
de semana.
Falava-se inicialmente em muitos mortos e
em sangrentas cenas de ajuste de contas entre os próprios presos, com inúmeros
esfaqueamentos e até degolas. Um preso disse aos repórteres tem visto uma
cabeça jogada dentro de um vaso sanitário. Todavia, pelas versões oficiais, não
só nenhum sentenciado teria conseguido se evadir como ninguém, fosse apenado,
policial ou funcionário, morreu durante ou depois do episódio. Aos poucos, em
contrapartida, surgiam relatos de alguns funcionários que enfrentaram o perigo
das chamas e da violência para retirar detentos que ficaram presos em suas
celas e outros, doentes (a maioria com tuberculose) hospedados na enfermaria e
mesmo os inválidos ou com dificuldades de locomoção.
Na edição de terça-feira, 30, jornal Folha
da Tarde, na matéria “A Trama Sinistra dos Presidiários”, relatou o clima
depois do incêndio, quando a situação já havia sido dominada, algo que revela o
inferno humano que caracterizava o local: “Em
todas as fisionomias dos presos notava-se intensa satisfação. Riam e
pilheriavam já que, para eles, qualquer situação será melhor do que a da Casa
de Correção. Um presidiário adiantou-nos que há muito vinha entrando gasolina
no presídio, em pequenas quantidades, e que em todas as celas havia um foco
preparado ao qual foi ateado fogo quando deram alarme na primeira, a 72”. Já
o Correio do Povo lembrou que “foi um sinistro dos mais terríveis de que se tem
notícia” e que se o plano desse certo “Porto Alegre estaria até agora em
pânico, com suas ruas invadidas por homens para quem os conceitos de vida e de
respeito ao próximo pouco ou nada significam.”
TRANSFERENCIA PARA MARIANTE – Em grandes operações de segurança os detentos foram
sendo realocados em diferentes locais – quartéis da brigada, delegacias de
polícia, no Instituto Psiquiátrico Forense (manicômio judiciário) e,
principalmente, na Colônia Penal Daltro Filho, na localidade de Mariante, município
de Venâncio Aires, para onde cerca de 300 deles foram conduzidos em barcaças do
DAER – a viagem pelo Jacuí demorava cerca de quatro horas, com os revoltosos vigiados
por soldados armados de metralhadoras. O policiamento na colônia agrícola já havia
sido fortemente reforçado por uma companhia do Primeiro Batalhão de Caçadores.
Na Casa de Detenção permaneceram 550 homens,
abrigados em barracas, em pavilhões não totalmente queimados ou recolhidos aos
fétidos e úmidos porões, o “buraco”, enquanto os mais colaborativos voltavam às
suas funções habituais. Para a Oitava Delegacia de Polícia, em Petrópolis, seguiram
os elementos mais perigosos, entre os quais aqueles apontados como os líderes
da rebelião. O chefe do Departamento de Institutos Penais do Estado, Neu
Reinert, ordenou o isolamento total do presídio, proibindo qualquer tipo de
visitas. O desespero maior, no entanto, provinha dos familiares dos presos,
concentrados em frente e que imploravam por notícias.
Em depoimento oficial um preso chamado Vavá
– ou Gaspar Ávila da Silva, líder de quadrilha - afirmou ter sido ele o
principal líder do movimento, junto com Washington Aires, o Paulistinha, e
Nelson Bassani, os três agora recolhidos aos xadrezes da Oitava DP. As
declarações de Vavá surpreenderam as autoridades – até mesmo ao secretário do
Interior e Justiça, Theobaldo Neumann, e o diretor do presídio, Aires Rodrigues
da Cunha - já que era um preso considerado de bom comportamento. Outro detento chamado
Veríssimo Caduri Leal também assumiu a liderança.
ESCOLA DOS VÍCIOS – Em maio de 1971, quando o antigo Cadeião já tinha vindo
abaixo, o repórter Isaías Valiatti, durante anos setorista policial da Caldas
Júnior e nome reconhecido da imprensa gaúcha, escreveu um interessante artigo
intitulado “Casa de Perversão”:
“Felizmente nem sequer o portão da medonha masmorra que tinha o nome de
Casa de Correção ficou de pé para lembrar um passado indescritível. Vamos e
venhamos, para que conservar a memória de coisas horríveis? O mundo talvez não
se torne ideal com a supressão de imagens nefandas, mas pelo menos a nova
geração não terá de perguntar: “O que é aquilo ali?” E a resposta, para ser
correta, seria longa, chocante e incompreensível. Não tenho engenho e arte para
descrever o que vi e ouvi na medieval cadeia ao longo de tristes anos de
reportagem policial para o Correio do Povo e, em certa época, para a Folha da
Tarde. Espetáculos que superavam a imaginação de Hitchcock e cenas que nem
Dante conseguiu traçar em seu Inferno repetiam-se de tempos em tempos, entre um
motim e um incêndio provocados pelos próprios detentos. Paradoxalmente, a Casa
de Correção era, em verdade, a escola dos vícios e das anomalias que só uma
Casa de Perversão seria capaz de “ensinar” e praticar.
“Por
mais de uma vez, através das colunas deste jornal, chamei, juntamente com
outras vozes que terminaram ecoando, contra o claustro imundo e revoltante que
era a Casa de Correção. Inadequada sob todos os aspectos, contrariando os mais
elementares princípios consagrados pela moderna penalogia, e sempre superlotada
– chegou a ter quase 1.500 presos, quando sua capacidade real era para 300 –
foi preciso um grande incêndio com um motim sem precedentes, que me coube
documentar à época, para chegar-se à conclusão acaciana de que a velha cadeia
deveria ser demolida para começar da estaca zero.
“A
penitenciária estadual, localizada no Partenon, pode ter falhas gritantes ou
deficiências que devem ser eliminadas, mas jamais chegará a ser o que foi a
Casa de Correção. Há problemas de estrutura de funcionamento, de vigilância e
de métodos de recuperação que estão sendo encarados em seu devido tempo, mas,
creio eu, jamais se encontrará naquele presídio as cenas e as ocorrências tão
comuns e freqüentes na famigerada Casa de Correção.
“Vibrei quando, em 1955, o então governador do Estado presidiu a
cerimônia que assinalou a demolição simbólica do vergonhoso presídio. Era o
primeiro passo decisivo para riscá-lo definitivamente do mapa da cidade. Era o
princípio do fim das celas permanentemente inundadas, pois se localizavam
abaixo do nível do Guaíba. Os chamados “republicano” e “democrata”, que num
período não muito recuado da nossa história política serviram para castigar os
“rebeldes”, iriam desaparecer, juntamente com as amoralidades, os assassinatos
com requintes de barbarismo, as negociatas entre presos e funcionários, o
tráfico de tóxicos e de álcool, enfim, as bestialidades entre seres que cada
vez mais se degradavam num processo crescente de sordidez humana, típico do
submundo que era a Casa de Correção.
“A
despeito de tudo isso, surgiram opiniões em favor da manutenção de algo que
lembrasse o cárcere e as muralhas que o cercavam. Serviria – argumentavam –
como motivação histórica ou turística.
“Mas
eu não estava só. O venerando e bondoso padre Pio, por longos e tenebrosos anos
o capelão do extinto presídio, também admitia uma única saída: a destruição
total, o arrasamento da Casa de Correção. As razões, como vemos, dispensam
maiores comentários.
“Conservar a imagem da Casa de Correção – respeitadas as opiniões em
contrário – seria o mesmo que guardar as imagens de atrocidades que fazem a
humanidade recuar no tempo e no espaço. Seria a negação, a antítese do próprio
homem.”
Na realidade o problema prisional gaúcho era
crônico e vinha desde o século XIX, e a Casa de Correção tão somente simbolizava
os horrores e as iniquidades de tal sistema.
Quando a primeira parte da sua construção
foi concluída, em 1855, era chamada de Cadeia Civil e abrigou inicialmente
cerca de 200 presos. Construída pelos braços de escravos, suas paredes, formadas
pela junção de grandes pedras, chegavam a ter mais de um metro de espessura. A localização à beira do Guaíba se explicava
pelo fácil acesso à água, pela questão da higiene – os dejetos seriam jogados
no rio – pelo solo rochoso para assentar firmemente as suas fundações e também
pelas características geográficas do local, uma “quina” da cidade e que então
passou a ser chamada de Ponta da Cadeia. Em 1897, nos primórdios da República,
segundo os historiadores, ganhou o nome oficial de Casa de Correção. A partir
daí, de ano a ano, a sua população carcerária só foi aumentando, incluindo
presos políticos dos vários movimentos de revolta que caracterizaram o Rio
Grande.
A Casa de Correção teve sua demolição
concluída oficialmente no dia 11 de maio de 1967, uma quinta-feira. Uma equipe
de funcionários da Prefeitura (Célio Marques Fernandes era o prefeito de Porto
Alegre), sob a coordenação do engenheiro João Antonio Dib, dava fim a uma era
de horrores que no entanto se repetiria com o não menos infame Presídio
Estadual da Chácara das Bananeiras (bairro Partenon), inaugurado em 1963 e bem mais
distante dos olhos da imprensa.
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