Mino Carta e a histórica final Inter e Corinthians: se fosse
marciano não estaria entendendo nada
Matéria da revista Veja, já sem o jornalista Mino Carta. |
Em 12 de dezembro de 1976, quando o Internacional conquistou
o bicampeonato brasileiro e, pela segunda vez, o respeito e a admiração de todo
o Brasil ao vencer o Corinthians por 2 a 0 no Beira-Rio, o jornalista Mino
Carta – então um dos mais admirados homens de imprensa do País, fundador do
Jornal da Tarde, da revista Quatro Rodas, ex-editor da Veja e já então comandando
a recém fundada Istoé – escreveu para a Folha de São Paulo uma crônica daquela
final que ele julgava “histórica”. Mino Carta pouco entendia de futebol e não
costumava se aventurar nesse campo. Mas, depois de assistir à partida entre
gaúchos e paulistas, ele garantiu “Se
fosse marciano, não estaria entendendo nada” – este o título do seu
trabalho, que merece ser transcrito tantos anos depois. O texto é quase
literário, faz referências veladas à situação política da época e compara o
futebol do Inter com o moderno futebol europeu.
Assim o jornalista descreveu o que viu aquela tarde no
Gigante da Beira-Rio: “O calor é tropical
mas o panorama que cerca o Beira-Rio, apinhado de elevações bem penteadas,
poderia ser europeu. Falta ao cenário deste jogo um toque luxuriante, uma
reminiscência, ao menos, de mato desvairado, como talvez conviesse ao supremo
conflito das esperanças nacionais. Alguém, leitor de bons livros e frequentador
do raciocínio límpido, me dizia ainda ontem que o corintianismo, esse singular
e forte sentimento que tomou conta da nação, é a forma mais eficiente de
solidariedade hoje no Brasil. Diga-se que se trata de alta autoridade da
política situacionista. Pois a oportunidade de pôr à prova essa solidariedade,
o momento em que ela é confrontada, talvez merecesse um palco tropical. Em
compensação, há muito de surrealismo no clima do estádio e nas bombas e nas
bandeiras das torcidas, frenéticas quando a esperança entra em campo. Um
marciano ficaria pasmo.”
E prossegue o jornalista:
“Mas a torcida colorada não é a do Fluminense, nem Porto Alegre é como o Rio. O
Beira-Rio é diferente do Maracanã. O estádio pulsa com os gritos dos homens que
são “machos” – e pronuncie a palavra com o sotaque dos pampas. O Corinthians
hoje exibe-se numa ribalta muito pouco corintiana.
Mino Carta, hoje. |
“E o Corinthians começa
tímido, o Inter agride a bola com fúria vermelha. Os colorados estão em todas
as divididas. Aos 10 minutos o Corinthians praticamente ainda não saiu do seu
campo. Parece um encontro entre o mais recente futebol europeu e o mais
tradicional sul-americano. Falcão domina o centro do campo e sua passada lembra
Beckenbauer. A defesa corintiana está confusa, a bola filtra nela como um peixe
numa rede lacerada. Falcão está em todos os lugares, finta Vaguinho no bico da
área, enfia a bola entre as pernas de Romeu e sai com os cabelos ao vento.
Em seguida Mino Carta descreve o primeiro gol do Inter:
“E quase aos 29 minutos
vem, inexoravelmente, o gol do Inter. Nasce dos pés de Valdomiro que já foram
infelizes no mundial de 74. Mas o seu chute é sempre potente. E uma falta de Zé
Maria no onipresente Falcão, que amaciou a sua amada no peito, na boca da área,
Valdomiro bate, o tiro ricocheteia na barreira, sobe a bola maligna para a
cabeça de Dario e é gol. Onde estão os orixás? Estão chorando, suponho. Mas os
deuses da fúria gaúcha sorriem. Voltam a sorrir oito
minutos depois, quando o Corinthians perde um gol que parecia decretado. A bola
passa por vários pés corintianos, mas ninguém chuta enquanto Manga já está no
chão, batido. Os deuses gaúchos estão segurando estas chuteiras lerdas. A
torcida corintiana de vez em quando ergue-se e agita as suas bandeiras. Mas
esses instantes são cada vez mais raros, nesse primeiro tempo. Nele ficaram
evidentes, para mim, duas coisas. Primeira, que Russo é um gladiador tropical,
um homem cheio de fé e uma musculatura disforme, talvez porque feita de arroz e
feijão. Segunda, porque Falcão não é Rivelino, Falcão é “macho”.
Agora Mino carta descreve o segundo tempo da partida: “Mas no segundo tempo a torcida corintiana e
seu time sabem que agora é tudo ou nada. Será que os orixás sabem? Os deuses
dos pampas sabem de certo quando desviam de leve a falta cobrada por Romeu e
fazem com que a bola se choque com o travessão para que a desdita corintiana
seja mais gorda. Em campo há muitas faltas, nas arquibancadas muitos gritos e
gestos de raiva e tensão. E numa dessas faltas, na entrada da área corintiana,
aos 12 minutos Valdomiro cobra por sobre a barreira e os deuses colorados
reaparecem e em tempo abaixam, sempre de leve, a trajetória do chute, e fazem
com que bata na parte inferior do travessão, e quique depois dentro do gol,
poucos centímetros além da chamada linha fatal. Centímetros? Milímetros, para a
desdita alvinegra continuar engordando. Os corintianos protestam, cercam o
juiz, e um bolo de gente forma-se numa das extremidades da divisória do campo,
e lá se discute, aos berros, aos empurrões, se a bola entrou ou não. Entrou,
entrou, a sentença é irremediável, e o bolo se desfaz e o jogo recomeça com
dois a zero no marcador.
“Ah, se eu fosse marciano
me perguntaria se tanta energia não poderia ser canalizada para outras
empreitadas, mais proveitosas do que esta, capaz de criar raivas e alegrias tão
grandes, no peito de cada um e de todos, e tão inúteis. E voa uma garrafa em
campo e fogos são dirigidos contra o gramado que já não brilha ao sol. No ocaso
as garrafas chovem e o jogo para de novo, o campo é invadido por dirigentes,
repórteres, alguns assistentes dispostos a pular o alambrado, policiais e seus
cachorros. Ah, se eu fosse um marciano não estaria entendendo coisa alguma.
“O vento não agita mais
as bandeiras corintianas, talvez elas estejam molhadas pelo pranto dos que
vieram até o Beira-Rio e de todos aqueles milhões que neste momento estão
diante do vídeo ou com os ouvidos colados em um rádio de pilha, alimentando a
mesma fé rigorosamente desperdiçada. Eles talvez estejam anotando um nome, o do
bandeirinha que confirmou o segundo gol colorado. Que os fados se compadeçam
dele.
“O jogo recomeça mas a
sorte está selada. A pressão corintiana serve apenas para mostrar a força dos
deuses gaúchos e as habilidades de um velho profissional da bola, o goleiro
Manga. O jogo acabou, a solidariedade desfeita se recompõe em torno daqueles
que ainda saberão esperar por uma vitória. Não tenho dúvidas sobre o caráter
histórico deste jogo. É mais uma derrota de uma antiga e nebulosa esperança.
Mas valeria a pena ganhar.”
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