quarta-feira, agosto 01, 2018



Mino Carta e a histórica final Inter e Corinthians: se fosse marciano não estaria entendendo nada
Matéria da revista Veja, já sem o jornalista Mino Carta.



Em 12 de dezembro de 1976, quando o Internacional conquistou o bicampeonato brasileiro e, pela segunda vez, o respeito e a admiração de todo o Brasil ao vencer o Corinthians por 2 a 0 no Beira-Rio, o jornalista Mino Carta – então um dos mais admirados homens de imprensa do País, fundador do Jornal da Tarde, da revista Quatro Rodas, ex-editor da Veja e já então comandando a recém fundada Istoé – escreveu para a Folha de São Paulo uma crônica daquela final que ele julgava “histórica”. Mino Carta pouco entendia de futebol e não costumava se aventurar nesse campo. Mas, depois de assistir à partida entre gaúchos e paulistas, ele garantiu “Se fosse marciano, não estaria entendendo nada” – este o título do seu trabalho, que merece ser transcrito tantos anos depois. O texto é quase literário, faz referências veladas à situação política da época e compara o futebol do Inter com o moderno futebol europeu.
Assim o jornalista descreveu o que viu aquela tarde no Gigante da Beira-Rio: “O calor é tropical mas o panorama que cerca o Beira-Rio, apinhado de elevações bem penteadas, poderia ser europeu. Falta ao cenário deste jogo um toque luxuriante, uma reminiscência, ao menos, de mato desvairado, como talvez conviesse ao supremo conflito das esperanças nacionais. Alguém, leitor de bons livros e frequentador do raciocínio límpido, me dizia ainda ontem que o corintianismo, esse singular e forte sentimento que tomou conta da nação, é a forma mais eficiente de solidariedade hoje no Brasil. Diga-se que se trata de alta autoridade da política situacionista. Pois a oportunidade de pôr à prova essa solidariedade, o momento em que ela é confrontada, talvez merecesse um palco tropical. Em compensação, há muito de surrealismo no clima do estádio e nas bombas e nas bandeiras das torcidas, frenéticas quando a esperança entra em campo. Um marciano ficaria pasmo.”
E prossegue o jornalista: “Mas a torcida colorada não é a do Fluminense, nem Porto Alegre é como o Rio. O Beira-Rio é diferente do Maracanã. O estádio pulsa com os gritos dos homens que são “machos” – e pronuncie a palavra com o sotaque dos pampas. O Corinthians hoje exibe-se numa ribalta muito pouco corintiana.

Mino Carta, hoje.

“E o Corinthians começa tímido, o Inter agride a bola com fúria vermelha. Os colorados estão em todas as divididas. Aos 10 minutos o Corinthians praticamente ainda não saiu do seu campo. Parece um encontro entre o mais recente futebol europeu e o mais tradicional sul-americano. Falcão domina o centro do campo e sua passada lembra Beckenbauer. A defesa corintiana está confusa, a bola filtra nela como um peixe numa rede lacerada. Falcão está em todos os lugares, finta Vaguinho no bico da área, enfia a bola entre as pernas de Romeu e sai com os cabelos ao vento.
Em seguida Mino Carta descreve o primeiro gol do Inter:
“E quase aos 29 minutos vem, inexoravelmente, o gol do Inter. Nasce dos pés de Valdomiro que já foram infelizes no mundial de 74. Mas o seu chute é sempre potente. E uma falta de Zé Maria no onipresente Falcão, que amaciou a sua amada no peito, na boca da área, Valdomiro bate, o tiro ricocheteia na barreira, sobe a bola maligna para a cabeça de Dario e é gol. Onde estão os orixás? Estão chorando, suponho. Mas os deuses da fúria gaúcha sorriem. Voltam a sorrir oito minutos depois, quando o Corinthians perde um gol que parecia decretado. A bola passa por vários pés corintianos, mas ninguém chuta enquanto Manga já está no chão, batido. Os deuses gaúchos estão segurando estas chuteiras lerdas. A torcida corintiana de vez em quando ergue-se e agita as suas bandeiras. Mas esses instantes são cada vez mais raros, nesse primeiro tempo. Nele ficaram evidentes, para mim, duas coisas. Primeira, que Russo é um gladiador tropical, um homem cheio de fé e uma musculatura disforme, talvez porque feita de arroz e feijão. Segunda, porque Falcão não é Rivelino, Falcão é “macho”.
Agora Mino carta descreve o segundo tempo da partida: “Mas no segundo tempo a torcida corintiana e seu time sabem que agora é tudo ou nada. Será que os orixás sabem? Os deuses dos pampas sabem de certo quando desviam de leve a falta cobrada por Romeu e fazem com que a bola se choque com o travessão para que a desdita corintiana seja mais gorda. Em campo há muitas faltas, nas arquibancadas muitos gritos e gestos de raiva e tensão. E numa dessas faltas, na entrada da área corintiana, aos 12 minutos Valdomiro cobra por sobre a barreira e os deuses colorados reaparecem e em tempo abaixam, sempre de leve, a trajetória do chute, e fazem com que bata na parte inferior do travessão, e quique depois dentro do gol, poucos centímetros além da chamada linha fatal. Centímetros? Milímetros, para a desdita alvinegra continuar engordando. Os corintianos protestam, cercam o juiz, e um bolo de gente forma-se numa das extremidades da divisória do campo, e lá se discute, aos berros, aos empurrões, se a bola entrou ou não. Entrou, entrou, a sentença é irremediável, e o bolo se desfaz e o jogo recomeça com dois a zero no marcador.
“Ah, se eu fosse marciano me perguntaria se tanta energia não poderia ser canalizada para outras empreitadas, mais proveitosas do que esta, capaz de criar raivas e alegrias tão grandes, no peito de cada um e de todos, e tão inúteis. E voa uma garrafa em campo e fogos são dirigidos contra o gramado que já não brilha ao sol. No ocaso as garrafas chovem e o jogo para de novo, o campo é invadido por dirigentes, repórteres, alguns assistentes dispostos a pular o alambrado, policiais e seus cachorros. Ah, se eu fosse um marciano não estaria entendendo coisa alguma.
“O vento não agita mais as bandeiras corintianas, talvez elas estejam molhadas pelo pranto dos que vieram até o Beira-Rio e de todos aqueles milhões que neste momento estão diante do vídeo ou com os ouvidos colados em um rádio de pilha, alimentando a mesma fé rigorosamente desperdiçada. Eles talvez estejam anotando um nome, o do bandeirinha que confirmou o segundo gol colorado. Que os fados se compadeçam dele.
“O jogo recomeça mas a sorte está selada. A pressão corintiana serve apenas para mostrar a força dos deuses gaúchos e as habilidades de um velho profissional da bola, o goleiro Manga. O jogo acabou, a solidariedade desfeita se recompõe em torno daqueles que ainda saberão esperar por uma vitória. Não tenho dúvidas sobre o caráter histórico deste jogo. É mais uma derrota de uma antiga e nebulosa esperança. Mas valeria a pena ganhar.”

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