quinta-feira, junho 26, 2008

Incêndio das Lojas Renner: o Joelma gaúcho que poderia ter sido evitado


Chamas logo consumiriam o prédio. A irmã do ex-jogador Everaldo (à direita) preferiu saltar do alto.

Vitor Minas
* Texto inédito e exclusivo para o Conselheiro X.

Eram 13h45min de 27 de abril de 1976, uma terça-feira com “temperatura em elevação, ventos soprando de leste a norte, fracos”, quando alguns rolos de fumaça começaram a sair do interior das Lojas Renner. Três horas depois a sede de uma das mais tradicionais redes de magazines do Sul do País transformava-se em um esqueleto calcinado e fumegante.
Dezenas de vítimas e desaparecidos, quase oitenta feridos, desabamentos, explosões, pânico, histeria, caos urbano, linhas telefônicas congestionadas, desencontros, confusão, choros, acusações recíprocas e velhas cobranças – este o saldo da tragédia que parou Porto Alegre naquele outono dos anos setenta.
Cerca de 200 mil pessoas, entre moradores e trabalhadores do centro, curiosos vindos dos bairros mais distantes, mórbidos natos, desocupados, batedores de carteiras, bombeiros, policiais, médicos, enfermeiros, soldados do Exército, brigadianos a cavalo e dúzias de alvoroçados repórteres acompanharam ou participaram de um pesadelo que lembrava o ocorrido no edifício Joelma, em São Paulo, dois anos antes, quando, oficialmente, 188 pessoas perderam a vida em circunstâncias semelhantes.
Por um bom tempo o incêndio do Joelma - e o sucesso do filme-catástrofe “Inferno na Torre”, assistido por milhões de brasileiros - alimentou um justificado sentimento de insegurança e sinistrose nos habitantes dos grandes centros urbanos. A revelação a olhos vistos de que a mais rica cidade do País não tinha condições de fazer frente ao perigo das chamas e, pior, que isto representava a regra geral, rendeu dezenas de inflamadas matérias na imprensa, gerou verbosos discursos políticos, modificou algumas leis específicas, alterou e melhorou determinadas coisas no varejo sem, contudo, resultar em uma nova política na área de segurança contra o fogo nas principais cidades brasileiras.
Em meados de 1976 seria a vez de Porto Alegre ter o seu Joelma e de demonstrar mais uma vez o quanto a incúria, o descaso e, talvez, alguma dose de fatalidade, podem se combinar para repetir um enredo que só se modificou em detalhes e cifras de óbitos e feridos. Foi, disparado, a maior tragédia repentina que se abateu sobre a cidade e certamente, por sua alta voltagem emocional, a que mais marcou seus então 1 milhão de habitantes. Comparado a ela, o incêndio das Lojas Americanas, em dezembro de 1973, parecia café pequeno.
Nada, é óbvio, indicava que aquela banal terça-feira, nem quente e nem fria, com termômetros que oscilavam entre 20 e 24 graus, fosse se transformar em um filme de horror para seiscentas pessoas e desorganizar completamente a vida dos porto-alegrenses.
Os jornais que chegavam às bancas traziam manchetes pouco emocionantes, a maioria versando sobre a viagem que o presidente Ernesto Geisel fazia à Europa (Valery Giscard D’Estaing enchia o Brasil de elogios: segundo ele, desde o final da Segunda Guerra, emergíramos como “potência mundial”) , a situação de Angola e o auxílio cubano, as eleições em Portugal, a Argentina (onde ocorrera o golpe militar em 24 de março), o Oriente Médio (a Síria invadira o Líbano, em um banho de sangue) e os ecos dos jogos da dupla Grenal. Em Paris, onde foi recebido pelo embaixador Delfim Neto, Geisel – o condutor da “abertura política lenta, gradual e segura” - reafirmou publicamente a boa notícia que já havia dado aos gaúchos e ao governador Synval Guazzelli em setembro do ano anterior: o Terceiro Pólo Petroquímico seria mesmo instalado no Rio Grande do Sul – e com parcelas de recursos franceses. Na área das telecomunicações, um telefonema do ministro Quandt de Oliveira para o presidente brasileiro, no Palácio de Versalhes, inaugurava a Discagem Direta Internacional entre o Brasil e a Europa.
Na área esportiva, no estádio Olímpico, o Grêmio de Paulo Lumumba vencera o Atlético de Carazinho por 2 a 0, com gols de Zequinha e Iúra. Trinta mil pessoas assistiram ao jogo, no domingo. Já no estádio Centenário, o Internacional de Rubens Minelli havia derrotado o Caxias por 1 a 0, gol de Batista. Os dois jogos eram válidos pelo Campeonato Gaúcho, liderado pelo Inter, que seria bicampeão brasileiro brasileiro. E no dia seguinte, quarta-feira, no Maracanã, a seleção brasileira enfrentaria o Uruguai pela Copa Atlântico (acabou vencendo por 2 a 1, gols de Rivelino e Zico, com cenas de pugilato entre os jogadores). No plano doméstico, o vereador governista Paulo Santana (Arena) defendia o cercamento do Parque Farroupilha, palco de um crescente número de assalto e crimes de morte. Por sua vez, o prefeito Guilherme Sociais Vilela alertava para o inchaço de Porto Alegre e propunha uma série de obras e medidas para evitar que a cidade se tornasse inviável nos próximos vinte anos (conforme as mais recentes estatísticas, a região metropolitana somava 1.481.518 habitantes e 30% das famílias possuíam rendimentos de até 1,5 salário mínimo).
Nos cinemas estreavam “Zorro”, uma refilmagem com Alain Delon no papel principal, e “W. – A Marca do Terror” – a história de uma mulher que é vítima de vários acidentes estranhos, sempre precedidos pela aparição da letra W. A “Macaca Esquecida”, peça infanto-juvenil do jornalista gaúcho Caco Barcelos, contando os problemas de uma cidade grande, prosseguia suas apresentações no Teatro de Câmara.
Para os trabalhadores gaúchos e brasileiros, porém, a grande novidade a ser anunciada dizia respeito ao aumento do salário mínimo – o Primeiro de Maio cairia no próximo sábado e aguardava-se o pronunciamento do Ministro do Trabalho informando o reajuste. A programação das emissoras de tevê – canal 12, Gaúcha, Canal 10, Difusora, Canal 5, Piratini, e Canal 7, Educativa – podia ser consultada nas páginas dos seis diários que circulavam então na Capital: Correio do Povo, Folha da Manhã, Folha da Tarde (que completava 40 anos de circulação naquela Terça), Zero Hora, Diário de Notícias e Jornal do Comércio.
Sabia-se, assim, que às 14 horas, na tevê Difusora, teríamos o filme “Caminhos Incertos, enquanto a Gaúcha exibiria, no mesmo horário, “Os Monkees Estão Soltos”. Na Segunda-feira, 3, estrearia a nova novela das 10, Saramandaia, com Dina Sfat, Sonia Braga, Wilza Carla, Juca de Oliveira e Milton Moraes. Havia meses, logo depois do Jornal Nacional, os brasileiros acompanhavam as peripécias do taxista Carlão em “Pecado Capital”.
A partir das 14 horas daquela terça-feira, no entanto, todas as emissoras de rádio e televisão da cidade voltaram suas atenções para o incêndio das Lojas Renner, transmitindo a todo momento flashes do da esquina da rua Doutor Flores com a Otávio Rocha.
Ali erguia-se um edifício construído no início dos anos trinta, um grande magazine ofertando uma extensa linha de produtos que ia de roupas infantis a eletrodomésticos. No alto funcionava o Terrasse Renner, restaurante e casa de chá.
Justamente naquela terça, às 15 horas, o Terrasse apresentaria a nova coleção de inverno da indústria de roupas Renner, griffe tradicional de vestuário masculino e feminino cujo slogan – estampado em peças publicitárias na mídia local – centrava-se no chamativo mote “Basta uma vontade louca e viver e pronto”.
O fogo iniciou as 13h45min, no terceiro pavimento, em um pequeno depósito de tintas – elemento de facílima combustão – talvez causado por problemas no ar condicionado, algo que já ocorrera antes e não merecera maiores atenções, e foi devorando tudo pela frente. Calcula-se que, naquele momento, cerca de 600 pessoas estavam no interior do edifício, a maioria clientes da loja, além de casais e executivos que almoçavam no restaurante. Por sorte, metade dos 300 funcionários da casa trabalhavam em um sistema de “horário ronda”, muitos haviam largado às 13 horas para o almoço e só deveriam voltar às 15. Isso, aliado ao movimento comercial, ainda fraco no princípio da tarde, evitou um número maior de vítimas.
ARAPUCA
Neste momento, no primeiro andar (na verdade o terceiro pavimento) o funcionário Luis Carlos Bandeira atendia a clientes na seção de eletrodomésticos.
“De repente chegou um colega e falou que a loja estava incendiando, que era pra descer todo mundo. Eu e outros seis colegas não descemos, queríamos apagar o fogo, pois eu tinha a certeza de que o incêndio tinha começado ali mesmo, no depósito de tintas. Procurei extintores mas foi tarde. Havia muita fumaça e a gente percebeu que não adiantava mais nada. Então decidimos salvar clientes e colegas. Subimos três vezes até o terceiro andar, nas duas primeiras vezes foi fácil, mas no último já tinha muita fumaça e estava quente. Cada vez a gente trouxe para baixo três ou quatro pessoas. A gente precisava ajudar porque o pessoal estava meio perdido, tinha até gente subindo as escadas ao invés de descer”.
Na última tentativa encontrou, agarrada às cortinas, uma moça completamente histérica que parecia querer fugir pela parede. Luís precisou aplicar-lhe um tapa no rosto para que saísse do estado de choque e recobrasse a razão. Agarrando-a com os dois braços, ele pode afinal carregá-la sem resistência.
Outra que escapou do inferno, uma moça de 24 anos chamada Maria Helena, fazia compras no quarto pavimento da loja quando foi avisada do fogo. Barrada pela cortina de fumaça, não conseguiu descer e rumou instintivamente para o terraço.
“- Todo mundo foi pra cima e um homem me ajudou a subir. Eu disse a ele que estava me sentindo mal e que ia desmaiar. Ele falou: se tu desmaia, tu não sai daqui.”
No terraço, viu pessoas deitadas no chão, sem entender se era uma forma de se proteger da fumaça ou se haviam desmaiado. Em seguida, retirou o lenço que prendia seus cabelos e amarrou-o na boca.
“Esperei uns dez minutos e durante todo o tempo tropecei numa porção de gente que estava caída. Tinha uma senhora que queria se jogar e eu gritava para ela não pular que a escada vinha chegando”.
(Salva pelos bombeiros e medicada no Hospital de Pronto Socorro, Maria Helena seguiu para a casa de uma colega. Lá acalmou-se um pouco, tomou banho e jantou. Antes de tentar um difícil sono a base de tranquilizantes, disse a todos que não teria condições de passar por aquilo tudo novamente e que, se visse que morreria queimada, teria preferido saltar do alto. Mal sabia ela que, 50 horas depois, experimentaria o mesmo horror em novo endereço).
Em pânico, atropelando-se e pisoteando-se umas às outras, as pessoas corriam para o alto, erro que custaria muitas vidas e transformaria o trabalho dos bombeiros um penoso confronto contra uma implacável estrutura de cimento e ferro - o prédio era uma autêntica “arapuca” com apenas duas saídas no térreo. Mais tarde se saberia: havia, sim, saídas em cada andar, ligando o edifício ao prédio ao lado e uma outra, de emergência, no alto. É bem provável que todas estivessem trancadas àquela hora, e mesmo que não estivessem poucos funcionários conheciam tal recurso salvador: afinal, ninguém havia sido orientado sobre como proceder em caso de incêndio.
Isso tudo – janelas quadriculadas e vedadas por ferro, corredores estreitos, equipamentos antiquados e que não funcionavam e nenhum esquema previsto para situações de risco – explicariam o elevado número de mortos e feridos.
Posteriormente, o major Ricardo Kelleter, comandante do Centro de Operações da capital, informou: os extintores de incêndio do edifício seriam suficientes para controlar as chamas em seu início, se utilizados corretamente e, claro, se estivessem todos em perfeitas condições de uso. Segundo o major, um soldado da Brigada Militar encontrava-se no quarto andar no momento em que as chamas irromperam no setor de tintas e poderia – com dois ou três extintores – ter dominado a situação. Porém, por mais que procurasse, o PM não encontrou nenhum desses equipamentos. Ademais, na confusão que se seguiu, não havia ninguém que pudesse informar da localização do equipamento. Ele então tratou de salvar a própria pele, descendo as escadas e ganhando a rua.

“Veio o estouro desencadeado pelo medo, e na correria dos que procuravam escapar do inferno já prenunciado, pessoas caíram ao chão, feriram-se, tiveram suas roupas rasgadas. Eva Maria Braga Cançândino, atendida no Pronto Socorro com algumas escoriações, estava na sobreloja e declarou que não chegou a ver nem fumaça e nem fogo. De repente sentiu-se empurrada, recebeu pancadas de todos os lados e acabou desmaiando. Quando recobrou os sentidos estava no HPS”. (Correio do Povo, 28.04.1976)

Porém, para as três dezenas de pessoas que almoçavam no terraço, a percepção de que algo extraordinário estava acontecendo demoraria mais alguns minutos.
Eram 14h10min quando o garçon Kurt notou gritos e um inusitada movimentação nos andares abaixo. Ao descer para o pavimento inferior, viu rolos de fumaça obscurecendo a estreita escada de ligação entre os pavimentos. Imediatamente, ele voltou para o restaurante, onde o pânico já se instalara.
Assim como Kurt, Paulo, um confeiteiro de 59 anos, revestiu-se de sua coragem máxima e não se deixou levar pelo desespero. Paulo e Kurt ganhariam a condição de “homens fortes” da tragédia, acalmando os mais histéricos e orientando-os nos procedimentos de sobrevivência. De posse dos extintores – que, ao contrário da maioria, sabia utilizar corretamente – Kurt tentou de pronto combater as chamas. Ao constatar a inutilidade do ato, ordenou que todos molhassem as próprias roupas e colocassem panos umedecidos junto à boca e nariz para evitar o efeito tóxico da fumaça e atenuar o crescente calor. “Calma, vamos esperar o socorro dos bombeiros, que já estão chegando!”
Uma hora depois, já salvo e sem maiores ferimentos, ele contou aos repórteres: “Se eu não mantivesse a calma para orientar os funcionários que estavam nos últimos pavimentos, mais da metade teria se jogado para o chão. Todos estavam desesperados. Eu molhei as roupas do corpo e o avental, fazendo o mesmo com a roupa dos outros. Ensinei que deveriam manter um pano molhado próximo ao rosto”.
Sidnei Marques da Silva, 40 anos, cozinheira do restaurante, irmã de Everaldo, campeão mundial de futebol na Copa do México e ex-craque do Grêmio, não manteve essa calma indispensável e tornou-se a primeira vítima conhecida da tragédia que mal iniciava – desesperada, saltou no espaço com seu uniforme branco, caiu por quase trinta metros, bateu em uma proteção de marquise e desabou no chão da praça Otávio Rocha em meio à correria e aos gritos da multidão.
Eram então 14h10min. Se ficasse onde estava, protegendo-se com panos molhados, Sidnei, que estava grávida de três meses, certamente seria salva pelos bombeiros. Coincidentemente, ela morreu no mesmo dia em que seu irmão, sua cunhada e uma filha destes, de apenas três anos, perderam a vida em um acidente de carro: 27 de outubro de 1974, um ano e meio antes. Também por um desses desígnios do Destino que parecem acompanhar os grandes dramas outro irmão seu, o massagista Ariovaldo, chegava no local naquele exato momento.
Alguns minutos depois foi a vez de um funcionário da Renner, mais tarde identificado como Paulo Roberto Apolo, 19 anos, passador de roupas no quinto andar, voar para a morte. Os dois sequer haviam sido tocados pelo fogo.
Embaixo, a multidão hipnotizada tentava acalmá-los, gritando em coro: “Não pulem!, não pulem!”
Quem quase pulou foi Ilasir Barreto Gonçalves, de 21 anos, caixa do restaurante:
“Tudo aconteceu com uma rapidez incrível. Primeiro veio o cheiro da fumaça e os funcionários e os frequentadores fizeram alguns comentários, sem grandes preocupações. Os funcionários chegaram a lembrar o que aconteceu há alguns meses, quando um circuito no ar condicionado provocou um cheiro parecido, mas que desapareceu logo. Mas desta vez em dois minutos já tinha muita fumaça. Aí todo mundo começou a correr e a gritar. Uns querendo descer, outro querendo subir. O seu Jonas (ecônomo e arrendatário do Terrasse) tentava acalmar as pessoas. Eu gritava “socorro”, chamando pelo seu Jonas e pela dona Teresinha (esposa deste). Corri para a janela, olhei para baixo e pensei em me jogar. Mas fiquei com medo da altura e voltei. Procurei a porta mas a fumaça tava me sufocando cada vez mais. Aí eu voltei pra janela. Nesse momento eu vi uma escada grande, de ferro, que vinha subindo na minha direção. A escada não chegava nunca, parece que passou toda uma vida. Rezei muito, em voz bem alta, até que eu consegui pegar na ponta da escada. Nessa altura eu já estava quase desmaiando. Depois não lembro de mais nada. Acho que desmaiei. Não sei quem me tirou daquele inferno. Me levaram para um hospital e eu nem sei qual é. Quando me recuperei já estava em casa”.
(No dia seguinte Ilasir, moradora na Vila Esmeralda, em Viamão, na região metropolitana, voltou ao local para saber dos colegas e para recuperar a bolsa com dinheiro e documentos que havia jogado lá de cima. Recebeu-a um tanto chamuscada, mas com todos os pertences dentro).

Já o garçon Gentil da Silveira Porto, 37 anos, havia oito trabalhando no Terrasse (conhecia perfeitamente a escada e o desvio enganoso que esta sofre na sobreloja), escapou ileso por uma questão de segundos. Graças sobretudo à sua presença de espírito.
Contou ele: logo depois de ouvir gritos de “fogo” a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foram os conselhos que lera em um livro - em caso de incêndio, não pegar elevador ou subir para o terraço. Seu raciocínio providencial: Gentil desatou a correr pelas escadas, “sem ver nada pela frente”. Ao alcançar o terceiro andar deparou-se com uma cortina de fumaça que se espraiava pelos pavimentos abaixo sem contudo invadir a sobreloja, onde muita gente gritava e corria às tontas.
“Se tivesse demorado um pouquinho mais ou tentasse salvar alguém eu não conseguiria sobreviver”, explicou na saída.
Outra pessoa que conseguiu descer pela escada relatou na saída: “Passei por várias seções da loja e vi pelo menos os corpos de umas doze pessoas estendidos no chão. Não se mexiam, não diziam nada. Coisa horrível, meu Deus. No meio de tanta fumaça eu às vezes tropeçava nos corpos”.
Quem teve ao lado alguém que o contivesse nessa hora pode escapar do pior. Ilma Coutinho Costa, uma senhora que almoçava no Terrasse Renner em companhia do marido, Ari, deve a sua vida ao companheiro.
No dia anterior Ilma chegara de Jaguarão, para fazer exames médicos na capital. Depois de feitas as compras na loja, os dois decidiram almoçar ali mesmo. Confrontada com a fumaça e o calor, desesperada com o inferno que se originara nos andares abaixo, ela chegou a ensaiar o salto, colocando um pé na amurada e projetando meio corpo para fora – nesse instante foi segura por Ari.
Com muito esforço, agarrando-a pelo pescoço, ele evitou a queda da mulher durante uma meia hora que lhe pareceu interminável. Salvos pela escada, foram dos primeiros a descer. Ari, chorando, com sangramentos na cabeça e os cabelos chamuscados, contou aos repórteres: “Nós estávamos almoçando quando todos começaram a sentir cheiro de fumaça. Corremos para a escada de emergência mas não dava mais. Ela estava cheia de fumaça. Era melhor ficar pois se tentássemos descer certamente morreríamos sufocados. Mas a fumaça foi aumentando e o calor também. Aí começou o desespero. Era correria para todos os lados. Não sei como eu caí e quebrei minha cabeça. Mas isso não foi nada. O pior foi a crise de nervos que deu na minha mulher, ela não agüentava mais, tossia muito e me convidou para se atirar do prédio. Como eu disse para ela que era melhor esperar que a qualquer hora a escada dos bombeiros chegaria até nós, ela correu para a janela e só deu tempo de eu agarrar metade do seu corpo. Sabe lá o que é ficar quase meia hora agarrando ela com a metade do corpo balançando para fora? Eu estava a ponto de largá-la. Não tinha mais forças para agarrar. Minhas mãos estavam doentes e eu senti que aos poucos ela estava escorregando. Até que a escada apareceu e nós dois descemos. Se os bombeiros levassem mais um minuto para colocar a escada perto de nós, eu ia largá-la, não aguentava mais”,.
A chegada dos bombeiros, das ambulâncias e de um batalhão de fotógrafos e repórteres logo seria seguida por soldados do Exército e por helicópteros da Base Aérea de Canoas que sobrevoavam o local – toda a região central e bairros mais próximos estavam paralisados pela tragédia.
Temendo assaltos, e também porque não havia outra coisa a fazer naquelas circunstâncias, os comerciantes do centro fecharam as portas e uma turba de comerciários, escolares, office-boys, curiosos de todos os tipos e procedências, passou a disputar o melhor ângulo de visão.
Dos prédios mais próximos pessoas jogavam sacos de leite para quem estava no terraço das Lojas Renner. Em breve tais locais estratégicos seriam evacuados e ocupados pelos soldados do Corpo de Bombeiros, que ali instalaram mangueiras. Atendendo ao pedido das autoridades médicas, as emissoras de rádio transmitiam urgentes apelos para que a população acorresse aos hospitais a fim de doar sangue.
A sessão plenária da Assembléia Legislativa que acontecia na Palácio Farroupilha, na Praça da Matriz, a 500 metros dali, foi suspensa por “falta de condições psicológicas para o prosseguimento dos trabalhos”, isso depois que o deputado Waldir Walter (MDB) ocupou os microfones para relatar o que tinha visto minutos antes: “O caso é tão grave que o Rio Grande do Sul compreenderá. Há dezenas de pessoas lá em cima do prédio, os helicópteros não podem descer. E, na minha opinião, queira Deus que não haja vítimas, mas é da maior gravidade o incêndio que está lavrando nas Lojas Renner, eu vi de perto, testemunhei uma das grandes tragédias do nosso Estado”.
Prontamente, o presidente João Carlos Gastal, colocou a ambulância e o corpo médico da Casa à disposição do Hospital Cristo Redentor, na Zona Norte da cidade, especializado em traumatologia e queimados e para onde seguiam muitos feridos. O hospital montou uma operação de emergência, com dezenas de novos leitos. A direção do Pronto Socorro, por seu lado, proibiu a visita aos pacientes e mobilizou-se toda para o atendimento, recebendo o auxílio de mais de uma centena de médicos que para ali convergiram. A Companhia Rio-Grandense de Laticínios e Correlatos, Corlac, enviou dois caminhões carregados de saquinhos de leite para distribuir aos intoxicados pela fumaça. Ambulâncias de clínicas particulares chegavam ao centro a fim de auxiliar na remoção dos feridos.
O cabo Alcides Gonçalves, 28 anos, 13 no corpo de bombeiros, era um dos que passavam pelo local na hora do início do fogo. Mesmo com problemas nos pés (estava em licença médica) e sem nada a protegê-lo das chamas, correu para dentro do edifício e tentou salvar os que lá se encontravam. Pouco tempo depois, com o rosto e os braços cobertos de remédios contra as queimaduras, explicou singelamente a sua atitude: “Numa hora dessas a gente não pensa em nada, não quer saber o que vai acontecer. E, depois, bombeiro não pode ver bombeiro mal”.
Duas faces do mesmo drama: ao tempo em que centenas de homens e mulheres faziam fila no posto do Banco de Sangue no Largo da Prefeitura para suprir a demanda nos hospitais, aproveitadores, punguistas e assaltantes agiam quase impunemente na cidade fragilizada. Ao ouvir os apelos no rádio o auxiliar de enfermagem José Jorge Escalante, 32 anos, quatro filhos pequenos, saiu de sua casa, na avenida Getúlio Vargas, no bairro Menino Deus, e seguiu apressadamente rumo ao HPS. Ao atravessar o parque da Redenção, próximo ao auditório Araújo Viana, foi interceptado por uma dupla de assaltantes. Esfaqueado no peito, morreu quarenta minutos depois, no próprio HPS.
TERCEIRA VÍTIMA
Abrindo caminho em meio à multidão, o primeiro carro do Corpo de Bombeiros, vindo do quartel na avenida Silva Só, chegou ao local às 14h20min, seguido de outros da estação Floresta. Dez minutos depois um veículo equipado com escadas Magirus encostou em frente ao prédio. Os bombeiros ligaram as mangueiras nos hidrantes existentes e deram início efetivo ao salvamento.
A primeira escada, a maior, subiu lentamente. Outras duas foram dispostas no lado, na rua Doutor Flores. A multidão acenava para as pessoas que estavam nos últimos andares. Ambulâncias começam a chegar de todos os lados. Das janelas do edifício pessoas acenam com as mãos ou com lenços, implorando socorro imediato. Muitas delas jogavam seus pertences do alto.
De súbito, a cabeça de um homem projeta-se pelo interior das grades de uma janela. Sufocado pela fumaça, e na intenção de alcançar a escada que se aproximava, ele havia quebrado os vidros para respirar ar puro quando – provavelmente intoxicado – desmaiou sobre os cacos pontiagudos e morreu devido aos cortes no pescoço. Exatamente nesse instante um bombeiro pulava no parapeito para resgatá-lo.
A vítima foi identificada como Germano Jonas, 67 anos, ecônomo do restaurante Terrasse Renner, um alemão naturalizado brasileiro. Nascido em Frankfurt, Germano morava no próprio edifício com a esposa Teresinha e a sogra de 82 anos, que também pereceram no incêndio.
No alto do prédio, o confeiteiro Altair Giacometti tirou o casaco e iniciou uma arriscada descida segurando-se em uma calha. No meio do caminho esta entortou e Altair quase caiu. Mesmo assim, conseguiu escorregar até o terraço e ali agarrou-se à escada dos bombeiros, chegando são e salvo ao solo. Lá recebeu o abraço de um sobrinho que observava a cena junto à multidão.
Às 15h05min as primeiras pessoas – os garçons Nelson e Flávio – puderam finalmente colocar os pés na escada, sob aplausos da multidão. Já na calçada, Flávio bebeu alguns goles de leite e informou que ainda havia mais de trinta pessoas no terraço, muitas delas desmaiadas. Em seguida, ele próprio desmaiou. Minutos depois foi a vez do casal de Jaguarão ser salvo.
Com isso estava evidente que quase todos, inclusive aqueles que penduravam-se nas cornijas, poderiam sair dali com vida. A escada – que parecia não conseguir elevar-se além do penúltimo andar – chegava agora ao terraço, onde destacavam-se as figuras de outras pessoas à espera do salvamento. Elas vão descendo em fila indiana, algumas chorando, muitas tremendo. Quando chegam ao solo são brindadas com goles de leite e rapidamente embarcadas nas ambulâncias que seguem rumo ao Pronto Socorro e aos demais hospitais da cidade. Algumas precisam de respiração artificial.
A essas alturas, a compacta massa humana tem que ser afastada à força. Helicópteros sobrevoam o local. O deslocamento do ar espalha a fumaça e atiça as chamas, o que irrita sobremaneira os bombeiros.
Na verdade, a não ser por uma presumida função psicológica – serviria, em tese, para demonstrar o curso das iniciativas e, por conseguinte, acalmar as vítimas – nunca se entendeu, de fato, o que tais máquinas faziam no local do incêndio. Não havia heliporto algum e nem os tripulantes dos helicópteros estavam preparados para tais ações de salvamento.
Não bastasse a falta de roupas especiais e de suficientes máscaras a protegê-los da fumaça e dos gases – algo que havia sido prometido à corporação depois do que acontecera nas Lojas Americanas – os bombeiros enfrentavam dificuldades adicionais em terra. Os poucos hidrantes revelaram-se insuficientes e a saída foi recorrer ao rio Guaíba, em cujas margens lanchas da Companhia de Socorro Naval bombeavam água para os carros-pipa que faziam um penoso vai-e-vem de abastecimento.
Às 15h15min, através de megafones, a Polícia Militar apelou a todos para que se retirassem – são auxiliados nisso por tropas da Polícia do Exército que imediatamente afastam os populares.
Por sua vez, a energia elétrica dos prédios mais próximos já fora desligada. O comandante geral da Brigada Militar, coronel Jesus Linares Guimarães, recém havia chegado ao local quando um soldado informou que alguém acendera uma vela em um dos apartamentos do último andar do edifício localizado na esquina da rua Vigário José Inácio, onde, no térreo, funcionava a loja Escosteguy. Minutos depois, os PMs e o comerciante respiraram aliviados: tratava-se apenas da lanterna do zelador que fazia uma ronda de verificação.
A esse tempo os bombeiros estavam convictos de que nada mais de efetivo restava então a fazer. Emílio Rocha Fontoura, 20 anos de profissão, irritado, disse aos repórteres: “Isso aqui é uma verdadeira ratoeira humana”. Outro colega seu, o soldado Jandir Carvalho, lamentou: “Tentei tirar várias pessoas lá de dentro, mas elas não passavam pelas janelas”. No interior do edifício explodiram botijões de gás. Um homem desacordado continuava dependurado com uma perna e um braço para fora da janela. Um bombeiro aproximou-se e lançou-lhe um jato de água. O homem se refez imediatamente, e o soldado foi aplaudido pela multidão.
Quem estava no terraço do edifício Apesul, defronte ao Renner, na avenida Alberto Bins, pode ver o corpo carbonizado de uma pessoa que agarrava-se a uma janela de um dos últimos andares. O jornal Folha da Manhã – que mobilizou uma grande equipe de repórteres, sendo recompensando com uma das mais completas coberturas do fato - retratou este momento.

“Quinto andar. Não dava para sair por nenhuma das janelas, eram muito pequenas e com grades. O fogo já alcançava as escadas do quinto andar e as pessoas corriam desesperadas, em pânico, tentando alcançar o terraço, único lugar onde poderiam fugir daquela ratoeira.
Um bombeiro, que subiu na escada Magirus para retirar as pessoas que ocupavam o terraço, vindas de todos os andares do prédio, contou depois, desolado: “Da escada deu pra ver o interior do restaurante, no terraço da loja. Entre as cadeiras e mesas, vi perto de uns dez corpos pelo chão, ou mais. Não sei se estavam mortos ou se procuravam se proteger, no desespero.”
A água era jogada pelos bombeiros, posicionados com as mangueiras nos terraços e andares superiores dos prédios vizinhos, todos agora evacuados. Quem estava no terraço do edifício da Apesul (financeira), na avenida Alberto Bins, pode ver o corpo carbonizado de uma pessoa, não dava para distinguir direito se era homem ou mulher, agarrado numa janela do quinto andar.
Quem falou com essa pessoa, antes de morrer, foi o PM Eusébio: “Era uma mulher, eu falei com ela, tentei agarrar para trazer para a escada Magirus onde eu estava. Mas não deu. Eu senti o medo e o desespero nela. A janela era estreita demais, ela conseguiu quebrar um vidro e passar um braço e a cabeça. Atrás dela, dentro da loja, estava tudo escuro por causa da fumaça e dava pra ver o fogo também. Não deu pra tirar ela dali.”



No prédio do Hospital de Pronto Socorro, na avenida Osvaldo Aranha, a tarefa da direção tampouco era das mais fáceis: tratava-se de improvisar da melhor forma possível um satisfatório esquema de atendimento a dezenas de feridos que ali aportavam, a grande maioria intoxicados pela fumaça (entre os socorridos no HPS e nos hospitais da cidade poucos apresentavam queimaduras mais sérias e não houve nenhum óbito de feridos nos dias seguintes).
Um apelo do diretor da instituição, Ubirajara Motta, atraiu rapidamente centenas de médicos que não pertenciam aos quadros da casa. Unidades móveis haviam sido deslocadas até as proximidades do edifício Renner, porém era no HPS que os familiares das possíveis vítimas da tragédia poderiam agora ter alguma certeza ou colher informações mais seguras.
Obviamente, a confusão era total dentro e fora do HPS, e o desespero atingia paroxismos. Outro apelo do diretor para que os motoristas deixassem livres as vias de acesso aos hospitais da cidade, especialmente a avenida Osvaldo Aranha, a Ramiro Barcelos e a avenida João Pessoa, por onde passavam as ambulâncias e as viaturas, foi devidamente atendido e evitou o caos absoluto.
Soldados da Polícia do Exército organizaram um cordão de isolamento em torno do Hospital, ameaçado de invasão por parte dos parentes das vítimas. O capitão da Brigada Militar, Servo Tellier e sua esposa, Alba, buscavam informações do filho, Paulo.
Sem conseguir identificá-lo entre os feridos, o militar voltava para junto da mulher quando avistou os dois – mãe e filho – abraçados do lado de fora, ela chorando e ele tentando acalmá-la.
Paulo explicou: com folga das 12 às 14 horas, havia saído a fim de matricular-se no exame supletivo e, quando voltou ao local de trabalho, deparou-se com o prédio ardendo em chamas. Preocupado com a sorte de seus companheiros, correu para o HPS – e ali reencontrou a mãe. Quando viu o desfecho feliz o capitão Tellier, com voz embargada, disse que agora era a sua vez de colaborar, doando sangue. E prontamente voltou para o interior do hospital.
Poucos mantinham esse autodomínio. José Wilson Rodrigues, cuja irmã trabalhava na loja, não conseguiu sequer chegar ao balcão de informações: antes disso teve um ataque convulsivo e caiu ao chão. Uma moradora das proximidades do Edifício sofreu uma crise nervosa e ao chegar ao HPS só conseguia pronunciar uma palavra: “terremoto, terremoto...”
Terremoto era o nome de um filme-catástrofe lançado no ano anterior.
A estas alturas, por assim dizer, Porto Alegre havia parado. Nenhum ônibus podia largar passageiros nos terminais da Praça XV e da praça Rui Barbosa. Todas as guarnições da Brigada Militar, do Primeiro Batalhão, do Nono, do Décimo Primeiro e até os soldados que faziam o policiamento do Palácio Piratini, estavam no local.
A Polícia isolou a rua Voluntários da Pátria até o elevado da Conceição, a Pinto Bandeira, a Coronel Vicente, a Vigário José Inácio, a Doutor Flores e a Salgado Filho, no sentido bairro-centro. Linhas de ônibus foram desviadas e proibiu-se o estacionamento em muitas áreas. A avenida Júlio de Castilhos, uma das principais artérias do centro, transformou-se em um imenso calçadão de pedestres. Sensível à tragédia, a comissão organizadora do Primeiro Seminário Internacional de Investimentos no Estado do Rio Grande do Sul, cujo encerramento deveria acontecer à noite, com um banquete na Associação Leopoldina Juvenil, cancelou o evento. Ao mesmo tempo a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, OSPA, divulgava uma nota à imprensa cancelando a apresentação do maestro Isaac Karabtchevsky e do solista Roberto Szidon, também programado para aquela noite. O prefeito Guilherme Socias Vilela compareceu ao Pronto Socorro e, irritado, condenou o que definiu como “exploração da tragédia para fins políticos”: “Não posso admitir que oportunista algum pretenda tirar proveito eleitoral disso”, atacou, sem dar nome aos bois.
Vilela referia-se ao líder da oposição, Brochado da Rocha, e ao também medebista Carlos Serafim Pessoa de Brum.
O primeiro havia convocado a bancada oposicionista para uma precipitada “tomada de posição quanto ao incêndio das Lojas Renner”, enquanto o segundo distribuía aos jornalistas cópias de seu projeto-de-lei estabelecendo normas mais rígidas de “habite-se” e prevendo a construção de heliportos nos edifícios mais altos de Porto Alegre, projeto aprovado pelos vereadores, porém vetado pelo prefeito anterior, Telmo Thompson Flores sob a alegação de que isso iria encarecer a construção de moradias em um país carente nesse setor. “Lamento não haver heliporto no edifício, o que poderia ter salvo vidas”, retrucou Pessoa de Brum.
De fato, pouco ou nada mudara desde o incêndio das Lojas Americanas. A imprensa aproveitou para lembrar os grandes incêndios que marcaram a Capital: o do edifício Malakoff, primeiro “arranha-céu” da cidade, com quatro andares, construído em 1864; o do Grande Hotel; o do Tribunal de Justiça; o do Palácio da Polícia; o do colégio Júlio de Castilhos; o da Casa de Correção; o do depósito de fogos Fulgor; o do Restaurante Dona Maria.
O FOGO EM OUTROS PONTOS DA CIDADE
Às 15h30min um pedaço do edifício não resiste ao furor das chamas e à devastação das explosões.
No lado da rua Doutor Flores, entre a construção principal e a loja Imcosul, parte das paredes externas – o equivalente a cinco andares – vem abaixo. Vinte minutos depois desabariam aquelas situadas entre o edifício principal e o Armazém Riograndense. Vidraças, anúncios e objetos próximos às janelas aos poucos também vão caindo. Um velho bombeiro caminha na direção da rua Voluntários da Pátria para ajudar na junção das mangueiras e diz aos repórteres: “Não se pode fazer mais nada”.
Do total de mais de 200 homens mobilizados para o combate ao fogo e salvamento de vidas, 12 estavam feridos. Um deles – o soldado Manoel dos Santos – teve de ficar internado no Pronto Socorro para se recuperar da intoxicação dos gases.
A fumaça é agora mais intensa do que nunca e, quando se dissipa, revela a figura carbonizada de uma pessoa com o braço para fora de uma das janelas. Pelos megafones os bombeiros pedem a evacuação dos andares ocupados sobre a loja Comercial Louro, na esquina da rua Doutor Flores.
Um cena emblemática é colhida pela lente dos fotógrafos: os manequins, nas vitrines, incendiando como se fosse tochas humanas e derretendo-se à vista do público.
Nesse momento um dos carros-tanques deixa o local para atender dois outros incêndios, um na rua Fernando Machado, também no centro, e outro na rua Otávio Correa, no bairro Cidade Baixa. Neste último, no edifício Cury, a senhora Albertina Giacomini assistia pela televisão as imagens da tragédia das Lojas Renner quando uma garota bateu à sua porta, dizendo que “tudo estava queimando”.
“Eu sei, estou assistindo”, respondeu ela. Somente alguns minutos depois é que entenderia o que estava se passando ao ver os moradores correndo em pânico pelas escadas: um princípio de incêndio lavrava ali mesmo, junto à porta do apartamento do zelador. Os soldados rapidamente debelaram as chamas e descobriram a causa – um capacho embebido em gasolina, colocado junto à zeladoria.
Já na rua Fernando Machado, em uma velha casa de cômodos, a situação era mais séria. Segundo os moradores, um dos pensionistas, conhecido como “Jamanta”, deixou aceso o fogareiro que costumava usar para o preparo de suas refeições e saiu à rua, “aperitivar”. O pequeno botijão explodiu e as chamas tomaram o quarto e invadiram as outras peças. A destruição foi completa e 11 famílias tiveram de ser encaminhadas a um albergue público a fim de passar a noite.
Enquanto isso, nas cercanias do edifício Renner, a multidão – acrescida por levas de novos curiosos – não queria perder nenhum detalhe da tragédia que já completava quatro horas. Coube aos PMs a cavalo afastar e conter os mais inconvenientes. Alguns punguistas foram presos e conduzidos algemados à delegacia.
O fogo continuava lavrando e, surpreendentemente, parecia recobrar intensidade. Por medida de segurança, máquinas e móveis começaram a ser retirados do prédio ao lado do Armazém Riograndense.
Cai a noite e a cidade adormece com um pesadelo real: um número ainda desconhecido de mortos (falava-se em mais de cinquenta), dezenas de feridos, caos urbano e, para alguns dos familiares e amigos das prováveis vítimas, a incerteza de saber, afinal, quem estava ou não lá dentro.
Já no final da tarde de terça, sem transporte, centenas de pessoas que trabalhavam na área central da cidade voltaram a pé ou de carona para casa. Os raros táxis disponíveis foram disputados aos berros ou transformaram-se em lotações. Muitos porto-alegrenses preferiram esperar pelos cafés e bares até que o torvelinho maior passasse. O assunto é um só: o incêndio das Lojas Renner.
Na redação da Folha da Manhã, a 300 metros dali, Janer Cristaldo – na época um dos cronistas mais lidos da imprensa gaúcha – estava concluindo o seu artigo a ser publicado na edição do dia seguinte no qual comentava o grande número de mortes causadas pelo trânsito nas cidades e estradas do País (o automóvel, no seu entender, é a arma preferida dos brasileiros). Ao final, acrescentaria: “Enquanto escrevo estas linhas, irrompeu um incêndio no centro da cidade. Pelo ruído dos bombeiros, ambulâncias e helicópteros, deve ser um dos mais graves. Preparem-se os porto-alegrenses para: a) debates apaixonados de políticos em véspera de eleições; b) novos projetos para segurança dos edifícios; c) reuniões de condomínio para estudar o problema; d) aumento do preço das cordas; e) reprise de “Inferno na Torre”. Daqui a seis meses ninguém mais lembrará do assunto. Ocorrerá então outro incêndio. E recomeçará mais uma vez o blá-blá-blá.”
Dezenove horas. Os repórteres correm para as redações a fim de escrever às pressas suas matérias. O sinistro seria igualmente manchete em todos os jornais e telejornais brasileiros.
Enquanto isso, do topo dos prédios vizinhos, bombeiros estafados continuavam lançando água sobre os focos restantes. Para os soldados, o dia seguinte reservava a mais desagradável e inglória das tarefas – o resgate dos corpos e a contagem das vítimas que não tiveram a sorte de escapar daquela gaiola de cimento.
O RESCALDO
Na quarta-feira, 28, os tablóides de Porto Alegre circularam com uma única grande manchete: o grande incêndio, o maior que a Capital já assistira em toda s sua história. As edições rapidamente se esgotavam. Até aquele momento havia reconhecidamente três vítimas fatais.
Os trabalhos de rescaldo iniciaram pela manhã. Desde às 7 horas, como se fosse um mórbido piquenique urbano, centenas de pessoas haviam afluído ao centro especialmente para “ver o incêndio”. Desciam dos ônibus, dos táxis, de automóveis particulares. Muitas procediam de bairros distantes e não queriam de forma alguma perder o segundo capítulo do espetáculo – a retirada dos corpos. Os jornalistas também já estavam a postos: todos tinham alguma história para contar e todos se mostravam irritados com o tratamento dispensados pelos soldados da Brigada Militar. Em grupos, os PMs – com caras de poucos amigos - cercavam os repórteres para verificar as credenciais. Um cordão de isolamento isolava o local.
A rigor, os bombeiros já não tinham mais nada a fazer. Durante a noite os soldados prosseguiram lançando jatos de água e preparavam-se agora para entrar no prédio, identificar a quantidade e a localização das vítimas, bem como averiguar as condições para um resgate seguro. Zero Hora relatou aquela manhã: “Os bombeiros conversando, os brigadianos complicando pela mínima coisa e o público aumentando”.
Um pouco antes do meio-dia, a assistência foi acrescida por uma leva de balconistas e funcionários de bancos e financeiras. O major Clóvis Defensor dos Santos, comandante do Primeiro Batalhão de Incêndio (e de toda a operação), de binóculo à mão, observava o prédio dos mais diferentes ângulos e fechava-se em copas, respondendo aos repórteres com palavras breves e que pouco acrescentavam às informações já obtidas.
Em “off” alguns bombeiros deixavam vazar suas queixas. Um dos heróis do dia anterior – um tenente um pouco mais loquaz – observou: “Só se lembram dos bombeiros quando ocorre um caso como este. Não se lembram que não temos recursos para fazer o mínimo necessário. E bombeiro ganha muito pouco. Como as pessoas esperam tudo de um homem que ganha por volta de mil cruzeiros por mês, enquanto os que dependem do nosso trabalho às vezes ganham milhões”. Naquele sábado o salário mínimo regional seria majorado para 768,00 cruzeiros
Outro herói – o estafeta Alcides, aquele que estava passando pelo local, o primeiro a entrar no prédio para tentar debelar as chamas – estava de volta, desta vez para solicitar ao comandante seu internamento em um hospital. Precisava realmente, pois as queimaduras ulceravam seu rosto.
Ainda pela manhã, um advogado e mais alguns integrantes da diretoria das Lojas Renner chegaram para retirar documentos que estavam no prédio número 148, em cima do Armazém Riograndense, parcialmente atingido pelas chamas.
Saíram discretamente, levando papéis, fichas e pastas da folha de pagamento dos funcionários e sequer deram declarações. Mas confirmaram: o prédio estava totalmente segurado, o suficiente para cobrir as despesas de reconstrução e reposição de estoques.
No mesmo dia, em comunicado oficial, a empresa lamentou a tragédia, agradeceu o auxílio e a compreensão de todos e informou que a sede passaria a funcionar provisoriamente na filial do bairro Passo da Areia, zona norte da cidade. Nenhuma loja abriu suas portas naquele dia, voltando a funcionar normalmente apenas na quinta-feira
A primeira investida aos andares superiores aconteceu às 9h30min e durou apenas alguns minutos. Nas ruas mais próximas e no calçadão da Otávio Rocha via-se toda sorte de objetos queimados e uma grande quantidade de saquinhos de leite vazios. Antes mesmo de removerem quaisquer escombros, os soldados contaram 19 corpos. Do interior do edifício - divisava-se ali um monturo de tijolos queimados, ferros retorcidos e toda espécie de objetos irreconhecíveis - ainda vinham estouros constantes.
Às 12h30min os bombeiros fizeram uma demonstração de ordem unida, logo imitada pelos PMs e, em seguida, pegaram pás, picaretas e enxadas, preparando-se para entrar no prédio.
A remoção, entretanto, só começaria mais tarde, quando quatro camionetas estacionaram em frente, três delas entrando até onde foi possível. As vítimas – ou o que delas restou – deveriam ser acondicionadas dentro de sacos plásticos, mas estes revelaram-se impróprios e foram substituídos por lençóis de pano branco, mais resistentes e respeitosos. Uma emissora de rádio, sintonizada em alto volume nas proximidades do edifício, foi estrepitosamente vaiada ao “informar” que 25 corpos já estavam prontos para serem identificados no IML.” Isso às 14h30min, quando nem haviam sido iniciados os trabalhos de remoção.
À tarde, já eram 23 os corpos avistados, a maioria nos dois últimos andares, de pessoas que provavelmente desmaiaram ou morreram intoxicadas pela fumaça. Outras foram encontradas perto das janelas ou na escada. Em apenas um andar havia corpos no meio do pavimento. Do elevador – onde, comentavam alguns, muitos tinham se refugiado – nada restava e nada foi encontrado.
O jornal Folha da Manhã retratou o que foi aquele dia seguinte.

“Junto às cordas de isolamento os argumentos eram os mais diversos, todos com a mesma intenção: chegar mais perto do prédio. “Preciso pagar o imposto predial, posso passar?, é lá no décimo andar”, diz o rapaz ao brigadiano, que é irredutível: “O Sindicato está fechado”.
Um público bem menor, constituído basicamente de estudantes, tinha também pessoas moradoras da grande Porto Alegre, que vieram “ver o que aconteceu” bem de perto para depois contar às famílias e vizinhos. “É o tipo de gente que vai na tourada e torce pelo touro”, desabafou Ismael Rodrigues, executivo que estava fazendo um lanche na galeria A Nação.
Velhas senhoras aproximam-se dos cordões de isolamento, olham para cima, em direção ao prédio sinistrado e fazem caretas de horror e espanto, como se o fato estivesse ainda acontecendo, enquanto uma grande maioria é impassível e não sabe dizer, objetivamente, por que está ali.
Mão na boca, cigarros acesos, braços cruzados, como se protegessem alguma coisa, ali estão muitos estudantes, crianças e pessoas, mulheres em particular, que foram fazer compras no centro e aproveitaram para dar “uma espiada” na cena.
Quando alguém consegue furar o cordão de isolamento, através de qualquer argumento, as outras pessoas, as que continuarão atrás da corda, lançam-lhes um olhar misto de simpatia e inveja, pois afinal tiveram a “sorte” de assistir as coisas mais de perto.
Em sua maioria, são jovens. Muitos ofice-boys, mães e desocupados ficam satisfeitos pelo fato de fazer parte de tal espetáculo. Não é um público constante, todavia. Pelo contrário, há uma espécie de “rodízio” que possibilita a todos tomarem seu lugar junto à corda(...)”

Populares assistiam a tudo em silêncio, voltando o pescoço a cada translado. Um menino de uns 12 anos ultrapassou o cordão de isolamento e, assediado por um policial carrancudo, exclamou: “Que barato!” Agarrando-o pelo braço, o soldado respondeu: “É uma zorra mesmo, meu amiguinho, mas o teu lugar não é aqui”.
Calçando “gigantescas e negras luvas”, os bombeiros prosseguiam no trabalho de remoção, “a pior parte”. Duas vítimas, irreconhecíveis, estavam, por assim dizer, coladas: uma mulher que abraça e protege uma criança.
No Instituto Médico Legal a tarefa de identificação é um penoso exercício de paciência e lógica, um trabalho “lento, mas o único possível”, conforme reconheceu um legista. Familiares, parentes, amigos e principalmente dentistas que tratavam das vítimas são convocados para tanto.
Ao final do dia, 14 corpos já haviam sido identificados: Joaquim Brum Fernandes, 61 anos, e a esposa Ieda Marisa Furtado Fernandes, 44, residentes à rua Luciana de Abreu, em Porto Alegre. Os dois viviam de rendas e estavam almoçando no restaurante Terrasse.
José Wiest, 38 (ou 36) anos, o primeiro a ser identificado pelos legistas. Com queimaduras leves, foi reconhecido pelo cunhado. Era cozinheiro do restaurante havia cinco anos. Morreu pendurado em uma das janelas.
Manoel Couto Carvalho, 81, e a esposa Olga Pacheco Carvalho, 79. Também estavam almoçando no Terrasse. Identificados pela arcada dentária.
Teresinha Fonseca Precioso, 34 anos. Morava em Bagé e tinha vindo sozinha a Porto Alegre, a passeio. O marido, Aloisio, capitão do Exército, afirmou reconhecê-la por uma “melindrosa” com os nomes do casal e pelo fato de portar um anel de brilhantes e um relógio de ouro.
Vera Lúcia Feijó Rodrigues, 25 anos, funcionária das Lojas Renner. Retardou-se no prédio, tentando salvar o dinheiro do caixa. Foi encontrada na escada, com diversas bolsas de colegas ao seu redor. Residia na Vila Medianeira, Viamão.
Jaci Vieira D‘Avila, 47 anos. Trabalhava como cabeleireira da loja e residia ali perto, na rua Doutor Flores. Natural de Passo Fundo.
Doly Teresinha Ballestrin, 47 anos. Também funcionária, morava na sua Silveiro, bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
Edmeo Lobo, 48 anos. Advogado, maçom. Trabalhava no consultório jurídico da Caixa Econômica Estadual há 20 anos. Almoçava na hora o incêndio.
Germano Jonas, 67 anos. Gerente do restaurante Terrasse Renner. Nascido em Frankfurt, Alemanha, e naturalizado brasileiro.
Fátima Elaine Castro Pinheiro, 18 anos. Funcionária da loja. Morava na rua Edgar Pires de Castro, Zona Sul de Porto Alegre.
Luis Carlos Machado, 42 anos. “Maitre” do Terrasse há mais de 10 anos. Morreu porque se retardou muito, ajudando os clientes a se salvarem. Quando tentou sair, já era tarde. Identificado por uma ponte móvel na arcada dentária e por uma perfuração na perna direita.

À tarde de Quarta e durante todo o dia seguinte, centenas de pessoas concentraram-se na entrada do Instituto Médico Legal, na avenida Ipiranga, na tentativa de identificar parentes e amigos desaparecidos.
Na maioria dos casos isso só era possível mediante o exame da arcada dentária – única parte do corpo humano que mantém suas características originais depois da carbonização – seguida pela conseguinte comparação com a ficha fornecida pelo dentista. Segundo explicaram os peritos, mesmo um anel de ouro derrete-se inteiramente quando exposto à altas temperaturas. Obturações, serviços de prótese, dentes ausentes ou em tratamento específico eram minuciosamente analisados.
Para evitar maiores tumultos o local foi isolado por policiais. Às 15h15min chegaram três carros fúnebres: homens e mulheres, em desespero, disputavam cada fiapo de informação.
Consolado por um policial, Olinda Wiest, 41 anos, irmã de José Wiest, o cozinheiro, repetia: “Como meu irmão foi morrer? Não consigo suportar tudo isso”.
Chorando muito, Jani Borges tentava identificar o corpo de sua única filha mulher, de 23 anos, funcionária da loja e que tinha sido dada como desaparecida. “Como é que ela vai ser identificada? Minha filha era perfeita, parecia uma artista de cinema, tinha uma dentadura perfeita, nunca precisou de dentista. Agora isto, que sempre foi motivo de alegria para nós, vai dificultar o seu reconhecimento”, dizia ela.
O major Clóvis admitiu a dificuldade do trabalho de reconhecimento das vítimas: “Será praticamente impossível determinar o número total de mortos”.
O farmacêutico Norberto Silva procurava sua esposa, Luisa Maria Moreira da Silva, de 28 anos, balconista do terceiro andar. Até às 18 horas, depois de preencher a ficha de identificação no Centro de Operações da Brigada Militar, ainda não havia ainda conseguido qualquer informação.
Em igual estado, José Dili Cerqueira, 48 anos, buscava o filho José Francisco, de 26 anos, cozinheiro do restaurante Terrasse. Ele, pai, tinha vindo de Pelotas e caminhava desorientado pela capital: “Já procurei por aí tudo e nada”.
Mais intrigante era o caso vivido por João de Deus Carvalho, que veio do município de Santiago à procura de seu filho Rui, de 19 anos. Passados dois dias em Porto Alegre, ainda mantinha esperanças de que o rapaz não estivesse no edifício no horário do incêndio. Segundo alguns colegas, Rui estava no quinto andar quando o fogo começou. Outros disseram que não, que ele tinha saído à rua um pouco antes. Uma pessoa chegou a afirmar tê-lo visto caminhando na avenida Júlio de Castilhos, àquela tarde. Rui morava no bairro Petrópolis.
“- Juro que vi meu filho caminhando transtornado por uma rua de Petrópolis. Ele não morreu no incêndio, outras pessoas também viram ele na hora do incêndio, fora do prédio. Eu vinha para cá (IML), hoje pela manhã, e na avenida Protásio Alves avistei meu filho. Ele tava de calça branca, camisa branca listrada de azul. Pedi para o taxista voltar, ele teve que fazer um retorno mais adiante. Quando voltamos, ele já não estava mais lá.”
Confuso e desesperado, João não sabia mais o que fazer. Para todos os efeitos a família já estava providenciado a ficha dentária.
Cabisbaixa, olhos vermelhos, o rosto inchado, Vera Lúcia Palmeira era a imagem do desconsolo. Pudera: perdeu quatro parentes. Na tarde do incêndio, Vera estava na Praça XV quando viu a fumaça e a agitação das pessoas. Imediatamente correu até o edifício, onde trabalhavam uma tia e três primas suas. Uma delas, a balconista Sandra, tinha noivado não fazia muito.
O desencontro de informações era tanto que duas pessoas cujos nomes apareceram nas listas de mortos divulgados em meio ao burburinho do Instituto Médico Legal na realidade estavam bem vivas: o médico José Mariano Vieira Haensel e Fernando de Araújo Carvalho.
O primeiro trabalhara no próprio Instituto, como voluntário na identificação das vítimas, e o segundo era neto do casal Manoel Couto Carvalho, de 81 anos, e Olga Pacheco de Carvalho, 79 – estes sim, vítimas do incêndio. Outras duas dadas como desaparecidas reapareceram pouco depois: um rapaz que viajou para Caxias e o outro que reapareceu sexta à tarde, na casa dos pais.
OS “PAPA-DEFUNTOS”
Em frente ao IML um novo personagem - para quem o cheiro da morte é perfume - dava agora o ar de sua graça: o agente funerário, facilmente identificável pela conversa animada, risos nem sempre discretos, piadas e olhares ansiosos em direção aos clientes em potencial. Um grupo de oito ou nove deles, representando as principais funerárias da cidade, tentava, um de cada vez, cabular a freguesia e fechar ali mesmo seus negócios.
A técnica de aproximação do “papa-defuntos” era quase sempre a mesma: a máscara facial contrita, gestos curtos e respeitosos, achegava-se a algum familiar, aquele que tem cara de quem vai pagar a conta – e fazia a proposta.
“O senhor está procurando algum amigo, algum parente? Eu posso conseguir que o senhor entre no IML, eu conheço bem o pessoal de lá. Ah, leve este cartãozinho aqui... Na volta fale comigo, tá?”
Quase sempre dava certo.
Por volta das 14h30min de quinta feira, horário em que muita gente se aglomerava junto aos cordões de isolamento, tais “corretores” pareciam insuficientes para atender a crescente clientela. Pela manhã boa parte deles empenhara-se em pescar clientes nas ante-salas dos hospitais, anotando nomes e endereços de quem havia falecido pela madrugada ou estivesse em estado muito grave. Mas era em frente ao IML – onde a categoria sempre gozou de boas relações – que os negócios realmente frutificavam. Um dos estratagemas – o de sugerir “que, a essas alturas, já estão faltando caixões” – influenciava os espíritos mais ingênuos: “Pai, vai logo lá na funerária porque o homem disse que se a gente não for depressa não consegue caixão”, disse uma senhora aflita ao marido. O casal procurava um filho, dado como desaparecido e ainda não identificado pelos legistas.
Ao sentir à aproximação de alguém estranho – em especial os repórteres – os agentes funerários mudavam de atitude e assumiam um imediato ar arredio que podia se tornar hostil em poucos segundos. Desviavam a conversa, emudeciam ou recusavam-se a dar nomes. Ou mesmo ameaçavam: “Se tu botar qualquer coisa contra nós aí no teu jornal, tu vai te arrepender, viu?”
À tardinha – movimento fraco, negócios feitos - partiam rapidamente em suas inconfundíveis Kombis sem nenhum letreiro de identificação.



Até o final da quarta, 14 vítimas já haviam sido identificadas. Na quinta-feira, os bombeiros ainda prosseguiam no perigoso trabalho de remoção e de procura de corpos: um foi encontrado nesse dia.
O comércio próximo ao edifício já havia fechado suas portas e os prédios da rede de lojas Imcosul e do Armazém Riograndense – abrasados pelo calor – foram declarados impróprios e condenados. Um forte cheiro de fumaça e de carne humana queimada que saía dos escombros atestava a existência de vítimas – ou parte delas – ainda não localizadas.
Os técnicos do Instituto de Criminalística sequer haviam iniciado a perícia para determinar as causas do acidente e versões divergentes já vinham à tona – problema em um aparelho de ar condicionado, um curto-circuito – embora parecesse certo a localização do foco inicial, o pequeno depósito de tintas do terceiro pavimento.
Carlos Guido, perito criminal, explicou didaticamente as linhas de raciocínio a serem seguidas para determinar a origem de qualquer sinistro desse gênero.
Primeiro, seria feito um vasculhamento de toda a área atingida e, em seguida, um exame de condensação de fuligem e enegrecimento das paredes capaz de denunciar a incubação inicial do fogo. Nesse caso é também de grande valia o boletim dos técnicos do Corpo de Bombeiros que, sempre que acontece um incêndio, vão ao local e registram em detalhes o seu desenvolvimento. Eles observam onde há maior incidência de chamas, a sua cor e a cor da fumaça emitida, estabelecendo assim a natureza dos objetos queimados. Outro item relevante é o exame da rede elétrica, de força e de iluminação (a rede elétrica das Lojas Renner havia sido trocada há cerca de dois anos e estava dentro dos padrões exigidos, informaram). A fiação, revisada, pode determinar o ponto exato onde ocorreu o curto-circuito – se é que ocorreu. Todo material considerado útil é recolhido aos laboratórios do Instituto, para detidos exames. Obviamente, isso tudo não é uma tarefa fácil, pois o fogo destrói elementos preciosos, sem falar nos danos causados pelo próprio trabalho dos bombeiros.
São três as causas de incêndio, explicou. A comum: combustão espontânea, determinada pela ação de bactérias, habitual em matas. A acidental: faíscas, eletricidade estática, pontas de cigarro acesos, tocos de vela esquecidos, fósforos jogados descuidadamente ao chão e também o clássico curto-circuito. A proposital: casos de piromania, vingança, para esconder crimes ou obter vantagens ilícitas, cobrar seguros etc. De certa forma, a causa proposital é a mais fácil de ser esclarecida pelas perícias, já que dificilmente existe o crime perfeito.
SÍNDROME DO PÂNICO
A estas alturas a cidade inteira mostrava-se absorvida e atônita pela tragédia. Porém, nas cercanias do local do incêndio, os lojistas, ariscos e nervosos com a súbita notoriedade, preferiam lamentar a interdição da área e a queda no movimento de clientes. O barulho infernal das máquinas revirando os escombros, o mau cheiro que emanava do interior do prédio e que persistiria nas próximas semanas, o irritante zum-zum das pessoas – o fantasma do sinistro, tudo isso estava bem vivo e presente.
(Passados quinze dias Maria Beatriz, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, já não aguentava mais: “É um martírio ter de vir para o trabalho diariamente. Depois do incêndio não tive mais sossego, chego até a sonhar que o que restou do prédio está vindo abaixo”. Neusa, empregada do Café Haiti, nas proximidades, sofria com o barulho ininterrupto: “O barulho das máquinas começa pela manhã e vai até o final do dia. É tão forte que parece que vai arrebentar com os nervos da gente”).
Vivendo uma espécie de melancolia pós-traumática, os balconistas aproveitavam a ociosidade reinante para atender os jornalistas que fuçavam tudo e ouviam a todos, anotando às pressas impressões e medos daquelas privilegiadas fontes.
Iara, 24 anos, funcionária de uma loja da Otávio Rocha, folgara na terça-feira e tinha sido poupada do espetáculo – quando soube, ficou traumatizada a ponto de não ter coragem de voltar para casa. Seu marido estava viajando e os dois, como diz, “também moram em uma gaiola”.
“Eu estava pensando em comprar um apartamento para mim. Queria um lugar para morar mas agora mudei de idéia, acho que vou comprar uma casa. Onde eu moro tem um extintor pequeno em cada andar, mas ninguém sabe mexer neles”. Faz uma pausa e acrescenta, como se falasse do mundo lá fora: “É tudo um absurdo, eles não pensam nunca na gente, só em vender, e quando acontece alguma tragédia ainda é que vão pensar. Porque antes ninguém pensa.”

O trânsito de veículos na área central da cidade desorganizou-se completamente (demorou uma semana para voltar à normalidade), apesar do apelo das autoridades para que os motoristas deixassem os carros em casa. Em vão.
Nos dias seguintes, o que se viu foi uma loucura coletiva. Na auinta-feira a avenida Farrapos congestionou, a Mauá engarrafou e o Túnel Conceição transformou-se em uma neurastênica garagem coletiva. A Júlio de Castilhos, a Independência, a Osvaldo Aranha a avenida Protásio Alves eram intermináveis fileiras de carros.
Em sua edição de sexta-feira, 30, sob o título “Morbidez e Sadismo”, o jornal Zero Hora, em sua coluna “Informe Especial”, anotou:
“Até ontem à noite uma multidão de curiosos continuava firme ao redor do prédio semidestruído das Lojas Renner, enquanto continuavam os trabalhos de localização e remoção das vítimas. Insensíveis aos apelos das autoridades e mesmo ao perigo representado pela possibilidade de um desabamento, centenas de pessoas ali continuavam, atrapalhando o trânsito e o deslocamento de gente que, por força do trabalho, teria obrigações a cumprir naquela área. Move-as a morbidez e o sadismo, os mesmos sentimentos baixos que fizeram com que muita gente, aos gritos, mandasse saltar as pessoas que apareceram às janelas da galeria Malcon, quando apareceu fumaça no prédio. E mais: diversas pessoas estiveram no IML a pretexto de identificar supostos parentes e amigos, apenas para olharem os restos mortais das vítimas. Triste, mas verdadeiro.”
(Uma loja de material fotográfico da praça Otávio Rocha foi mais além e colocou à venda em sua vitrine uma série de instantâneos do incêndio, como se o prédio queimado fosse uma espécie de sinistro cartão-postal da cidade)
O jornal referia-se a um falso alarma de incêndio que causou pânico na Galeria Malcon, na rua dos Andradas. No meio da tarde de quarta-feira alguns rolos de fumaça começaram a sair pelas janelas de um dos andares superiores do edifício. À simples menção da palavra “fogo” uma multidão apavorada precipitou-se para a rua enquanto outros penduravam-se nas janelas, aos gritos – a mesma reação irracional de 24 horas antes. Desta vez boa parte da assistência – talvez por expresso sadismo ou então querendo manifestar sua reprovação a histerias inúteis – torcia declaradamente pelo touro. Muitos gritavam “pula! Pula!” Minutos depois, com a chegada dos bombeiros, o circo foi desmontado. O incêndio, na realidade, resumia-se a um lixo que pegara fogo. O fogo estava em toda a parte – real ou imaginário.
Em São Paulo, onde a tragédia também repercutira intensamente, no dia da tragédia, uma doméstica pulou do décimo primeiro andar de um prédio vizinho ao de uma fábrica de tintas que estava incendiando no bairro de Cambuci. Ela não corria nenhum risco real de vida e imolou-se estupidamente.
Na tarde de Quinta, em Alvorada, na região metropolitana, uma casa de três peças virou cinzas. Os moradores – um casal e três filhos – tinham saído um pouco antes e ninguém ficou ferido. Segundo um vizinho, um escapamento de gás foi a causal.
Em Porto Alegre, um pensionato feminino que funcionava na rua Riachuelo pegou fogo: desta vez o incêndio era real, obrigando mais de 50 mulheres a fugirem às pressas em trajes de dormir. Entre elas estava Maria Helena – aquela que havia escapado do incêndio da Renner e que disse não ter condições psicológicas para enfrentar tal drama novamente. Muitas moças, driblando o frio e a fome, sem dinheiro e sem ter para onde ir, passaram a noite no salão ao lado, cedido pelo Sindicato dos Metalúrgicos. O fogo – presumiu-se – havia sido provocado por um ferro elétrico esquecido em uma tomada. Por sorte ninguém se feriu gravemente. O major Clóvis – com marcadas olheiras e um aparência de profundo cansaço – comandou pessoalmente a operação.
Um pouco antes, no térreo do edifício Continental, na avenida Borges de Medeiros, a principal artéria do centro da cidade, aconteceu um princípio de incêndio logo debelado pelos soldados, possivelmente causado por alguém que jogou um fósforo ou um cigarro aceso no poço de energia. No local funcionava uma loja de calçados e o cinema Lido – em sessão naquele horário. Mas não houve tumulto.
Na Sexta-feira à tarde, na rua Itaboraí, no bairro Jardim Botânico, populares avistaram fumaça saindo das janelas do sexto pavimento de um prédio com cerca de 300 moradores. Dona Porfíria estava chegando em casa e surpreendeu-se com o alvoroço da vizinhança. Informada de que a fumaça vinha do seu apartamento, exclamou:
- Meu Deus, o pão está queimando!
Ela estava fazendo pão no forno a gás e, distraída, saiu à rua. Os bombeiros – que já estavam escalando o oitavo andar- recolheram as escadas.
Na segunda-feira um curto-circuito em uma máquina de costura assustou mais de 50 funcionárias e clientes de uma loja de modas na rua Marechal Floriano e provocou frisson no comércio em volta. A chave-geral da energia foi desligada e a calma restabelecida.
Na terça-feira outro curto-circuito, desta vez em uma agência do banco Bradesco da avenida Assis Brasil, causou corre-corre e gritaria. Minutos antes, na vizinha Caixa Econômica Estadual, alguém acionou o alarma geral, assustando mais de 30 funcionários e alguns clientes – eles não sabiam se era assalto ou incêndio.
Na quarta os bombeiros correram para a rua Santana – o fogo estava se alastrando em um prédio de 18 apartamentos – e encontraram lá um morador que dormia com o cigarro aceso.
Na quinta, na rua Leopoldo de Freitas, bairro Passo da Areia, uma mulher jogou-se do segundo andar depois que um “espiriteira” pegou fogo e atingiu a sua empregada doméstica. As duas foram encaminhadas ao Pronto Socorro – a doméstica com algumas queimaduras e a patroa em estado grave.
Enquanto isso alguns vigaristas aproveitavam o momento para a práticas de golpes manjados. Na sexta-feira soldados da Brigada Militar prenderam dois homens que se faziam passar por bombeiros. Eles visitavam o comércio, pedindo dinheiro para “restaurar” a corporação.
Nas semanas seguintes o Estado, o Brasil e, por extensão, o Mundo, pareciam regidos pelo elemento fogo – ao menos nos noticiários da imprensa, que destacava com lentes de lupa tudo que cheirasse a queimado: um incêndio destruiu um depósito no bairro Navegantes e um pavilhão de um clube de futebol de São Borja (a cidade não tinha Corpo de Bombeiros e as chamas foram apagadas a base de baldes de água); em Caxias do Sul uma fábrica de acordeões pegou fogo e em Paso de Los Libres, na Argentina, fronteira com o Brasil, uma farmácia só livrou-se graças ao auxílio dos hermanos brasileiros do outro lado da ponte. Um curtume de Sapucaia do Sul escapou por pouco da destruição total e um incêndio numa das balanças do terminal graneleiro da Cooperativa Tritíticola Ijuí, Cotrijuí, em Rio Grande, deixou sete operários feridos – quatro em estado gravíssimo. Na costa da Espanha um grande navio petroleiro ardeu em chamas.
Bem antes disso, na sexta-feira, 30 de abril, o jornalista e escritor Sérgio Jockymann escreveu em sua coluna diária na Folha da Tarde: “Pois há três dias que Porto Alegre tem pelo menos um milhão de peritos em prevenção de incêndio”. Para ele, “o milagroso, o extraordinário, o espantoso é que essas calamidades só aconteçam de vez em quando. O normal seria que tivéssemos uma tragédia por dia.” Em Zero Hora, o humorista Carlos Nobre não perdeu o trocadilho: “As discussões dos políticos para tomar medidas contra incêndios servem apenas para botar mais lenha na fogueira”.
Um mês depois a Folha da Manhã observaria: “Uma espécie de histeria coletiva vem envolvendo os habitantes de Porto Alegre”. Nesse período, a mera menção da palavra “fogo” bastava para estrilar os telefones do Corpo de Bombeiros.
A população – antes adormecida e quase insensível ao perigo – via agora um Joelma e um Renner em cada prédio. Pessoas evitavam tomar elevadores, síndicos faziam reuniões extraordinárias para discutir medidas de segurança, instalações elétricas eram vistoriadas de cabo a rabo, fumantes eram denunciados como incendiários em potencial e corretores de seguros – mais desembaraçados e seguros do que nunca – festejavam a boa fase em seus negócios. Vivia-se a era de Mercúrio.
Mercuriais e igualmente candentes eram os debates e as cobranças. Todos concordavam em um ponto: a tragédia poderia ser evitada, embora ninguém assumisse a culpa e dela, na realidade, todos saíssem chamuscados.
“Aproximadamente 50% dos prédios de Porto Alegre poderão oferecer cenas tão ou mais dramáticas que as da Renner”, declarou o técnico Cláudio Hansen, integrante da Comissão de Estudos e Prevenção de Incêndio da Prefeitura. Mais original, o secretário municipal de Obras e Viação, Jorge Englert, afirmou que “janelas não são fundamentais” em casos de incêndio e enumerou algumas vantagens dos edifícios “gaiolas”: economia de ar condicionado e, em caso de fogo, seu abafamento, pois “não há alimentação de oxigênio: “O importante são as saídas especiais e isoladas”. E acrescentou que no caso do proprietário recusar-se a cumprir a lei, a Prefeitura não teria como obrigá-lo a isso. Já o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Rio Grande do Sul, Mário Maestri, concordou com a exigência de normas mais rígidas, “mas não levadas a extremos”.
A imprensa variava de tom. Enquanto o Correio do Povo apressou-se a elogiar o que chamou de “esquema perfeito” de socorro e atendimento às vítimas (“digno de aplausos em todo o sentido foi a ação imediata do Corpo de Bombeiros e todas as autoridades de qualquer nível”) a Folha da Manhã ressaltou que, no dia da tragédia, “a cidade, de um modo geral, não funcionou”.
No item prevenção os principais órgãos evitaram críticas diretas à direção das lojas Renner, algo explicável pelo grande volume de anúncios que a empresa – um dos orgulhos empresariais do Rio Grande do Sul - carreava para seus departamentos comerciais.
EM CAXIAS DO SUL, 21 HIDRANTES
O grupo Renner – um símbolo de operosidade e da solidez empresarial gaúcha - nasceu a 2 de janeiro de 1912, quando Antonio Jacob Renner (Alto Feliz, 1884-1966), neto de imigrantes alemães, fundou uma modesta indústria de fiação e tecelagem na cidade de São Sebastião do Caí, a 70 quilômetros da Capital.
A prinícipio a empresa destacou-se pelo pioneirismo na fabricação de capas de chuva impermeáveis, as quais – por sua qualidade e resitência - se tornaram famosas em todo o Estado. Em 1914 a indústria chegou a Porto Alegre.
Vinte anos depois estava produzindo roupas, comercializadas em mais de 5 mil pontos de venda em todo o Brasil, além de calçados de couro, máquinas de costura, resinas e tintas para construções. Em 1922 nascia as Lojas Renner. No final da década de trinta o grupo, com mais de 2 mil funcionários, já era um dos principais empregadores do Estado e, mais tarde, nome de um clube de futebol, campeão gaúcho de 1954, o primeiro a superar a dupla Grenal e no qual jogava o craque Enio Andrade. No início dos anos setenta as Lojas conquistavam o primeiro lugar entre as redes de magazines do Estado, investindo pesadamente em anúncios publicitários.
Em abril de 1976 havia, no entanto, uma conjuntura de mercado extremamente benéfica para o público leitor: a existência de cinco diários de circulação em bancas, pertencentes a três grupos econômicos diferentes – Caldas Júnior, Rede Brasil Sul e Diários Associados – competindo entre si e contando com uma tarimbada equipe de profissionais. Como era usual naquele tempo – e também pela necessidade de resguardo em um período de fortes pressões governamentais – as matérias não eram assinadas e raras fotos recebiam o crédito de seu autor. De qualquer modo, a cobertura do incêndio das Lojas Renner foi, nas circunstâncias possíveis, um bom momento da imprensa gaúcha.
Já no dia posterior à tragédia todos os correspondentes foram mobilizados para checar as condições de segurança contra fogo nas principais cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
De Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria, Rio Grande, Passo Fundo, Novo Hamburgo, Lages, Florianópolis – emergiam as mesmas constatações: em todos os casos, sem exceção, o que acontecera em Porto Alegre apenas mudaria de data, nome e endereço. Em Caxias do Sul só existiam 21 hidrantes para uma população de 180 mil habitantes e mais de uma centena de edifícios. Uma pesquisa feita por uma emissora de rádio local descobriu que apenas dois em cada quinze caxienses sabiam utilizar um extintor.
Nesse contexto, em Caxias, pontificava uma honrosa exceção: com seus 17 andares, a recém inaugurada agência do Banco do Brasil dispunha de um moderno sistema de segurança contra fogo: duas saídas de emergência, paredes externas feitas de concreto em vez de tijolos, paredes internas sem a presença de material inflamável ou combustível, amplas janelas de vidro e alumínio e um moderníssimo mecanismo de evacuação estilo “tobogã”. Em caso de incêndio podia-se soltar um tubo de lona desde o alto até o chão e escorregando por ele desceriam as pessoas. Dois elevadores – ou “jaús” – presos em trilhos nas paredes externas e capazes de parar em qualquer ponto do prédio serviriam como opções de fuga.
Ainda assim restavam duas perguntas: quem sabia disso tudo e quem estava treinado para uma situação de emergência?
Por outro lado, não havia surpresas quanto à precariedade das corporações especializadas. Em nenhum – absolutamente nenhum – município gaúcho eram oferecidas aos bombeiros condições operacionais sequer razoáveis. Nem mesmo a Câmara Municipal de Porto Alegre ou a Assembléia Legislativa do Estado, com 12 andares, mostravam-se de acordo com os padrões de segurança. Na região metropolitana um caso chamava a atenção: a cidade de Viamão, colada à Capital e com quase 100 mil habitantes, não apenas dependia inteiramente da ação dos soldados como nem mesmo dispunha de uma só linha telefônica para comunicar uma ocorrência urgente.
De um modo geral, assim era o Brasil de Norte a Sul. Sob o título “Trágica ratoeira humana” a revista Veja que circulou no dia 5 de maio tentava, sem êxito, achar uma exceção.
São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Rio de Janeiro – o Brasil pouco aprendera com a tragédia do Joelma e a população dos grandes e médios centros estava entregue às mãos do Destino”. Disse a revista: “Em Teresina, por exemplo, a precariedade da corporação chegou a provocar episódios ridículos, como no início do ano passado, quando uma turma de salvamento foi estrondosamente vaiada ao descer de um táxi e sem levar qualquer instrumento ou ferramenta capaz de apagar o fogo que destruía uma simples residência, no centro da cidade. “O Corpo de Bombeiros aqui não existe”, afirmou o comandante da Polícia Militar(...)”
No entanto, o incêndio da Renner – uma das muitas tragédias na pródiga safra da década de setenta – deixara suas marcas e alguma coisa precisava ser feita para satisfazer a opinião pública.
Nas semanas seguintes a Prefeitura de Porto Alegre mobilizou o seu departamento de Fiscalização a fim de verificar as condições dos edifícios da cidade, e muitas portas lacradas que impediam a ligação entre um andar e outro foram derrubadas a golpes de marretas sob o aprovativo olhar dos moradores.
No dia 14 de maio o prefeito Guilherme Socias Villela enviou projeto-de-lei à Câmara propondo a doação de uma área de mais de 6 mil metros quadrados, no bairro Praia de Belas, para a instalação da nova Estação Central do Corpo de Bombeiros. Ao mesmo tempo foi dado início a uma campanha comunitária com o objetivo de dotar a capital de uma eficiente rede de hidrantes – existiam cerca de 500 em toda a cidade quando as necessidades mínimas exigiam 5 mil. Sob o argumento de que a municipalidade não dispunha de recursos para fazer frente a tal volume de despesas, Vilela apelou para a colaboração dos empresários, que poderiam “adotar” quantos hidrantes quisessem.
Na segunda-feira o governador Guazzelli reuniu-se com o alto comando da Brigada Militar e prometeu, solenemente: “Não vou regatear recursos, tudo o que o nosso corpo de bombeiros precisar para ser reequipado eu vou dar”. E informou que uma velha reivindicação – a construção de mais três novos quartéis (além dos cinco já existentes) na capital – seria concretizada ainda em seu Governo.
Na esfera municipal, uma nova lei seria em breve votada e aprovada por unanimidade – desta vez para ser realmente cumprida: a instalação obrigatória de extintores de incêndio em todos os prédios. Discutia-se, ainda, a obrigatoriedade dos chuveiros automáticos – os “sprinklers” – nos edifícios com mais de 20 metros de altura.
Dois dias depois da tragédia todas as filiais das Lojas Renner reabriram normalmente. Representantes da empresa já haviam percorrido os hospitais da cidade, tentando encontrar seus funcionários com vistas a determinar o número exato de desaparecidos, embora o cálculo final somente fosse possível na sexta ou no sábado, quando os últimos se reapresentariam para receber seus salários do mês de abril.
A equipe que trabalhava no edifício incendiado foi remanejada para as demais filiais, incluindo Pelotas e Novo Hamburgo. A sede provisória, no bairro Passo da Areia, foi adaptada às pressas para a nova função, e um grupo de secretárias recebeu a dolorosa incumbência de prestar informações a respeito dos mortos e desaparecidos. A cada toque do telefone seguiam-se embaraçosas explicações, permeadas de silêncios emocionados e lágrimas nem sempre furtivas.
- Sentimos muito, meu senhor, mas esse nome está na lista do Instituto Médico Legal e o senhor deve se dirigir para lá – dizia uma secretária de plantão, esforçando-se para manter um tom de normalidade.
Clientes acostumados a comprar com determinado funcionário queriam saber desta ou daquela pessoa, se estava bem ou se estava na relação das vítimas fatais ou dos desaparecidos.
Nas semanas seguintes a Renner veiculou uma série de anúncios institucionais com depoimentos de antigos clientes que externavam seu apreço e carinho pela empresa.
O CIRCO PEGA FOGO
Em Porto Alegre, naquele abril de 1976, restava a viva lembrança do que acontecera ao edifício Joelma, um prédio de 25 andares da avenida 9 de Julho, no coração de São Paulo, talados pelas chamas na manhã de primeiro de fevereiro de 1974, com um saldo oficial de 188 mortos e mais de 300 feridos. O horror daquelas imagens calou fundo nos porto-alegrenses que, um mês antes, haviam acompanhado o drama das Lojas Americanas.
O Joelma foi, de longe, o caso mais famoso, talvez porque tenha sido filmado e fotografado minuto a minuto.
Isso porém não foi possível na tarde de domingo, 17 de dezembro de 1961, em Niterói, Rio de Janeiro. Àquela hora, uma multidão calculada entre 2 e 3 mil pessoas – metade das quais eram crianças - assistia à apresentação final dos trapezistas do Gran Circus Norte Americano quando o toldo de lona pegou fogo e, em menos de três minutos, deixou mais de duzentos mortos, a maioria pisoteados. Outros cento e tantos morreram nos dias seguintes nos hospitais de Niterói e do Rio de Janeiro. Os cálculos, contudo, finais falaram em 600 feridos e 323 vítimas fatais.
A tragédia chocou o mundo. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Argentina ofereceram ajuda às autoridades brasileiras. Os Estados Unidos enviaram uma remessa de plasma sanguíneo e medicamentos. Um avião da Força Aérea Argentina trouxe médicos e especialistas do Instituto de Queimados de Buenos Aires. Todos os cirurgiões plásticos da Guanabara – inclusive o doutor Pitanguy, que ainda não despontaram para a notoriedade mundial - foram convocados a trabalhar e estabeleceu-se uma ponte marítima entre Rio e Niterói para o transporte de feridos e toneladas de medicamentos, e outra ponte aérea entre São Paulo e o Rio.
O Rio Grande do Sul, por sua vez, coletou e enviou em um avião da FAB 50 litros de plasma sanguíneo. A secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro proibiu a venda de bebidas alcoólicas por três dias e o presidente João Goulart foi pessoalmente visitar os feridos nos hospitais. Em um emocionado apelo nos rádios e na tevê, o palhaço Carequinha pediu mais doações de sangue. O incêndio do Circo em Niterói viria a ser a maior tragédia no gênero registrada em todo o mundo.
O mais chocante se revelaria nos dias seguintes, quando comprovou-se o seu caráter criminoso. Surgiu então o “monstro de Niterói” – “Dequinha”, um favelado carioca, preso inúmeras vezes por furto e “vadiagem”. Conforme confessou, havia ateado fogo no circo para se vingar de um tratador de elefantes que o esbofeteara, e também para saquear as vítimas mortas: feita a combinação sinistra, um cúmplice seu jogou gasolina na lona – síntético feito a base de derivados de petróleo – e Dequinha riscou o fósforo.
No dia seguinte, absolutamente tranquilo, o incendiário vendeu alguns litros de sangue nos hospitais do Rio e foi preso somente depois que a sua companheira de barraco comentou o fato com alguns vizinhos e estes, chocados, procuraram a polícia. Para não ser linchado, o “monstro de Niterói” foi recolhido à Fortaleza de Santa Cruz, sob a guarda de soldados do Exército.
Até então, no Brasil, o maior flagelo desse tipo datava de 14 de junho de 1953, quando centenas de pessoas, a maioria “gente de cor” e “empregadinhas domésticas”, na expressão da revista O Cruzeiro – divertiam-se ao ritmo dos sambas em um baile popular em homenagem a Santo Antonio, o santo dos casamenteiros.
Instalado na parte de cima de um velho sobrado, o Clube 28 de Setembro - rua Florêncio de Abreu, centro de São Paulo – contava com um único acesso, uma escada de madeira que rangia ao peso de poucas pessoas. Embaixo, funcionava uma loja de tecidos.
Poucos perceberam o calor estranho que vinha do assoalho até que, aos 25 minutos da madrugada, rolos de fumaça invadiram o salão fazendo com que uma verdadeira onda humana se projetasse em direção à escada. Em poucos minutos muitos corpos, caídos ao chão, foram sendo esmagados, enquanto outras pessoas atiravam-se das janelas. No final de tudo contabilizou-se 53 mortos, incluindo um bombeiro. Poucos estavam carbonizados – o pânico incontrolável é que os matou.
Nas duas década seguintes o fogo retornaria às páginas da imprensa. No Rio, o da boate Vogue, em 14 de agosto de 1955, com cinco mortos e cinquenta feridos; o do Edifício Astória, também com cinco mortos, em junho de 1963; o da Favela da Praia do Pinto, que destruiu 800 barracos, feriu 32 e deixou 5 mil desabrigados. E, em São Paulo, o de São Bernardo do Campo, em dezembro de 1970, com 14 operários mortos e mais de 100 feridos, seguido do edifício Andraus, em 24 de fevereiro de 1972, com 17 mortos, quase 400 feridos e seis horas de duração.
Mas é do Joelma que os brasileiros lembram. O edifício da avenida 9 de Julho, quase no coração de São Paulo, fora concluído há apenas dois anos e nele estavam instalados a sede e os escritórios da financeira Crefisul. Seus 25 andares, revestidos internamente com lambris, cortinas e muitas divisões de madeira, além de incontáveis aparelhos de ar condicionado que sobrecarregavam a rede elétrica; seu telhado de placas de cimento e amianto térmico e uma grande caixa dágua que não permitia o pouso de helicópteros - tudo isso, somado, formava o sonhado cenário para uma grande tragédia.
E ela começou, efetivamente, quando faltavam 15 minutos para as 9 horas da manhã de Sexta-feira, primeiro de fevereiro, no décimo segundo andar. Em 20 minutos o fogo chegava ao topo, tempo que os bombeiros, driblando o caótico trânsito de São Paulo, levaram para chegar ao local com suas três escadas Magirus que atingiam o limite máximo de 45 metros. Um helicóptero da Operação Para-Sar – o único apropriado para a situação - conseguiu manter-se imóvel a poucos centímetros do teto e salvou muitas vidas. Pelo menos vinte pessoas já haviam se jogado pelas janelas. Somente uma hora e meia depois do início do fogo é que o primeiro bombeiro conseguiu saltar no alto do prédio para dar início ao resgate. Dezenas de soldados e oficiais – dos 450 que participaram da operação - arriscaram a vida rodopiando na cordas e escalando andar por andar. Carros-pipa trouxeram água de uma distância de até 30 quilômetros – os hidrantes, para variar, eram insuficientes. Às 16h15min, quando as últimas chamas foram debeladas, cerca de 500 mil paulistanos tinham assistido ao vivo o drama.
A causa, presume-se, originou-se de problemas em um ar condicionado – costumeiro vilão de tais episódios. E talvez pudesse ser combatida a tempo – e quem sabe debelada - se os ocupantes do prédio soubessem manejar os equipamentos anti-incêndio instalados em cada andar. Os próprios bombeiros testemunharam: os extintores e as mangueiras estavam intactos em seus lugares.
O FOGO NAS LOJAS AMERICANAS
Até 1976 Porto Alegre já havia sentido na carne o efeito de pelos menos dois sinistros e não precisava mirar-se no exemplo do Andraus ou do Joelma para extrair lições e adotar medidas de prevenção.
Na tarde de segunda-feira, 3 de maio de 1971, ao aproximar-se as festas de São João, a cidade foi sacudida pela explosão do depósito de Fogos de Artifício Fulgor, na rua João Inácio, 150. A chamada “tragédia do Quarto Distrito”, zona operária e fabril, matou pelo menos oito pessoas – alguns jornais falaram em dezesseis – demoliu quatro prédios e vários carros, quebrou os vidros da Quarta Delegacia de Polícia e causou danos consideráveis em um raio de 2 mil metros. A vibração foi sentida até mesmo em alguns edifícios do centro. Segundo testemunhas, “parecia que haviam jogado um bomba atômica ali”. Um cogumelo de fumaça elevou-se contra o céu, onde, coincidentemente, naquele momento passava um avião a hélice – muitos moradores imaginaram que ele havia caído e explodido contra o solo.
Mais de cinquenta repórteres acorreram ao local e constataram um “cenário de filme de guerra”. Um deles, transmitindo ao vivo pela tevê, comentou: “Isso não é o Vietnã, é Porto Alegre em 197l”.
Cerca de sessenta feridos foram conduzidos aos hospitais da cidade. Sobre a ponte do rio Guaíba, a centenas de metros, recolheu-se pedaços de um homem. Não tardou a ser apurado que a fábrica de artifícios – na verdade um tosco armazém de dois pisos, concentrando não só foguetes e bombinhas de traque – estava abarrotada de explosivos a base de pólvora, em desobediência ao Plano Diretor do município que proibia tal atividade naquela área.
A tragédia, de fato, fora anteriormente sinalizada: o depósito já havia sofrido duas explosões menores e não dispunha da mínima segurança. Mas nada fora feito pelas autoridades.
Entre as hipóteses aventadas como causa, a primeira dizia respeito a um caminhão carregado que teria tocado um fio de energia elétrica na rua e originado um curto-circuito na rede. Nunca se soube e provavelmente jamais se saberá de coisa alguma: o inquérito a respeito nunca foi divulgado. Em 1971 tais fatos não precisavam ser respondidos ou explicados.
Dois anos e meio depois da explosão da Fulgor e um mês antes do Joelma – a 29 de dezembro de 1973, um sábado - uma pequena festa de final de ano dos funcionários das Lojas Americanas, rede de magazines com filiais espalhadas por todo o Brasil, transformou-se em uma tragédia que estragou o reveillon de muitos gaúchos. E aconteceu também em um edifício do centro da cidade – desta vez na rua da Praia, quase esquina com avenida Borges de Medeiros, a hoje “Esquina Democrática” – e só não causou mais vítimas porque não havia movimento de clientes e, dos 300 funcionários da loja, não mais do que quinze estavam no interior do prédio àquele horário. Assim como o edifício Renner, o prédio era uma “jaula”, com apenas duas saídas para ruas diferentes e quase todas as janelas vedadas por grades.
O fogo iniciou alguns minutos antes das quatro horas da tarde, denunciado pela fumaça que vinha do painel de eletricidade da sobreloja. Das seis funcionárias que estavam no andar acima, uma jogou-se sobre a marquise e as demais trancaram-se no banheiro, gritando por socorro.
Os bombeiros chegaram em 20 minutos – sem escadas, sem máscaras contra gases e com um dos carros sem água. Água que também faltou nos hidrantes – ou melhor, faltaram os hidrantes, que haviam sido retirados por força das muitas obras municipais que, em tal época, rapidamente iam cobrindo a cidade com um tapete de asfalto e concreto.
Assim, cerca de 100 mil litros precisaram ser bombeados do lago Guaíba, a meio quilômetro de distância. Mais tarde, na ritualística oficial das explicações, chegou-se a alegar que a água tratada estava muito cara e que era preciso economizar.
Os bombeiros defenderam-se, pedindo maior fiscalização da prefeitura e garantindo que, neste caso, não lhes foram passadas as informações mínimas necessárias. Sequer lhes disseram que haviam gente no prédio, lembrou o comandante.
Fosse como fosse, entre as perdas e os danos estavam as cinco moças asfixiadas pela fumaça, das quais uma apresentava profundos cortes no pescoço, prova de que teria desmaiado ao tentar passar por uma das pequenas janelas basculantes – o mesmo caso de Germano Jonas. Como de praxe, abriu-se um inquérito policial que, para a surpresa de ninguém, nunca veio à luz.
Comandando as investigações estava um velho conhecido da imprensa: o delegado Geraldo Ivo Gaston, o mesmo da explosão da Fulgor e o mesmo que dali a dois anos e meio iria cuidar do inquérito das Lojas Renner.
A IMPLOSAO
Na manhã de 30 de maio, um domingo frio e chuvoso, o que havia restado da sede das Lojas Renner foi visto pela última vez por cerca de 200 curiosos que se comprimiam atrás do cordão de isolamento para assistir o derradeiro ato de tudo, o “gran finale”.
Mais de 90 quilos de explosivos tinham sido estrategicamente colocados em pontos sensíveis do prédio que, em poucos segundos, ruiria de “fora para dentro”, uma explosão peculiar, quase asséptica, sem riscos para a vizinhança e inédita no Rio Grande do Sul, garantiam técnicos e autoridades.
A implosão – neologismo cunhado a partir da bem sucedida experiência pioneira com o edifício Mendes Caldeira (30 andares), em São Paulo, por si só já era um espetáculo.
Para aqueles que haviam assistido às imagens na tevê, o efeito lembrava a explosão de uma bomba atômica. Durante semanas, os técnicos da empresa contratada haviam planejado cuidadosamente a operação, anunciada ao público semanas antes, sempre envolta em um certo mistério e, até alguns dias antes, indefinida quanto ao dia e à hora. O nervosismo geral era visível: nada poderia dar errado.
Dezenas de repórteres, cinegrafistas (a tevê transmitiria ao vivo) e fotógrafos colocaram-se a postos desde o início da manhã: às seis horas, a área em volta foi isolada por soldados da Brigada Militar e, em seguida, foi feita a verificação dos prédios vizinhos, evacuados na noite anterior. Era a terceira vez que se fazia uma implosão no Brasil e a primeira em que se contratava uma empresa nacional – a Triton S.A., de São Paulo.
Segundo o engenheiro responsável, Hugo Takahashi, 365 bananas de tritonita – variante da dinamite, ou TNT – a maioria dispostos nos três primeiros pavimentos, em cartuchos espalhados em pequenos orifícios, dariam cabo da resistência das fortes estruturas construídas havia quase meio século.
Três minutos antes da implosão um carro dos bombeiros fez soar a sirene, sinalizando o início da contagem regressiva. Eram exatamente 8 horas e 51 minutos quando o engenheiro acionou o detonador. Ouviu-se então um barulho surdo (90 decibéis), seguido de uma grande nuvem de poeira branca que envolveu toda a praça Otávio Rocha. Pedaços de pedras voaram a uma distância de até 30 metros. Vidraças dos prédios vizinhos rebentaram com a vibração. Do início ao fim, quando todo o prédio ruiu sobre sua própria base, passaram-se apenas seis segundos.
Assim que se dissipou a nuvem de poeira foi-se também a carga de tensão humana e os funcionários da empresa, tentando disfarçar o nervosismo, começaram a conversar animadamente com os repórteres e as autoridades. Hugo Takahashi comentou, satisfeito: “A implosão foi perfeita”. O major Clóvis repetiu a expressão e o secretário Jorge Englert foi ainda mais ufanista: “Isso é uma prova do adianto da engenharia brasileira”.
Já o público – ansioso, à espera de um grandioso espetáculo – não mostrava-se muito satisfeito com o que vira, ou não vira. Empunhando um guarda chuva, envolto dos pés à cabeça em agasalhos contra o frio do final de maio, um homem queixava-se, decepcionado: “Não deu pra ver nada, só a nuvem de poeira”.
A destruição do prédio punha um termo final à busca pelos restos dos desaparecidos que supunha-se ainda estarem sob os monturos. Destes, três trabalhavam na própria loja e os demais eram pessoas que saíram de casa dizendo que iriam fazer compras na Renner e nunca mais voltaram.
Familiares e amigos vinham tentando, sem sucesso, adiar a implosão – eram, contudo, vozes fracas e anônimas demais para serem ouvidas.
Na noite do dia 15, Sábado, uma equipe de médicos, odontologistas, legistas e peritos conseguiu identificar mais três corpos: Luisa Rodrigues Fernandes, 30 anos, Shirles Chaves, 39, e José Francisco Nunes Cerqueira. Eles foram encontrados por volta das 14 horas, por um equipe de funcionários da Triton que fazia a remoção dos escombros. Estavam vestidos e não portavam documentos. “Com certeza não há mais nenhum aqui”, declarou um dos técnicos, em tom definitivo.
Captada a senha, as autoridades municipais sentiram-se à vontade para proclamar que o período de resgate dos corpos estava definitivamente encerrado e o empenho para encontrar aqueles que constavam na lista dos desaparecidos cedeu lugar aos preparativos técnicos que antecediam a implosão.
Não obstante, nesse meio tempo os operários comentavam coisas que logo ganhavam às ruas e respingavam nas redações dos jornais. Sabia-se que a quilômetros dali, em um conjunto de barracos da Vila Farrapos, na Zona Norte da cidade, algumas crianças maltrapilhas habituadas a brincar com o lixo haviam encontrado coisas estranhas, mal-cheirosas e desagradáveis em um terreno baldio. Porém as caçambas prosseguiam despejando peças de roupas, máquinas e tecidos quase intactos – o espólio do grande empório Renner.
No dia seguinte à implosão, uma segunda-feira fria que já anunciava o cinzento inverno gaúcho, seu João de Deus Carvalho, pai de Rui, o rapaz de 19 anos que alguns disseram ter visto caminhando pelas ruas de Porto Alegre na tarde do incêndio, arrumou suas malas e preparou-se para voltar à cidade de Santiago. Durante um mês ele vivera o pesadelo da dúvida, o exasperante drama de percorrer hospitais, albergues e delegacias à procura de uma figura intangível que vira, mas não vira. Por fim, esgotados todos os recursos, nada mais havia a fazer: o próprio cenário da tragédia, o edifício de dez andares no centro da cidade sumira do mapa para mais tarde dar lugar à uma moderna construção com amplas janelas envidraçadas – o novo prédio das Lojas Renner, tão ou mais imponente do que o anterior. E, presume-se, bem mais seguro.
Um dos maiores incêndios em vítimas fatais registrado no Brasil, o sinistro das Lojas Renner matou oficialmente 41 pessoas. O laudo técnico não esclareceu a possível causa.

5 comentários:

José Elesbán disse...

Texto muito impressionante.
Parabéns.

Cassio Rogério Sabino disse...

MEUS PARABENS TEXTO COM EXCELENTE CONTEUDO

Unknown disse...

Gostei do texto, pois consegui descobrir o nome do proprietário do restaurante, que perdeu a vid, ele a esposa e sua sogra pois o Sr. Germano Jonas era irmão do pai de minha esposa, e vamos tentar agora descobrir o nome dos filhos dele e dos netos.

Unknown disse...

parabéns pela qualidade do texto e dos detalhes das informações. Ricardo d'Avila . Eldorado do Sul.

Anônimo disse...

Meu pai foi que ajudou o bombeiro a remover a irmã do jogador Everaldo que estava sobre a marquize ele era pintor do Renner