Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Já se vão 20 anos - quase 21 - que Carlos Drummond de Andrade morreu. Para muitos, o maior poeta brasileiro de todos os tempos, Drummond - pouca gente lembra - faleceu 12 dias depois da morte da sua filha, Maria Julieta. E, conta-se, morreu de desgosto, de falta de vontade de viver, aos 84 anos de idade, às 8h45 minutos do dia 17 de agosto de 1987, uma segunda-feira, no Rio de Janeiro, onde morava havia muito tempo. Sepultado sem orações ou discursos - como pediu, já que era ateu (ou agnóstico, como queiram), Drummond estava internado no hospital, vítima de dores no peito. Cardíaco, já havia sofrido infartos anteriores. Foi sepultado no cemitério São João Batista, na presença de quase mil pessoas - entre eles o presidente em exercício, Ulysses Guimarães - Sarney estava no exterior.
Sua única filha - de quem era não só pai, como o maior amigo ("eles se entendiam só pelo olhar", disse um amigo) - não havia resistido a um câncer generalizado. No enterrro, o poeta confidenciou a um amigo: "Não tenho mais futuro, acabou tudo para mim". Doze dias depois, ele se deixou levar. Coisas que acontecem.
LIXO COMO PRESENTE - Homem fechado, reservado, arredio, tímido, meticuloso como todo bom mineiro, Drummond - nascido em Itabira, em 31 de outubro de 1902, em uma família de fazendeiros - publicou 30 livros de poesia (mais os de crônicas), dos quais foram vendidos mais de 500 mil exemplares. Mas não gostava de teorizar sobre poesia (coisa muito comum entre outros poetas) e preferia que o chamassem de jornalista. Expulso do colégio, em Belo Horizonte, aos 19 anos - por "insubordinação mental" - formou-se em Farmácia ("porque era o curso mais curto"), profissão a qual jamais exerceu. Foi, sim, professor de Geografia e Português, jornalista e funcionário público - por sinal muito exigente. Aos 23 anos casou-se com Maria Dolores - e com ela viveu até o final da vida.
COMUNISTA - Carlos Drummond trabalhou no Ministério da Educação durante a ditadura Vargas, a convite do seu amigo Gustavo Capanema, mas - lá pelos anos quarenta, em especial durante a Segunda Grande Guerra - alinhou-se ao Partido Comunista Brasileiro, o velho PCB, na luta contra o fascismo. Chegou, a convite de Luis Carlos Prestes, a dirigir o jornal do partido - o Tribuna Popular - mas, por incompatibilidade, demitiu-se três meses depois de assumir, por não suportar a ortodoxia comunista e stalinista. Mais tarde, explicou: "O que eu escrevia não saía, e o que saía eu não entendia nada".
Nos anos quarenta, durante a Guerra, compôs poemas bem esquerdistas, até de louvor ao staninismo - num deles saúda a resistência de Stalingrado (hoje com outro nome) aos invasores nazistas. Em 1964, já bem decepcionado com a política, com a esquerda e a politicagem, apoiou o Golpe Militar - dois meses depois já estava novamente decepcionado e enojado com aquilo tudo.
Muito abalado com a morte da filha (teve um filho antes, que morreu poucos meses depois do nascimento), ainda mantinha seus hábitos impecáveis e ordeiros, como o de acordar às 7 horas da manhã e dormir tarde, e o de arrumar as cestas de lixo com tal minúcia que "pareciam presentes de Natal", ou "embrulho de presente". Telefonava seguidamente aos amigos, para saber como estavam e dava lá seus palpites e conselhos.
Cético, bom mineiro, Drummon teve outro grande mérito: já reconhecido com o maior poeta brasileiro - aquele que fazia poesia simples, sem firulas, quase na linguagem do povo - recusou-se a se candidatar à Academia Brasileira de Letras (Moacir Scliar também disse isso nos anos 70, depois quis ser "imortal" e hoje participa dos glamourosos chás da "Casa de Machado de Assis").
E como hoje é domingo, é um bom dia para ler Drummond, na cama, entre as cobertas."E agora, José?
a festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?"
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