Se o sujeito é distraído, ele sofre muito - como todo distraído sabe muito bem, especialmente naquela hora da madrugada, quando se volta pra casa e se procura a chave da porta - cadê ela? Onde é que deixei?
Pois é, mas eu conheci uma pessoa - grande amigo, que, aliás, já se foi - cuja distração o salvou de uma grossa enrascada.
Pra começo, devo dizer que ele era, fisicamente, do tipo do Bill Gates: cabelinho eriçado para cima, um certo ar intelectual, calmo, simpático (isso o tornou um grande vendedor de anúncios) e, sobretudo, um óculos de grau 12 nos olhos, o tal "fundo de garrafa". Grau 12 é soda, é uma quase cegueira, se vê (imagino eu) tudo embaçado e fora de foco e até atravessar uma rua pode se transformar uma séria dificuldade.
Um dia esse meu amigo estava jantando em uma pizzaria ali perto do Hospital de Clínicas, na companhia do seu irmão. Era noite e a casa estava quase cheia - eles lá, em um canto, conversando e bebendo uma cerveja.
Acontecia da mesa deles estar localizada de frente para a porta de entrada. Uma hora, meio para o final da noite, entraram três sujeitos - e esse meu amigo, que chamávamos de Moquinho (diminutivo de Mocorongo) levantou os olhos, distraidamente, olhou o cidadão e, sabe-se lá porquê - no meu entender, por distração, ou porque pensou conhecer o sujeito ou ainda porque ele era gente boa - cumprimentou-o com um "e aí?", fazendo o gesto de positivo com o polegar.
A conversa deles continuou normalmente, regada por uma bebidinha, até que, uns quinze minutos depois, os três fregueses que haviam chegado sacaram as armas e anunciaram: era um assalto. Foram até o caixa, recolheram tudo o que havia para recolher e, depois, passaram a percorrer as mesas, de armas em punho, saqueando todos os pertences da clientela.
Nessa hora Moquinho e seu irmão se tocaram que estava acontecendo um assalto - e que todos, inclusive eles, teriam de entregar tudo para os bandidos. Calmamente, foram retirando carteira, relógio (celular não, porque isso aconteceu há mais de 10 anos), documentos, e colocando sobre a mesa, conforme os caras ordenaram.
Quando um dos assaltantes chegou à mesa dos dois, para pegar o que tinha, o outro - o que era o chefe e que meu amigo havia cumprimentado, sem nunca ter visto mais gordo - interveio e ordenou ao comparsa: "Esses aí não, esses tão liberados". Em seguida, deram no pé e nunca mais foram vistos - foi, como se vê, um assalto bem sucedido.
Penso nisso e dou risada toda vez que me lembro. E não deixo de considerar que aqueles bandidos foram gentlemans, verdadeiros cavalheiros da ordem da bandidagem, agiram como profissionais no sentido mais lato da palavra. Provavelmente o chefão deles considerou que aquele gesto com o polegar, de positivo, lhe trouxe sorte (e acho que trouxe mesmo) e que meu amigo, no fundo, era mesmo um cara simpático - e era. Quer dizer, por causa de um simples cumprimento, de um gesto civilizado, Moquinho e seu irmão foram os únicos a escapar da pilhagem, os únicos que não perderam nada. Vejam só como a distração às vezes pode ser uma grande qualidade.
Já a direção da pizzaria, imagino, ficou com a pulga atrás da orelha em relação aos seus dois fregueses. Quem sabe lá não estavam coniventes com os assaltantes e foram ali para sacar qual era a do ambiente? Bom, o certo é que os dois irmãos nunca mais voltaram lá. A sorte dificilmente bate duas vezes à mesma porta. (Conselheiro X.)
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