Hoje, em 1988, morria Henfil, o pai da Graúna e de tantos outros personagens. Nesta entrevista, publicada pela revista Caros Amigos, muitos anos depois da sua morte (e que republicamos agora), ele fala da sua infância, da ditadura, do medo da morte e de muito mais.
por Neusa Pinheiro
Neste mês, Henfil faria aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. Morreria de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. Hemofílicos, receberam na obrigatória transfusão a que se submetiam sangue contaminado. Um quase homicídio de cada um. Henfil morreu aos 43 anos, em 1988. Esta entrevista foi feita em 1983 por Neusa Pinheiro e ficou guardada até agora com a intelectual e socióloga paranaense. Uma entrevista confessional, instigante e,muitas vezes, arrepiante.Ano: 1983. Sertaneja pé-vermelho, bicho do Paraná, resolvi me aventurar: Sampa, o centro nervoso espasmódico desta América. Talvez quisesse me diluir, me dissolver um pouco. Saber mais sobre o desamparo. Comecei chorando sobre o viaduto do Chá, com a chuva fina. Depois fui caminhando até escorrer bem devagar pela grandeza da avenida Paulista. Mundo pequeno. Cruzei um amigo, Ademir Assunção, jornalista, poeta. Sugeriu algumas estratégias de sobrevivência. Escrever, por exemplo. Entrevistar pessoas, ora. De cara, me passou o número do telefone de Henfil. “Henfil? Mas ele mora no Rio...” “Não, não, chegou aqui há poucas semanas, saúde precária, complicações da hemofilia, tratamento no Hospital das Clínicas etc.” Eu jamais havia entrevistado alguém. E agora? Logo o Henfil... Não podia ser o telefone da Rita Lee? Ou quem sabe o do Itamar Assunção, lá na Penha. Já conhecia o “nêgo Dito”, desde Londrina, era mais acessível... Era? Bom, e a Rita... loveLee Rita, como disse a Ná. Mas Henfil, Henfil era um mago desequilibrista. Na década de 70, num Brasil repressivo, desbancava consciências com seus cartuns – tanto o aspirante a uns poucos dias de clandestinidade, com planos cinematográficos de fuga, como o mais atuante e engajado dos democratas. Tanto os normais como os patogênicos, enfim... nem o torturador mais cruel (se lesse, às escondidas, uma tira que fosse, das sacadas “henfilianas”) seria o mesmo no dia seguinte.
A partir do Nordeste (zona de refinada alquimia, onde miséria sempre se transmuta em arte), Henfil criou personagens extraordinárias para retratar, com uma riqueza e um humor sem precedentes, a história surreal de um país inteiro. Henfil. Mineiro nascido Henrique de Sousa Filho, na Vila n¼ 21 de Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Henrique, mesmo nome do pai, também pai do Betinho. Betinho, quase substância do sonho brasileiro, o “sociólogo esquálido”, segundo o gordo Delfim Netto; o primeiro santo ímpio brasileiro, segundo alguns amigos. Aquele que mandou às favas o academicismo estéril com a sua Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, mobilizando este bruta Brasil.Bom... Henfil. Como discar o número? Dizer não sei que lá? Certo, eu diria que na faculdade a turma da pesada reproduzia, conforme o assunto, algumas tiras da revista O Fradim, no nosso boletim, Bóia Fria. Depois, diria que, na época, revirava a imprensa alternativa em busca das charges, das histórias da Graúna, a pássara magrinha e pretinha, síntese magistral de todas as mulheres, de todos os tempos. Amava a Graúna, ela me humanizava, eu me sentia menos culpada de existir. E ria. Mas também chorava junto. Contaria ainda sobre as cartas que ele escrevia de Nova York pra mãe, dona Maria da Conceição, cartas publicadas pela imprensa daqui. Me ensinaram muito sobre o meu país, me aproximaram mais de minha própria mãe e de minhas filhas.Acabei por não dizer nada disso. Aguardei alguns dias, noites de insônia. E, num repente, liguei. Ele, ele próprio atendeu. Não sei como, nem sei de onde, fui incisiva, direta: meu nome é fulana, peguei seu telefone com beltrano e quero entrevistá-lo com tal objetivo. Alguns segundos de silêncio. Então, ouvi apenas: “Quando?” “Amanhã... (eu mal respirava)... pode ser amanhã às 9?” “Tudo bem”, ele disse. Anotei o endereço, consultei o guia. Era próximo ao HC.
O amanhã seria no dia 26 de outubro de 1983. Manhã limpa, ensolarada. Fui a pé, andando rápido, respirando forte (havia me instalado em Pinheiros, na Capote Valente). Pronto. Havia chegado. O dedo indicador mal tocou a campainha. Ele abriu a porta. Não me lembro do teor do cumprimento. Mas havia muito silêncio. Como aquelas igrejas sozinhas, perto de alguma cidade interiorana. Caminhei pé ante pé, a uma distância mínima dele, talvez um palmo aquém, sentidos a mil. Henfil ia vagaroso pelo corredor; andava com dificuldade (um tigre/quando caminha pelas pedras/vai/como pisando pétalas – o poema saiu de algum lugar dentro de mim, bem ali). Entramos num compartimento claro, sol batendo na janela. “Com licença.” (A voz dele soou como minidecreto lapidar e, num gesto simultâneo, quase imperceptível, retirou do meu rosto os óculos escuros. Até aquele momento, sem me dar conta, eu me escondia.) Imóvel, fixou o olhar no meu, um olhar percussor, operação atômica ligando fios, compondo algum novo sistema de reconhecimento. Claro, não se pode penetrar na natureza do outro sem que a nossa própria se dê a conhecer. Teoria quântica, visão mística, intuitiva... não importa. A entrevista se perdia como significante e entrava em cena uma outra dimensão, um estado inusitado de sincronismo, a certeza de um encontro com jeito de predestinação.Ele se sentou com certo desconforto, inchaço, dores fortes num dos joelhos. Mas o rosto era sereno, desarmado, os olhos já antecipando revelações. Liguei o gravador. E teve início uma estranha viagem. Henfil, o criador, o visionário, fez o retorno e veio trazendo a si mesmo. Desde quando? Me veio um sentimento imperioso de responsabilidade, como uma prova. “Atenção, e toma antes o caminho da direita, no qual está, para te ajudar, o lago da memória.” Com sua brancura quase transparente, poderoso na voz e nas palavras, Henfil me lembrou o mito de Orfeu, que, a bordo da “branca nave” (Argo), partiu em busca de uma consciência mais elevada e ampliada, passando por duras provas. Com seus companheiros (heróis e filhos de heróis, semideuses – que, numa rápida transposição, bem poderiam encarnar a nós próprios, esses argonautas, personagens da arte de Henfil), Orfeu foi à procura do Velocino de Ouro, a essência da alma. Mas esta é uma longa história. Henfil, um alquimista. No seu trabalho, o mágico e o fantástico eram aliados do real, revelações desse sentido plural da alma brasileira, que carnavaliza as próprias penas, que paga a peso de plumas o chumbo que leva. Cada movimento negado a si por conta da hemofilia, ele o forjou e modulou em figuras resplandecentes e ilimitadas, figuras completamente apaixonadas pela vida .Eu não saberia concluir o que escrevo agora. Na despedida, levei o Diário de um Cucaracha como presente. Na dedicatória, o desenho, em caneta Bic, de uma barata imensa e abusada. Voltei pra casa sem saber muito bem o que sentia. Sabia apenas que era uma vez. Uma só. E eu era outra coisa.Ao me aproximar da minha rua, ouvi uma gargalhada endoidecida e fui me aproximando. Era Teresa, uma negra imensa de voz trovejante (cantava o tempo todo) que morava ali, numas caixas de papelão. Teresa estava sentada sobre uma caixa de maçã ao lado de uma banca de revistas. Tinha nas mãos um velho Fradim e, quando cheguei perto, vi. Era a Graúna.
Como você chegou até aqui? É difícil ser Henfil?
O por que fazer, o que fiz... como aconteceu... a palavra que vem é morte, é a palavra-chave; na maioria das pessoas, a consciência da morte vem aos poucos. Tem a morte de alguém, evita-se falar de morte; para crianças, tem os simbolismos: “foi pro céu”, “vovô foi prum país muito distante”, a morte não é uma coisa presente para as crianças em geral, se bem que criança pobre tem essa consciência muito rápido. Pra mim, apesar de não ter nascido na favela, não ter nascido no Nordeste, a consciência da morte era muito precisa porque todo mundo olhava aquela criança que nascia e dizia: “Coitadinha, vai morrer, nossa, que sofrimento vem aí”. Quer dizer, mesmo que não entendesse, eu sentia a barra e a barra era: “Vai morrer por causa da hemofilia”. Naquela época, em 1944, ninguém sabia direito o que era isso nem que o nome era esse; era apenas uma criança que nascia com uma deficiência no sangue, qualquer tipo de machucado o sangue ia saindo até a pessoa morrer. O fruto disso foi que peguei uma consciência de morte, ou seja, de urgência. Viver é uma tarefa urgente porque amanhã é uma coisa que não dá pra pensar, não dá pra fazer planos, hoje é urgente, o amanhã é a morte, ontem, graças a Deus teve ontem! Claro que isso desenvolve um comportamento que nas universidades eles chamam de psicologia: de sensibilidade e de vigilância total. Andar é uma tarefa para profissionais, o mesmo preparo que o Nelson Piquet tem pra pilotar eu tinha que ter pra andar, não podia falhar. A convivência também era uma tarefa pra profissional, equivalente à de qualquer pessoa que participe de uma batalha, na guerra; então, eu tinha que saber rastejar, tinha que parar de respirar, tinha que perder meu cheiro às vezes para não me denunciar e sofrer represália e a morte. Tudo isso fazia parte de uma criança; a sensibilidade vem daí. Se na nossa sociedade a perda dos sentidos – audição, olfato, visão – é uma coisa que “não prejudica” (todo mundo perde isso em função da civilização), se a pessoa continua sua vida normalmente, adquire erudição, vive através dos livros, do cinema, da orientação de um líder, de um pai/mãe, de uma religião, pra mim isso não bastava, eu tinha que ter o controle manual nas minhas mãos e não deixar nunca no piloto automático da orientação externa, porque minha orientação era especial, logo, eu tinha que ter o meu próprio controle. Por isso eu desenvolvi uma visão maior que o normal, uma visão de índio, um olfato de índio, uma audição de índio. Vamos exemplificar melhor: se você ouve um barulho atrás de você, você simplesmente vira o rosto e olha pra constatar o que é. Eu pulo. Me coloco primeiro fora do alcance daquele barulho e depois olho. Um dia eu estava sentado na banheira, lá no Rio, fazendo a barba, quando senti o início de um chiado que prenunciava uma explosão, pulei e atrás de mim explodiu o aquecedor, que não me atingiu. Outra vez, tô dirigindo e tem uma lombada e, sem que eu perceba, jogo o carro no acostamento e atravesso a lombada no acostamento, quando chego em cima do acostamento vem vindo um ônibus na contramão... Os meus sentidos são mais desenvolvidos que o normal. Se você sai comigo de carro vai levar um susto, tomo determinadas atitudes bruscas no volante que pra você são atitudes inexplicáveis, mas logo depois você vê que alguém fez alguma coisa ali na frente que nem eu nem você vimos, mas o corpo sente, que é a coisa de precisar dar o pulo antes. Observo as pessoas, interpreto as pessoas e procuro computar todos os dados rapidíssimo, para prever o comportamento delas, porque, se houver alguma coisa agressiva, eu já tô na defesa há muito tempo, já tô fora do alcance do ataque. Então, essa é a infância, essa é a adolescência e, quando você chega a adulto e que, óbvio, não há tantas ameaças e você tem o conhecimento do teu lado e você vai trabalhar, isso tudo passa pro teu trabalho. Então, quando vou desenhar, vou criar, a minha percepção das pessoas me parece mais disciplinada que a de qualquer outro artista. Quando vou escrever é a mesma coisa, as palavras pra mim não são gratuitas, não consigo usar nenhuma palavra de forma gratuita. Estamos conversando aqui, eu vou escolhendo. É como se eu estivesse lá na frente puxando as palavras. Claro que isso vem dessa deformação de alguém que foi treinado pra andar no meio da selva e de repente anda na cidade e fica feito aquele vovô Fracolino, do Bolinha/Luluzinha, que está sempre cercado pelos índios, quer dizer, eu tô mais ou menos desse jeito. E aí, todo um trabalho, que no caso foi escrever, desenhar, fazer televisão, ele é muito é exato, é muito rápido, é muito sensitivo, é como se eu tivesse me transformado num radar; inclusive acho que não existo como a maioria das pessoas poderia dizer: “Eu sou isso, aquilo etc. e tal” – eu não sei o que é que eu sou. Nesse exato momento, por exemplo, tô tranqüilo porque há exatos dois anos atrás senti as emissões de conturbações até na área política internacional, fico detectando o que os Estados Unidos vão ou não fazer, se houve uma invasão ontem eu já sabia, já estava previsto pelas emissões que eu havia captado. E, se por um acaso o general Newton Cruz se comporta dessa ou daquela maneira no estado de emergência em Brasília, eu já captava porque já sigo as emissões do general Cruz há muitos anos. Se vem uma onda boa, eu também já estou mais ou menos preparado pra ela. Daí se explica por que a maioria das coisas que eu faço está com dez anos na frente, não na frente em termos de vanguarda, não na frente do que aconteceu, mas quase como profecia. Por exemplo, fui pros Estados Unidos entre 1973 e 1975. Senti uma série de coisas lá, todas em relação ao Brasil. Volto, dez anos depois sai Diário de um Cucaracha, um livro que está vendendo paca. Lista dos mais vendidos, primeiro lugar na lista da Veja, mas acho interessantíssimo como as pessoas só agora descobrem algo como o que está escrito no Diário que pra mim já tem dez anos, já passou. Só hoje elas estão tomando conhecimento de como nós somos tratados pelos Estados Unidos, pelas multinacionais, de como somos baratas, de como somos cucarachas, de como eles não nos respeitam. Então, hoje, qualquer brasileiro sabe o que é ser cucaracha, mas isso foi uma vivência minha anos atrás, e o livro fica atualíssimo. Outro dia me escreveu um cara, um adolescente. Tinha uns 15 anos, morava no Rio de Janeiro, logo, era um adulto, e ele lia o Fradinho, adorava, achava muito engraçado mas não entendia nada, e guardava, e hoje, dez anos depois, ele resolve ler e fala: meu Deus do Céu, tudo que falava lá agora eu tô entendendo: o que está acontecendo, inclusive a mudança de atitude das oposições no Brasil, as táticas diferentes mais abertas para uma ação, vamos dizer, dialética ou mais contraditória, mais imprevisível, as oposições hoje no Brasil não têm mais aquela previsibilidade de antigamente e o Fradinho propunha isso dez anos atrás. Foi como quando bolei um filme em 1973 em Nova York, que se chamava Deu no New York Times e que contava o papel da imprensa na criação de fatos que não existiam mas que passavam a existir porque ela publicou; e só hoje, dez anos depois, tenho condições de realizar esse filme porque os produtores estão vendo que o filme é atualíssimo. Essas campanhas que eles vão criando sobre fatos que não existem, mobilizam a opinião pública pra cantar determinada coisa que nem passava pela cabeça do povo cantar, mas aí a imprensa diz que é o que o povo está cantando e o povo passa a cantar. Então acho que qualquer outra explicação sobre por que saí por onde saí e faço o que faço da maneira que faço tem que passar por entender isto: a morte, o sentimento de urgência e a sensibilidade ultradesenvolvida para se proteger da morte.Você se salvou fazendo o que sempre quis.
E as pessoas de que você fala, as pessoas da sua geração, como estão?
Olha, cada vez mais percebo que, na realidade, eu não estava fugindo da escola, não, eu estava fugindo da idade, talvez por isso tenha tomado tantas bombas, pra ficar junto dos que estavam vindo ainda e não tinham feito nenhuma opção. Eu me sentia muito bem com 17 anos, convivendo com a turma de 11, 12 anos, não lembro de me tratarem como mais velho, era igualzinho. E hoje, por exemplo, não consigo conviver com os da minha idade, com os de 39 anos. Ou convivo com os de 70. Meu maior diálogo no momento é com Teotônio Vilela, que está com sessenta e poucos anos, mas poderíamos dar duzentos, porque de cabeça ele tem uns duzentos anos. Tem muitos amigos assim. Agora, só consigo conviver com a turma de 20, 22. Minhas relações acabam sendo fáceis mesmo com a turma entre 16 e 20 anos. Então tem um outro mistério nesse negócio: de novo tô eu na 3» série ginasial, apesar de o meu grupo já estar na universidade! Eles, pra mim, estão mortos, chego lá, nem entro na casa, já sei como é a casa dele, a relação com a mulher, com o filho, com a profissão... ficam vendo televisão como se fosse informação de alta precisão e importância, lêem jornal com cuidado como se estivessem lendo documentos egípcios, decifrando pedras como Champolion, e não percebem o ridículo das suas roupas, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus carros, cargos. Eles me constrangem muito e me fazem adoecer. Tenho muitos amigos que eu gosto deles, eles gostam de mim, mas as nossas relações estão cortadas por essa situação. Eles ameaçam a minha saúde, fico muito constrangido. Se a Graúna, quando fica constrangida, tem desarranjo intestinal, eu fico doente também. Não com desarranjo intestinal, mas me dá dores, eu fico com artrite!A Graúna é meio sacana às vezes.
Mas a gente se apaixona por ela... a Graúna tem alguma coisa a ver com o seu lado mulher?
Não. Inclusive, outra coisa em que não embarquei foi esse negócio do lado mulher. Descobri que realmente existem homem e mulher, duas coisas, completamente distintas. Os homens que se fazem mulheres, no caso dos travestis, são bem diferentes delas, são como homens vestidos de mulher, tomam a forma de mulher mas são homens, não adianta, isso faz parte de uma coisa que a natureza nos dá a todos, mas com muita diferença. Por exemplo, esse comportamento infantil é típico do homem... é... a criancice é típica do homem. A mulher nunca foi criança, nunca será criança. Ela vem preparada pra ser algo especial no mundo, que, no caso, é uma coisa irreversível, não há nada que possa evitar isso que é o gerar filhos. Ela é mais preparada numa série de coisas. O filho do homem é a bomba atômica, é o plástico, quer dizer, ele tem que arrumar uma outra forma. Tanto que Deus, que é homem, arrumou barro pra brincar de fazer a Terra, os seres humanos, deu o sopro, aquelas coisas... Nossa Senhora não precisou fazer nada disso. Simplesmente gerou Jesus Cristo, só isso e já fez tudo. O fato de ter um filho torna a mulher um ser adulto desde que nasceu, inclusive ela está pronta pra ter o filho, as meninas desde criança são especiais, você nota. Uma menina é muito mais viva, muito mais rápida, muito mais agressiva, muito mais inteligente do que um menino. Depois, como a disparidade é muita, o que a sociedade faz através das mães, da mulher? Ela paralisa o desenvolvimento da menina. Como? Desviando pra tarefas menores, como cozinhar, lavar, varrer chão, que é uma coisa obrigatória pra qualquer menina, ou desenvolver uma outra sensibilidade, mas fora da convivência social, como balé, piano, violino, quer dizer, paralisam a menina. O menino, por outro lado, é superativado porque em geral ele é muito bobo, é muito devagar, é mais burrinho; ele não é agressivo, é chorão, é superdevagar. Então, o que fazem? Esporte pra que ele fique mais rápido porque, se deixar, o homem fica mais fraco do que a mulher. O homem não tem estrutura física nenhuma; só tem osso, mas é através do esporte que ele fica mais forte, tanto que o intelectual, aquele que não teve uma atividade física, é muito frágil, magrinho, aquela coisa desprotegida, qualquer mulher com um tapa derruba ele. Então, o homem vai desenvolvendo, através do esporte, através do jogo, através do exército, agressividade que não tem. Ele é treinado tanto, que os primeiros dias no exército são um terror pra qualquer homem, mas depois ele é condicionado. À escola, só o homem ia, só o homem tinha conhecimento, lia pra que, quando chegasse aos 30 anos, fosse igual a uma menina de 15. Tanto que, antigamente, homens de 30 se casavam com mulher de 15, porque, se casassem com mulher de 30, eles estavam esmagados. Quando eles chegavam nos 50 anos, a mulher estava chegando nos 30, e eles estavam iguais, o homem era capaz de perceber. É por isso que os casamentos davam mais certo, porque não havia tanta distância de inteligência entre o homem e a mulher. No entanto, ainda assim a mulher efetivamente é mais adulta. O homem endurece o corpo à força dos exercícios físicos, através de um comportamento que a mãe influencia; se vê ele brincando de boneca, de casinha, vai dizer “mariquinha” – a mãe é que fala, o pai nem passa isso pela cabeça, o pai é o meninão que está no bar dando cuspe na parede, bebendo, se exibindo feito qualquer criancinha. Todos os pais são meninos, vão pra campo de futebol, ficam torcendo, gritando e, na hora do gol, carregam os jogadores... isso é o pai. Mas a mãe está ali vigilante, endurece o jogo com o menino, então esse menino vira o que eles chamam de homem, esse homem cumpre as suas funções, mas jamais deixará de ser menino... Ah, sim, a parte mulher, então esse homem se transforma, se embrutece, é morto como ser humano e é capaz inclusive de virar um Fleury, vira um cara esquadrão da morte. Devido a esse treinamento, mataram o menino que ele vai ser até o fim... se deixassem, a gente teria um bando de homens meninos por aí e as mulheres cuidando de tudo. Bem, quando você disse que existe a parte mulher, não é justamente essa coisa a parte menino, essa parte que dizem feminina só existe naqueles meninos que não viraram homem, que não foram transformados, torneados, exercitados para serem homens, homens fortes, homens soldados, homens músculos, homens atletas, homens massa. Só terão essa parte chamada mulher ou chamada menino os homens que escaparam do treinamento. E as mulheres permanecem nas suas funções normais, que é menina que vai ter criança e que, portanto, vai continuar convivendo com os meninos e meninas dentro dessa convivência de sensibilidade, de ter de perceber tudo pra saber se vai chorar ou não vai chorar. O homem que permanece menino, dizem que isso é a parte feminina, não tem nada a ver, apenas eles se salvaram. Agora, os homens estão sendo dispensados gradativamente dessa tarefa de lutar, porque as armas estão substituindo os homens, o soldado não está com nada; hoje, o míssil substitui milhões de soldados, então não precisa preparar o homem pra ser soldado, e com a entrada, por fatores econômicos, da mulher no mercado de trabalho produzindo riquezas etc., essas mulheres começam a deixar de ser infantis, a deixar de ter sensibilidade e, apesar de estarem preparadas biologicamente pra ser mulheres, elas se transformam violentamente, elas se transformam em seres que têm a mesma brutalidade dos chamados homens. Por exemplo, Golda Meir em Israel fez todas as guerras; Indira Ghandi fez todas as guerras e continua com o poder na Índia; guerras, massacres incríveis em cima daquelas tribos. A mulher mais perigosa na política internacional, hoje, é a Margaret Thatcher na Inglaterra, que invadiu as Malvinas, que invade o que for, que tem uma política agressivíssima, está rearmando a Inglaterra internamente, leis de exceção etc. E temos no Brasil uma série de mulheres muito mais perigosas, em todas as áreas, do que os homens; e os homens, como foram dispensados disso, tem muitos homens meninos aí. Então, o homem que está surgindo, o novo homem, é muito mais frágil fisicamente do que o homem de dez anos atrás, e temos aí uma série de mulheres fortes fazendo cooper, musculação; a dança é praticamente um treinamento físico, talvez mais rigoroso que o exército. São mulheres fortíssimas fisicamente e vão virando aquilo que o povo na sua ignorância e sabedoria diz, a mulher está virando homem e é neste sentido: endurecimento, embrutecimento, rigidez, está tendo enfarte, vão ficar carecas, está tendo todos os problemas que o homem tinha quando passava por isso. E diz o povo, na sua sabedoria, que os homens estão virando mulher e, então, sim, aquilo que se chamava mulher, que é menina, a sensibilidade, a brincadeira, você pega qualquer grupo de rapazes, parecem meninos indefesos. Eu vou fazer conferências e descubro que 99 por cento da platéia são mulheres; lançamento de livros, mulheres; quem lê os livros, mulheres; quem está no comando médio das empresas hoje, mulheres; daqui a pouco elas estão no comando total. E veja como esse negócio de lado feminino é uma brincadeira dos meninos cantores que inventaram isso pra serem mais agradáveis à platéia musical, que é constituída de mulheres. São elas que compram discos, então eles ficam paparicando as mulheres com isso “ser menino e menina”, “o meu lado feminino”, e vem o Gil, o Caetano, todas essas pessoas que são fisicamente frágeis são meninos brincalhões, daí as mulheres fortes musculadas ficam adorando e até incentivando isso, porque o homem vai ser desarmado. A mulher percebeu – a mulher especial chamada mãe – que aquele menino que era inofensivo e brincalhão e que ela ajudou a transformar em soldado perigoso, esse homem ameaçava a vida das mulheres, então parece que elas resolveram desativar isso e só vamos ter homens frágeis, pianistas. Os homens ficam estudando estrelas e as mulheres vão trabalhar, vão dominar o esquema financeiro, econômico e vão à guerra, inclusive porque vão estar mais preparadas fisicamente. Quer dizer, há uma questão aí, que falo em termos caricaturais, mas isso que é muito próximo do real e que não há condições de existir no homem o lado feminino.
Henfil, como é que você imagina, hoje, o encontro entre um punk e um hippie da década de 60?
Um encontro entre o shopping e o MacDonald’s. Os dois são produtos fabricados, fabricações de laboratório. Não vejo o menor conteúdo político, social ou econômico nesses dois fenômenos. Eles só existiram porque são inofensivos e portanto interessam, podem ser veiculados pela imprensa, pela televisão... eu já tenho algum tempo de vida pra ter assistido a fenômeno semelhante, como o ator James Dean, de Juventude Transviada – surge um comportamento padrão para que determinados tipos de pessoas possam se enquadrar. Você veja que, de um lado, aqueles que se enquadram como punks usam roupas iguais às de seus idealizadores americanos porque qual é o punk brasileiro, por exemplo? É o trombadinha. Então, o produto estrangeiro veio, os caras adaptam. Agora, nós temos a grande massa que se identifica com um outro modelo que é o do corredor que usa Adidas, esportista, aquelas coisas. Enfim, o que nós temos são fábricas, os criadores se sentam em volta de uma mesa, e a partir do zero criam alguma coisa, fazem o produto e as pessoas vão lá e se enquadram no produto, consomem o produto até que uma nova fábrica tenha no seu departamento de criação uma nova idéia... as pessoas largam aquela e passam a adotar essa. É mais ou menos como se a indústria farmacêutica fizesse o seguinte, e faz: cria o remédio, depois cria a doença. Até fiz um cartum que é assim: um cientista chegando pro dono do laboratório, falando: “O seu remédio foi aprovado, agora o nosso departamento de marketing está estudando a criação da doença”. É isso que a gente vê por aí. Meu filme Deu no New York Times é exatamente sobre isso, como é que você cria alguma coisa que não existe e as pessoas passam a se comportar a partir daquilo. No caso, vou criar uma notícia sobre um fato político, uma nação inteira passa a adotar o que é dito. Você veja como de repente a Sony lança o walkman e todo mundo passa a usar o walkman. Bem, resolveram criar a discothèque. Bolaram todo um plano, depois criaram alguns filmes. Aqui no Brasil juntaram alguns compositores, pegaram As Frenéticas e criaram o Dance, Dance sem Parar... veio a Rita Lee e entrou, veio Gil e entrou, veio Caetano e entrou, todo mundo entrou, prepararam e todo mundo saiu dançando, e pra isso precisava um tipo de sapato que era meio de saltinho alto, meia colorida comprida, um tipo de saia, um tipo de bustiê, um tipo de coisa amarrada na cabeça, óculos multicoloridos; e os homens, a camiseta, com os braços de fora, um cintão, um botinão, uma calça superjusta e colorida, enfim, como o Travolta aparecia no filme. E aí todo mundo saiu consumindo isso. E muito dinheiro foi ganho pelos produtores dessa cultura dita universal. Você pode, inclusive, comprar ações dessa cultura, você vai na bolsa de valores e pede: “Eu quero ações dessa nova cultura que vem aí”. Então eles falam: “A nova cultura é Rhodia”. Você compra ações da Rodhia e aí você vê grandes nomes da música, da literatura e do cinema que passam a ser empregados dessa Sociedade Anônima Cultural.Com tudo isso, fala-se em final dos tempos, final de milênio... como é que você faria um cartum sobre isso? Eu não aceito esse negócio de milênio. De repente, nós aqui, a partir do nascimento de Cristo, comemorando o ano 2000 depois de Cristo. Ora, ora, ora, os orientais estão comemorando o ano 20000, os judeus comemoram não sei se o ano 4000, por aí. Os índios comemoram o quê? Um milhão? As pedras comemoram o quê? O ano 1 trilhão? As águas, que ano estão comemorando? Ora, ora, ora, diria o Teotônio Vilela quando fica irritado, não há milênio coisa nenhuma! Como é que há milênio se neste exato momento nós temos um satélite, maravilha da tecnologia, girando em torno da Terra, que possibilita as comunicações por telefone a distância, o DDI, o DDD; pois bem, vamos pegar um telefone desses, vamos levar esse telefone, como já está sendo levado, como a maravilha da tecnologia, e vamos ao sertão do Piauí e colocamos na boca do sertanejo pra que ele dê testemunho dessa maravilha, dessa tecnologia. O que é que ele vai falar? Ele vai falar: “Socorro!” É pra isso que serve a tecnologia, pra aproximar do primarismo que a gente está vivendo. Então não existe ano 2000, não adianta computador, se ele vai computar quantas pessoas, quantas crianças morrem em mil de fome, de sede, quer dizer, nós não temos água garantida pra todo mundo, apesar de ter água. Então, isso de milênio é mais uma promoção do departamento de marketing da Sociedade Anônima Cultural, é uma farsa. Não entro nessa sociedade anônima, não compro ações do shopping center, não pertenço ao shopping center; as pessoas entram, eu saio. Tem esse negócio chamado década, década de 60, década de 70... que década o cacete! Não existe isso. E eu não tenho 39 anos. Eu tenho milhões de anos, já tenho conhecimento mínimo suficiente hoje pra saber que sou fruto genético de uma ameba. Não sou filho de dona Maria da Conceição. Sou filho de uma ameba há trilhões de anos. Não tenho 39 anos, tenho trilhões de anos.
E tem planos? Quais são seus planos? Planos?
Tenho. Esticar a minha vida o máximo possível – e é possível – desde que eu viva intensamente os meus segundos, então tenho urgência. Meu plano é: se vou morrer, não tenho tempo a perder. E, como sou herdeiro de uma simpática ameba há trilhões de anos, tenho que dar seguimento a isso rapidinho porque não quero ser como a gente vê no Fantástico, aqueles milhões de células, milhões de espermatozóides querendo fecundar alguma coisa; e uns vão parando no meio do caminho, se distraem, não prestam atenção, se perdem e aí não fecundam! Eu quero fecundar alguma coisa, então tô com muita pressa e tô prestando muita atenção porque a minha morte vai se dar no dia em que eu fecundar alguma coisa.
Você tem medo da morte?
Não. Eu tenho medo é de avião.
Obras do Henfil, além das histórias em quadrinhos
Teatro - A Revista do Henfil (em co-autoria com Oswaldo Mendes)
Cinema - Tanga - Deu no New York TimesTelevisão - TV Homem, do programa TV Mulher, na Rede Globo
Livros - Hiroshima, meu Humor (1976) Diário de um Cucaracha (1983) Dez em Humor (coletiva, em 1984) Diretas Já (1984) Henfil na China (1984) Fradim de Libertação (1984) Como se Faz Humor Político (1984) Cartas da Mãe (1986)
por Neusa Pinheiro
Neste mês, Henfil faria aniversário, nasceu em 5 de fevereiro de 1944. Morreria de Aids, como dois de seus oito irmãos, Mário e o Betinho. Hemofílicos, receberam na obrigatória transfusão a que se submetiam sangue contaminado. Um quase homicídio de cada um. Henfil morreu aos 43 anos, em 1988. Esta entrevista foi feita em 1983 por Neusa Pinheiro e ficou guardada até agora com a intelectual e socióloga paranaense. Uma entrevista confessional, instigante e,muitas vezes, arrepiante.Ano: 1983. Sertaneja pé-vermelho, bicho do Paraná, resolvi me aventurar: Sampa, o centro nervoso espasmódico desta América. Talvez quisesse me diluir, me dissolver um pouco. Saber mais sobre o desamparo. Comecei chorando sobre o viaduto do Chá, com a chuva fina. Depois fui caminhando até escorrer bem devagar pela grandeza da avenida Paulista. Mundo pequeno. Cruzei um amigo, Ademir Assunção, jornalista, poeta. Sugeriu algumas estratégias de sobrevivência. Escrever, por exemplo. Entrevistar pessoas, ora. De cara, me passou o número do telefone de Henfil. “Henfil? Mas ele mora no Rio...” “Não, não, chegou aqui há poucas semanas, saúde precária, complicações da hemofilia, tratamento no Hospital das Clínicas etc.” Eu jamais havia entrevistado alguém. E agora? Logo o Henfil... Não podia ser o telefone da Rita Lee? Ou quem sabe o do Itamar Assunção, lá na Penha. Já conhecia o “nêgo Dito”, desde Londrina, era mais acessível... Era? Bom, e a Rita... loveLee Rita, como disse a Ná. Mas Henfil, Henfil era um mago desequilibrista. Na década de 70, num Brasil repressivo, desbancava consciências com seus cartuns – tanto o aspirante a uns poucos dias de clandestinidade, com planos cinematográficos de fuga, como o mais atuante e engajado dos democratas. Tanto os normais como os patogênicos, enfim... nem o torturador mais cruel (se lesse, às escondidas, uma tira que fosse, das sacadas “henfilianas”) seria o mesmo no dia seguinte.
A partir do Nordeste (zona de refinada alquimia, onde miséria sempre se transmuta em arte), Henfil criou personagens extraordinárias para retratar, com uma riqueza e um humor sem precedentes, a história surreal de um país inteiro. Henfil. Mineiro nascido Henrique de Sousa Filho, na Vila n¼ 21 de Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Henrique, mesmo nome do pai, também pai do Betinho. Betinho, quase substância do sonho brasileiro, o “sociólogo esquálido”, segundo o gordo Delfim Netto; o primeiro santo ímpio brasileiro, segundo alguns amigos. Aquele que mandou às favas o academicismo estéril com a sua Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, mobilizando este bruta Brasil.Bom... Henfil. Como discar o número? Dizer não sei que lá? Certo, eu diria que na faculdade a turma da pesada reproduzia, conforme o assunto, algumas tiras da revista O Fradim, no nosso boletim, Bóia Fria. Depois, diria que, na época, revirava a imprensa alternativa em busca das charges, das histórias da Graúna, a pássara magrinha e pretinha, síntese magistral de todas as mulheres, de todos os tempos. Amava a Graúna, ela me humanizava, eu me sentia menos culpada de existir. E ria. Mas também chorava junto. Contaria ainda sobre as cartas que ele escrevia de Nova York pra mãe, dona Maria da Conceição, cartas publicadas pela imprensa daqui. Me ensinaram muito sobre o meu país, me aproximaram mais de minha própria mãe e de minhas filhas.Acabei por não dizer nada disso. Aguardei alguns dias, noites de insônia. E, num repente, liguei. Ele, ele próprio atendeu. Não sei como, nem sei de onde, fui incisiva, direta: meu nome é fulana, peguei seu telefone com beltrano e quero entrevistá-lo com tal objetivo. Alguns segundos de silêncio. Então, ouvi apenas: “Quando?” “Amanhã... (eu mal respirava)... pode ser amanhã às 9?” “Tudo bem”, ele disse. Anotei o endereço, consultei o guia. Era próximo ao HC.
O amanhã seria no dia 26 de outubro de 1983. Manhã limpa, ensolarada. Fui a pé, andando rápido, respirando forte (havia me instalado em Pinheiros, na Capote Valente). Pronto. Havia chegado. O dedo indicador mal tocou a campainha. Ele abriu a porta. Não me lembro do teor do cumprimento. Mas havia muito silêncio. Como aquelas igrejas sozinhas, perto de alguma cidade interiorana. Caminhei pé ante pé, a uma distância mínima dele, talvez um palmo aquém, sentidos a mil. Henfil ia vagaroso pelo corredor; andava com dificuldade (um tigre/quando caminha pelas pedras/vai/como pisando pétalas – o poema saiu de algum lugar dentro de mim, bem ali). Entramos num compartimento claro, sol batendo na janela. “Com licença.” (A voz dele soou como minidecreto lapidar e, num gesto simultâneo, quase imperceptível, retirou do meu rosto os óculos escuros. Até aquele momento, sem me dar conta, eu me escondia.) Imóvel, fixou o olhar no meu, um olhar percussor, operação atômica ligando fios, compondo algum novo sistema de reconhecimento. Claro, não se pode penetrar na natureza do outro sem que a nossa própria se dê a conhecer. Teoria quântica, visão mística, intuitiva... não importa. A entrevista se perdia como significante e entrava em cena uma outra dimensão, um estado inusitado de sincronismo, a certeza de um encontro com jeito de predestinação.Ele se sentou com certo desconforto, inchaço, dores fortes num dos joelhos. Mas o rosto era sereno, desarmado, os olhos já antecipando revelações. Liguei o gravador. E teve início uma estranha viagem. Henfil, o criador, o visionário, fez o retorno e veio trazendo a si mesmo. Desde quando? Me veio um sentimento imperioso de responsabilidade, como uma prova. “Atenção, e toma antes o caminho da direita, no qual está, para te ajudar, o lago da memória.” Com sua brancura quase transparente, poderoso na voz e nas palavras, Henfil me lembrou o mito de Orfeu, que, a bordo da “branca nave” (Argo), partiu em busca de uma consciência mais elevada e ampliada, passando por duras provas. Com seus companheiros (heróis e filhos de heróis, semideuses – que, numa rápida transposição, bem poderiam encarnar a nós próprios, esses argonautas, personagens da arte de Henfil), Orfeu foi à procura do Velocino de Ouro, a essência da alma. Mas esta é uma longa história. Henfil, um alquimista. No seu trabalho, o mágico e o fantástico eram aliados do real, revelações desse sentido plural da alma brasileira, que carnavaliza as próprias penas, que paga a peso de plumas o chumbo que leva. Cada movimento negado a si por conta da hemofilia, ele o forjou e modulou em figuras resplandecentes e ilimitadas, figuras completamente apaixonadas pela vida .Eu não saberia concluir o que escrevo agora. Na despedida, levei o Diário de um Cucaracha como presente. Na dedicatória, o desenho, em caneta Bic, de uma barata imensa e abusada. Voltei pra casa sem saber muito bem o que sentia. Sabia apenas que era uma vez. Uma só. E eu era outra coisa.Ao me aproximar da minha rua, ouvi uma gargalhada endoidecida e fui me aproximando. Era Teresa, uma negra imensa de voz trovejante (cantava o tempo todo) que morava ali, numas caixas de papelão. Teresa estava sentada sobre uma caixa de maçã ao lado de uma banca de revistas. Tinha nas mãos um velho Fradim e, quando cheguei perto, vi. Era a Graúna.
Como você chegou até aqui? É difícil ser Henfil?
O por que fazer, o que fiz... como aconteceu... a palavra que vem é morte, é a palavra-chave; na maioria das pessoas, a consciência da morte vem aos poucos. Tem a morte de alguém, evita-se falar de morte; para crianças, tem os simbolismos: “foi pro céu”, “vovô foi prum país muito distante”, a morte não é uma coisa presente para as crianças em geral, se bem que criança pobre tem essa consciência muito rápido. Pra mim, apesar de não ter nascido na favela, não ter nascido no Nordeste, a consciência da morte era muito precisa porque todo mundo olhava aquela criança que nascia e dizia: “Coitadinha, vai morrer, nossa, que sofrimento vem aí”. Quer dizer, mesmo que não entendesse, eu sentia a barra e a barra era: “Vai morrer por causa da hemofilia”. Naquela época, em 1944, ninguém sabia direito o que era isso nem que o nome era esse; era apenas uma criança que nascia com uma deficiência no sangue, qualquer tipo de machucado o sangue ia saindo até a pessoa morrer. O fruto disso foi que peguei uma consciência de morte, ou seja, de urgência. Viver é uma tarefa urgente porque amanhã é uma coisa que não dá pra pensar, não dá pra fazer planos, hoje é urgente, o amanhã é a morte, ontem, graças a Deus teve ontem! Claro que isso desenvolve um comportamento que nas universidades eles chamam de psicologia: de sensibilidade e de vigilância total. Andar é uma tarefa para profissionais, o mesmo preparo que o Nelson Piquet tem pra pilotar eu tinha que ter pra andar, não podia falhar. A convivência também era uma tarefa pra profissional, equivalente à de qualquer pessoa que participe de uma batalha, na guerra; então, eu tinha que saber rastejar, tinha que parar de respirar, tinha que perder meu cheiro às vezes para não me denunciar e sofrer represália e a morte. Tudo isso fazia parte de uma criança; a sensibilidade vem daí. Se na nossa sociedade a perda dos sentidos – audição, olfato, visão – é uma coisa que “não prejudica” (todo mundo perde isso em função da civilização), se a pessoa continua sua vida normalmente, adquire erudição, vive através dos livros, do cinema, da orientação de um líder, de um pai/mãe, de uma religião, pra mim isso não bastava, eu tinha que ter o controle manual nas minhas mãos e não deixar nunca no piloto automático da orientação externa, porque minha orientação era especial, logo, eu tinha que ter o meu próprio controle. Por isso eu desenvolvi uma visão maior que o normal, uma visão de índio, um olfato de índio, uma audição de índio. Vamos exemplificar melhor: se você ouve um barulho atrás de você, você simplesmente vira o rosto e olha pra constatar o que é. Eu pulo. Me coloco primeiro fora do alcance daquele barulho e depois olho. Um dia eu estava sentado na banheira, lá no Rio, fazendo a barba, quando senti o início de um chiado que prenunciava uma explosão, pulei e atrás de mim explodiu o aquecedor, que não me atingiu. Outra vez, tô dirigindo e tem uma lombada e, sem que eu perceba, jogo o carro no acostamento e atravesso a lombada no acostamento, quando chego em cima do acostamento vem vindo um ônibus na contramão... Os meus sentidos são mais desenvolvidos que o normal. Se você sai comigo de carro vai levar um susto, tomo determinadas atitudes bruscas no volante que pra você são atitudes inexplicáveis, mas logo depois você vê que alguém fez alguma coisa ali na frente que nem eu nem você vimos, mas o corpo sente, que é a coisa de precisar dar o pulo antes. Observo as pessoas, interpreto as pessoas e procuro computar todos os dados rapidíssimo, para prever o comportamento delas, porque, se houver alguma coisa agressiva, eu já tô na defesa há muito tempo, já tô fora do alcance do ataque. Então, essa é a infância, essa é a adolescência e, quando você chega a adulto e que, óbvio, não há tantas ameaças e você tem o conhecimento do teu lado e você vai trabalhar, isso tudo passa pro teu trabalho. Então, quando vou desenhar, vou criar, a minha percepção das pessoas me parece mais disciplinada que a de qualquer outro artista. Quando vou escrever é a mesma coisa, as palavras pra mim não são gratuitas, não consigo usar nenhuma palavra de forma gratuita. Estamos conversando aqui, eu vou escolhendo. É como se eu estivesse lá na frente puxando as palavras. Claro que isso vem dessa deformação de alguém que foi treinado pra andar no meio da selva e de repente anda na cidade e fica feito aquele vovô Fracolino, do Bolinha/Luluzinha, que está sempre cercado pelos índios, quer dizer, eu tô mais ou menos desse jeito. E aí, todo um trabalho, que no caso foi escrever, desenhar, fazer televisão, ele é muito é exato, é muito rápido, é muito sensitivo, é como se eu tivesse me transformado num radar; inclusive acho que não existo como a maioria das pessoas poderia dizer: “Eu sou isso, aquilo etc. e tal” – eu não sei o que é que eu sou. Nesse exato momento, por exemplo, tô tranqüilo porque há exatos dois anos atrás senti as emissões de conturbações até na área política internacional, fico detectando o que os Estados Unidos vão ou não fazer, se houve uma invasão ontem eu já sabia, já estava previsto pelas emissões que eu havia captado. E, se por um acaso o general Newton Cruz se comporta dessa ou daquela maneira no estado de emergência em Brasília, eu já captava porque já sigo as emissões do general Cruz há muitos anos. Se vem uma onda boa, eu também já estou mais ou menos preparado pra ela. Daí se explica por que a maioria das coisas que eu faço está com dez anos na frente, não na frente em termos de vanguarda, não na frente do que aconteceu, mas quase como profecia. Por exemplo, fui pros Estados Unidos entre 1973 e 1975. Senti uma série de coisas lá, todas em relação ao Brasil. Volto, dez anos depois sai Diário de um Cucaracha, um livro que está vendendo paca. Lista dos mais vendidos, primeiro lugar na lista da Veja, mas acho interessantíssimo como as pessoas só agora descobrem algo como o que está escrito no Diário que pra mim já tem dez anos, já passou. Só hoje elas estão tomando conhecimento de como nós somos tratados pelos Estados Unidos, pelas multinacionais, de como somos baratas, de como somos cucarachas, de como eles não nos respeitam. Então, hoje, qualquer brasileiro sabe o que é ser cucaracha, mas isso foi uma vivência minha anos atrás, e o livro fica atualíssimo. Outro dia me escreveu um cara, um adolescente. Tinha uns 15 anos, morava no Rio de Janeiro, logo, era um adulto, e ele lia o Fradinho, adorava, achava muito engraçado mas não entendia nada, e guardava, e hoje, dez anos depois, ele resolve ler e fala: meu Deus do Céu, tudo que falava lá agora eu tô entendendo: o que está acontecendo, inclusive a mudança de atitude das oposições no Brasil, as táticas diferentes mais abertas para uma ação, vamos dizer, dialética ou mais contraditória, mais imprevisível, as oposições hoje no Brasil não têm mais aquela previsibilidade de antigamente e o Fradinho propunha isso dez anos atrás. Foi como quando bolei um filme em 1973 em Nova York, que se chamava Deu no New York Times e que contava o papel da imprensa na criação de fatos que não existiam mas que passavam a existir porque ela publicou; e só hoje, dez anos depois, tenho condições de realizar esse filme porque os produtores estão vendo que o filme é atualíssimo. Essas campanhas que eles vão criando sobre fatos que não existem, mobilizam a opinião pública pra cantar determinada coisa que nem passava pela cabeça do povo cantar, mas aí a imprensa diz que é o que o povo está cantando e o povo passa a cantar. Então acho que qualquer outra explicação sobre por que saí por onde saí e faço o que faço da maneira que faço tem que passar por entender isto: a morte, o sentimento de urgência e a sensibilidade ultradesenvolvida para se proteger da morte.Você se salvou fazendo o que sempre quis.
E as pessoas de que você fala, as pessoas da sua geração, como estão?
Olha, cada vez mais percebo que, na realidade, eu não estava fugindo da escola, não, eu estava fugindo da idade, talvez por isso tenha tomado tantas bombas, pra ficar junto dos que estavam vindo ainda e não tinham feito nenhuma opção. Eu me sentia muito bem com 17 anos, convivendo com a turma de 11, 12 anos, não lembro de me tratarem como mais velho, era igualzinho. E hoje, por exemplo, não consigo conviver com os da minha idade, com os de 39 anos. Ou convivo com os de 70. Meu maior diálogo no momento é com Teotônio Vilela, que está com sessenta e poucos anos, mas poderíamos dar duzentos, porque de cabeça ele tem uns duzentos anos. Tem muitos amigos assim. Agora, só consigo conviver com a turma de 20, 22. Minhas relações acabam sendo fáceis mesmo com a turma entre 16 e 20 anos. Então tem um outro mistério nesse negócio: de novo tô eu na 3» série ginasial, apesar de o meu grupo já estar na universidade! Eles, pra mim, estão mortos, chego lá, nem entro na casa, já sei como é a casa dele, a relação com a mulher, com o filho, com a profissão... ficam vendo televisão como se fosse informação de alta precisão e importância, lêem jornal com cuidado como se estivessem lendo documentos egípcios, decifrando pedras como Champolion, e não percebem o ridículo das suas roupas, dos seus hábitos, das suas casas, dos seus carros, cargos. Eles me constrangem muito e me fazem adoecer. Tenho muitos amigos que eu gosto deles, eles gostam de mim, mas as nossas relações estão cortadas por essa situação. Eles ameaçam a minha saúde, fico muito constrangido. Se a Graúna, quando fica constrangida, tem desarranjo intestinal, eu fico doente também. Não com desarranjo intestinal, mas me dá dores, eu fico com artrite!A Graúna é meio sacana às vezes.
Mas a gente se apaixona por ela... a Graúna tem alguma coisa a ver com o seu lado mulher?
Não. Inclusive, outra coisa em que não embarquei foi esse negócio do lado mulher. Descobri que realmente existem homem e mulher, duas coisas, completamente distintas. Os homens que se fazem mulheres, no caso dos travestis, são bem diferentes delas, são como homens vestidos de mulher, tomam a forma de mulher mas são homens, não adianta, isso faz parte de uma coisa que a natureza nos dá a todos, mas com muita diferença. Por exemplo, esse comportamento infantil é típico do homem... é... a criancice é típica do homem. A mulher nunca foi criança, nunca será criança. Ela vem preparada pra ser algo especial no mundo, que, no caso, é uma coisa irreversível, não há nada que possa evitar isso que é o gerar filhos. Ela é mais preparada numa série de coisas. O filho do homem é a bomba atômica, é o plástico, quer dizer, ele tem que arrumar uma outra forma. Tanto que Deus, que é homem, arrumou barro pra brincar de fazer a Terra, os seres humanos, deu o sopro, aquelas coisas... Nossa Senhora não precisou fazer nada disso. Simplesmente gerou Jesus Cristo, só isso e já fez tudo. O fato de ter um filho torna a mulher um ser adulto desde que nasceu, inclusive ela está pronta pra ter o filho, as meninas desde criança são especiais, você nota. Uma menina é muito mais viva, muito mais rápida, muito mais agressiva, muito mais inteligente do que um menino. Depois, como a disparidade é muita, o que a sociedade faz através das mães, da mulher? Ela paralisa o desenvolvimento da menina. Como? Desviando pra tarefas menores, como cozinhar, lavar, varrer chão, que é uma coisa obrigatória pra qualquer menina, ou desenvolver uma outra sensibilidade, mas fora da convivência social, como balé, piano, violino, quer dizer, paralisam a menina. O menino, por outro lado, é superativado porque em geral ele é muito bobo, é muito devagar, é mais burrinho; ele não é agressivo, é chorão, é superdevagar. Então, o que fazem? Esporte pra que ele fique mais rápido porque, se deixar, o homem fica mais fraco do que a mulher. O homem não tem estrutura física nenhuma; só tem osso, mas é através do esporte que ele fica mais forte, tanto que o intelectual, aquele que não teve uma atividade física, é muito frágil, magrinho, aquela coisa desprotegida, qualquer mulher com um tapa derruba ele. Então, o homem vai desenvolvendo, através do esporte, através do jogo, através do exército, agressividade que não tem. Ele é treinado tanto, que os primeiros dias no exército são um terror pra qualquer homem, mas depois ele é condicionado. À escola, só o homem ia, só o homem tinha conhecimento, lia pra que, quando chegasse aos 30 anos, fosse igual a uma menina de 15. Tanto que, antigamente, homens de 30 se casavam com mulher de 15, porque, se casassem com mulher de 30, eles estavam esmagados. Quando eles chegavam nos 50 anos, a mulher estava chegando nos 30, e eles estavam iguais, o homem era capaz de perceber. É por isso que os casamentos davam mais certo, porque não havia tanta distância de inteligência entre o homem e a mulher. No entanto, ainda assim a mulher efetivamente é mais adulta. O homem endurece o corpo à força dos exercícios físicos, através de um comportamento que a mãe influencia; se vê ele brincando de boneca, de casinha, vai dizer “mariquinha” – a mãe é que fala, o pai nem passa isso pela cabeça, o pai é o meninão que está no bar dando cuspe na parede, bebendo, se exibindo feito qualquer criancinha. Todos os pais são meninos, vão pra campo de futebol, ficam torcendo, gritando e, na hora do gol, carregam os jogadores... isso é o pai. Mas a mãe está ali vigilante, endurece o jogo com o menino, então esse menino vira o que eles chamam de homem, esse homem cumpre as suas funções, mas jamais deixará de ser menino... Ah, sim, a parte mulher, então esse homem se transforma, se embrutece, é morto como ser humano e é capaz inclusive de virar um Fleury, vira um cara esquadrão da morte. Devido a esse treinamento, mataram o menino que ele vai ser até o fim... se deixassem, a gente teria um bando de homens meninos por aí e as mulheres cuidando de tudo. Bem, quando você disse que existe a parte mulher, não é justamente essa coisa a parte menino, essa parte que dizem feminina só existe naqueles meninos que não viraram homem, que não foram transformados, torneados, exercitados para serem homens, homens fortes, homens soldados, homens músculos, homens atletas, homens massa. Só terão essa parte chamada mulher ou chamada menino os homens que escaparam do treinamento. E as mulheres permanecem nas suas funções normais, que é menina que vai ter criança e que, portanto, vai continuar convivendo com os meninos e meninas dentro dessa convivência de sensibilidade, de ter de perceber tudo pra saber se vai chorar ou não vai chorar. O homem que permanece menino, dizem que isso é a parte feminina, não tem nada a ver, apenas eles se salvaram. Agora, os homens estão sendo dispensados gradativamente dessa tarefa de lutar, porque as armas estão substituindo os homens, o soldado não está com nada; hoje, o míssil substitui milhões de soldados, então não precisa preparar o homem pra ser soldado, e com a entrada, por fatores econômicos, da mulher no mercado de trabalho produzindo riquezas etc., essas mulheres começam a deixar de ser infantis, a deixar de ter sensibilidade e, apesar de estarem preparadas biologicamente pra ser mulheres, elas se transformam violentamente, elas se transformam em seres que têm a mesma brutalidade dos chamados homens. Por exemplo, Golda Meir em Israel fez todas as guerras; Indira Ghandi fez todas as guerras e continua com o poder na Índia; guerras, massacres incríveis em cima daquelas tribos. A mulher mais perigosa na política internacional, hoje, é a Margaret Thatcher na Inglaterra, que invadiu as Malvinas, que invade o que for, que tem uma política agressivíssima, está rearmando a Inglaterra internamente, leis de exceção etc. E temos no Brasil uma série de mulheres muito mais perigosas, em todas as áreas, do que os homens; e os homens, como foram dispensados disso, tem muitos homens meninos aí. Então, o homem que está surgindo, o novo homem, é muito mais frágil fisicamente do que o homem de dez anos atrás, e temos aí uma série de mulheres fortes fazendo cooper, musculação; a dança é praticamente um treinamento físico, talvez mais rigoroso que o exército. São mulheres fortíssimas fisicamente e vão virando aquilo que o povo na sua ignorância e sabedoria diz, a mulher está virando homem e é neste sentido: endurecimento, embrutecimento, rigidez, está tendo enfarte, vão ficar carecas, está tendo todos os problemas que o homem tinha quando passava por isso. E diz o povo, na sua sabedoria, que os homens estão virando mulher e, então, sim, aquilo que se chamava mulher, que é menina, a sensibilidade, a brincadeira, você pega qualquer grupo de rapazes, parecem meninos indefesos. Eu vou fazer conferências e descubro que 99 por cento da platéia são mulheres; lançamento de livros, mulheres; quem lê os livros, mulheres; quem está no comando médio das empresas hoje, mulheres; daqui a pouco elas estão no comando total. E veja como esse negócio de lado feminino é uma brincadeira dos meninos cantores que inventaram isso pra serem mais agradáveis à platéia musical, que é constituída de mulheres. São elas que compram discos, então eles ficam paparicando as mulheres com isso “ser menino e menina”, “o meu lado feminino”, e vem o Gil, o Caetano, todas essas pessoas que são fisicamente frágeis são meninos brincalhões, daí as mulheres fortes musculadas ficam adorando e até incentivando isso, porque o homem vai ser desarmado. A mulher percebeu – a mulher especial chamada mãe – que aquele menino que era inofensivo e brincalhão e que ela ajudou a transformar em soldado perigoso, esse homem ameaçava a vida das mulheres, então parece que elas resolveram desativar isso e só vamos ter homens frágeis, pianistas. Os homens ficam estudando estrelas e as mulheres vão trabalhar, vão dominar o esquema financeiro, econômico e vão à guerra, inclusive porque vão estar mais preparadas fisicamente. Quer dizer, há uma questão aí, que falo em termos caricaturais, mas isso que é muito próximo do real e que não há condições de existir no homem o lado feminino.
Henfil, como é que você imagina, hoje, o encontro entre um punk e um hippie da década de 60?
Um encontro entre o shopping e o MacDonald’s. Os dois são produtos fabricados, fabricações de laboratório. Não vejo o menor conteúdo político, social ou econômico nesses dois fenômenos. Eles só existiram porque são inofensivos e portanto interessam, podem ser veiculados pela imprensa, pela televisão... eu já tenho algum tempo de vida pra ter assistido a fenômeno semelhante, como o ator James Dean, de Juventude Transviada – surge um comportamento padrão para que determinados tipos de pessoas possam se enquadrar. Você veja que, de um lado, aqueles que se enquadram como punks usam roupas iguais às de seus idealizadores americanos porque qual é o punk brasileiro, por exemplo? É o trombadinha. Então, o produto estrangeiro veio, os caras adaptam. Agora, nós temos a grande massa que se identifica com um outro modelo que é o do corredor que usa Adidas, esportista, aquelas coisas. Enfim, o que nós temos são fábricas, os criadores se sentam em volta de uma mesa, e a partir do zero criam alguma coisa, fazem o produto e as pessoas vão lá e se enquadram no produto, consomem o produto até que uma nova fábrica tenha no seu departamento de criação uma nova idéia... as pessoas largam aquela e passam a adotar essa. É mais ou menos como se a indústria farmacêutica fizesse o seguinte, e faz: cria o remédio, depois cria a doença. Até fiz um cartum que é assim: um cientista chegando pro dono do laboratório, falando: “O seu remédio foi aprovado, agora o nosso departamento de marketing está estudando a criação da doença”. É isso que a gente vê por aí. Meu filme Deu no New York Times é exatamente sobre isso, como é que você cria alguma coisa que não existe e as pessoas passam a se comportar a partir daquilo. No caso, vou criar uma notícia sobre um fato político, uma nação inteira passa a adotar o que é dito. Você veja como de repente a Sony lança o walkman e todo mundo passa a usar o walkman. Bem, resolveram criar a discothèque. Bolaram todo um plano, depois criaram alguns filmes. Aqui no Brasil juntaram alguns compositores, pegaram As Frenéticas e criaram o Dance, Dance sem Parar... veio a Rita Lee e entrou, veio Gil e entrou, veio Caetano e entrou, todo mundo entrou, prepararam e todo mundo saiu dançando, e pra isso precisava um tipo de sapato que era meio de saltinho alto, meia colorida comprida, um tipo de saia, um tipo de bustiê, um tipo de coisa amarrada na cabeça, óculos multicoloridos; e os homens, a camiseta, com os braços de fora, um cintão, um botinão, uma calça superjusta e colorida, enfim, como o Travolta aparecia no filme. E aí todo mundo saiu consumindo isso. E muito dinheiro foi ganho pelos produtores dessa cultura dita universal. Você pode, inclusive, comprar ações dessa cultura, você vai na bolsa de valores e pede: “Eu quero ações dessa nova cultura que vem aí”. Então eles falam: “A nova cultura é Rhodia”. Você compra ações da Rodhia e aí você vê grandes nomes da música, da literatura e do cinema que passam a ser empregados dessa Sociedade Anônima Cultural.Com tudo isso, fala-se em final dos tempos, final de milênio... como é que você faria um cartum sobre isso? Eu não aceito esse negócio de milênio. De repente, nós aqui, a partir do nascimento de Cristo, comemorando o ano 2000 depois de Cristo. Ora, ora, ora, os orientais estão comemorando o ano 20000, os judeus comemoram não sei se o ano 4000, por aí. Os índios comemoram o quê? Um milhão? As pedras comemoram o quê? O ano 1 trilhão? As águas, que ano estão comemorando? Ora, ora, ora, diria o Teotônio Vilela quando fica irritado, não há milênio coisa nenhuma! Como é que há milênio se neste exato momento nós temos um satélite, maravilha da tecnologia, girando em torno da Terra, que possibilita as comunicações por telefone a distância, o DDI, o DDD; pois bem, vamos pegar um telefone desses, vamos levar esse telefone, como já está sendo levado, como a maravilha da tecnologia, e vamos ao sertão do Piauí e colocamos na boca do sertanejo pra que ele dê testemunho dessa maravilha, dessa tecnologia. O que é que ele vai falar? Ele vai falar: “Socorro!” É pra isso que serve a tecnologia, pra aproximar do primarismo que a gente está vivendo. Então não existe ano 2000, não adianta computador, se ele vai computar quantas pessoas, quantas crianças morrem em mil de fome, de sede, quer dizer, nós não temos água garantida pra todo mundo, apesar de ter água. Então, isso de milênio é mais uma promoção do departamento de marketing da Sociedade Anônima Cultural, é uma farsa. Não entro nessa sociedade anônima, não compro ações do shopping center, não pertenço ao shopping center; as pessoas entram, eu saio. Tem esse negócio chamado década, década de 60, década de 70... que década o cacete! Não existe isso. E eu não tenho 39 anos. Eu tenho milhões de anos, já tenho conhecimento mínimo suficiente hoje pra saber que sou fruto genético de uma ameba. Não sou filho de dona Maria da Conceição. Sou filho de uma ameba há trilhões de anos. Não tenho 39 anos, tenho trilhões de anos.
E tem planos? Quais são seus planos? Planos?
Tenho. Esticar a minha vida o máximo possível – e é possível – desde que eu viva intensamente os meus segundos, então tenho urgência. Meu plano é: se vou morrer, não tenho tempo a perder. E, como sou herdeiro de uma simpática ameba há trilhões de anos, tenho que dar seguimento a isso rapidinho porque não quero ser como a gente vê no Fantástico, aqueles milhões de células, milhões de espermatozóides querendo fecundar alguma coisa; e uns vão parando no meio do caminho, se distraem, não prestam atenção, se perdem e aí não fecundam! Eu quero fecundar alguma coisa, então tô com muita pressa e tô prestando muita atenção porque a minha morte vai se dar no dia em que eu fecundar alguma coisa.
Você tem medo da morte?
Não. Eu tenho medo é de avião.
Obras do Henfil, além das histórias em quadrinhos
Teatro - A Revista do Henfil (em co-autoria com Oswaldo Mendes)
Cinema - Tanga - Deu no New York TimesTelevisão - TV Homem, do programa TV Mulher, na Rede Globo
Livros - Hiroshima, meu Humor (1976) Diário de um Cucaracha (1983) Dez em Humor (coletiva, em 1984) Diretas Já (1984) Henfil na China (1984) Fradim de Libertação (1984) Como se Faz Humor Político (1984) Cartas da Mãe (1986)
3 comentários:
porcaria essa reportagem
nao fala das campanhas realizadas por ele e seu irmao betinho
MAIS IMPORTANTE QUE AS CAMPANHAS FALA DO SER HUMANO QUE ELE ERA O RESTO É CONSEQUENCIA.
Uma grande personalidade e que faz falta no Brasil de hoje dos mensaleiros.
ps.: TL;DR
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