terça-feira, fevereiro 10, 2009

O animal veranista

Ernani Ssó

A Chico Reis


Dois amigos meus passaram um verão inteiro em Porto Alegre e contam coisas de empalidecer psicanalista. Trocam olhares cúmplices, com sorrisos tortos de amargura, quando a gente duvida. Perderam a fé, a esperança e a inocência. Se transformaram nuns brutos. Mas não é para menos: sobreviveram a um verão inteirinho em Porto Alegre.
O pior é a cerveja. Me disseram que não se encontra uma única cerveja no ponto, nem em casa, imagina nos bares. Estranham que esse problema básico de Saúde Pública, uma cerveja no ponto, não faça parte da plataforma de governo nenhum. Por isso acham Porto Alegre inviável. Porto Alegre? O Brasil, o Brasil! Não pode ter jeito um país que não conseguiu solucionar o problema da temperatura de uma cerveja.
Depois é a solidão. Me confessaram, com uma satisfação demoníaca, que passaram metade de fevereiro jogando pauzinho com o garçom, num bar. Não havia mais ninguém na cidade, fora os três. Exagero? Juram pelo sol que nos bronzeia que havia tumbleweeds rolando pelas ruas e que o vento batia, insistente, uma porta, enquanto o fantasma de John Wayne cruzava o Bom Fim a cavalo.
O trabalho — bem, o trabalho nem é bom falar. Impossível se concentrar entre visões tenebrosas de mulheres seminuas e bares com mesas na calçada. À medida que o verão avançou, foram ficando drásticos, a ponto de concordarem com o Ducati, o fundador do Clube Nova Era, que uma vez propôs congelar as pessoas em dezembro e descongelar em março, para se evitar o suor e as moscas. Perto do carnaval, então, a coisa se tornou particularmente sombria: garantem que um leve bronzeado basta para qualquer mocreia virar beldade.
A ausência do mar não é nada, me disseram. O problema é a ausência opressiva do Guaíba. Quando o Guaíba era limpo, não se tomava banho nele, ou se tomava vestido praticamente de freira. Agora que é possível um bom banho, o rio parece a biografia de certos políticos. Sim, prometem limpar o Guaíba, mas se não estivermos todos mortos até lá, ainda resta um grave problema: como salgá-lo? Quanto às ondas, há unanimidade: sem ondas, evitam-se os surfistas. Não têm nada contra os surfistas, é bom lembrar, apenas contra os banhos com atropelamento.
Por aí começam as ideias de reformas. Porto Alegre é um charco cercado de morros. Talvez, derrubando uns dois morros, ficasse mais ventilado. Ou, já que estamos radicais, quem sabe se se botasse uma tampa sobre a cidade? Aí era só instalar um ar-condicionado.
Então — é fatal — todos nós lembramos daquela célebre frase daquela célebre repórter desta praça, numa célebre crônica sobre o verão: “O homem é um animal veranista por excelência”. Uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e o Nobel de Antropologia para essa aguda observadora do comportamento humano é pouco, muito pouco. Achamos que sua frase deve constar numa placa sob o busto de bronze da repórter pegando um jacaré numa onda de dois metros.
Mas isso tudo é passado, é de um tempo em que uma mulher não podia tomar banho de sol no Parque Marinha sem no outro dia comparecer na crônica policial. Hoje, com a falta de dinheiro, somos obrigados a ficar em Porto Alegre muito mais tempo, o que está nos levando a descobrir a cidade, a inventá-la. Mais: começamos enfim a exigir que Porto Alegre seja uma cidade. Porto Alegre — ou o Brasil, por que não? — não pode ser um acampamento para o resto da vida. (Coletiva.Net)

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