quinta-feira, novembro 03, 2016

Frank, em A Charge Online.

Kojak no Brasil, sorridente e careca: 1975

A série de televisão Kojak fez grande sucesso nos anos 70 em todo o mundo. Produzida pela CBS, tinha como protagonista o ator Telly Savalas, o careca charmoso que fazia o papel de um tenente da polícia de Nova Iorque conhecido por seus métodos peculiares de investigação. Nascido em 1922 e falecido em 1994, Savalas, em 1976, tinha 54 anos e estava no auge do sucesso, o que fez com que rodasse o mundo com um show caça-níquel do qual participavam diversas belas mulheres. Ele esteve no Brasil no final de 1975 (declarado pela ONU o Ano Internacional da Mulher) e, em entrevistas, debochava do movimento feminista e dizia que as mulheres só queriam mesmo era o amor de um homem, fosse "careca, cabeludo, branco ou negro". A reprodução é do Correio do Povo.

terça-feira, novembro 01, 2016

Endividamento do Rio Grande do Sul começou com a Revolução de 1930, que o Estado pagou sozinho


Na sua edição de 28 de outubro de 1950 a Revista do Globo, da editora Globo, de Porto Alegre, um quinzenário com alguma penetração nacional - publicou uma interessante reportagem do ótimo jornalista Rubens Vidal a respeito do então já crônico endividamento do Estado gaúcho. Aquele ano foi emblemático: aconteceram as eleições que levaram Getúlio Vargas de volta ao poder, agora pelas urnas, e, no Rio Grande do Sul, Ernesto Dornelles elegeu-se governador - Salgado Filho, escolhido para concorrer pela coligação liderada pelo PTB no pleito de outubro faleceu, no final de julho, em um célebre acidente aéreo. O Rio Grande, então, vivia um ciclo de otimismo, e Porto Alegre modernizara-se e crescera muito, atingindo mais de 400 mil habitantes. Mesmo assim o Estado devia muito dinheiro para o governo federal, e não tinha como pagar tal conta de "um bilhão" de cruzeiros. Buscando saber os motivos e a origem dessa colossal dívida, Rubens Vidal - autor de um belo livro sobre Getúlio e seu clã, "Os Vargas", editado pela Globo (e, tudo indica, não mais reeditado, o que é lamentável) - fez uma extensa investigação e localizou, exatamente, a data e o fato que originaram tal estado de coisas, o qual pode ser assim resumido: os gaúchos pagaram com dinheiro do seu próprio bolso toda a conta das despesas militares da  Revolução de 1930 que deu fim à Velha República e implantou uma nova era no Brasil. 
Encontrei tal matéria na coleção do Arquivo Histórico Moysés Vellinho, da Prefeitura de Porto Alegre, e achei muito oportuno transcrevê-lo na íntegra, sobretudo neste momento em que assumiu um novo governador e que o Estado, sem dinheiro para nada, se vê, como sempre, às voltas com a falta de recursos e com a terrível inadimplência.   (Vitor Minas). REPUBLICAÇÃO

"Um Bilhão!"

   Honesto, mas sem dinheiro, o Estado gaúcho remata o maior drama financeiro da sua história encaminhando-se (horrorizado) para a casa de um bilhão (em déficit).

   "Há vinte anos que o Estado do Rio Grande do Sul não paga as suas dívidas. E não as paga por uma razão muito simples: não tem dinheiro. A posição da Província gaúcha é análoga à de um honesto devedor sem recursos cujos esperançosos amigos e credores repetem.
   - Fulano é muito direito. Quando tiver dinheiro, paga. 
   Tranquilizados por esse argumento, os credores do Estado (principalmente o Banco do Brasil) esperam pacientemente um milagre que encha de um momento para outro as vazias arcas do Tesouro Estadual. Enquanto isso, e apesar dos vigorosos esforços de seus governadores, desde 1930 o Rio Grande do Sul vem arrastando, para desespero da administração, a fama de devedor crônico, tanto no comércio interno como externo.
   Todos os fins de ano, ao encerrar-se o balanço das angustiosas finanças gaúchas, quando o Tribunal de Contas remete á Assembleia Legislativa a relação geral dos gastos, comentada em relatório minucioso, surgem acusações e esclarecimentos. Mas aos olhos do povo o problema continua confuso. E nem por isso é mais claro nas altas esferas administrativas, onde há queixas veladas, acusações abertas e inculpações agressivas.
   - Afinal, quem está com a razão? - exclamou atônito um estudante de economia e finanças da Universidade de Porto Alegre, após uma erudita dissertação do professor  sobre orçamentos, balanços, relatórios e exposições de motivos.
    É possível responder a essa pergunta direta do estudante gaúcho (e dos seus conterrâneos) se historiarmos rapidamente a vida tormentosa de um déficit que tem agora vinte anos de idade. (Déficit é uma palavra latina que, na linguagem dos economistas, significa "o que falta numa conta". Assim, se ganho mil cruzeiros e gasto ou devo mil e quinhentos, o meu déficit, isto é, o que falta na minha conta, são quinhentos cruzeiros).
   A FILHA DA REVOLUÇÃO
   Em 1950, falta nas contas do Rio Grande do Sul 300 milhões de cruzeiros. E em 1952 tudo indica que faltará 1 bilhão.
   Essa diferença, hoje tão grande, nasceu com a Revolução de 1930. Ao assumir o governo do Estado, logo após a vitória das armas outubrinas, o general Flores da Cunha enfrentou o primeiro desequilíbrio financeiro. É que o Tesouro do Estado tinha emitodo "bônus", isto é, tinha impresso dinheiro para atender às despesas com as forças revolucionárias. Os compromissos resultantes dessas emissões começaram a pesar no orçamento. O Interventor federal, para retirar de circulação esse "dinheiro frio", viu-se obrigado a fazer um empréstimo no Banco do Brasil. Desse modo, conseguiu aliviar o Tesouro de tão pesada carga. Melhor: repartiu-a entre o Estado e o Banco do Brasil, pois até hoje o empréstimo não foi pago, e todos os anos mais de 5 milhões de cruzeiros são gastos de amortização.
   Contudo, a situação financeira agravou-se de tal sorte que a administração gaúcha teve de interromper subitamente o pagamento dos juros sobre as dívidas do Estado, ou seja, sobre as apólices da dívida pública. E mais ainda: teve de seguir o triste exemplo de outros Estados brasileiros e suspender o pagamento do que devia no estrangeiro.
   HONESTO MAS INGÊNUO
   A administração seguinte, que foi a do general Daltro Filho, herdou esses desequilíbrios vindos da Revolução de Outubro: orçamento deficitário em alguns milhões de cruzeiros, atrasos no pagamento da dívida interna e externa. Na sua honesta simplicidade, o novo Interventor, esmagado por estes problemas financeiros, pensou ter encontrado a grande solução com um "programa de austeridade" que eliminou auxílios de qualquer natureza e descarregou o fardo nos débeis ombros do funcionalismo público, cujos vencimentos foram indiretamente reduzidos.
   Mas o déficit continuou aumentando.
   E aumentou de tal maneira que outro general, o sr. Cordeiro de Farias, ao substituir o colega Daltro Filho na governança do Estado, viu-se na contingência de vender ao governo federal uma parte dos bens do Estado: a frota mercante gaúcha, que tinha um alto valor econômico.
   PAPEL, PAPEL, PAPEL
   A Segunda Guerra Mundial, provocando um enorme aumento do comércio interno e o subsequente desenvolvimento dos negócios, trouxe uma espécie de agradável embriaguez financeira. O Estado começou a arrecadar mais dinheiro e a crise interrompeu-se momentaneamente.
   Enquanto isso, como o conflito internacional impedia a vinda de produtos estrangeiros, a indústria e a agricultura gaúcha começaram a produzir mais para o consumo regional e nacional. Todas estas circunstâncias e mais uma rotunda emissão de papel-moeda, contribuíram para dar aos rio-grandenses uma impressão de progresso. Era no entanto um progresso artificial e marcava o início do período inflacionista em que ainda nos encontramos. (Inflação é o excesso dos meios de pagamento em relação às necessidades das trocas, ou seja, a existência de mais crédito ou dinheiro impresso do que coisas a trocar por ele. E se nesta relação há mais dinheiro e menos mercadorias, é lógico que sobe o preço destas).
   BANCARROTA E GENEROSIDADE
   Para evitar, ou ao menos adiar, o ressurgimento da crise, a mesma administração aumentou sucessivamente (de 1,25% para 2,0) o imposto direto sobre os negócios, que é o de vendas e consignações. Era uma medida de precaução, já que as finanças estaduais pareciam desafogadas.
    Pareciam mas não estavam. Porque, ao terminar a Guerra, em 1945, normalizando-se o comércio internacional, os produtos estrangeiros voltaram a concorrer com os nacionais e retraíram-se os mercados consumidores. A consequência imediata foi um brusco desequilíbrio na economia e nas finanças rio-grandenses. O Estado do Rio Grande do Sul ficou ameaçado de pura e simples falência.
   A crise estourou na administração Cilon Rosa. Mas as consequências não foram imediatas, graças a um clássico empréstimo, que no caso foi de 150 milhões de cruzeiros (inicialmente destinados à execução do Plano de Saneamento do Estado). Generosas subvenções a obras de benemerência (cerca de 90 milhões) marcaram esta administração.
   EMPRÉSTIMO ARMA 
   No governo constitucional do sr. Walter Jobim a crise, contida temporariamente nos diques de papel da inflação, irrompeu com dobrada violência. Nos termos de nossa história administrativa, crise significa empréstimo - e um novo empréstimo de 150 milhões de cruzeiros foi prometido pelo governo federal (destinados ao Plano de Eletrificação do Estado). No entanto, a abertura dos créditos sofreu sucessivas prorrogações por motivos políticos, uma vez que o empréstimo ficou sando a arma do governo central contra a "fórmula Jobim" à sucessão presidencial. (Essa fórmula sugeria um entendimento entre todos os partidos, mas não o desejava o presidente Dutra sem a exclusão dos trabalhistas de Getúlio Vargas e dos populistas de Ademar de Barros).
   SACRIFÍCIO MUNICIPAL
   Enquanto isso, o governo gaúcho via-se na contingência de "gastar por conta", e utilizava-se de verbas que pertenciam aos municípios ou eram destinadas ao pagamento do funcionalismo. Segundo a lei, o Tesouro do Estado tem que devolver aos cofres municipais 15% de sua arrecadação quando esta exceder em dobro à do município. Tal determinação ainda não pode ser atendida pelo Estado.
   A demora dos dinheiros federais causou uma situação angustiosa e difícil  à administração rio-grandense, e houve até vários meses de atraso no pagamento de funcionários de alguns departamentos estaduais (DAER e Brigada Militar).
   O Governo do Estado, pelo seu secretário da Fazenda, que na época era o sr. Gastão Englert, enfrentou a crise com uma medida simples, antiga e perigosa: aumento os impostos. Os aumentos foram os mais elevados até agora propostos por qualquer gestor das finanças gaúchas.
O FALSO ALÍVIO
   Tais aumentos deram um ano de aparente desafogo ao Tesouro, e o balanço de 1948 mostrou um déficit relativamente pequeno de 40 milhões de cruzeiros (o menor nos últimos cinco anos). Mas, correndo o tempo, como o Estado não fiscalizasse rigorosamente a sua arrecadação, esta diminuiu a ponto de anular aqueles aumentos. Um ano depois, recrudescia a crise.
    Finalmente, coincidindo com uma espécie de trégua na "fórmula Jobim", veio a primeira quota do empréstimo federal (60 milhões). Esperava-se de tal soma um alívio à pressão financeira sofrida pelo Rio Grande do Sul. mas o governo central teve a sorrateira prudência de descontar dela a dívida estadual. Resultado: apenas uma quarta parte (15 milhões) chegou ao erário gaúcho.
   E assim chegamos à situação atual. Como se vê, todas estas medidas foram modestos analgésicos aplicados periodicamente à crônica dor-de-cabeça estadual.
DE DÉFICIT EM DÉFICIT
   Ora, o desequilíbrio financeiro da província gaúcha há muito já ultrapassou a fase da dor-de-cabeça. Do ponto de vista financeiro, o Estado é um organismo doente, quase às portas do desenlace.
    O déficit crônico de que vem sofrendo as finanças gaúchas culminou no desastroso resultado do exercício de 1949, e desbordou-se neste ano em 300 milhões de cruzeiros. Quando verificamos que essa soma corresponde a mais de 25% da arrecadação total do Estado, temos toda a sua dramática significação.
   Nos últimos cinco anos, a receita foi inferior à despesa de 680 milhões de cruzeiros. Para cobrir essa diferença o Estado teria de empregar mais da metade do que arrecada de impostos e taxas durante um ano.
    Em face de tal situação, a dívida pública do Rio Grande do Sul, que em 1945 era de 660 milhões de cruzeiros, saltou espetacularmente para 1 bilhão e 200 milhões de cruzeiros em 1949. Assim, se a administração gaúcha quisesse pagar tal dívida teria de empregar toda a sua arrecadação de um ano e fazer um empréstimo para atender aos milhões que ainda ficaria a dever. E o mais grave é que a metade da dívida estadual é "flutuante", isto é, dívida cujo pagamento os credores podem exigir a qualquer momento.
TEM 280 E DEVE 460
   Segundo o balanço de 1949, os recursos do Estado montavam a 280 milhões de cruzeiros, ao passo que os seus compromissos vencidos ou em fase de vencimento correspondiam a 460 milhões. Isso significa que o governo gaúcho, para pagar uma dívida de CR$ 1,64 dispõe somente de 1 cruzeiro.
   E ainda de acordo com as cifras do ano passado, se o Rio Grande do Sul, em delírio de honradez, resolvesse vender todo o seu patrimônio, ou seja, tudo o que possui, inclusive os edifícios, as terras, os móveis, utensílios, maquinarias, veículos, portos, acessórios técnicos, etc, e recebesse também o que lhe devem, a fim de pagar as suas dívidas, apenas lhe sobraria a quantia aproximada de 350 milhões de cruzeiros. Para compreendermos a irrisão deste saldo, basta dizer que com tal soma o Estado não poderia comprar duas usinas iguais à da Companhia Energia Elétrica de Porto Alegre.
ALGUÉM DEVE PARA ALGUÉM
   Está claro que o Estado não é e nem pode ser administrado como uma firma comercial: a gestão de suas finanças não visa o lucro mas o equilíbrio. E os encargos sociais, quando atendidos, oneram forçosamente a sua estrutura financeira. Mas, quando sofre um desequilíbrio, um Estado sofre-o mais gravemente do que qualquer empresa comercial, e com repercussão infinitamente maior.
   Assim, se o Rio Grande do Sul arrecada 1 bilhão e 700 milhões de cruzeiros, e gasta 2 bilhões, a diferença de 300 milhões equivale a uma rotunda dívida sem cobertura, cujo pagamento não se pode dizer se, e quando, será feito.
   Naturalmente, se alguém deve, há alguém que não recebe o que lhe é devido. Neste caso, são as prefeituras gaúchas sacrificadas pelo Estado, que não lhes paga o que deve pagar, conforme já o expusemos acima. E o Estado não lhes paga simplesmente porque não tem dinheiro. Resultado: as prefeituras fazem verdadeiros malabarismos para enquadrar os seus gastos obrigatórios e necessários (pagamento de funcionários, conservação das ruas, redes de esgotos etc) dentro da minguada arrecadação municipal. Quanto ao funcionalismo, é um problema que o Estado do Rio Grande do Sul compreende perfeitamente, pois anualmente paga aos seus funcionários a quantia de 765 milhões de cruzeiros, ou seja, 45% da receita pública. Mas não basta compreender quando não se tem os recursos para pagar.
A GRANDE PERGUNTA
   Procurando minorar a situação do tesouro estadual, a atual administração deseja entregar à União a Universidade do Rio Grande do Sul e economizar desse modo alguns milhares de cruzeiros. Tal medida ainda não foi concretizada, e se não o for em breve, crescerá o déficit no orçamento de 1951, que já exclui a despesa com a educação superior dos gaúchos.
    Qual é (perguntará o rio-grandense médio para o qual escrevemos) a causa fundamental de tudo isso?
A SIMPLES RESPOSTA
   Na verdade a causa é de ordem econômica. Se houve um aumento em cruzeiros na produção gaúcha (ocasionado pela inflação), não houve um aumento na quantidade das coisas produzidas. Assim, durante os vinte anos de crise que estamos analisando, a produção rio-grandense não aumentou mais do que o correspondente ao acréscimo de sua população. Desde 1930, não houve até agora um aumento substancial na produção por habitante.
   Ora, não havendo maior produção a receita pública não pode aumentar, uma vez que o Estado tira os seus dinheiros do que lhe é dado arrecadar de cada contribuinte, produtor ou consumidor.
    O progresso industrial e agrícola, tão agudamente necessário para o Rio Grande do Sul, está por sua vez, e como em toda a parte, condicionado à energia mais abundante e barata e melhores transportes. Na situação em que se encontram, as nossas fontes de combustível (como as minas de carvão), os nossos transportes ferroviários (Revista do Globo, número 514), e a nossa rede elétrica (Revista do Globo, número 509) ainda não podem conduzir a esse progresso. A agricultura, consequentemente, está impossibilitada de distribuir nos mercados consumidores os gêneros alimentícios por um preço razoável - e jamais o fará enquanto a produção agrícola tiver, como agora, um exorbitante preço no custo.
O CAMINHO E O EXEMPLO
   Os encargos do Estado multiplicam-se de ano para ano. Mas o seu desequilíbrio financeiros vem acusando a falta de escolas (Revista do Globo, número 508), de hospitais, de estradas, de transportes, etc, falta essa que é uma constante preocupação dos nossos administradores.
   Diante da impossibilidade de aumentar a receita pública, os encarregados das finanças gaúchas só tem dois caminhos a escolher: diminuir as despesas (o que equivale a cruzar os braços) ou fazer gastos indispensáveis (o que importa em déficits continuados). Tem sido este último caminho escolhido pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul - e o exemplo vem de quase todas as províncias brasileiras.

segunda-feira, outubro 31, 2016

Pelotas, a fidalga Princesa do Sul herdou uma fama nacional: cidade gay

No final dos anos noventa, quando, pela segunda vez, trabalhei no Diário Popular, de Pelotas (época do inesquecível doutor Clayr Rochefort), tive tempo suficiente para, sem pressa, ir entrevistando pessoas sobre a fama nacional da cidade, então ainda uma espécie de tabu do qual não se falava muito. Entrevistei muita gente pensando em publicar a matéria em uma grande revista, mas acabei desistindo e a reportagem saiu mesmo em um jornalzinho artesanal que eu e alguns amigos fizemos no prosaico e nada charmoso município de Viamão, publicação quinzenal que, para variar, não durou muito tempo, o “Olé!” Cheguei a ir a Pelotas em 1999 e distribuí uma centena de exemplares por lá, tanto que até um deles apareceu, ampassã, anos depois, no programa Fantástico, da Rede Globo, em matéria de um tal Maurício Kubrusly, enfocando justamente o mesmo tema.
Esses dias, arrumando a casa em Porto Alegre, encontrei alguns exemplares de tal jornal, que eu até julgava perdido e não dava maior importância. Reli o texto e, para minha surpresa, gostei do que eu próprio escrevi, o que me fez transcrevê-lo e publicá-lo agora em versão eletrônica, neste meu humílimo bloguezinho que existe desde 2006, uma das poucas coisas que não interrompi em minha vida.
Resolvi não alterar nada no texto, nem mesmo a idade dos entrevistados, certamente agora, mais de quinze anos depois, bem mais velhos. Alguns até faleceram, como dom Carlos Reverbel. (Vitor Minas)





Ao alto, visão aérea da Pelotas atual. Abaixo, a cidade nos anos sessenta. E a praia do Laranjal, no tempo do glamour. Abaixo, o tradicional mercado público, no centro. Fotos Internet.

Pelotas, mais de 300 mil habitantes, terceiro maior cidade gaúcha, centro econômico, educacional e cultural da Zona Sul rio-grandense, porto fluvial, clima temperado, porta de entrada das frentes frias que chegam ao território brasileiro. Distâncias: 271 quilômetros de Porto Alegre, 634 de Montevidéu, 200 de Bagé, 59 de Rio Grande e 266 do Chuí. Capital do doce e da conserva, maior produtor de pêssego industrial do Brasil, economia baseada no cultivo e beneficiamento de arroz, na atividade pecuária e na prestação de serviços. Dois grandes frigoríficos exportadores. Princesa do Sul, Atenas Rio-grandense, terra, entre outros, de João Simões Lopes Neto, Gilda Marinho, Antonio Caringi, Glória Menezes. Terra onde Hipólito José da Costa, o pai da imprensa brasileira, viveu sua adolescência.
Topografia plana, com solos baixos e arenosos. Sensação olfativa: o cheiro de bolor que paira nas ruas e invade os velhos casarões portugueses, manchando-os com uma nódoa de uma umidade que penetra os ossos e dificulta a secagem das roupas. Pouca cerração, mas muitos mosquitos. Céu nublado boa parte do ano e dias intensamente luminosos no outono.
Particularidade: principal centro econômico do sul do País por várias décadas do século 19, quando foi imensamente rica, culta e esnobe às custas de milhões de bois sacrificados ao abate durante o chamado Ciclo do Charque.
Fama nacional: cidade gay.
VINGANÇA DE ESPARTA – “Isso é coisa inventada pelos riograndinos e pelos porto-alegrenses”, explicam os pelotenses mais sisudos, parcela cada vez menos expressiva da população, em processo de natural abrandamento. Cristalizada e irreversível, a fama deixou de ser tabu e vem sendo pacientemente driblada com o artifício do humor. Civilizado polo educacional, com diversas escolas técnicas e duas universidades, a cidade descobriu o valor da chula filosofia popular – já que o estupro é inevitável, relaxe e goze. 
Rio Grande, porto exportador, polo da indústria naval, mais de 200 mil habitantes, vizinha com Pelotas e como vizinhos dificilmente se amam, persistem as diferenças entre a Princesa do Sul, fidalga e rica durante quase um século, e a Noiva do Mar, terra de peixeiros e marisqueiros, no entender de muitos pelotenses. Para alguns riograndinos, Pelotas deveria se mirar no espelho e ver que o fausto e a distinção são águas passadas. Para os pelotenses, Rio Grande não passa de um balneário à beira mar plantado.
Os dois povos –  riograndinos e porto-alegrenses – teriam culpa em cartório: por mero despeito, difamaram a bela e rica Atenas gaúcha, estigmatizando o seu nome perante os demais brasileiros. 
Culpas à parte, não há como negar que o assunto mexe com os nativos e gera duas reações distintas, uma para desagravo público e outra para consumo doméstico. Aos visitantes faz-se a defesa da honra ultrajada. Internamente, porém, a “bichice” é moeda corrente. Os pelotenses divertem-se comentando “fulano é, sicrano também, beltrano é suspeito”. O ex-deputado e por duas vezes prefeito de Pelotas, Irajá Rodrigues, conhece bem a questão. A cada vez que viajava a Brasília não escapava de ser alvo de comentários maldosos.
- A fama existe, é claro. Em Brasília tinha gente que me perguntava se o carro oficial do prefeito era cor de rosa, essas coisas. Mas eu sempre expliquei que não tem nada a ver, a fama foi algo inventado no passo, em razão do choque cultural.
Na eleição presidencial de 1989, Irajá – único prefeito peemedebista gaúcho a apoiar o senador e candidato Orestes Quércia – teve noticiada a calorosa recepção oferecida ao ilustre colega campineiro através de uma notinha mordaz publicada na coluna Informe JB, do Jornal do Brasil: “´É o eixo Pelotas-Campinas.” 
O jornalista Carlos Reverbel, falecido aos 82 anos, era um dos que defendiam a tese do choque cultural. Radicado em Porto Alegre, autor da biografia do escritor pelotense João Simões Lopes Neto, Reverbel conhecia bem a cidade, na qual passou temporadas nos anos quarenta e cinquenta.
- Isso, no fundo, era ciumeira. Pelotas era o centro econômico mais importante do Rio Grande do Sul por causa da carne, havia uma vida muito ativa, inclusive intelectual. E os locais inferiorizados inventaram essas coisas em detrimento de um centro mais evoluído e civilizado. Uma espécie de vinganga – argumentava ele. O humorista Luis Fernando Veríssimo é filho de uma pelotense. Mafalda, esposa de Érico, nasceu na cidade. Veríssimo concorda com Reverbel: é pura história.


Veríssimo: mãe pelotense. (foto Marcelo Curia, Internet)



Reverbel: ele foi um dos responsáveis pelo redescobrimento de Simões Lopes Neto. Foto extraída da Internet


- Essa fama é um folclore que se criou, talvez na época em que Pelotas era uma cidade muito rica. E o pessoal confundiu educação com homossexualidade. Mas eu acho até que dá para explorar esse filão em termos de humor, é uma coisa que ficou convencionada e ninguém mais se ofende. 
É e não é. Paladino da moral pelotense, Libório, o Gaúcho de Pelotas, se ofende – e como! Personagem criado pelo cartunista André Macedo, nascido e criado em Pelotas, Libório frequenta as páginas do Diário Popular, o mais importante jornal da região, fundados em 1890. Traumatizado com a fama da terra, Libório recusa-se a parar de costas em filas de banco e beira um ataque de nervos quando alguém indaga a sua procedência. Publicado em tiras diárias, o rude pelotense fez tanto sucesso que seu criador passou a imprimir camisetas estampadas com a personagem e os dizeres: “Sou de Pelotas sim, por quê?”
André ri – a criatura não tem nada a ver com o criador. “O Libório surgiu em um fanzine que eu e um colega jornalista lançamos na cidade há alguns anos. De início recebi algumas reclamações de pessoas que achavam que não se deveria mexer com o assunto. Bobagem. Pelotas tem mesmo essa fama, como Campinas também tem, e não dá para dar murro em faca ou tapar o sol com a peneira, como o Libório, que, aliás, já abandonou esta postura. O gozado é que ele fez muito sucesso em Bagé, tanto que um jornal de lá me encomendou as tirar e passou a publicá-las regularmente.”
BICHACAP X CORNOCAP – Sábado, dez da noite. Ainda é cedo – a noite pelotense nunca inicia antes da uma da manhã e só vai esquentar mesmo lá pelas três. Às oito da manhã ainda se vê grupos de pessoas bebendo e conversando pelos bares do centro ou do Laranjal, bairro e balneário às margens da Lagoa dos Patos, a maior do Brasil,o chamado Mar de Dentro. 
São águas poluídas, impróprias para o banho ao longo de quase toda a orla. O Laranjal é o “point”pelotense dos finais de semana e meses de verão. A 15 km do centro, urbanizado por belas casas de veraneio, divide com a Avenida Bento Gonçalves, na cidade, as preferências noturnas. Se no inverno a avenida reina soberana, no verão é tudo com o Laranjal.
No bar da Beti, reduto eclético, o Brasil é o assunto dominante agora. Não o Brasil País e sim o Grêmio Esportivo Brasil, agremiação fundada no início do século e o primeiro campeão estadual gaúcho de futebol, em 1919 (os demais times pelotenses, Pelotas e Farroupilha, também foram campeões estaduais nas décadas de 20 e 30), quando aplicou 5 a 1 no Grêmio Porto-alegrense no próprio campo do adversário. O time chegou a disputar a série A do campeonato brasileiro, em 1985, obtendo um surpreendente terceiro lugar. O campeão foi o Coritiba, mas os “xavantes” – o símbolo do clube é um aguerrido índio xavante – orgulham-se até hoje de ter eliminado, na semifinal, o Flamengo de Zico e companhia, em dramática vitória no estádio Bento Freitas, a Baixada, repleto de quase 20 mil torcedores fanáticos. 
Futebol é uma das paixões dos pelotenses, divididos entre o Brasil, o Flamengo local (a camiseta também é rubro-negra), com dois terços da torcida local, e o Pelotas, o“áureo-cerúleo”, tachado de clube da elite, pó-de-arroz, um Fluminense dos pampas. Na cidade quem não é xavante ou áureo-cerúleo é farrapo – torcedor do Farroupilha, clube fundado por militares. Aliás, de um modo geral torcer pelos times da capital fere os brios dos pelotenses mais bairristas e chega a ser uma ofensa para os xavantes, a mais fanática torcida do interior do Estado, em sua maioria formada pela população negra e pobre das periferias (dentre as grandes cidades gaúchas Pelotas é uma com maior população negra). Os xavantes orgulham-se de levar a campo a segundo maior bandeira desfraldada em estádios brasileiros – mede 70 metros e só perde para a corintiana dos Gaviões da Fiel.
Arqui-inimigos, os dois clubes locais aproximam-se em um ponto: a falta de dinheiro. “Se nós tivéssemos um patrocinador forte, como tem o Juventude de Caxias, que nem torcida tem, já estaríamos há tempos disputando o Brasileirão”, garante Roberto, um rapaz de vinte e poucos anos que bebe cerveja no Bar da Beti em meio a uma roda de amigos xavantes.
Roberto tem uma mania tipicamente pelotense – agarrar o braço ou tocar na perna do seu interlocutor para exigir atenção. O contato físico entre os homens – o abraço, o afago, o alto de segurar os pulsos – faz parte do modo de ser masculino. Quem vem de fora estranha um pouco tal atitude e sente até certo desconforto com isso. Contudo, logo compreende que não significa nada de mais. 
Em Pelotas desde 1957, quando chegou de Porto Alegre, a colunista social Marina Oliveira, do Diário Popular, aos poucos observou aqui atitudes que diferenciam a cidade do restante do Estado: “Há uma abertura, um carinho maior entre os homens. Não sei bem explicar, mas talvez haja uma maior espontaneidade de homem para homem, uma coisa que não acontece, por exemplo, em Bagé. A sociedade local se caracteriza por certo requinte, tanto na mesa quanto no vestir, no falar e no se portar. Mas ainda é uma sociedade muito fechada, as famílias mais tradicionais empobreceram sem perder a pose.”
Fechada, de fato, ela é, e não somente a tradicional. Expansivo nas ruas e bares, o pelotense não é de dar endereço de casa ou abri-la a recém-chegados. Nem mesmo a numerosa população estudantil que aflui todos os anos – gente de outros municípios e outros estados – foi capaz de alterar tal comportamento. Amizades superficiais são fáceis, e fica-se por aí. 
Falo a respeito disso com Roberto, que concorda depois de alguma hesitação. Bebemos outra cerveja, tempo suficiente para conhecer mais uma piada local: Pelotas está planejando construir um estádio com 50 mil assentos e capacidade para 100 mil pagantes. Os ingressos “No Colo” já estão todos vendidos... Outra de futebol, desta vez verdadeira: década de setenta, jogo entre o Internacional e o Brasil, na Baixada. A torcida visitante abre uma imensa faixa onde se lê: “A torcida colorada saúda a Bichacap”. O troco veio na partida seguinte, em Porto Alegre: “A torcida xavante saúda a Cornocap”. Ainda hoje, quando um porto-alegrense pergunta se há mesmo tantos assim, os pelotenses têm uma resposta na ponta da língua: “Tinham muitos sim, mas agora estamos trocando dois bichas de Pelotas por um corno de Porto Alegre.”


André Macedo (ao centro), criador do Libório, o pelotense

Irajá, ex-prefeito: carros oficiais cor-de-rosa?

SEPARATISMO PELOTENSE - Chega-se ao município pela BR 116, a mais extensa rodovia nacional e que inicia em Jaguarão, fronteira entre o Brasil e o Uruguai. O intercãmbio com a “banda oriental” é intenso e muitos vão tentar a sorte em Montevidéu, outros seguem a passeio. Os uruguaios, da mesma forma, chegam, abrem negócios, aclimatam-se sem maiores dificuldades, casam e se instalam na cidade, alguns para sempre. No verão os pelotenses mais abonados mudam-se para Punta Del Este – é um símbolo de status ter casa ou apartamento no chique balneário para onde, naturalmente, também migra a crônica social.
Economia agropastoril, a Zona Sul gaúcha é formada por terras baixas e férteis e duas grandes lagoas, a dos Patos, de águas salinizadas, e a Mirim, menor, com águas doces e nenhuma comunicação com o oceano. Ligando as duas, está o canal São Gonçalo, com 76 quilômetros de extensão. É água, muita água. Os plantadores de arroz irrigado agradecem tanta abundância de recursos hídricos, embora vivam reclamando do governo federal e de sua política de preços mínimos, da importação desleal do produto asiático e dos juros altos que pagam pelo custeio agrícola. O certo é que ganharam muito dinheiro durante décadas, compraram belas casas em Punta e propriedades no Brasil, mas pouco investiram no próprio município.
Érico Ribeiro, o número um dos orizicultores gaúchos, foge à regra. Apontado como o maior plantador individual de arroz do mundo, esse senhor baixote e calvo é quase um mito na cidade – o mais rico, o mais poderoso, evita porém badalações sociais e prefere acompanhar de perto seus inúmeros e diversificados negócios, hoje em parte transferidos para o Uruguai, onde o crédito é fácil e os juros mais baixos. Chegou a faturar mais de 200 milhões de dólares por ano antes de divorciar-se e ter seu patrimônio cindido. Influente politicamente, concorreu a prefeito em uma das últimas eleições mas acabou perdendo na reta final.
Política, economia e futebol são pratos diários nas rodas de conversação local. E, sobretudo, lamenta-se muito: o esvaziamento político que tirou forças da Zona Sul em favor da metade norte, industrializada e europeizada, a estagnação de uma economia que sempre se orgulhou da sua pujança, uma prefeitura tão endividada que jamais paga os salários dos servidores em dia, os meninos de rua, a violência, o abandono dos parques e praças, a falta de empregos, o lixo nas calçadas, o fechamento das grandes empresas locais, o tratamento dispensado pelo governo do estado. 
Radical, o ex-prefeito Irajá Rodrigues lidera uma campanha para separar a metade sul da metade norte do Rio Grande do Sul. A sul formaria o Estado do Piratini, investindo aqui o dinheiro que, reclamam os pelotenses, estaria sendo desviado para a metade norte, onde a renda per capita é três vezes maior. Irajá promove periódicas manifestações secessionistas reunindo meia dúzia de gatos pingados mas garante ter ás mãos uma lista com mais de 40 mil assinaturas apoiando a proposta separatista. Piada, dizem os pelotenses, mas interessados no projeto de reconversão econômica da metade sul gaúcha lançado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, mas cujos recursos ninguém sabe, ninguém viu – só no papel. 
De fato, o clima de desânimo e pessimismo aguçou-se nos últimos anos. Simpósios, seminários, discussões e mais discussões – conhecidas as causas do atraso, o que fazer para superá-las? Lançado pelo Centro das Indústrias do município, uma campanha de auto-valorização de Pelotas tenta neutralizar o derrotismo reinando através de mensagens de fé e otimismo propagadas pela mídia local. “Isso aqui está condenado”, exageram alguns cidadãos amargurados que não esquecem de traçar paralelos entre Pelotas e Caxias do Sul. Esta última progrediu imensamente, superou a Princesa do Sul em tudo, inclusive em habitantes, e tornou-se um poderoso parque fabril, produzindo de alfinetes a tratores. Pelotas, ao contrário, enriqueceu com a carne de boi em um período em que boa parte dos seus habitantes vivia à tripa-forra. Ganharam muito dinheiro, sim, e gastaram quase tudo em festas, jogatinas, viagens, palacetes, roupas caras. Investir na modernização das indústrias poucos o fizeram. Assim, quando o capital inicial secou os pelotenses se depararam com o deserto econômico e passaram a viver da saudade.
PIRATARIA CULTURAL – Adão Monquelat, figura conhecida nos meios culturais da cidade e dono de uma livraria a poucas quadras da Universidade católica, pensa que ainda há muitos mistérios a devassar na Atenas Rio-grandense. Para ele “o pelotense sempre teve mentalidade de gigolô de vaca, a burguesia daqui não soube a hora da modernização.” Como todo pelotense da gema, Adão divide-se entre o orgulho e o lamento depreciativo. Orgulho de um passado que, bem ou mal, ainda sobrevive em alguns aspectos. Lamento pelo que chama de “bolor”: a acomodação geral, a falta de perspectivas e ações reais. 
“No século 19 os cidadãos daqui iam muito à Europa, especialmente Paris, sabem antecipadamente das coisas. Para se ter uma ideia do que era esta cidade, o mercado editorial gaúcho da época estava todo aqui. Pelotas foi a primeira cidade do Brasil a editar Gibran Khalil. Foi em 1922, pela Tipografia Guarany. Aliás, um dado curioso: praticava-se aqui a mais aberta pirataria cultural e editorial, editava-se em pelotas os maiores autores nacionais e mundiais sem pagar um tostão de direitos autorais. Zola, Álvares de Azevedo e Machado de Assis, que provavelmente nunca tenham sabido disso. Um inglês, em visita ao Brasil, chegou a acusar o município disso, dizendo que só perdíamos para os belgas em matéria de pirataria cultural. Como a constituição do Estado foi inspirada em ideias positivistas que consideram todo o conhecimento como conhecimento comum à Humanidade, a desculpa era fácil. 
Algumas dessas obras-piratas estão expostas na livraria de Monquelat. São edições de capa dura, em formato pequeno, e levam a chancela da Livraria e editoral Americana, que não mais existe. Deve-se ao livreiro Adão Monchelat a descoberta – ou redescoberta – do primeiro romance editado em terras gaúchas, A Divina Pastora (1847), de Caldre Fião.


Adão Monquelat: a capital da pirataria cultura. (Foto extraída do blog "Pelotas capital cultural")

O marco inaugural da literatura rio-grandense era uma espécie de Santo Graal quando Adão, em uma de suas viagens a Montevidéu, encontrou um único exemplar no mercado das pulgas, em 1991. Para o livreiro, foi como descobrir uma pepita de ouro: adquirido pela rede Brasil Sul de Comunicações, RBS, por uma quantia que Adão não revela, dorme agora em uma redoma de vidro da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre. Mas quando a pergunta envereda de cultura para costumes e se pergunta sobre Pelotas e sua fama, Adão coça a barba e torna-se sério: “Acho que não confere. Na década de sessenta, quando fui morar em Porto Alegre, o pessoal já nos gozava muito a esse respeito. Uns até perguntavam se era verdade que em Pelotas até os garis usavam gravata. Eu acho que a fama veio justamento do modo de ser e de vestir dos pelotenses.” Amigo de Monquelat, o psiquiatra José Wolfango Montes Vannucci, 47 anos, há dez na cidade, já publicou oito romances, entre eles Jonas e a Baleia Cor-de-Rosa, um dos vencedores do concurso Casa de Las Américas do governo de Cuba. Natural de Santa Cruz de La Sierra, Vannucci é psiquiatra por formação e escritor por vocação. Casado com uma pelotense, sente-se perfeitamente adaptado à cidade onde, conforme diz, há mais psiquiatras do que em toda a Bolívia. 
“Pelotas é uma cidade com personalidade, uma cidade em que o habitante é mais voltado para o passado e se torna com isso mais reflexivo. É uma cidade nostálgica que acha que suas glórias estão no passado, conservadora. Não é feita por imigrantes como tantas outras do Rio Grande do Sul. O cidadão daqui acha que tem uma essência, que não precisaria fazê-la, não é uma terra em que se tenha estimulado o espírito lutador, desbravador. Aqui se tem mais valores artísticos do mundo, e quando falo em pelotenses me refiro às classes média e alta, que são as que contam. As pessoas aqui não valem só pelo dinheiro e sim por outras coisas, sem tem uma vida intelectual que se faz nos cafés, nas livrarias. Pela própria nostalgia, pelo clima, as pessoas olham mais para dentro de si do que em outros locais.”


Vanucci, escritor: mais psiquiatras em Pelotas do que em toda a Bolívia.

Cidade gay? O escritor conhece bem a fama. “Eu vou a meu país e digo que moro em Pelotas e as pessoas já começam a rir, até no Chile já se conhece a fama. Mas eu não acho que Pelotas tenha um número de homossexuais superior à média. Penso que o que contribuiu para isso foi o carnaval. Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando cheguei à cidade foi o grande número de rapazes que se vestem de mulher durante a folia. Inicialmente isso dá a impressão de haver homossexualidade, mas eu passei a entender a questão como um ritual dionisíaco em que as pessoas assumem, digamos assim, alguns aspectos mais escuros de sua personalidade. Mas também reparei que, durante o ano, esses mesmo rapazes tinham conduta hetero.”
Sobre o homem pelotense, Vannucci sustenta uma opinião bem pessoal: “O homem pelotense não é machista, isto eu noto. Mas eu vejo tanto bissexual enrustido... Por ser uma cidade em que o papel social é tão importante, isso faz com que as coisas se disfarcem mais.
Piada: um viajante chega a Pelotas e observa que muitos locais apresentam uma estranha sinalização: Passagem Só Para Pederastas. Surpreso, aborda um transeunte e pede explicações sobre aquilo. “De fato, está errado”, concorda o sujeito. “O correto seria Passagem Só Para Pedestres, mas não vai ser por causa de uma meia dúzia que nós vamos mudar todas essas placas, né?”
CAPITAL DA ARISTOCRACIA – É a segundo cidade mais úmida do mundo, só perdendo para Londres. A comparação aristocrática agrada os pelotenses, que lembram da época dos barões do Charque, quando importou-se da Europa três grandes e artísticas caixas dágua, além de chafarizes, objetos de arte, móveis, livros e até material de construção para os palacetes, dos quais, em sua maioria, só restou a fachada ou a fotografia.
Dessa cidade disse o Conde D`Eu, o marido francês da Princesa Isabel, em 1865: “Depois de ter percorrido por duas vezes em toda a sua extensão a Província do Rio Grande do Sul, depois de ter estado em suas pretensas vilas cidades, Pelotas aparece aos olhos cansados do viajante como uma bela e próspera cidade. As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único na província), sobretudo os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com suas elegantes fachadas, dão ideia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a cidade predileta do que eu chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode empregar o termo aristocracia falando-se de um país do novo continente, aqui é que o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e matar cavalos no interior da campanha vem gozar as onças e os patacões que ajunto em seu mister.”


O Conde (com a Princesa Isabel): a alegre cidade onde os estancieiros vem gastar as onças e os patacões.

A Pelotas que o Conde visitou, acompanhando a comitiva do Imperador Pedro II, contava com estabelecimentos comerciais que “fariam honra ao Rio de Janeiro”, no dizer do alemão Karl Von Koseritz (“Imagens do Brasil”), que visitaria a cidade cinco anos depois. O escritor, político e ex-mercenário alemão observou nas ruas “um ar de contentamento e prosperidade que penetra a gente”.
Vários outros estrangeiros e visitantes teceriam comentários enaltecedores a respeito do surpreendente grau de progresso e civilidade encontrado neste ponto da remota região sul: palacetes em estilo próprio, mesclando arquiteto neo-renascentista com detalhes em barroco, muitos dos quais valeriam mais de 100 mil libras esterlinas, mulheres bonitas, homens finamente trajados, sem contar os monumentais jazigos onde repousavam os defuntos mais ilustres, os tais “barões do charque”, assim agraciados pelo Imperador como agradecimento à fidelidade de uma elite conservadora e imperial (na Revolução Farroupilha a cidade manteve-se fiel ao império brasileiro). Tudo isso graças ao contingente de europeus que, por influência do seu dinheiro e da sua cultura, contribuíram “para que aqui houvesse mais civilização e mais gosto pela vida social do que em outras regiões”, na visão do mesmo Koseritz. Quanto às mulheres, “tocam piano, falam francês, dançam bem e permitem até o galanteio de um cavalheiro”. E conclui:“São senhora que não cem em elegância e boas maneiras às mais graciosas parisienses.”


Koseritz: capital da aristocracia rio-grandense

Em 1831 esta sociedade opulenta mandaria construir o teatro sete de Abril, o quarto mais antigo em atividade no Brasil. Nas décadas seguintes o município se consolidaria como o principal centro econômico da região sul brasileira. Localização privilegiada, às margens de vias navegáveis, proximidade do mar e das repúblicas do Prata, numeroso rebanho bovino, boas pastagens, chuvas bem distribuídas – tudo contribuía e facilitava. 


Teatro Sete de Abril, um dos mais antigos do Brasil.

Tantas vias navegáveis já eram, por sinal, familiares aos índios que habitavam primeiramente a região. A palavra “pelotas” (bola, em espanhol) designaria uma tosca embarcação por eles utilizada para a travessia de rios e canais, espécie de caiaque feito de couro de boi estirado sobre varas. 
DEGOLADORA DE BOIS – Em meados do século 19 um viajante inglês surpreendeu-se ao contar mais de oitenta embarcações de médio e grande porte atracadas às margens do canal São Gonçalo, à espera de carregamento de charque, alimento utilizado por tropeiros, famílias pobres, escravos e soldados em campanha. Quando eclodiu a Guerra do Paraguai (1864-70), a burguesia local locupletou-se ainda mais com o conflito – a soldadesca que combatia Solano Lopes nos charcos paraguaios e nas fronteiras gaúchas precisava de alimentos não perecíveis, e Pelotas estava ali, para fornecê-los.


Antiga charqueada, base da economia pelotense: com a refrigeração, se tornaram obsoletas.

Uma cidade então com mais escravos do que homens livres, e muito mais bois que gente. No auge do chamado ciclo do charque abatia-se anualmente mais de 500 mil cabeças de gado nas cerca de trinta charqueadas do município. No início do século 20 o escritor João Simões Lopes Neto – o maior nome do regionalismo literário gaúcho –estimava em 17 milhões os bovinos já sacrificados em Pelotas. A possível beleza do espetáculo das boiadas chegando, tangidas por tropeiros vindos de todos os recantos do Estado e mesmo do Uruguai, onde também costumava-se roubar muitas reses, logo se desfaria em “uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode caber na imaginação” – a hora do abate. Algo realmente repugnante, nas palavras do médico alemão Robert Avé-Lallemant. Em seu livro “Viagem pela Província do Rio Grande do Sul”, publicado na metade do século 19, ele chama Pelotas de “a Degoladora de Bois” e não esconde o asco pelo que vê, sente e cheira no interior dos estabelecimentos saladeris, “um repugnante atascamento no sangue e na imundície dos animais, em que quase se animaliza a alma do magarefe dos homens”. O odor de sangue, couro, vísceras, fezes, ossos e carne espalhava-se por tudo, sempre temperado por um horrível cheiro de carniça.”
Desses dois mundos complementares mas separados e até antagônicos – a cruel degoladora de bois e a refinada Atenas rio-grandense – surgiria talvez a tese do choque cultural. Dois universos, o do capital e o do trabalho. Gaúchos rudes e voluntariosos e a sociedade dândi dos salões e palacetes e suas mentes direcionadas para Paris, Londres, Lisboa e Rio de Janeiro, cidades onde estudavam muitos filhos da terra que, ao retornar, exibiam estranhas maneiras, frescuras tais como puxar a cadeira para as damas sentarem, pedir licença e arranhas expressões em francês. Tal comportamento fidalgo encontraria ressonância em uma das mais conhecidas obras da literatura brasileira. Ao escrever Quincas Borba, Machado de Assis incluiu uma moça pelotense, Sonora, “uma guasca de primeira ordem, um beijou” e que “só casa com homem da Corte.”

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Machado de Assis: sua personagem pelotense só casa com homem da Corte...
João Simões Lopes Neto: considerado azarento, morreu aos 51 anos. Hoje é um ícone da literatura regionalista brasileira.



À época da publicação do livro (final da década de 80 do século 19) Pelotas desfrutava do seu fausto econômico e social. Em seu livro Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – Um Estudo Sobre a História de Pelotas (1860-90) o historiador Mário Osório Magalhães fixa as causas da desaceleração de uma economia que, a partir do final daquele século, irá perdendo terreno para Porto Alegre e as novas colônias de imigrantes italianos e alemães à sua volta: o declínio das charqueadas e o descaso do governo estadual, que simplesmente volta as costas a Pelotas, negando-lhe obras essenciais de modernização e mesmo fechando ou transferindo muitos estabelecimentos oficiais que existiam no município. É possível que date daí o sentimento isolacionista e uma certa mágoa dos habitantes da “Chicago Brasileira” (a Chicago dos abates de bois, note-se, e não a dos gângsteres) em relação à capital gaúcha. 
Visconde da Graça, Barão dos Três Cerros, Barão de Santa Tecla, Barão do Girau, Barão do Butuí. Ao crepúsculo do reinado, a Degoladora de Bois já tinha os seus nobres de fato e seus conselheiros do império que, nos meses de verão, podiam ser vistos na praia do Cassino, em Rio Grande, cercados pela criadagem e passeando de fraque e polainas o seu soberbo ar imperial, indiferentes aos olhares mordazes dos peixeiros riograndinos. Mais de cem anos depois, os resquícios dessa época de ouro podem ser vistos no Museu da Baronesa, antiga residência da família Antunes Maciel, barão e baronesa dos Três Cerros. O museu abriga hoje mais de três mil peças que retratam o modo de vida e o luxo dos potentados antigos: mobiliário europeu, coleções de leques, vestidos franceses, bustos em mármore de Carrara, azulejos portugueses e retratos desbotados de senhores e senhoras circunspectos atestam uma riqueza refinada que feneceria em irremediável bolor.
Voltando à economia: discriminada pelo poder central, a Princesa do Sul seria em seguida duramente atingida pela evolução tecnológica nos meios de produção. A nível regional, a Revolução Federalista de 1893/94 transformaria o Rio Grande em um vasto teatro de guerra, com mais de 10 mil mortos e outros milhares de refugiados, inviabilizando o trânsito e o comércio do gado. Em esfera mundial, a invenção do sistema de eletricidade e refrigeração tornaria a salga um obsoleto e caro processo de conservação da carne, agora armazenada em grandes frigoríficos. A chegada da ferrovia, por sua vez, deslocou as charqueadas para outras regiões, livrando-as da obrigatoriedade do escoamento por via aquática.
Aos poucos ia silenciando o plangente apito noturno a sinalizar o início de mais uma matança de bovinos. Mesmo sem saber direito, a Chicago Brasileira vivia seus estertores, mas a Atenas Rio-grandense ainda dançava ao som das pianolas e mantinha a velha pose. Nesta sociedade onde “praticava-se o culto excessivo às belas artes” e discutia-se os clássicos franceses em alegres saraus, o escritor João Simões Lopes Neto jamais obteria o devido reconhecimento. O autor de cancioneiro Guasca, Casos de Romualdo e Lendas do Sul, de família rica e tradicional, preferiu no entanto descrever não o elegante universo urbano e sim a existência simples do homem rural. Audaz e sonhador, abriu inúmeros negócios e empresas fracassadas, nelas torrando toda a sua fortuna. Quando morreu de úlcera duodenal em 1916, com apenas 51 anos de idade, morava de favores na casa de um parente. Considerado azarento, era evitado nas ruas até pelos amigos mais próximos. Hoje é nome de um centro de cultura e de tradições gaúchas e de um bairro da cidade. Sua obra, redescoberta na década de quarenta graças aos estudos de Carlos Reverbel, Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira e Aurélio Buarque de Hollanda, é sem dúvida uma das mais importantes da literatura regional brasileira em todos os tempos.

A pujante economia pelotense  do século XIX se fez à custa do trabalho de escravos negros. Aos primeiros, o trabalho forçado e o desgaste físico. Aos segundos, o ócio , a sofisticação e o divertimento mundano.


Encerrado o grande ciclo de prosperidade, ainda assim a vida mostrava-se risonha e agradável na Princesa do Sul. A combinação opulência restante e cultura atraía homens e mulheres de outros estados e países e seduzia especialmente os judeus franceses fugitivos da dominação alemã na Alsácia-Lorena, os quais antes tentavam a sorte em Buenos Aires e Montevidéu. As cortesãs francesas pontificavam nos cabarés e davam o necessário verniz a airada vida noturna desta cidade perdulária e festiva. 
Piada: Chegando à divisa de Pelotas um viajante vê um homem pescando. Curioso por saber se havia ali algum peixe, aproxima-se e pergunta:“E aí, tá dando?” “Não, hoje eu estou pescando”, responde o outro.
ROLETA E BELLE EPOQUE – Como e quando surgiu a fama que estigmatiza (se é que o termo é adequado) Pelotas até hoje, a de cidade gay onde as mulheres, para arranjarem homem, precisam esburacar as ruas, como escreveu o colunista e humorista José Simão, da Folha de S. Paulo? 
Aos 90 anos, magro, lúcido e elegante, José Collares mantém a voz firme e a inteligência alerta: à menção do tema seus olhos deixam escapar um lampejo de malícia. Ele pede para que sua sobrinha retire-se por alguns instantes – isso não é assunto para mulheres. Em seguida descerra as cortinas e uma luminosidade difusa escoa do cinzento céu pelotense e envolve, lá embaixo, a Praça Coronel Pedro Osório, cercada de casarões históricos. 
A praça é adornada com belos e antigos chafarizes. À noite, porém, é “terra de marlboro”, com assaltos, prostituição e consumo de drogas. Mulheres de programa dividem espaço com travestis que enfrentam o rigor do clima em trajes sumários. Em fevereiro, na avenida em frente, realiza-se o desfile das escolas de samba e blocos de sujos daquele que já foi considerado o mais alegre e popular carnaval do Estado. É este cenário que José Collares compara à Belle Epóque pelotense, os anos vinte, período dos grandes cabarés, das francesas e da jogatina desenfreada. Menino rico, como ele mesmo diz, viu e viveu tudo aquilo. 
“Pelotas mudou muito, não há mais aquela educação e nenhum glamour. Sei dizer que foi uma cidade muito rica e o dinheiro foi todo na roleta, grandes fortunas se acabaram da noite para o dia nas rodas de bacará. Só aqui em volta do Mercado Público havia onze casas de jogos, mais umas três ou quatro adiante. Os croupiers vinham de Buenos Aires e Montevidéu. O cassino mais famoso era o Palace, que funcionava no Clube Caixeiral com roleta à tarde e à noite. Com os croupiers vinham as mulheres, mulheres fantásticas, quase todos estrangeiras, francesas, italianas, argentinas, as nacionais eram poucas. Sem falar nas das companhias de operetas, que acabavam ficando por aqui, se tornavam amantes dos homens ricos. No resto do Estado se criticava muito este comportamento, dizia-se que isso era “coisa de pelotense.”
Caixa dágua no centro de Pelotas: europeia, mais parece uma obra de arte.


Pelotenses que, afirma Collares, formavam quase uma casta à parte em relação aos demais habitantes do Rio Grande do Sul. “Os pelotenses eram mesmo diferentes. Até no comer. A gente ia a Bagé e notava que o sujeito era de Pelotas só pelo modo de empunhar o garfo. De um modo geral o pessoal daqui não gostava dos bageenses e eles não se aclimatavam bem na cidade, nos consideravam “poseur”, diziam que tínhamos mania de superioridade. Nunca esqueço a vez em que fui a Bagé e, em um baile, vi um sujeito deixar cair o revólver em pleno salão. Pois ele simplesmente se agachou, apanhou a arma e a colocou no coldre como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, e seguiu dançando. Isto me horrorizou. As próprias mulheres nos diziam que até na hora do amor o pelotense era diferentes, antes de ir para a cama tirava os sapatos e as meias, tomava banho e perfumava-se, enquanto em outras cidades o sujeito às vezes nem tirava as botas e fazia de pé mesmo. Exagero, mas diz alguma coisa.”
Em 1960, quando os bons tempos já haviam passado, o censo oficial brasileiro contou 178.265 habitantes de Pelotas, então o vigésimo primeiro município mais habitado do Brasil, à frente de Manaus, Maceió, Natal, São Luís, João Pessoa e Goiânia. Em 1968 caíra para vigésimo sexto lugar, com uma população estimada em 208.672 habitantes, conforme o Anuário Estatístico do Brasil, publicação da Fundação IBGE.  Bem antes, em 1920, quando vivia a sua bonança econômica, o censo apontara 82 mil habitantes em Pelotas, somente na área urbana, e o município mantinha-se como o décimo primeiro mais populoso do Brasil e o oitavo quanto às rendas, superando muitas capitais e cidades importantes como Santos, Campinas e Juiz de Fora. A primazia pelotense incluía a radiodifusão – a primeira emissora de rádio do Rio Grande do Sul, a Rádio Sociedade Pelotense, fundada em 1925, precedeu em alguns meses a Rádio Gaúcha de Porto Alegre. Também estava aqui a primeira loja maçônica do Grande Oriente do Brasil no Estado. Por sua vez, a telefonia local – moderna para os padrões da época – estava sob o controle da municipalidade e os bondes elétricos ligavam o centro aos bairros mais distantes. Antes, em 1913, o português Francisco Santos rodou na cidade aquele que é considerado o primeiro filme brasileiro de ficção, Os Óculos do Vovô. Descoberta em 1973 pelo cineasta Antonio Jesus Pfeil, da película só restaram cinco minutos, hoje conservados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Nessa terra de ócio e riqueza não faltavam prazer para a classe alta. Procedentes de Buenos Aires, muitas companhias europeias de teatro e opereta iniciavam aqui sua turnê em terras brasileiras, seguindo depois para os grandes centros. Aos espetáculos de gala no Teatro Sete de Abril – depois surgiria o cine-teatro Guarany –sucediam-se, para os homens, noitadas no “Apertadinho”, cabaré e cassino na Rua 15 de Novembro e onde brilhavam mulheres como Maria Vesuviana, italiana, e Louisette, francesa – as duas depois abririam seus próprios negócios. Como de praxe, tinham um amante oficial – que pagava as contas – e um rapaz bonito para os prazeres da cama. 
Havia cabarés, roleta, coronéis, gigolôs, jogadores – e a fama de requintada cidade boêmia. A outra fama, porém, já estava em gestação. José Collares não fala em “gays”, prefere o termo “invertidos”: “Havia invertidos sim, até porque os pelotenses eram muito mais civilizados e tolerantes do que os outros. A maioria das cidades do Estado tinha essa mania de ser gaúcha, de trabalhadores, e os pelotenses estavam à parte. Mas isto de invertidos também em outras cidades que nunca ganharam a fama. Jaguarão, por exemplo, era conhecida por isso só porque dois irmãos, donos do principal hotel de lá, eram. Essa fama de Pelotas, pelo que eu me lembro, veio depois da Revolução de 30, quando as tropas do Getúlio seguiram para o Rio. Lá difamaram a cidade.”
Ele inclina a cadeira de balanço para a frente, olha em volta para conferir se não há mais ninguém e sussurra, tossindo: “Se der o senhor volte outro dia que eu vou lhe falar de um homem, um homem muito bonito, riquíssimo, que era...”
Não deu tempo: José Collares faleceu duas semanas depois. 


Getúlio, vitorioso na Revolução de 1930: seria aí a origem da fama?


ÓDIO DE GETULIO – A quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, a depressão norte-americana e mundial que se seguiu a este fato e Getúlio Vargas na presidência do Estado gaúcho atingiram duramente o município. Com a crise econômica e a redução do consumo geral, o preço do boi e do charque entrou em queda livre. Em 1930 a venda de carne gaúcha para fora do Estado já caíra pela metade. O assoreamento do canal São Gonçalo e a modernização do porto de Rio Grande, para onde se deslocou o comércio exterior gaúcho, pioraram ainda mais as coisas, a ponto de lideranças locais, conduzidas pelo empresário Cássio Tanborindeguy, encaminharem ao intendente municipal (prefeito) um documento de alerta intitulado “Defesa de Pelotas”. Para muitos, 1930 marca o início do decadentismo pelotense. Em 1931 a mais rica e prestigiosa instituição local fecharia em definitivo as suas portas: o Banco Pelotense, então um dos cinco maiores bancos do País, com mais de 20 filiais em diferentes Estados e, em 1925, o campeão gaúcho em volume de depósitos, teve todo o seu patrimônio transferido para o recém criado Banco do Estado do Rio Grande do Sul. Efeitos da crise mundial, má administração, armação política, tudo é aventado para explicar como o banco oficial do Estado de 1921 a 1928 foi riscado do mapa.
Getúlio, conta-se, fez de tudo para destruir o Pelotense, um dos tentáculos da política do seu antecessor, Borges de Medeiros. Ao suceder a este na presidência do Estado, em 1928, transferiu para o Banco da Província todas as contas do governo e, no final, recusou-se a mover uma palha em defesa da instituição. Outra versão garante que Vargas teria feito isso por motivos pessoais, já que seu cunhado, Antonio Sarmanho, suicidou-se ao ser acusado de desfalque na agência de São Borja, onde era gerente.
Mas a sociedade pelotense ainda vivia bons tempos - sem saber, em seus estertores. A quebra da Bolsa de Nova Iorque aconteceu no final de outubro de 1929, mergulhando parte do mundo em recessão econômica e instabilidade política e, talvez, jogando uma pá de cal na riqueza da Atenas Riograndense e da Degoladora de Bois.. O Carnaval de Pelotas daquele ano fatídico, porém, foi feérico, como descreve o jornalista Rubens Vidal Araújo em seu livro Os Vargas, a biografia da família do presidente publicada pela editora Globo: "Havia uma grande quantidade de dinheiro acumulada no Estado, tradicional produtor de carne, lãs e cereais, já submetidas à primeira fase de industrialização. Pelotas, com suas charqueadas e plantações de arroz, era a cidade mais rica. Naquele ano de 1929 o Carnaval de rua em Pelotas foi tão deslumbrante que empolgou os próprios pelotenses. Muito luxo, gastos espetaculares, corsos com automóveis de capota arriada repletos de mulheres esplêndidas de shorts, com as pernas nuas para o ar, ruas cheias de confetes e serpentinas".
Piada: Ao viajar a Pelotas, um cidadão é advertido, em tom de brincadeira: “olhe que aquela terrinha é fogo, quem chega lá já sente uma coceira no rabo...” Sem fazer caso, mal chega à cidade, é acometido de uma forte diarreia e obriga-se a saltar do carro e fazer suas necessidades no mato. À falta de papel, vai um ramo de urtiga: “Caramba, bem que tinham me avisado que essa terrinha é fogo mesmo!”
LIBÉLULAS PELOTENSES – Fábio de Souza Ferreira, 32 anos, chegou à cidade faz 11 anos, vindo da vizinha Camaquã. Em vez de seguir para Porto Alegre, a 130 km de distância, preferiu seguir mais para o sul e instalar-se em Pelotas. Aqui – homossexual assumido – passou a trabalhar como estilista. Ganhou amigos, sossego e dinheiro para viver confortavelmente. Quando está circulando pelo mundo gay pelotense, Fábio Ferreira passa a ser Fabíola Ferrer. Porém, não se considera travesti – homossexual sim. Assíduo em festas da sociedade local, desenha e confecciona vestidos e trajes carnavalescos para homens e mulheres que frequentam o seu atelier em um sobrado no centro.
Quem sobe as escadarias de madeira se depara com fotos emolduradas, alguns quadros e, na peça contígua à sala, uma imensa cama de casal. De bermudas, cabelos presos à nuca, Fábio –ou Fabíola – acaba de encerrar seu expediente. Senta-se, cruza as pernas com feminilidade não afetada, acende um cigarro e estuda o repórter com o olhar discreto. Está sem pintura ou maquiagem. A voz é quase de mulher. “Vamos lá, o que você quer saber?” O namorado, que abrira a porta, some de cena levando consigo um cão felpudo. Fábio está à vontade – antes, porém, quer saber se pode falar tudo, se a entrevista será mesmo publicada e se há necessidade de fotos. Exponho as duas versões – a do choque cultural em primeiro.
“Puxa, é tanta coisa que você me pergunta, que a gente teria de parar e conversar vários dias até esgotar o assunto. O que eu acho é o seguinte: não vá nessa de que os filhos das famílias antigas iam à Europa, voltavam assim e assado. Aqui há de fato mais homossexuais do que em outros locais. Muitos vêm de fora, atraídos pela fama da terra, por Pelotas ser considerada mais tolerante a este respeito. Não sei qual a explicação, mas posso dizer que aqui o homossexual é tratado com carinho e respeito, com naturalidade, ele pode frequentar qualquer ambiente sem se sentir discriminado, inclusive casas de família. A cidade toda aceita o homo, embora, claro, se façam piadinhas, o que eu acho natural, faz parte. O homem pelotense gosta de transar com homossexuais, há procura. Dá para dizer que nesta cidade a gente se complementa não só sexual como afetivamente, namorados são fáceis, a coisa rola normal. Dou um exemplo: aqui eu nunca saía de uma festa sem um namorado, já em Porto Alegre é muito difícil conseguir namorado. Muitos homens pelotenses, até casados, mantêm relações estruturadas com gays.”
Pausa para o café. Mais descontraído, Fábio levanta-se e traz dois convites em papel cor de rosa, Eles X Eles, Elas X Elas. “Apareça para conhecer mais. Estarei lá.”
A festa Gato Calabouço aconteceu dali a duas semanas. Fábio – agora Fabíola Ferrer – integrava o corpo de jurados encarregado de escolher o mais belo e atlético rapaz dentre uma dúzia que desfilavam seus músculos para uma numerosa plateia GLS. Casa cheia, paredes escuras, ambiente de caverna, garçons vestidos a caráter da cintura para cima – cobrindo o sexo apenas uma sunga reduzida. Clientela animada, mas comportada. Funcionando em uma espécie de casamata no bairro Fragata, a boate atrai não só gays e simpatizantes como grupos de mulheres que cotizam-se para aniversários ou despedidas de solteira. Há outra do gênero no centro, a Bay Bay, mais escrachada. A Calabouço funciona somente nos finais de semana e vésperas de feriados. Mesmo assim é lucrativa, informa Cleuton Alves, 24 anos, um dos sócios. “O nosso público é quase sempre o mesmo. Às vezes somem, dão um tempo, mas sempre acabam voltando e gastando bem. Têm políticos, empresários, professores universitários. Nós fazemos muitas promoções, trazemos transformistas de Porto Alegre, promovemos shows. Também damos uma canja para os michês, que não pagam ingresso.”
A festa Gato Calabouço foi, meses antes, precedida pelo Bingo Boy, cujo principal atrativo foi o sorteio de um loiro estilo Conan O Bárbaro de quase dois metros de altura, oferecido como prêmio ao vencedor, que imediatamente o levou para casa. Se quisesse, porém, poderia consumar ali mesmo: há uma peça escura nos fundos destinada ao usufruto dos mais afoitos, homens e mulheres. “No dia seguinte temos de recolher dúzias de camisinhas que ficam no chão”, diz Cleuton. 
VAMOS ARRASAR COM ELES, COLEGAS! – Na noite em que o programa Você decide, da rede Globo, foi transmitido ao vivo da Praça Coronel Pedro Osório para todo o Brasil uma piada circulava pelo Café Aquário, o mais tradicional e frequentado da cidade. “Sabe como vai ser o final? Não dúvida entre as duas mulheres, o sujeito acaba ficando com a bicha.”
Gracejos domésticos, tudo bem. Da porta para fora a coisa muda de figura. Ano passado um jornal de Rio grande noticiou o despejo na praia do Cassino de cães vadios recolhidos nas ruas de Pelotas por funcionários municipais. A questão originou discussões e protestos entre a Noiva do mar e a Princesa do Sul. O que irritou mesmo os pelotenses foi a ilustração da matéria: ao desembarcar do caminhão, um cachorrinho de fitinhas amarradas à cabeça, convocava os demais: “Vamos arrasar com eles, colegas!” Irritado, o jornalista José Ricardo Castro, colunista político do Diário Popular, esbravejou: “Querem nos denegrir!” Os ânimos, felizmente, não tardaram a serenar, embora alguns pelotenses tenham se recordado do Doutor Pelotas, personagem criado pelo humorista porto-alegrense Carlos Nobre no final dos anos cinquenta e que ia ao ar pela Rádio Gaúcha. Para alguns o Doutor Pelotas consolidou a fama da terra. Criado para comentar os jogos do Esporte Clube Pelotas durante o campeonato gaúcho, o personagem emitia comentários maliciosos com voz efeminada. 
A cidade, contudo, dava alguns panos para manga. Em 1968 gays de todo o Rio Grande do Sul aportaram em Pelotas para participar do feérico e inesquecível Baile da Pedra, evento realizado no dia da emancipação do município e que culminou com a escolha da Miss cocota do ano, um transformista chamado Mônica. Precursor do atual Gala Gay e do Nós em Festa, conhecidos em todo o Estado, o baile for realizado em uma oficina em obras com mesas de pedra e tornou-se o acontecimento social do ano, recebendo amplo destaque da mídia. Quem viu garante: foi um luxo só.
As reações contrárias logo surgiram entre a população local. Uma campanha “moralizadora”, deflagrada por um conhecido locutor de rádio, encontrou respaldo nos setores conservadores da sociedade e que se julgavam atingidos pela onda de libertinagem desenfreada e pela nódoa que pesava sobre o nome de Pelotas. Iniciava-se a “caça ás bichas” – quem aparentava ser era agarrado na rua e ali mesmo tinha seu cabelo raspado, deixando-se apenas uma mecha sinalizadora. A campanha, executada em pleno regime ditatorial, durou vários anos e, se não diminuiu o número de homossexuais assumidos, deu samba, a marchinha Rapa o Côco Dele, composta por um fotógrafo e um pintor de paredes e o maior sucesso carnavalesco de 1969 na cidade. “Rapa o côco desse/que ele também é/caminha rebolado e tem nojo de mulher.”


Grêmio Esportivo Brasil, o xavante: a mais fanática torcida do interior dos três Estados do Sul.


Glória Menezes: pelotense ilustre, nunca esqueceu da terra.
Gilda Marinho: bonita, feminista, culta e independente, nasceu e se criou na Princesa do Sul.


Vieram os anos setenta e nada da fala refluir. Na tarde de 4 de fevereiro de 1974, um domingo, o apresentador Silvio Santos fez referências à suposta ambiguidade sexual da população masculina pelotense. Justamente naquele dia – ou talvez por isso –uma comitiva de vereadores de Pelotas visitava o programa. Soava como injusta provocação. Faltava só o crachá, como publicou o jornal A Platéia, de Santana do Livramento, em um gracejo que passaria despercebido não fosse a ira de alguns vereadores liderados pelo peemedebista Raimundo Vieira da Cunha. Em veemente protesto em plenário, o edil repudiou “este jornal de 50 exemplares”:“Estão nos chamando de veados!” Também se fez referência a um projeto apresentado na Câmara de Rio Grande e que propunha o uso de um crachá com a letra V a ser usado por todos os vereadores gaúchos. Em Pelotas teria havido eufórico apoio à medida... Outra curiosidade que chamava a atenção da imprensa nacional e merecia seguidas matérias das grandes revistas do Rio e de São Paulo era um padre católico chamado Ozi Fogaça. Nada convencional, e estranhamente sem sofrer sanções da igreja, ele havia criado um bloco carnavalesco chamado de Bafo da Onça, onde o sacerdote desfilava usando trajes de mulher, no tradicional estilo dos blocos de "sujos". Fogaça tornou-se tão popular que se elegeu vereador pela Arena, a Aliança Renovadora Nacional, partido que dava sustentação ao regime militar de exceção.
No mesmo período o mundo gay pelotense dava nome a alguns dos seus membros através de uma escrachada imprensa cor de rosa e circulação restrita. Nos anos sessenta surgiram, por exemplo, o Ponto Clube, Maricolândia e Clube dos Inocentes, informativos em papel ofício e cuja tiragem raramente ultrapassada os 50 exemplares rodados em mimeógrafo e que eram remetidos a travestis que moravam na França, Itália e Inglaterra. “Muita gente acha graça de nós, mas nós também achamos graça de muita gente”. Com esse bordão na capa o Ponto Clube, “semanário de divulgação das libélulas pelotenses”, noticiava, opinava, denunciava e fofocava. Uma discoteca que abrira em Milão, um filme recém lançado com atores gays, a escolha da Miss Boneca do ano na cidade, e também muita fofoca: “Sara Jane já retornou de sua circulada pela Europa, onde curtiu horrores”. “Com um sorriso de orelha a orelha, Michelle Morineau está aguardando impaciente a chegada do seu príncipe de Bagé neste feriadão. Grandes badalos e quebra-louça à vista.”
O Ponto Clube desapareceria ainda nos anos setenta para ressurgir nos oitenta, agora sob a responsabilidade de Andrea Messalina, Leide Messalina, uma das locomotivas da sociedade gay pelotense. As libélulas esvoaçavam então sob a luz mortiça do Fruto Proibido e do Clube 77, onde tais jornais eram distribuídos gratuitamente. Rebatizado de Ponto Gay Clube, o informativo dava asas à imaginação, como se vê aqui neste texto assinado por “Luis Augusto”:
“Sob o Signo da Ilusão (fantasia sexual”
“Tudo começou lá em casa, após um uísque. Os convidados todos já tinham ido embora. Restávamos Cláudio e eu na sala. Conversávamos sobre sexo. De repente senti sua mão pousar nas minhas coxas. Era sempre assim. Cláudio tinha essa mania de falar comigo me tocando. Aquilo me vencia, mas jamais poderia dizer-lhe. Não suportei. Toquei as suas, desta feita já excitado. O moreno de coxas grossas penetrava na minha mente, aumentando ainda mais a minha ansiedade. Naquele ida eu seria seu, custasse o que custasse – e bolas para a sociedade. Cheguei ao monte divino. Senti o tamanho e pensei no estrago que iria fazer em mim. Não importava. Eu havia chegado a um limite. Não dava mais. Era apaixonado por ele. Era meu sonho pegar aquele roliço e depois me oferecer. Ele, um pouco espantado, deixava tudo. Já estava também bastante excitado com minhas suaves massagens. Então chegou a hora. Após todo o ritual de nudez, encostei meu ânus no seu pênis e comecei a penetrá-lo em mim. Gemendo e gritando, sentava em cima – a princípio vagarosamente e depois com violência– um paraíso de gozo jamais imaginado. Quando dei por mim, porém, percebi o quanto havia sonhado. O Prestobarba estava todo enfiado em meu ânus e o Cláudio não era mais que um pôster da revista Rose”.
Em outubro de 1976 um grupo de jornalistas resolveu encarar de frente a fama da cidade. Ayrton Centeno, Luiz Ricardo Lanzetta e Róbson Barenho colocaram nas bancas o semanário Triz, “o nanico de Pelotas”. Bem redigido, equilibrado em sua linha editorial e com boa apresentação gráfica, trazia a seguinte manchete de capa:“Frescura?” E, como título interno: “São 250 mil habitantes e uma fama nacional”. Em cinco páginas, com muitos depoimentos, isentando-se de emitir juízos ou conceitos e sem resvalar para o folclórico fácil, esmiuçava o tema, sem esquecer de traçar paralelos. “No extremo da rodovia, a nossa irmãzinha: Campinas”. A rodovia, no caso, era a famosa Transviadônica. 
Triz durou um único número.


Capital do pêssego em conserva, Pelotas é famosa pelos doces.

GAIOLA DAS LOUCAS – “Sabe como o pelotense tira a camisinha? Dá um passo pra frente”. Paulo não é pelotense, é bageense, mas mora na cidade faz mais de dez anos. Bageense tem fama de machão, exatamente o contrário de quem nasce em Pelotas. Dois pesos e uma só medida. Ele explica, brincalhão: “Acho que é melhor ser pelotense do que bageeense. O bageense tem sempre que estar fazendo pose de machão, já o pelotense, se não for bicha, já está no lucro.”
Já é mais de meia-noite, estamos em um bar da Avenida Bento Gonçalves. Como é sexta-feira, não chove ou faz frio, a madrugada promete: “Vamos lá?”
Seguimos de carro. Primeira parada: Rua Santos Dumont, esquina com a Doutor Cassiano, onde dezenas de travestis fazem ponto, à espera dos clientes. Paulo pára, sem desligar o motor, e uma loira (o) de óculos de grau com ar de professora primária aproxima-se e oferece seus serviços. “Faço tudo”, garante. Preço: 50 reais, mais o motel. “Se for pra passar a noite é mais caro.”
Na quadra seguinte a oferta é ainda maior – meia dúzia de travestis, loiras oxigenadas, morenas, perfilam-se profissionalmente. A demora da escolha irrita um mulato (a):“Escolhe rápido, querido, e leva!” Nova rodada de negociações. Nada feito. Avante.
Mais deles na Rua Barão de Santa Tecla e na Voluntários da Pátria. Paulo calcula mais de 50 travestis em atividade nas ruas, bares e boates da cidade. “Mas se você for escrever sobre isso, não esqueça de dizer que oficialmente Pelotas é a capital do Doce e da conserva, entendeu?”
O Banco Pelotense foi um dos maiores do Brasil nas primeiras décadas do século vinte, e de certa maneira simbolizava a pujança econômica da Princesa do Sul. Nesta reprodução, extraída do Correio do Povo de 1928, um anúncio da instituição que teria, depois disso, poucos anos de vida.