domingo, setembro 18, 2016

O domingo de 1954 em que Porto Alegre quase esteve nas mãos de mil presidiários em fuga



Revista do Globo: dando eco ao que pensavam os porto-alegrenses, lembrou que o local era uma "chaga no centro da cidade." O Cadeião foi desativado no início dos anos sessenta, com a construção do atual Presídio Central.


Pesquisa e Texto: Vitor Minas
   Um “plano diabólico” para a fuga em massa de mais de mil detentos, “celerados da pior espécie” – assim os jornais resumiram um dos fatos mais marcantes na história de Porto Alegre, o incêndio na Casa de Correção, o “horrendo cadeião da Ponta do Gasômetro”, a “casa do inferno”, a “casa dos horrores”, o “tétrico casarão”, ocorrido três meses depois do quebra-quebra pela morte de Getúlio Vargas e mais um episódio no capítulo dos grandes sinistros em prédios públicos registrados na década de cinquenta na capital gaúcha.
    Era o dia 28, último domingo do mês de novembro de 1954, nem haviam transcorridas duas semanas da eleição de Ildo Meneghetti como novo governador rio-grandense e dois meses da inauguração oficial do Estádio Olímpico quando o complexo prisional às margens do Guaíba ardeu em chamas durante quase 20 horas, expelindo rolos de fumaça que podiam ser avistados dos quatro cantos da cidade. Cidade que temeu seriamente pela própria sorte: caso tal tentativa de fuga tivesse dado certo as consequências seriam imprevisíveis para os seus 500 mil habitantes.
    Tudo começou às 18h30min, logo após o encerramento do horário das visitas na rebatizada “Penitenciária Industrial”, já então considerada uma das piores do Brasil, uma “masmorra medieval” com capacidade para 300 presos, porém superlotada por mais de mil.
   O fogo irrompeu na cela 72, no segundo andar, na parte dos fundos da construção, e se propagou com uma rapidez incrível, atingindo também a padaria e a tipografia – até porque tudo havia sido planejado por um grupo de presidiários, os quais praticamente controlavam o funcionamento interno da instituição, tal como hoje dividida em facções criminosas. Desde o mês de agosto daquele ano nada menos do que três princípios de incêndios e de motins já haviam ocorrido ali e a deflagração e outro parecia simples questão de tempo. No dia anterior os agentes penitenciários haviam encontrado no forro de uma das celas um colchão, um monte de palhas e oito litros de gasolina. O clima entre os detentos era, mais do que nunca, de extraordinária tensão – os nervos estavam à flor da pele.
    No entardecer daquele domingo, encerrado o horário de visitas, depois da conferência, um grupo recusou-se a voltar às celas – prenunciando o que viria a seguir, eles só concordaram com isto sob a promessa dos agentes de que estas permaneceriam abertas. Com o início repentino das chamas outro agrupamento passou a percorrer as demais celas: armados de facas, facões, adagas e porretes, obrigaram os outros detentos a também incendiar tudo.
   Em seguida, em “estrondo”, todos começaram a correr pelos corredores em direção à parte térrea e ao portão, forçando a saída. Segundo a direção, havia 1.093 apenados no local, contra não mais do que 40 brigadianos e agentes penitenciários para contê-los. Os bombeiros chegaram em poucos minutos, vindos da estação central, na Praça Rui Barbosa, enquanto homens da brigada e um grupo de socorro da Guarda Municipal (ex-polícia de choque), comandados pelo delegado José Henrique Mariante, detinham os revoltosos a golpes de cassetete e bombas de gás lacrimogêneo, a muito custo impedindo que chegassem à rouparia: se isso acontecesse eles teriam acesso a roupas civis e poderiam se misturar até mesmo às autoridades e fugir às ruas.
   Estabeleceu-se no pátio um “cinturão” de segurança, com duas linhas de praças da Brigada armados com fuzis-metralhadoras e soldados com baionetas caladas, que “calçavam” e imobilizavam os presos contra as paredes. Nesse trabalho destacou-se o tenente Cantalício Camargo, comandante do destacamento local. Com poucos recursos, e dando apenas três rajadas de metralhadora para o alto, ele e seus homens enfrentaram a maré humana de mais de 500 presos, conseguindo fazer – oficialmente sem vítimas fatais – que recuassem.
    A raivosa determinação de destruir de vez o velho cadeião, queimando-o inteiramente, e a certeza de que o plano havia sido elaborado com a participação de gente de fora das grades, fora, evidenciadas pelo fato de que, no mesmo instante em que as chamas se propagavam às margens do Guaíba, os bombeiros haviam se deslocado para combater outra ocorrência em um matagal do morro de Teresópolis, adiante do final da linha dos bondes. Segundo os repórteres, de lá divisava-se perfeitamente o interior do presídio, o que levantava a suspeita de que a pessoa que ateou fogo no terreno pudesse ser comandada à distância pelos detentos, quem sabe através de um jogo de espelhos. Do mesmo modo estes poderiam, das janelas da Casa, avistar a chegada dos caminhões. Outro fato sintomático foi a depredação antecipada da bomba de água do Cadeião.
PÂNICO NA CIDADE – A possibilidade de que cerca de mil homens conseguissem fugir e se espalhassem pelas ruas da cidade, tomando a população de refém, a visão dos rolos de fumaça, o cair da noite, bem como a péssima fama da instituição prisional, a promiscuidade, o histórico de fugas e os fatos bárbaros que lá ocorriam geraram um evidente clima de medo entre os moradores da capital, os quais, naquele entardecer de domingo, encerravam o seu pacato e modorrento final de semana.
     Falava-se inicialmente em muitos mortos e em sangrentas cenas de ajuste de contas entre os próprios presos, com inúmeros esfaqueamentos e até degolas. Um preso disse aos repórteres tem visto uma cabeça jogada dentro de um vaso sanitário. Todavia, pelas versões oficiais, não só nenhum sentenciado teria conseguido se evadir como ninguém, fosse apenado, policial ou funcionário, morreu durante ou depois do episódio. Aos poucos, em contrapartida, surgiam relatos de alguns funcionários que enfrentaram o perigo das chamas e da violência para retirar detentos que ficaram presos em suas celas e outros, doentes (a maioria com tuberculose) hospedados na enfermaria e mesmo os inválidos ou com dificuldades de locomoção.
     Na edição de terça-feira, 30, jornal Folha da Tarde, na matéria “A Trama Sinistra dos Presidiários”, relatou o clima depois do incêndio, quando a situação já havia sido dominada, algo que revela o inferno humano que caracterizava o local: “Em todas as fisionomias dos presos notava-se intensa satisfação. Riam e pilheriavam já que, para eles, qualquer situação será melhor do que a da Casa de Correção. Um presidiário adiantou-nos que há muito vinha entrando gasolina no presídio, em pequenas quantidades, e que em todas as celas havia um foco preparado ao qual foi ateado fogo quando deram alarme na primeira, a 72”. Já o Correio do Povo lembrou que “foi um sinistro dos mais terríveis de que se tem notícia” e que se o plano desse certo “Porto Alegre estaria até agora em pânico, com suas ruas invadidas por homens para quem os conceitos de vida e de respeito ao próximo pouco ou nada significam.”
TRANSFERENCIA PARA MARIANTE – Em grandes operações de segurança os detentos foram sendo realocados em diferentes locais – quartéis da brigada, delegacias de polícia, no Instituto Psiquiátrico Forense (manicômio judiciário) e, principalmente, na Colônia Penal Daltro Filho, na localidade de Mariante, município de Venâncio Aires, para onde cerca de 300 deles foram conduzidos em barcaças do DAER – a viagem pelo Jacuí demorava cerca de quatro horas, com os revoltosos vigiados por soldados armados de metralhadoras. O policiamento na colônia agrícola já havia sido fortemente reforçado por uma companhia do Primeiro Batalhão de Caçadores.  
   Na Casa de Detenção permaneceram 550 homens, abrigados em barracas, em pavilhões não totalmente queimados ou recolhidos aos fétidos e úmidos porões, o “buraco”, enquanto os mais colaborativos voltavam às suas funções habituais. Para a Oitava Delegacia de Polícia, em Petrópolis, seguiram os elementos mais perigosos, entre os quais aqueles apontados como os líderes da rebelião. O chefe do Departamento de Institutos Penais do Estado, Neu Reinert, ordenou o isolamento total do presídio, proibindo qualquer tipo de visitas. O desespero maior, no entanto, provinha dos familiares dos presos, concentrados em frente e que imploravam por notícias.
    Em depoimento oficial um preso chamado Vavá – ou Gaspar Ávila da Silva, líder de quadrilha - afirmou ter sido ele o principal líder do movimento, junto com Washington Aires, o Paulistinha, e Nelson Bassani, os três agora recolhidos aos xadrezes da Oitava DP. As declarações de Vavá surpreenderam as autoridades – até mesmo ao secretário do Interior e Justiça, Theobaldo Neumann, e o diretor do presídio, Aires Rodrigues da Cunha - já que era um preso considerado de bom comportamento. Outro detento chamado Veríssimo Caduri Leal também assumiu a liderança.
ESCOLA DOS VÍCIOS – Em maio de 1971, quando o antigo Cadeião já tinha vindo abaixo, o repórter Isaías Valiatti, durante anos setorista policial da Caldas Júnior e nome reconhecido da imprensa gaúcha, escreveu um interessante artigo intitulado “Casa de Perversão”:
   “Felizmente nem sequer o portão da medonha masmorra que tinha o nome de Casa de Correção ficou de pé para lembrar um passado indescritível. Vamos e venhamos, para que conservar a memória de coisas horríveis? O mundo talvez não se torne ideal com a supressão de imagens nefandas, mas pelo menos a nova geração não terá de perguntar: “O que é aquilo ali?” E a resposta, para ser correta, seria longa, chocante e incompreensível. Não tenho engenho e arte para descrever o que vi e ouvi na medieval cadeia ao longo de tristes anos de reportagem policial para o Correio do Povo e, em certa época, para a Folha da Tarde. Espetáculos que superavam a imaginação de Hitchcock e cenas que nem Dante conseguiu traçar em seu Inferno repetiam-se de tempos em tempos, entre um motim e um incêndio provocados pelos próprios detentos. Paradoxalmente, a Casa de Correção era, em verdade, a escola dos vícios e das anomalias que só uma Casa de Perversão seria capaz de “ensinar” e praticar.
   “Por mais de uma vez, através das colunas deste jornal, chamei, juntamente com outras vozes que terminaram ecoando, contra o claustro imundo e revoltante que era a Casa de Correção. Inadequada sob todos os aspectos, contrariando os mais elementares princípios consagrados pela moderna penalogia, e sempre superlotada – chegou a ter quase 1.500 presos, quando sua capacidade real era para 300 – foi preciso um grande incêndio com um motim sem precedentes, que me coube documentar à época, para chegar-se à conclusão acaciana de que a velha cadeia deveria ser demolida para começar da estaca zero.
   “A penitenciária estadual, localizada no Partenon, pode ter falhas gritantes ou deficiências que devem ser eliminadas, mas jamais chegará a ser o que foi a Casa de Correção. Há problemas de estrutura de funcionamento, de vigilância e de métodos de recuperação que estão sendo encarados em seu devido tempo, mas, creio eu, jamais se encontrará naquele presídio as cenas e as ocorrências tão comuns e freqüentes na famigerada Casa de Correção.
   “Vibrei quando, em 1955, o então governador do Estado presidiu a cerimônia que assinalou a demolição simbólica do vergonhoso presídio. Era o primeiro passo decisivo para riscá-lo definitivamente do mapa da cidade. Era o princípio do fim das celas permanentemente inundadas, pois se localizavam abaixo do nível do Guaíba. Os chamados “republicano” e “democrata”, que num período não muito recuado da nossa história política serviram para castigar os “rebeldes”, iriam desaparecer, juntamente com as amoralidades, os assassinatos com requintes de barbarismo, as negociatas entre presos e funcionários, o tráfico de tóxicos e de álcool, enfim, as bestialidades entre seres que cada vez mais se degradavam num processo crescente de sordidez humana, típico do submundo que era a Casa de Correção.
   “A despeito de tudo isso, surgiram opiniões em favor da manutenção de algo que lembrasse o cárcere e as muralhas que o cercavam. Serviria – argumentavam – como motivação histórica ou turística.
   “Mas eu não estava só. O venerando e bondoso padre Pio, por longos e tenebrosos anos o capelão do extinto presídio, também admitia uma única saída: a destruição total, o arrasamento da Casa de Correção. As razões, como vemos, dispensam maiores comentários.
    “Conservar a imagem da Casa de Correção – respeitadas as opiniões em contrário – seria o mesmo que guardar as imagens de atrocidades que fazem a humanidade recuar no tempo e no espaço. Seria a negação, a antítese do próprio homem.”
    Na realidade o problema prisional gaúcho era crônico e vinha desde o século XIX, e a Casa de Correção tão somente simbolizava os horrores e as iniquidades de tal sistema.
   Quando a primeira parte da sua construção foi concluída, em 1855, era chamada de Cadeia Civil e abrigou inicialmente cerca de 200 presos. Construída pelos braços de escravos, suas paredes, formadas pela junção de grandes pedras, chegavam a ter mais de um metro de espessura.  A localização à beira do Guaíba se explicava pelo fácil acesso à água, pela questão da higiene – os dejetos seriam jogados no rio – pelo solo rochoso para assentar firmemente as suas fundações e também pelas características geográficas do local, uma “quina” da cidade e que então passou a ser chamada de Ponta da Cadeia. Em 1897, nos primórdios da República, segundo os historiadores, ganhou o nome oficial de Casa de Correção. A partir daí, de ano a ano, a sua população carcerária só foi aumentando, incluindo presos políticos dos vários movimentos de revolta que caracterizaram o Rio Grande.

    A Casa de Correção teve sua demolição concluída oficialmente no dia 11 de maio de 1967, uma quinta-feira. Uma equipe de funcionários da Prefeitura (Célio Marques Fernandes era o prefeito de Porto Alegre), sob a coordenação do engenheiro João Antonio Dib, dava fim a uma era de horrores que no entanto se repetiria com o não menos infame Presídio Estadual da Chácara das Bananeiras (bairro Partenon), inaugurado em 1963 e bem mais distante dos olhos da imprensa.  

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