domingo, janeiro 27, 2019

Caco Barcelos, ex-taxista, acho que o acaso foi determinante na sua carreira

Extraído do portal Coletiva.net, com autorização. Publicação original em 19 de maio de 2009. Republicação

Cláudio Barcelos de Barcelos tem medo da morte, mas, ao longo de  40 anos de carreira, o repórter gaúcho não hesitou em colocar sua vida em risco, e por diversas vezes. Tudo em nome do Jornalismo. Sinônimo de qualidade e, também, referência na reportagem investigativa, Caco Barcellos se especializou em matérias que denunciam abusos, violência e injustiça social. Aos 59 anos, acumula experiência como repórter da Rede Globo, onde comanda e divide o programa “Profissão Repórter” com jovens profissionais em início de carreira.

Caco contabiliza mais de 20 prêmios de jornalismo, entre eles uma das maiores distinções do meio, o Prêmio Vladimir Herzog. É autor dos livros “Nicarágua: a revolução das crianças”, de 1982, “Rota 66 - A História da Polícia que Mata”, de 1992, e O Abusado: O Dono do Morro Dona Marta, de 2003. As duas últimas obras publicadas lhe custaram anos de investigação (oito apenas no Rota 66) e lhe renderam dois Prêmios Jabutis, em 1993 e 2004, além, é claro, de inúmeras ameaças. Depois da publicação deste livro, que levou à identificação de mais de quatro mil vítimas jovens e pobres dos policiais paulistas, passou um período fora do Brasil, como correspondente da Rede Globo em Londres. No ano passado, recebeu o Prêmio Especial das Nações Unidas, como um dos cinco jornalistas que mais se destacaram, na defesa dos direitos humanos no Brasil.

Acaso, o culpado
Na vida e na carreira de Caco, o acaso sempre foi uma constante amigável e foi por mera casualidade que ele foi parar no Jornalismo. Depois de concluir o Ensino Médio, no Colégio Júlio de Castilhos, o Julinho, decidiu que estudaria para ser engenheiro. Gostava de escrever desde criança, mas tinha vergonha de mostrar seus textos. O amor às letras superou a timidez quando concordou em colaborar com o jornal do Centro Acadêmico de Engenharia.
Mais tarde, em uma verdadeira “fase hippie”, escrevia para uma publicação que era vendida de mão em mão nas ruas por ele e seus amigos. Certa vez, o impresso foi adquirido por um jornalista, que gostou do resultado e convidou os jovens para fazerem um teste na inovadora Folha da Manhã, do grupo Caldas Júnior. A paixão pela profissão foi imediata. Foi admitido como estagiário, em 1973, mas os colegas não sabiam que Caco era estudante de Engenharia. Quando os editores manifestaram interesse em contratá-lo, correu para fazer a transferência para a Comunicação.
Nessa época, para pagar a faculdade e ajudar nas despesas de casa, além de atuar na Folha da Manhã, trabalhava como taxista. Caco exerceu a atividade dos 18 aos 23 anos, mas nenhum dos seus colegas da FM sabia. “Lembro que meu ponto era junto a um hotel no centro da cidade, e eu morria de medo de os meus colegas me flagrarem e pensarem: ‘mas taxista não pode trabalhar em redação’. Até que um dia alguém me descobriu e, ao invés de brigarem comigo, me mandaram escrever uma matéria sobre a minha experiência como taxista”, conta. Quando o salário melhorou, deixou a praça.
A saída do jornal do grupo Caldas Júnior ocorreu em 1975, em um episódio “muito chato”, segundo ele. Uma matéria que estampava sua assinatura resultou na demissão de 21 profissionais do jornal, incluindo ele mesmo. O texto tratava das “partidas de futebol” que ocorriam na delegacia de Canoas, onde presos eram torturados e agredidos com pontapés. O “jogo” contava ainda com um “juiz” que apitava para alertar os agressores da presença de pessoas indesejáveis. A matéria não agradou à Secretaria de Segurança, que exigiu o afastamento do repórter. Ele foi demitido, e, solidários, demitiram-se as duas dezenas de colegas.
Depois disso, dedicou cerca de cinco anos à imprensa alternativa, tendo atuado na Coojornal e na revista Versus, pela qual viajava pela América do Sul e Central em busca de boas histórias sobre os povos latinos. Nas quase quatro décadas de profissão, também passou por importantes jornais e revistas brasileiras, como Veja e Istoé.
Os olhos brilhantes e o tom da fala não enganam: Caco tem orgulho de nunca ter deixado de ser repórter “um dia sequer”. A única vez que deveria ter exercido um cargo de chefia, como editor-substituto no Jornal da Tarde, em São Paulo, foi tomar um cafezinho, viu uma movimentação estranha no hotel em frente à lanchonete onde estava e se infiltrou na equipe médica que atendia à ocorrência. E naquele dia, ao invés de fechar a edição do jornal, preocupou-se em desvendar um homicídio misterioso. Às 3h da madrugada, o jornalista, que começou o dia como editor, chegou à redação com um texto exclusivo em mãos.
Apesar das raízes no jornalismo impresso, em 1985, quando morava em Nova Iorque, ficou encantado com as reportagens televisivas. Já havia recebido um convite para integrar o time de jornalistas da Rede Globo, mas recusou por considerar a emissora muito “oficialista”. Voltou atrás e, em seguida, virou repórter do Jornal Nacional, do Fantástico e do Globo Repórter. Há 10 anos, criou um projeto inovador: queria fazer reportagem com vários olhares simultâneos, e ao mesmo tempo revelar os bastidores, os erros e os acertos, as dúvidas, as questões éticas do trabalho. Assim, em 2006 nascia “Profissão Repórter”. O programa, que nasceu como quadro do Fantástico, hoje é exibido todas as terças-feiras à noite.
Pé no acelerador
Caco nunca fumou nem usou drogas e – surpresa, em se tratando de jornalista... – nunca tomou um porre. Não faltaram tentativas para embebedá-lo, mas, segundo ele, essa é uma tarefa difícil: quanto mais bebe, mais sóbrio e careta fica. “Certa vez, na Guatemala, eu e meus amigos tomamos três garrafas de rum. Fui dormir sóbrio, e caí da cama, também sóbrio, mas vibrei como se aquele fosse meu primeiro porre. Na verdade, tratava-se do maior terremoto da história da Guatemala”, conta. O fenômeno matou mais de 20 mil pessoas, e, acaso do destino, Caco e seus companheiros formavam a única equipe brasileira no local, que acabou tendo que se dividir entre a cobertura e o socorro às vítimas. A primeira esposa do jornalista, a fotógrafa Avani, também estava no local e grávida do primeiro filho do casal.
Depois do episódio, Caco e Avani fixaram residência em São Paulo para que o pequeno Ian pudesse nascer. Ele lembra que, com o dinheiro da publicação dos textos sobre o terremoto, o casal conseguiu pagar os três meses de caução do imóvel alugado na capital paulista e, ainda, proporcionou certa estabilidade para a jovem família. Hoje, está em seu segundo casamento, com a estilista Beatriz Fragelli, a Bibi, e com ela tem dois filhos, Yuri, 18 anos, e Alice, 10 anos. Do primeiro matrimônio, tem o primogênito Ian, 32 anos.
Calmo, determinado e extremamente responsável, Caco agradece e credita à família os traços positivos de sua personalidade. Da infância, diz trazer lembranças maravilhosas: cresceu no bairro Paternon, em Porto Alegre, no pé do Morro da Cruz, numa rua de chão batido que não tinha nem saneamento básico. “Tive a felicidade de ter uma igreja progressista perto de casa, que estimulava a convergência da molecada dos bairros da vizinhança. A igreja promovia encontros para futebol, que reunia 600 moleques, todos uniformizados e que disputavam campeonatos interbairros”, relata.
O jornalista relata que os jogadores Jorge Guaraci, ex-Portuguesa e Corinthians, e Flávio Minuano, ex-Internacional, Corinthians, Santos e Seleção Brasileira, foram descobertos por “olheiros” do time de várzea. Na vila, também levava uma atividade social muito intensa e lá aprendeu datilografia, linotipia, encadernar livros e noções de primeiros socorros. Ser jogador de futebol era, na realidade, seu grande sonho. “Acho que teria sido mais feliz”, avalia. Hoje, um programa do qual o colorado e flamenguista de coração não abre mão é “bater uma bolinha”. Caco, que se define como um "falso ponta-esquerda que corre na diagonal”, joga no São Paulo Athletic, o Spac, primeiro time profissional do Brasil. Pela equipe, já jogou três vezes no Pacaembu e, numa das ocasiões, colocou uma bola na trave. "Espero ansiosamente pelo dia em que o Dunga vai reconhecer meu talento e me convocar para a Seleção Brasileira”, brinca.
Nascido na capital gaúcha, no dia 5 de março de 1950, é filho da dona-de-casa Antoninha e do frentista e taxista Nérsio, já falecido, e tem uma irmã, Neusa. Os pais humildes nunca mediram esforços para proporcionar qualidade de vida aos filhos. Caco lembra que Nérsio possuía três empregos para garantir o sustento da família. Foi daí que o jornalista herdou o lado batalhador, mas, diferentemente do pai, a frequente e exaustiva rotina de mais de 24 horas de trabalho não é por necessidade e, sim, paixão.
“Quanto eu tive acesso à classe média, me dei conta que tinha amigos que eram carentes, que tinham o máximo de coisas materiais, mas não tinham a convicção e a segurança que eu possuía dentro da minha casa. Muitos meninos tinham seus carros, mas não tinham o mínimo de atenção dos pais. A base toda da minha segurança, de poder sair e viajar pelo mundo, foi meus pais que me deram. Sempre tive a sensação de que eles deram o máximo que poderiam para mim. Sou eternamente grato”, registra.
Com o pai Nérsio, aprendeu a dirigir e, entre várias lições, figura uma que carrega até hoje como forma de filosofia de vida. “Meu pai dizia que o mundo, assim como o trânsito, se divide entre as pessoas que brecam e as que aceleram. Então, não freio. Quando tenho que frear, uso o câmbio, troco de marcha e acelero. Quem breca tem mais chances de capotar, mesmo a 40 por hora”.
E é assim, em ritmo acelerado, que Caco segue a vida. Atualmente, além de passar dias em busca de boas histórias, varar as noites em ilhas de edições e jogar peladas nas poucas horas vagas, trabalha em mais um livro. Em entrevista à Revista Trip, em fevereiro deste ano, revelou que o assunto da próxima obra será sobre a cultura da violência e que será uma “encrenca que vai incomodar muita gente”. Refém da excelência e da qualidade do próprio trabalho, o gaúcho de origens modestas faz história no Jornalismo e, para o futuro, tem um sério projeto: morrer trabalhando. “Se conseguir ir trabalhando até o fim, que maravilhoso para a saúde!” (Coletiva.Net)

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