quarta-feira, junho 17, 2020

O plástico nas águas que Ararigbóia navegou séculos atrás



Se ter febre significa Covid-19, estou passando bem no teste. Toda vez, quando vou ao supermercado aqui próximo comprar o leitinho para as crianças que não tenho, um segurança engravatado e muito educado aponta uma pistola futurista para a minha testa e diz: Tudo certo! Depois do tiro silencioso e indolor na testa eu entro em uma fila indiana - no tempo em que essas filas verticais eram chamadas de "indianas" - e entro nas dependências disso que já foi chamado de "templo do consumo" - na verdade o tal templo é o shopping todo, agora com metade das lojas fechadas.
Bom, vou lá, escolho meus itens - a moça do caixa sempre me faz aquela inteligentíssima pergunta "mais alguma coisa" (qualquer hora vou mandar ela buscar um tapete persa ou um vaso da dinastia Ming) - e saio fora, carregando uma invariável sacola de plástico com as compras dentro.
De tanto ir ao super - afinal, estamos na pandemia - acumulei uma bateria de sacolas plásticas, centenas delas, que uso para revestir a lixeira da cozinha. É uma quantidade realmente impressionante que descarto quando possível. Como é redundante dizer que vivemos a civilização do plástico, iniciada ainda antes da Segunda Guerra, nos EUA - no Brasil demorou um pouco mais - acho que agora, atingimos o paroxismo do fenômeno. É tanto plástico (e o gaúcho, conservador e insensível, recusa-se a levar sacolas de pano ou qualquer outra coisa) que imediatamente a gente se pergunta para onde vai todo esse sintético à base do petróleo e o qual, dizem, leva centenas de anos para se decompor, isso quando se decompõe. Nem o fogo põe fim a tal produto - fica uma gosma resiliente e que nos acompanhará até o fim dos tempos, como a maldição da múmia egípca.
Pois, nesse supermercado, há uma peixaria, com as mais variadas criaturas coméstíveis do mar e dos rios e lagoas, todos em meio ao gelo picado. Há salmões, traíras, tainhas, trutas, tilápias, além de camarão e outras frescuras deliciosas.
Sin embargo, como diriam os castelhanos, toda ocasião em que passo pela peixaria penso nesses peixes, agora defuntos, e no que eles são no mar e em água doce. São belos e convidativos ao paladar, como todos os peixes. Porém, nessa hora, sempre imagino tais espécies aquáticas em sua vida no mar e também nas tartarugas, que agora estão morrendo de tanto plástico que ingerem, confundindo-os com alimento do dia a dia. E aí lembro da barca da Cantareira, de onde eu seguia de Niterói para o Rio, anos atrás, viagem maravilhosa pela Baía de Guanabara, vendo aquela cloaca salgada repleta de toda sorte de imundícies, incluindo, claro, lindos e plácidos sacos plásticos a boiar sobre as águas que o cacique Ararigbóia atravessou, séculos atrás, em pirogas, sobre um mar limpo como chão de farmácia. (Vitor Minas)

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