quarta-feira, junho 24, 2020

A ambiência microbiana da baixeza e a contingência orgânica do sexo

Houve um tempo, não tão distante assim, em que gente do povão, sem instrução formal - autodidatas ou quase isto, na verdade - gostavam de ler poesias e até romances. Sapateiros, cobradores de ônibus, amoladores de faca, vigias, peões, serventes de obras, porteiros - encontrei alguns exemplares dessa comovedora estirpe de pessoas do chamado baixo escalão social muitas vezes, em um bar qualquer - geralmente um pé-sujo de alguma esquina de uma pequena ou grande cidade, quase sempre homens de meia idade ou já curtindo a velhice 
Em todas as ocasiões, lembro o seguinte: depois de algumas biritas, com o sentimentalismo amistoso do povo brasileiro - afinal, dizem os estrangeiros que somos mesmo um povo cordial (talvez eles é que sejam grosseiros demais) - e após já termos estabelecido relação de camaradagem (me identificavam com um cara "inteligente", e vá que sou quase isso mesmo). Então, lá pelas tantas, quase com saudosismo do que poderiam ter sido e não foram, passavam a falar dos livros que haviam lido - poesia, romance. Poucos, claro, todavia obras literárias que os marcaram e dos quais eram capazes, vejam só, de recitar trechos inteiros. 
Em um bar aqui do Partenon, bairro vizinho, fui amigo do seu Manoel - ex-brigadiano que sofreu um AVC, pessoa inteligente, vindo da fronteira. Pois o seu Manoel, tomando a sua cachacinha diária, me falava com entusiasmo de ninguém menos que Hemingway, do qual tinha lido a novela O Velho e O Mar. Ele amava esse livro. 
Não era cascata sua e, tenho certeza absoluta, não tentava me impressionar e nem tinha porquê: citava inclusive o nome do pescador Santiago, considerado azarado e azarento, pois há uns 40 dias não pescava mais nenhum peixe, da sua luta para dominar e trazer ao porto o gigantesco marlin, ou peixe-espada, sei lá - no final, os tubarões comeram tudo e ficou só a carcaça, porém o velho Santiago mostrou a todos em volta sua fibra e perseverança (é o que os críticos depois chamaram, a propósito dos personagens de Hemingway, a "vitória na derrota"). 
Na fronteira também conheci um sujeito, meio trambiqueiro, meio contrabandista - pai de um ex-amigo meu - que igualmente havia lido O Velho e o Mar, e também adorara a história, tal como o seu Manoel. Creio que, para um escritor, ter a honra de ser lido e citado por alguém do povão, num distante boteco de um país semibárbaro e quase analfabeto chamado Brasil, já paga o esforço de escrever.
Outro escritor brasileiro que ainda tem uma escondida e fiel legião de leitores, gente da antiga, é o chamado Poeta da Morte, o paraibano
Augusto dos Anjos, um gênio indiscutível morreu no início do século passado em Minas, onde era professor, aos 30 anos, de pneumonia. É impossível, para quem o leu, esquecer os versos e rimas mórbidos e desconcertantes do seu único livro - Eu.
Esses dias critiquei um amigo meu, indivíduo boca grande, dizendo que ele tinha uma "língua hidrófoba" - pois é, citei Augusto dos Anjos, ipsis literis. O poeta que também falava na "ambiência microbiana da baixeza", "contingência orgânica do sexo", "esforço ultraepilético", etc, e dizia: "Há mais filosofia neste meu escarro que em toda moral do cristianismo". Genial. 
Augusto dos Anjos era um pessimista, um mórbido fixado na putrefação do corpo, nas doenças, na morte, na decadência e no trágico destino humano: "Estás velho, de vós o mundo é farto, e hoje que a sociedade vos enxota, somente as bruxas negras da derrota frequentam diariamente vosso quarto." 
As mais conhecidas frases dele - já de domínio público - são "a mão que afaga é a mesma que apedreja" e "o beijo é a véspera do escarro".
Taí uma leitura bem condizente com estes tempos de pandemia. Melhor: ouçam o Áudiolivro no Youtube, pois o cara é daqueles poetas que merecem ser lidos em voz alta. Só não façam isso na hora do almoço, almas pigméias, que o estômago pode regurgitar em vossos corpos putrefatos.

Nenhum comentário: