domingo, janeiro 11, 2009

Crítica literária de Receitas Culinárias

Ernani Ssó

Ao contrário do Luis Fernando Verissimo, não boto os pés na cozinha apenas pra saber por que a comida atrasou. Eu me arrisco no perigoso esporte de pilotar um fogão, mesmo sem o talento culinário do cartunista e animador Lancast. Meu linguado ao molho de vinagre se tornou lendário, talvez porque eu, para dar um toque pessoal, comecei eliminando o vinagre. Como ainda me interesso por literatura, leio muitas receitas, avaliando o potencial, como diria algum acadêmico, de palatabilidade e os méritos literários ao mesmo tempo. Daí a pensar num novo gênero, a crítica literária de receitas, foi um passo.
Em geral o autor da receita mostra seu gênio ou inépcia no capítulo Modo de fazer. Mas topei com um sujeito que quebra a cara na lista dos ingredientes, numa receita de tortinha de morango. Onde devia constar dois ovos, está “duas unidades de ovos grandes”. Onde devia constar a quantidade de farinha, está “o quanto baste de farinha”. A mesma coisa sobre manteiga para untar as forminhas. Ora, vá ser pomposo assim na cozinha da Academia Brasileira de Letras.
Leituras e cansaços
Esta nota é bastante antipática, mas que fazer? Certas coisas precisam ser ditas. A gente não pode ficar concorrendo à coroa de miss simpatia o tempo todo. Agora, confesso, o que me preocupa mesmo é a tristeza que há por trás dela.
Até os 25 anos, mais ou menos, eu lia todos os livros até o fim. Até aí também li todos os autores que fizeram minha cabeça, com exceção de Graham Greene e Ítalo Svevo, que enfrentei já em adiantado estado de marmanjice.
Com você, não sei, mas de um ponto pra frente comecei a ler editando, quer dizer, com um lápis vermelho mental que risca descrições ou corrige cenas, diálogos, frases. Comecei a pular pra caramba. Aquele interesse e paciência que me mantiveram impávidos frente a chatices mortais como Retrato do artista quando jovem, ou Os sofrimentos do jovem Wherter, foram se esfiapando nas beiradas até não restar praticamente nada.
Com o tempo aperfeiçoei o meu pulo: depois de vinte, trinta páginas, largo a maioria dos livros. Vinte, trinta páginas? Muitos livros não me duram parágrafos. É provável que eu venha cometendo uma injustiça depois da outra. Edgar Vasques, ao saber que não suportei Onde os fracos não têm vez, me disse que eu devia dar uma chance ao Cormac McCarthy. Por quê? Eu comecei dando chance a mais de cem da mesma laia, romancistas que descrevem minuciosamente a cena, como se fosse um roteiro, começando pelo mais simpático deles, Dashiell Hammett. O que acontece é que, se você leu pra valer um ou dois mil livros, se releu uns trezentos — alguns dez, quinze vezes —, você fica pior que cavalo de circo, sabe todos os truques.
O que os bons livros dizem são, no fundo, mais ou menos as mesmas coisas. Daí a gente se interessa pela forma como essas coisas são ditas. Se a forma não dá aquele tempero extra, babaus.
Umberto Eco
Umberto Eco disse que não lê os novos romancistas. Tem ódio dos que são melhores que ele e o mesmo ódio dos piores.
Se Umberto Eco se limitasse a dizer que não lê os novos romancistas porque odeia encontrar outros melhores que ele, coisa bastante fácil, por sinal, a gente pensaria na hora que ele está brincando e pegaria um serrote pra fazer cócegas, como se convencionou dizer. Mas ao acrescentar que sente o mesmo ódio pelos piores, se estrepa. Não pode ser o mesmo ódio, nem deve. Deveria ser pena ou algo assim: coitadinho, consegue ser pior que eu. O humor, pra ter graça, tem de obedecer a uma lógica interna, ou revelar pelo absurdo uma verdade oculta. Humberto Eco esvaziou totalmente a frase de sentido.
Isso me dá uma idéia para um conto de ficção científica. Um crítico, enlouquecido, inventa um dispositivo que implanta em escritores. Toda vez que o escritor escreve ou diz uma frase obscura, enrolada, sem sentido, leva um choque. Se insiste, a voltagem aumenta. Certamente isso não ia resolver o problema da literatura, mas muita gente ia ter mais cuidado. Ou viciaria em eletricidade?
Ecos
Não ler gente melhor que a gente, a menos que esteja morta — de preferência há décadas ou séculos — não é um caso cabeludo de vaidade, mas de idiotice extrema. Isso me lembra um sujeito que conheci nos anos 70. Era muito bonito e só namorava jacu, pra realçar o próprio porte. O que pode se dizer, além de bem feito? (Coletiva.net)

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