segunda-feira, março 08, 2010

Anúncios fúnebres
Ernani Ssó

Notei que os anúncios de falecimento ou convite para missa de sétimo dia costumam sair no rodapé da seção de polícia dos jornais. Por quê? O mistério é metafísico ou essas páginas são mais baratas apenas? Notei outra coisa também: nomes como Carlinda, Estranzulina, Herculano ou Libânio são vistos apenas nesses anúncios. Jamais se viu uma Estranzulina viva e atuante. Essa gente parece sair do nada direto pro cemitério. O pior é que as fotos que ilustram os anúncios são típicas. Mesmo fora de contexto, sabemos: trata-se de defunto.
O peso das palavras
Dei uma oficina de tradução, na Feira do Livro. Uma das coisas de que falei é aquilo que o Borges chama de ambiente da palavra. Ele achava que talvez não se pudesse traduzir a palavra “moon” por “luna”, porque há toda uma cultura, uma tradição, enfim, uma rede de referências por trás de “moon”. Estava exagerando, claro, mas entende-se a preocupação dele. Há casos mais grosseiros, falei. Então um dos rapazes, que é tradutor há cinco anos, deu um exemplo brilhante: ao traduzir um romance americano, topou com a seguinte frase: “Ele era bonito como um veado”. No fim não fiquei sabendo como foi solucionado o problema, mas imagino que sem sair do reino animal. Eu apostaria em que ele era bonito como um cavalo.
Cantinho da poesia
Luiz Coronel, no Correio do Povo: “Porque é verão,/ as mulheres exalam/ o aroma das amendoeiras/ e têm o profano sabor da hortelã”. Hummmm. Acho que nunca vi uma mulher em carne e osso. Ou, talvez, a coisa seja menos grave, nunca cheirei uma amendoeira nem provei hortelã. Ou então não sei nada sobre desodorantes íntimos.
O velho espião
John Le Carré, em O jardineiro fiel, deu uma olhadinha nas multinacionais farmacêuticas: as ligações corruptas com políticos e serviços secretos, a forma como destrói cientistas honestos, o teste criminoso de drogas na África. Quer mais? As pesquisas são pagas com dinheiro público, as múltis descontam imposto de renda doando remédio vencido para o terceiro mundo e vendem a 60 dólares uma pílula que poderia custar 60 centavos. Não é um grande romance. Mas é o mais talentoso manual que conheço sobre o funcionamento do que se chama, com unção religiosa, mercado livre.
Policial durão
Na contracapa do medíocre O grande deserto, do James Ellroy, há a seguinte frase do Detroit News: “Um retrato da Los Angeles do pós-guerra em forma de buraco negro. É Hieronimus Bosch encadernado”. Sempre me surpreendo com a capacidade dos americanos de levarem a sério seus escritores de quinta e com a capacidade do resto do mundo de acreditar neles.
Outra historinha de verão
O Farol de Santa Marta, SC, passou de aldeia sonolenta à loucura desenfreada em poucos anos, com hordas de turistas. Numa noite de carnaval, uma amiga minha ouviu uma conversa exemplar num boteco. Estavam na mesa cinco homens e uma mulher, todos aí pelos vinte e poucos anos, todos com aquele ar saudável dos surfistas. Um dos homens disse: “Olha, pessoal, se vamos fazer outra festa hoje, é melhor vocês arrumarem umas garotas. A minha namorada disse que não vai dar mais pra ninguém”. A namorada, como se não estivesse presente, continuou comendo seu sorvete.
Lirismo
Sempre achei que o lirismo não precisa ser necessariamente idiota ou baboso. Mas quase sempre o lirismo acaba sendo o álibi dos crimes literários mais brutais.


Ernani Ssó
redacao@coletiva.com.br
Ernani Ssó se define como “o escritor que veio do frio”: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois. Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças. COLETI vA.NET

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